lundi 12 décembre 2011

Teologia e política

Reflexões sobre a construção
histórica do Partido dos Trabalhadores
Sergio Buarque, Olivio Dutra e Lula

Primeira parte

Em 2006, quando fiz a defesa de minha tese de doutorado, eu disse que meu objetivo era analisar desde um ponto de vista teológico o pensamento socialista no Partido dos Trabalhadores. E parti do teólogo Paul Tillich porque em seus escritos, principalmente na sua fase alemã,[1] ele procurou mostrar que, por sua origem, o pensamento socialista tem base religiosa e mais precisamente cristã. Nesse sentido, Tillich apresentou um roteiro e bases teóricas que permitem tal abordagem teológica do pensamento socialista na formação do Partido dos Trabalhadores.

Agora, passados quase seis anos da defesa, quero multiplicar com meus leitores internautas, aquela análise teológica do socialismo, partindo de questões levantadas por Tillich: as relações entre ser e consciência; as relações entre massa e mobilização; e as relações entre mito e utopia. Onde, a partir da história da Europa, mostrou que no final da Idade Média foram lançadas as bases do socialismo contemporâneo, quando grupos romperam com as estruturas da sociedade medieval e começaram a fazer um caminho que teve por base a autonomia.

Em A Decisão Socialista[2], afirmou que o socialismo é um movimento de oposição, mas também de mão dupla, porque se por um lado foi um movimento de oposição à sociedade burguesa, por outro, enquanto mediação, uniu-se à sociedade burguesa na oposição às formas feudais e patriarcais de sociedade. Entender esta raiz do socialismo ajuda a compreender as raízes do pensamento político. Assim, na teologia política de Tillich seu primeiro referencial é o ser.

Nesse sentido, podemos dizer que Tillich faz uma fenomenologia política quando analisa questões como o ser, a origem do pensamento político, enquanto mito, e a partir daí procura trazer à tona os elementos não reflexivos do pensamento político conservador. E é a partir da análise do pensamento conservador que Tillich vai explicar o surgimento da democracia e do socialismo.                                                                            

AS MATRIZES DA FORMAÇÃO DO PT

O marxismo: ortodoxia e heterodoxia

Em artigo publicado em Das neue Deutschland[3], em 1919, Paul Tillich considera o socialismo como um produto da evolução espiritual e econômica, que foi lentamente preparado e que se impôs com a Renascença e a Reforma e, posteriormente, com o desenvolvimento do capitalismo. O socialismo surgiu como oposição à cultura autoritária e monolítica da Idade Média e sedimentou suas bases nas criações culturais autônomas dos últimos séculos.[4]

O socialismo só pode ser compreendido a partir desta evolução e sua permanência está ligada diretamente a este desenvolvimento. Deve-se reafirmar, porém, que é do interior do cristianismo que brota o socialismo e que um socialismo sem estes pressupostos é uma quimera. Por isso, ao fazer a análise dos fundamentos do socialismo no Partido dos Trabalhadores devemos, metodologicamente, entender sobre quais princípios ele repousa[5].

A organização espiritual e econômica da Idade Média, afirma Tillich, estava fundada sobre um sistema de centralização da autoridade que, ancorado no sobrenatural, associava a natureza e o supranatural numa unidade poderosa[6], sujeitando comunidades e povos a tal cosmovisão.

A partir do Iluminismo, tal postura foi duramente questionada, e no domínio espiritual, político, econômico, nada deixou de ser pensado, medido e negado, enfim, confrontado com a consciência pensante. Os sistemas de fé, as formas de governo e autoridade, as definições econômicas sofreram o assalto da autonomia, que não teve nenhum respeito pelas autoridades, quer se digam humanas ou divinas.[7]

O sistema de autoridade desabou, para alegria de muito e tristeza de outros. De todas as maneiras, houve o reconhecimento de que a vida cultural não podia ser pensada sem autonomia, e o socialismo começou a se fazer presente. Líderes e camponeses tiveram o mesmo desejo: conquistar a liberdade das mãos do autoritarismo fosse ele imanente ou transcendente.[8]

