Reflexões sobre a construção
histórica do Partido
dos Trabalhadores
Sergio Buarque, Olivio Dutra e Lula
Primeira parte
Em 2006, quando fiz a defesa de minha tese de
doutorado, eu disse que meu objetivo era analisar desde um ponto de vista
teológico o pensamento socialista no Partido dos Trabalhadores. E parti do
teólogo Paul Tillich porque em seus escritos, principalmente na sua fase alemã,[1]
ele procurou mostrar que, por sua origem, o pensamento socialista tem base
religiosa e mais precisamente cristã. Nesse sentido, Tillich apresentou um roteiro
e bases teóricas que permitem tal abordagem teológica do pensamento socialista
na formação do Partido dos Trabalhadores.
Agora, passados quase seis anos da defesa, quero
multiplicar com meus leitores internautas, aquela análise teológica do
socialismo, partindo de questões levantadas por Tillich: as relações entre ser
e consciência; as relações entre massa e mobilização; e as relações entre mito
e utopia. Onde, a partir da história da Europa, mostrou que no final da Idade
Média foram lançadas as bases do socialismo contemporâneo, quando grupos romperam
com as estruturas da sociedade medieval e começaram a fazer um caminho que teve
por base a autonomia.
Em
A Decisão Socialista[2], afirmou que o
socialismo é um movimento de oposição, mas também de mão dupla, porque se por
um lado foi um movimento de oposição à sociedade burguesa, por outro, enquanto
mediação, uniu-se à sociedade burguesa na oposição às formas feudais e
patriarcais de sociedade. Entender esta raiz do socialismo ajuda a compreender
as raízes do pensamento político. Assim, na teologia política de Tillich seu
primeiro referencial é o ser.
Nesse
sentido, podemos dizer que Tillich faz uma fenomenologia política quando
analisa questões como o ser, a origem do pensamento político, enquanto mito, e
a partir daí procura trazer à tona os elementos não reflexivos do pensamento
político conservador. E é a partir da análise do pensamento conservador que
Tillich vai explicar o surgimento da democracia e do socialismo.
AS
MATRIZES DA FORMAÇÃO DO PT
O marxismo: ortodoxia e heterodoxia
Em artigo publicado em Das neue Deutschland[3],
em 1919, Paul Tillich considera o socialismo como um produto da evolução
espiritual e econômica, que foi lentamente preparado e que se impôs com a
Renascença e a Reforma e, posteriormente, com o desenvolvimento do capitalismo.
O socialismo surgiu como oposição à cultura autoritária e monolítica da
Idade Média e sedimentou suas bases nas criações culturais autônomas dos
últimos séculos.[4]
O socialismo só pode ser compreendido a partir
desta evolução e sua permanência está ligada diretamente a este
desenvolvimento. Deve-se reafirmar, porém, que é do interior do
cristianismo que brota o socialismo e que um socialismo sem estes pressupostos
é uma quimera. Por isso, ao fazer a análise dos fundamentos do socialismo no
Partido dos Trabalhadores devemos, metodologicamente, entender sobre quais
princípios ele repousa[5].
A organização espiritual e econômica da Idade
Média, afirma Tillich, estava fundada sobre um sistema de centralização da
autoridade que, ancorado no sobrenatural, associava a natureza e o supranatural
numa unidade poderosa[6],
sujeitando comunidades e povos a tal cosmovisão.
A partir do Iluminismo, tal postura foi duramente
questionada, e no domínio espiritual, político, econômico, nada deixou
de ser pensado, medido e negado, enfim, confrontado com a consciência pensante.