Assim, a autonomia iniciou o seu reinado, o reinado da razão.[9] Pela primeira vez, depois de um milênio e meio, a razão humana não viu limites para seu poder. Através da análise ela penetrou as profundezas da vida cultural e social, simultaneamente, e através da síntese dos elementos descobertos apresentou um sistema novo, racional. Depois de séculos de arbítrio, as pessoas foram possuídas por uma vontade de dar forma ao mundo de maneira racional.[10] E a vida econômica também deveria ser formulada racionalmente. Não era para o prazer de certos indivíduos ou povos que se deveria fazer a lei, mas para a humanidade inteira, sujeito e objeto dos processos econômicos e quem deveria fazê-lo a partir de critérios racionais.[11]

A mesma autonomia que substituiu a autoridade, a partir da razão precisava construir um mundo sem arbítrio. Eis o segundo fato que o cristianismo deve levar em conta.[12] Mas, explicou Tillich, sem dúvida foi Marx quem introduziu o “pensamento histórico objetivo do idealismo alemão no socialismo, ao dizer que a razão precisa ser separada da decisão humana e colocada ao nível das necessidades objetivas. O processo dialético é racional e a fé nele é uma fé na razão: uma fé que adquire uma força enorme graças à sua amarração metafísica objetiva e que se tornaria o dogma fundamental de milhões de pessoas”.[13]

Foi o processo da própria história que fez o mundo conformar-se à razão e levou este combate a tornar-se vitorioso. E foi essa vitória que deu cara ao mundo que conhecemos como moderno. Para Tillich, a fé na razão está fundamentada sobre os resultados conquistados pela ciência da natureza. Mas atrás da ciência da natureza veio a cultura moderna. Preparada de várias maneiras a partir do fim da Idade Média, ela surge com uma força irresistível na Renascença e “conduziu a uma afirmação alegre deste mundo”, que durante muito tempo foi negado, desdenhado e rebaixado por um outro onírico e místico.[14]

Os outros mundos empalideceram diante da nova astronomia, diante da validade universal das leis da natureza, diante da redescoberta da beleza do real na arte, diante da consciência de unidade do finito e do infinito na filosofia da natureza.[15] Foi assim que a imanência ressoou no humanismo e na filosofia das Luzes, com Goethe e no idealismo alemão, da mesma maneira que o socialismo se uniu à consciência da autonomia e à fé do poder formador da razão na construção de um sentimento unitário da vida e do mundo. “Este é o terceiro fato que o cristianismo deve levar em conta”[16], afirmou Tillich. Se o socialismo é, nesse sentido, uma herança da cultura universal, ele tem, no entanto, uma originalidade que não se restringe aos conceitos, mas à experiência vivida.

O conceito de humanidade, disse ainda Tillich, que manifesta a vitória da idéia de tolerância, não teve na evolução da burguesia mais que uma realização acidental. A consciência da humanidade foi neutralizada pela consciência de classe, educação e de dependência nacional.[17] A humanidade se colocou antes de tudo no campo das confissões, sob formas absolutamente contrárias a idéia de uma transformação racional do mundo. Foi somente pela pressão sobre os trabalhadores nos primeiros decênios do moderno capitalismo, explicou Tillich, que nasceu uma “consciência solidária, no coração do qual está presente o sentimento universal de humanidade, que se opõe àquele que vê no homem um meio e não um fim”.[18]

O combate contra o feudalismo, contra o capitalismo, contra o nacionalismo e contra o confessionalismo constitui a expressão negativa da consciência incondicional de humanidade, que derruba barreiras e reconhece o humano em cada pessoa. “Este é o quarto fato que o cristianismo deve levar em conta”[19], concluiu Tillich.

O que fica claro em Tillich é que autonomia e socialismo são processos históricos que se complementam, mas que não são idênticos. O processo de autonomia vivido pela sociedade européia no período que se abriu a partir do Iluminismo e que pôs em xeque a tradição e o autoritarismo, serviria de base para a ação socialista. Autonomia é o momento supremo da razão e da imanência, e é a partir daí que o socialismo construiu um sentimento unitário da vida e do mundo, embora sua originalidade não se limite aos conceitos, mas à experiência vivida.

A luta dos trabalhadores contra a alienação e exclusão social gerou consciência solidária e sentimento universal de humanidade. Mas, ainda assim, ao se limitar ao campo da autonomia, sem uma atitude que permita à incondicionalidade apoderar-se da própria autonomia, o socialismo deixa aberto o caminho para o autoritarismo e o arbítrio.

Quando olhamos o socialismo latino-americano a partir da crítica ao eurocentrismo, podemos dizer que hoje se repete o que sucedeu há quinhentos anos com a conquista da América: o homem europeu, e por extensão estadunidense, constituiu o sentido do ser latino-americano e do brasileiro, encontrado a partir da totalidade de sentido européia. Na verdade, o  habitante da América índia, negra e mestiça não foi descoberto como outro, mas como o mesmo já conhecido e, em seguida negado, ocultado e transformado em objeto do ego moderno.

O ponto fundamental dessa crítica é que a Europa, num primeiro momento, e os Estados Unidos depois descobriram um novo espaço geográfico, compreendeu-o como horizonte fundamental do ser do centro, campo de batalha no qual exerce uma práxis de dominação[20]. Tal formulação desconstrói o sistema ontológico da dominação, a partir da exterioridade do outro como sujeito ético, como rosto e como corporeidade, que grita e reclama justiça. Os excluídos do sistema cultural ocidental devem ser tomados como centro de um novo modelo de racionalidade, ético-crítica.

Diante das massas crescentes de deserdados que tomam consciência de sua negação originária como subjetividade excluída ou objetivada dentro do sistema dominante, os poderosos utilizam a guerra e, se admitem o diálogo, é no interior de sua comunidade de comunicação hegemônica, que não garante a reprodução e o desenvolvimento da vida humana. A teologia deve pensar a realidade mundial além da fronteira do centro, que distingue entre populações dotadas de direitos e poderes e populações excluídas e utilizadas como instrumentos manipuláveis.

Se entendermos esse processo de construção da dominação, podemos analisar o processo de gestação do Partido dos Trabalhadores a partir da exposição que Tillich faz acerca da passagem da heteronomia à autonomia e, posteriormente, à teonomia, enquanto ciclos que procuram romper a lógica de ferro da dominação. Para ele, os movimentos de massa são encontrados em movimentos religiosos, nos movimentos políticos e raciais de imigrantes e nos movimentos econômicos do socialismo.[21] Embora esses movimentos possam ser encontrados em diversas épocas, também o são em diferentes esferas da cultura. Mas sempre são movimentos de libertação: já que é parteira de escravos, de povos excluídos, ou de escravos livres, trabalhadores assalariados, que a industrialização levou a uma dinâmica de massa que transbordou a história.[22]


Leitor amigo, se você tiver interesse por conhecimento mais profundo sobre o tema leia: Jorge Pinheiro, Teologia e Política, Paul Tillich, Enrique Dussel e a Experiência Brasileira, São Paulo, Fonte Editorial, 2006.
Nas boas livrarias on-line.



[1] Paul Tillich, La dimension religieuse de la culture, 1919-1926, Paris, Géneve, Québec, Les Éditions du Cerf, Éditions Labor et Fides, Les Presses de l’Université Laval, 1990; Christianisme et Socialisme, Écrits socialistes allemands, 1919-1931, Paris, Géneve, Québec, Les Éditions du Cerf, Éditions Labor et Fides, Les Presses de l’Université Laval, 1992; Écrits contre les nazis, 1932-1935, Paris, Géneve, Québec, Les Éditions du Cerf, Éditions Labor et Fides, Les Presses de l’Université Laval, 1994.
[2] Introdução: As duas raízes do pensamento político, Potsdam 1933, Gesammelte Werke, II, pp. 219-365.
[3] Publicado posteriormente em Christianisme et Socialisme I in Christianisme et Socialisme, Écrits socialistes allemands (1919-1931), Les Éditions du Cerf, Éditions Labor et Fides, Les Presses de l’Université Laval, 1992, pp.23-30.
[4] Idem, op.cit., p.23.
[5] Idem, op.cit., p.23.
[6] Idem, op.cit., p.24.
[7] Idem, op.cit., p. 24.
[8] Idem, op.cit., p.24.
[9] Idem, op.cit., p.24.
[10] Idem, op.cit. pp.24-25.
[11] Idem, op.cit, p. 25.
[12] Idem, op.cit. p.25.
[13] Idem, op.cit, p. 25.
[14] Idem, op.cit., p.25.
[15] Idem, op.cit., p.25.
[16] Idem, op.cit.,p. 26.
[17] Idem, op.cit., p.26.
[18] Idem, op.cit., p.26.
[19] Idem, op.cit., p.26.
[20] Alessia Ansaloni, A nova Conquista: análise de um filósofo periférico, Universidade de Bolonha.
[21] Idem, op.cit., p. 81.
[22] Idem, op. cit., p.81.

vendredi 9 décembre 2011

Judeus estudam Jesus (3)


 David H. Stern


Conheci o rabino David H. Stern nos Estados Unidos, quando lançou uma tradução do B´rit Hadashah, ou seja do Novo Testamento, introduzindo anotações a partir das raízes culturais judaicas presentes nos textos neotestamentários. Esse artigo é parte da Introdução que fez para a edição norte-americana e que foi traduzida para o português por Rogério Portella, quando da publicação do Novo Testamento Judaico pela editora Vida, em 2007.