Os sistemas de fé, as formas de governo e autoridade, as definições econômicas
sofreram o assalto da autonomia, que não teve nenhum respeito pelas
autoridades, quer se digam humanas ou divinas.[7]
O sistema de autoridade desabou, para alegria de
muito e tristeza de outros. De todas as maneiras, houve o reconhecimento de que
a vida cultural não podia ser pensada sem autonomia, e o socialismo começou a
se fazer presente. Líderes e camponeses tiveram o mesmo desejo: conquistar a
liberdade das mãos do autoritarismo fosse ele imanente ou transcendente.[8]
Assim, a autonomia iniciou o seu reinado, o reinado da
razão.[9]
Pela primeira vez, depois de um milênio e meio, a razão humana não viu limites
para seu poder. Através da análise ela penetrou as profundezas da vida cultural
e social, simultaneamente, e através da síntese dos elementos descobertos
apresentou um sistema novo, racional. Depois de séculos de arbítrio, as pessoas
foram possuídas por uma vontade de dar forma ao mundo de maneira racional.[10]
E a vida econômica também deveria ser formulada racionalmente. Não era para o
prazer de certos indivíduos ou povos que se deveria fazer a lei, mas para a
humanidade inteira, sujeito e objeto dos processos econômicos e quem deveria
fazê-lo a partir de critérios racionais.[11]
A mesma autonomia que substituiu a autoridade, a
partir da razão precisava construir um mundo sem arbítrio. Eis o segundo
fato que o cristianismo deve levar em conta.[12]
Mas, explicou Tillich, sem dúvida foi Marx quem introduziu o “pensamento
histórico objetivo do idealismo alemão no socialismo, ao dizer que a
razão precisa ser separada da decisão humana e colocada ao nível das
necessidades objetivas. O processo dialético é racional e a fé nele é
uma fé na razão: uma fé que adquire uma força enorme graças à sua amarração
metafísica objetiva e que se tornaria o dogma fundamental de milhões de pessoas”.[13]
Foi o processo da própria história que fez o mundo
conformar-se à razão e levou este combate a tornar-se vitorioso. E foi essa
vitória que deu cara ao mundo que conhecemos como moderno. Para Tillich, a fé
na razão está fundamentada sobre os resultados conquistados pela ciência da
natureza. Mas atrás da ciência da natureza veio a cultura moderna. Preparada de
várias maneiras a partir do fim da Idade Média, ela surge com uma força irresistível
na Renascença e “conduziu a uma afirmação alegre deste mundo”, que
durante muito tempo foi negado, desdenhado e rebaixado por um outro onírico e
místico.[14]
Os outros mundos empalideceram diante da nova
astronomia, diante da validade universal das leis da natureza, diante da redescoberta
da beleza do real na arte, diante da consciência de unidade do finito e do
infinito na filosofia da natureza.[15]
Foi assim que a imanência ressoou no humanismo e na filosofia das Luzes, com
Goethe e no idealismo alemão, da mesma maneira que o socialismo se uniu à
consciência da autonomia e à fé do poder formador da razão na construção de um
sentimento unitário da vida e do mundo. “Este é o terceiro fato que o
cristianismo deve levar em conta”[16],
afirmou Tillich. Se o socialismo é, nesse sentido, uma herança da cultura
universal, ele tem, no entanto, uma originalidade que não se restringe
aos conceitos, mas à experiência vivida.
O conceito de humanidade, disse ainda Tillich, que
manifesta a vitória da idéia de tolerância, não teve na evolução da burguesia
mais que uma realização acidental. A consciência da humanidade foi neutralizada
pela consciência de classe, educação e de dependência nacional.[17]
A humanidade se colocou antes de tudo no campo das confissões, sob formas
absolutamente contrárias a idéia de uma transformação racional do mundo. Foi
somente pela pressão sobre os trabalhadores nos primeiros decênios do moderno
capitalismo, explicou Tillich, que nasceu uma “consciência solidária, no
coração do qual está presente o sentimento universal de humanidade, que se opõe
àquele que vê no homem um meio e não um fim”.[18]
O combate contra o feudalismo, contra o
capitalismo, contra o nacionalismo e contra o confessionalismo constitui a
expressão negativa da consciência incondicional de humanidade, que derruba
barreiras e reconhece o humano em cada pessoa. “Este é o quarto fato que o
cristianismo deve levar em conta”[19],
concluiu Tillich.
O que fica claro em Tillich é que autonomia e
socialismo são processos históricos que se complementam, mas que não são
idênticos. O processo de autonomia vivido pela sociedade européia no período
que se abriu a partir do Iluminismo e que pôs em xeque a tradição e o
autoritarismo, serviria de base para a ação socialista. Autonomia é o momento
supremo da razão e da imanência, e é a partir daí que o socialismo construiu um
sentimento unitário da vida e do mundo, embora sua originalidade não se limite
aos conceitos, mas à experiência vivida.
A luta dos trabalhadores contra a alienação e
exclusão social gerou consciência solidária e sentimento universal de
humanidade. Mas, ainda assim, ao se limitar ao campo da autonomia, sem uma
atitude que permita à incondicionalidade apoderar-se da própria autonomia, o
socialismo deixa aberto o caminho para o autoritarismo e o arbítrio.