A tradução de Stern do B´rit Hadashah, que recebeu o título de Novo Testamento Judaico, trabalha com dois conceitos fundantes: “promessa” e “cumprimento”, pois acredita ter Jesus cumprido as promessas do primeiro Testamento. Assim, textos como os de Gênesis 3.15; 12.3; 17.19; 21.12; 28.14; Números 24.17-19 e outros, segundo Stern, remetem a Jesus. O B´rit Hadashah é visto, então, como a nova Torá, e o fim desta Torá é o Massiah. Mas, por que esta versão do B´rit Hadashah é diferente das demais? Porque a tradução teve como um de seus objetivos deixar translúcida a judaicidade do texto. As versões do B´rit Hadashah em português apresentam o texto através de abordagens lingüísticas, culturais e teológicas ocidentais.

É o caso de se perguntar: e o que há de errado com isso? Nada! Ainda que o Evangelho seja de origem judaica, ele não existe só para judeus, mas também para não-judeus. O próprio B´rit Hadashah deixa isso claro, portanto, é sensato que sua mensagem seja comunicada aos não-judeus dentro da compreensão cultural destes. E esta abordagem cumpriu seu objetivo: milhões de não-judeus depositaram sua confiança no D´us de Avraham, Yitz’chak e Ya‘akov e no Massiah judeu, Yeshua.

Mas o B´rit Hadashah é um livro judeu, escrito por judeus, que trata de questões judaicas e que tinha por público-alvo judeus e não-judeus. Por isso a necessidade de restaurar a judaicidade do texto. E se é correto adaptar um livro judeu para a melhor apreciação dos não-judeus, isso não significa que se deva suprimir sua judaicidade inerente. A tradução deste Novo Testamento Judaico evidencia suas características judaicas a partir do título, o que para muitos pode parecer redundante e para outros absurdo. Entretanto, não há separação entre Novo Testamento e pensamento judaico, pois a figura central dos seus escritos é Yeshua, um judeu nascido de judeus em Beit-Lechem, que cresceu entre os judeus em Natzeret, falou aos judeus na Galil, e morreu na capital de Eretz Yisra’el, Yerushalayim.

E se Yeshua ressuscitou, como acredita Stern, ele ainda é judeu, porque está vivo e, afirma, em nenhum lugar a Escritura sugere que tenha cessado de ser judeu. Seus doze seguidores mais íntimos eram judeus. Durante anos todos os seus talmidim eram judeus, alcançando o número de “dezenas de milhares” só em Yerushalayim. O B´rit Hadashah foi escrito por judeus, e Lucas era, ao que tudo indica, um prosélito do judaísmo.

A mensagem de Yeshua foi e é dirigida “especialmente ao judeu, mas também ao não-judeu”. Os judeus levaram o Evangelho aos não-judeus, e não o inverso. Sha’ul, o principal emissário aos não-judeus, foi durante toda a sua vida um judeu praticante, como evidencia o livro de Atos. De fato, a principal questão no início da comunidade não era se um judeu poderia crer em Yeshua, mas se um não-judeu poderia se tornar cristão sem se converter ao judaísmo. E mais: a expiação do Massiah tem sua raiz no sistema sacrificial judaico, a ceia do Senhor origina-se da Páscoa judaica, a imersão batismal é uma prática judaica, e Yeshua disse: “a salvação vem dos judeus”.

A Nova Aliança foi prometida pelo profeta judeu Jeremias. O conceito de Massiah é judeu. A bem da verdade, o Novo Testamento completa o Tanakh, as Escrituras hebraicas outorgadas por D´us ao povo judeu. De forma que o segundo Testamento sem o primeiro é tão impossível quanto o segundo pavimento de uma casa sem o primeiro. E o primeiro sem o segundo é como uma casa sem teto. Além do mais, muito do que está escrito no Novo Testamento é incompreensível à parte do contexto judaico.

Eis aqui um exemplo. Yeshua disse no Sermão do Monte: “Se o seu olho for mau, todo o seu corpo estará em trevas”. O que é um “olho mau”? Alguém que desconheça a cultura judaica da época poderia supor que Yeshua estivesse falando sobre algum tipo de encantamento. Todavia, em hebraico, possuir um ‘ayin ra‘ah, “olho mau”, significa ser sovina; ao passo que ter um ‘ayin tovah, um “olho bom”, equivale a ser generoso. Yeshua está simplesmente incentivando a generosidade e desestimulando a avareza. E esse entendimento combina muito bem com os versículos do contexto: “Onde estiver seu tesouro, aí também estará seu coração (...) você não pode ser escravo de Deus e do dinheiro”.

Segundo Stern, a melhor demonstração do caráter judaico do B´rit Hadashah é também a prova mais convincente de sua veracidade, ou seja, o número de profecias do Tanakh, todas séculos mais velhas que os acontecimentos registrados no B´rit Hadashah, cumpridas na pessoa de Yeshua de Natzeret. A probabilidade de que qualquer pessoa pudesse se encaixar em dezenas de condições proféticas por mero acaso é infinitesimal. Nenhum candidato ao messiado, como Shim‘on Bar-Kokhva ou Shabtai Tzvi, cumpriu mais que umas poucas. Para o rabino, Yeshua cumpriu todas as 52 profecias referentes à sua primeira vinda. As restantes serão cumpridas quando ele retornar em glória. Dessa forma, o Novo Testamento Judaico considera normal pensar no B´rit Hadashah como algo judeu.

Para Stern, há três áreas adicionais nas quais o Novo Testamento Judaico pode ajudar em relação a tikkun-ha‘olam, ao “conserto do mundo” frente ao anti-semitismo cristão, à recusa judaica de aceitar a messianidade de Yeshua e a beligerante separação entre a igreja e o povo judeu.

1. O anti-semitismo cristão. Inicialmente, um círculo vicioso de anti-semitismo cristão se alimenta do B´rit Hadashah. O B´rit Hadashah não contém nenhuma forma de anti-semitismo, mas desde os primeiros dias da igreja, os promotores desse conceito têm distorcido o B´rit Hadashah para justificar a infiltração dessas idéias na teologia cristã. Alguns tradutores do Novo Testamento, ainda que não tenham sido anti-semitas, absorveram a teologia anti-semita e produziram traduções antijudaicas. Os leitores dessas traduções acabaram assumindo posturas anti-semitas e hostis ao judaísmo. Alguns desses leitores se tornaram teólogos que refinaram e desenvolveram o caráter anti-semita da teologia cristã -- eles poderiam até mesmo não ter consciência desse sentimento. Outros se tornaram ativistas em prol do anti-semitismo e perseguiram os judeus, pensando agradar a D´us quando procediam assim. Este círculo vicioso precisa ser quebrado. O Novo Testamento Judaico, acredita Stern, é uma tentativa de remover erros teológicos anti-semitas multisseculares e destacar positivamente sua judaicidade.

2. A desconfiança judaica em relação ao Evangelho. Em segundo lugar, apesar de milhões de judeus habitarem em países ocidentais, tidos como cristãos, a maior parte do povo judeu não aceita Yeshua como Massiah. Ainda que as razões possam incluir a perseguição cristã aos judeus, a verdade é que as cosmovisões ocidentais cedem pouco espaço para D´us ou para o Massiah. E há ainda a recusa ao arrependimento, devido ao modo como o cristianismo representa a si mesmo, e também por causa da alienação induzida pela maior parte das versões do novo Testamento. A ornamentação cultural cristã gentílica e as justificativas teológicas antijudaicas fizeram com que muitos judeus pensassem ser o Novo Testamento um livro não-judeu sobre um deus não-judeu.

O Jesus apresentado nessas traduções diz pouco a respeito da vida judaica. Torna-se difícil para o judeu experimentar Yeshua como ele realmente é, amigo de todo judeu. Ainda que o Novo Testamento Judaico não consiga eliminar todas as barreiras entre os judeus e a desconfiança no Massiah, remove obstáculos culturais, lingüísticos e teológicos. O judeu que ler o Novo Testamento Judaico, acredita Stern, poderá experimentar Yeshua como o Massiah prometido pelo Tanakh ao povo judeu. E poderá perceber que o B´rit Hadashah é tão importante para os judeus quanto para os não-judeus.