Quando
olhamos o socialismo latino-americano a partir da crítica ao eurocentrismo,
podemos dizer que hoje se repete o que sucedeu há quinhentos anos com a
conquista da América: o homem europeu, e por extensão estadunidense, constituiu
o sentido do ser latino-americano e do brasileiro, encontrado a partir da
totalidade de sentido européia. Na verdade, o
habitante da América índia, negra e mestiça não foi descoberto como
outro, mas como o mesmo já conhecido e, em seguida negado, ocultado e
transformado em objeto do ego moderno.
O
ponto fundamental dessa crítica é que a Europa, num primeiro momento, e os Estados
Unidos depois descobriram um novo espaço geográfico, compreendeu-o como
horizonte fundamental do ser do centro, campo de batalha no qual exerce uma
práxis de dominação[20]. Tal formulação desconstrói o sistema
ontológico da dominação, a partir da exterioridade do outro como sujeito ético,
como rosto e como corporeidade, que grita e reclama justiça. Os excluídos do
sistema cultural ocidental devem ser tomados como centro de um novo modelo de
racionalidade, ético-crítica.
Diante
das massas crescentes de deserdados que tomam consciência de sua negação originária
como subjetividade excluída ou objetivada dentro do sistema dominante, os
poderosos utilizam a guerra e, se admitem o diálogo, é no interior de sua
comunidade de comunicação hegemônica, que não garante a reprodução e o
desenvolvimento da vida humana. A teologia deve pensar a realidade mundial além
da fronteira do centro, que distingue entre populações dotadas de direitos e
poderes e populações excluídas e utilizadas como instrumentos manipuláveis.
Se
entendermos esse processo de construção da dominação, podemos analisar o
processo de gestação do Partido dos Trabalhadores a partir da exposição que
Tillich faz acerca da passagem da heteronomia à autonomia e, posteriormente, à
teonomia, enquanto ciclos que procuram romper a lógica de ferro da dominação.
Para ele, os movimentos de massa são encontrados em movimentos religiosos, nos
movimentos políticos e raciais de imigrantes e nos movimentos econômicos do
socialismo.[21]
Embora esses movimentos possam ser encontrados em diversas épocas, também o são
em diferentes esferas da cultura. Mas sempre são movimentos de libertação: já
que é parteira de escravos, de povos excluídos, ou de escravos livres,
trabalhadores assalariados, que a industrialização levou a uma dinâmica de
massa que transbordou a história.[22]
Leitor
amigo, se você tiver interesse por conhecimento mais profundo sobre o tema
leia: Jorge Pinheiro, Teologia e
Política, Paul Tillich, Enrique Dussel e a Experiência Brasileira, São
Paulo, Fonte Editorial, 2006.
Nas boas livrarias on-line.
[1] Paul Tillich, La dimension
religieuse de la culture, 1919-1926, Paris, Géneve, Québec, Les Éditions du
Cerf, Éditions Labor et Fides, Les Presses de l’Université Laval, 1990; Christianisme
et Socialisme, Écrits socialistes allemands, 1919-1931, Paris, Géneve,
Québec, Les Éditions du Cerf, Éditions Labor et Fides, Les Presses de
l’Université Laval, 1992; Écrits contre les nazis, 1932-1935, Paris,
Géneve, Québec, Les Éditions du Cerf, Éditions Labor et Fides, Les Presses de
l’Université Laval, 1994.
[2]
Introdução: As duas raízes do pensamento político, Potsdam 1933,
Gesammelte Werke, II, pp. 219-365.
[3] Publicado posteriormente em Christianisme
et Socialisme I in Christianisme et Socialisme, Écrits
socialistes allemands (1919-1931), Les Éditions du Cerf, Éditions Labor et
Fides, Les Presses de l’Université Laval, 1992, pp.23-30.
[4]
Idem, op.cit., p.23.
[5]
Idem, op.cit., p.23.
[6]
Idem, op.cit., p.24.
[7]
Idem, op.cit., p. 24.
[8]
Idem, op.cit., p.24.
[9]
Idem, op.cit., p.24.
[10]
Idem, op.cit. pp.24-25.
[11]
Idem, op.cit, p. 25.
[12]
Idem, op.cit. p.25.
[13]
Idem, op.cit, p. 25.
[14]
Idem, op.cit., p.25.
[15]
Idem, op.cit., p.25.
[16]
Idem, op.cit.,p. 26.
[17]
Idem, op.cit., p.26.
[18]
Idem, op.cit., p.26.
[19]
Idem, op.cit., p.26.
[20]
Alessia Ansaloni, A nova Conquista:
análise de um filósofo periférico, Universidade de Bolonha.
[21]
Idem, op.cit., p. 81.
[22]
Idem, op. cit., p.81.
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