3. A separação entre a comunidade cristã e o povo judeu. Séculos de rejeição judaica a Yeshua e de rejeição cristã em relação aos judeus produziram a situação na qual nos encontramos: cristianismo é cristianismo, e judaísmo é judaísmo e os dois jamais se encontrarão. Além disso, muitos judeus e cristãos estão satisfeitos com essa situação. Entretanto, afirma Stern, os cristãos que reconhecem sua união a Yisra’el e não sua substituição, e os judeus identificados com o Massiah judeu devem trabalhar para acabar com este cisma da história, a divisão entre comunidade cristã e povo judeu. Dessa maneira, para Stern, o Novo Testamento Judaico pode ajudar na tarefa do diálogo, mas também na preservação da identidade judaica.

Bibliografia de David H. Stern 

Em inglês
  • Messianic Judaism: A Modern Movement With An Ancient Past, Jewish New Testament Publications, Jerusalem, 2007. 
  • How Jewish Is Christianity? (vv.aa.), ed Louis Goldberg, Zondervan, 2003. 
  • Complete Jewish Bible, Jewish New Testament Publications, Jerusalem, 1998. 
  • The Jewish New Testament Commentary: A Companion Volume to the Jewish New Testament, Jewish New Testament Publishing, Jerusalem, 1992. 
  • Jewish New Testament: A Translation of the New Testament that Expresses its Jewishness, Jewish New Testament Publishing, Jerusalem|Clarksville MD, 1989. 
  • Restoring the Jewishness of the Gospel, Jewish New Testament Publications, Jerusalem, 1988. 
  • Messianic Jewish Manifesto, Jewish New Testament Publications, Jerusalem, 1 Maio 1988. 
Em português
  • Novo Testamento Judaico, São Paulo, Editora Vida, 2007. 
  • Comentário Judaico do Novo Testamento, São Paulo, Editora Atos, 2008. 
  • Bíblia Judaica Completa, São Paulo, Editora Vida, 2011. 


lundi 5 décembre 2011

Learn Hebrew - lesson 1 - The Hebrew Alef-Bet | by eTeacherHebrew.com


Judeus estudam Jesus (2)

Géza Vermès e as várias faces de Jesus


O judeu Géza Vermès, historiador britânico, estudou o Jesus histórico. Começou suas exposições com dados sobre a pessoa de Jesus e o apresentou como carpinteiro, curandeiro, exorcista e rabino que atuou na Galiléia. Analisou também os títulos de messianidade de Jesus: profeta, Senhor, Filho de Homem, Filho de Deus. E acabou por entrar no debate sobre a pessoa do Cristo. E fez isso a partir da literatura intertestamentária e rabínica. Para Vermes, é difícil dizer se, de fato, Jesus aceitou os títulos messiânicos ou se essa apropriação se deu posteriormente com o surgimento da igreja cristã.

Para Vermès, Jesus poderia ser enquadrado num espectro das personagens judaicas de seu tempo. Vermès não faz conjecturas sobre a motivação dos cristãos de apresentarem Jesus como o Messias, mas considera que esse seria um processo natural, já que as notícias de Jesus eram boas, mas a obstinação dos judeus em recusá-lo como Messias, a maior de todas as promessas divinas a Israel, foi o ponto alto de um erro, e este foi o motivo principal para que sua mensagem fosse transferida aos não-judeus.

E quem foi o responsável por esta transição foi Paulo, pois a partir do momento em que foi reconhecido como apóstolo dos gentios (Rm 11.13; At 9.15), e sua missão dirigida aos não-judeus, aprovada pela liderança da igreja em Jerusalém (At 15), a orientação original da atividade de Jesus foi transformada. Não-judeus entraram na igreja em grande número, e ela fez, em conformidade com o modelo de conversão existente no judaísmo daquela época, o seu melhor para satisfazer às novas exigências. Outra transformação, que tocava na substância do judaísmo, em conseqüência do transplante do movimento cristão para solo gentílico, atingiu o status da Torá, que representava para Jesus a fonte da inspiração e o critério do seu modo de viver. Apesar de não ser esta a posição de Jesus, ela foi declarada não só facultativa, mas abolida. A Torá, que ele compreendia com simplicidade e aprofundamento, e que transpunha com integridade, foi definida por Paulo como um instrumento de pecado e morte. Paulo foi o responsável por esta virada que criou o grande abismo entre Judaísmo e Cristandade.

Assim, para Vermès, o confronto entre o cristocentrismo de Paulo e o teocentrismo de Jesus separaria os cristãos dos judeus, mas não os judeus de Jesus. Pois o Jesus de carne e sangue, ouvido e visto na Galiléia e em Jerusalém, intransigente e persistente no seu amor a Deus e ao próximo, estava convencido de que poderia contagiar os seus semelhantes pelo ensino e exemplo com seu apaixonado relacionamento com o Pai no Céu. E com o passar do tempo o judeu simples dos Evangelhos ocupou o segundo plano e cedeu lugar à magnífica e majestosa figura do Cristo da igreja.

Recomendo alguns livros de Géza Vermès. Jesus e mundo do judaísmo (São Paulo: Loyola, 1996), que apresenta estudos que levam além das pesquisas anteriores presente no livro, Jesus, o judeu. Nas pesquisas Vermès recorre aos Manuscritos do Mar Morto e ao Novo Testamento, mas vê a necessidade dos estudos judaicos para a interpretação do Novo Testamento e para entender a compreensão que Jesus tinha de si mesmo.

Outro texto fundamental é As várias faces de Jesus (São Paulo, Editora Record, 2006), onde reorienta o conhecimento comum sobre Jesus. Propõe uma nova abordagem, conferindo o mesmo peso ao Novo Testamento e aos escritos judaicos não-bíblicos. O objetivo é explorar os diferentes perfis do personagem Jesus para analisar como e por que aquele palestino carismático foi elevado à condição divina de Cristo. Nos remete aos primórdios do cristianismo, permitindo a compreensão das condições históricas ocultas nos textos dos evangelhos mais antigos ao privilegiar o evangelho mais recente, o de João.

O autor de As Várias Faces de Jesus considera Cristo, a Igreja primitiva e o Novo Testamento como parte de uma interpretação do judaísmo. Ao despir as interpretações teológicas do contexto dos evangelhos, ele procura revelar a verdadeira identidade, a figura humana de Jesus, e esclarece como os seus ensinamentos foram passados da versão original à nossa civilização.

E por fim, mais um texto: O autêntico Evangelho de Jesus (São Paulo, Editora Record, 2006), onde compara, classifica e examina diferenças entre as afirmações atribuídas a Jesus nos Evangelhos Sinópticos (Mateus, Marcos e Lucas) ao longo de nove capítulos. Assim, aborda temas essenciais do cristianismo como a oração, a última ceia, os momentos próximos à morte, a ressurreição, as maldições, o exorcismo e as bem-aventuranças preservadas em formas distintas pelos evangelistas.

Companheira Dilma Rousseff

http://www.estadao.com.br/noticias/nacional,foto-mostra-dilma-rousseff-durante-interrrogatorio-em-1970,806258,0.htm


Foto inédita mostra a presidente Dilma Rousseff durante interrrogatório em novembro de 1970, na sede da Auditoria Militar, no Rio de Janeiro. Na época, Dilma tinha 22 anos de idade. As pessoas que escondem o rosto, ao fundo, são os oficiais que questionavam a então guerrilheira sobre sua participação na luta armada que ocorria no País. A fotografia faz parte do livro A vida quer coragem, do jornalista Ricardo Amaral. Fonte: Estadão, vide web.

vendredi 2 décembre 2011

Judeus estudam Jesus (1)

Um nazareno sob a ótica de David Flusser

Intelectuais e pensadores judeus nos últimos decênios iniciaram um caminho de diálogo para entender o pensamento de um judeu chamado Jesus. Aqui vamos examinar o trabalho de três deles.


 

Entre os acadêmicos temos David Flusser, que foi professor de Novo Testamento e Cristandade antiga na Universidade Hebraica de Jerusalém. Em 1968 publicou Jesus em Auto-Testemunhos e Documentos de Imagens, onde disse ter Jesus nascido em Nazaré, ser primogênito e ter quatro irmãos e irmãs. Que foi batizado nos anos 28/29 e morreu entre os anos de 30 e 33.

Em sua biografia do nazareno, relata sua formação e a tensão na família, que só aceita sua pregação após a morte dele. Flusser refere-se ao batismo e a dotação do Espírito como um evento histórico. Considera João, o profeta que batizava, como o Elias escatológico. É interessante ver que Flusser considera que a escatologia se realiza através de Jesus, pois a questão do reino de Deus, ponto central da proclamação do nazareno, embutia uma constelação de valores que transcendia a dimensão social de sua pregação. Assim, para Flusser, o reino de Deus teria começado com Jesus.

Segundo o acadêmico, Jesus não foi um crítico do judaísmo. Embora tenha se voltado contra a teimosia dos piedosos mais radicais, enfatizou o lado moral dos mandamentos e não propôs a sua abolição. Segundo Flusser, Jesus foi um judeu que se sentiu enviado aos judeus. Os fariseus aparecem, então, como referência simbólica, não historicamente, e não são responsáveis pela morte de Jesus. Flusser coloca a mensagem Jesus como produto periférico ao pensamento dos essênios, mas não afirma que Jesus tenha sido essênio.

Em seu o livro A Cristandade, uma religião judaica, Flusser fala de Maria, das raízes judaicas da Cristandade, da expectativa messiânica de Jesus, de Paulo e da missão como chamado à fraternidade. Afirma que Jesus teria visto João como Elias e que Jesus teria sido o único judeu antigo a pregar o início do reino de Deus. Nos seus trabalhos, em hebraico e em inglês, Flusser realça esta questão: Jesus se viu realmente como Messias, o Filho de Homem por vir. Segundo o acadêmico judeu, Jesus mudou a escatologia judaica, ao afirmar que primeiro se realiza o reino do Céu e só depois vem o juízo final. Flusser enfatiza a importância da atividade de Jesus, faz a defesa da messianidade dele como o Filho do Homem, mas descarta a morte expiatória.

Dois títulos de Flusser que você deve ler

Jesus (São Paulo, Perspectiva, 2002), texto onde Flusser utiliza a análise arqueológica, documental, filológica e textual, na qual a leitura dos Evangelhos se faz à luz dos manuscritos do Mar Morto, da literatura pseudo-epigráfica e apocalíptica em conjunto com a do primeiro testamento, da tradição oral judaica, da cristologia e das fontes greco-latinas da historiografia clássica. O livro apresenta um painel da reconstituição do semblante verossímil do judeu de Nazaré e da realidade que lhe foi subjacente e o projetou na transcendência, aquela do judaísmo do primeiro século com suas correntes conflitantes de pensamento religioso.

Judaísmo e as origens do Cristianismo (São Paulo, Imago, 2001) onde, no primeiro volume, Flusser procura eliminar preconceitos e promover uma melhor compreensão das antigas fontes das duas religiões: judaísmo e cristianismo. Dentro desta perspectiva, fixa como tarefa tratar de problemas relativos ao judaísmo antigo e ao primeiro cristianismo. E no segundo volume mostra que o cristianismo surgiu em meio judaico. Foi, portanto, parte do judaísmo. É esta busca por compreensão das antigas fontes das duas religiões que encontramos no livro.

mardi 29 novembre 2011

A estrela da redenção

Franz Rosenzweig: lições de judaísmo
Por Jorge Pinheiro   

Franz Rosenzweig, filósofo judeu alemão, disse que em Deus há uma única verdade, mas fora de Deus a verdade absoluta se divide em duas verdades relativas, o Judaísmo e o Cristianismo. Em sua obra-prima, A Estrela da Redenção, explica que Cristo é o caminho que leva os gentios a Deus, mas Israel não tem que ir ao Pai, porque já está com ele. Por isso, Judaísmo e Cristianismo são agentes da revelação, parceiros essenciais e complementares. 
Para um diálogo fraterno entre judeus e cristãos é necessário que cada lado conheça não somente o pensamento, mas em especial a cultura e a maneira de sentir do outro. É uma reflexão desse tipo que pretendo fazer aqui, quem sabe em alguns artigos. E hoje vou começar a partir de um filósofo que marcou época: Franz Rosenzweig (1886-1929).
Em primeiro lugar é importante olhar o judaísmo não como corpo doutrinário ou estrutura de rituais, mas como experiência que parte do reconhecimento de uma realidade que vai além da existência. Tal vivência para o judeu tem seu momento maior na eleição de Israel, que é entendida como matriz da experiência com o transcendente para povos e culturas. É claro que há momentos da história em que essa percepção aparentemente se perde, obscurecida pela realidade das nações onde o judeu vive. Mas, mesmo nessas situações, subsiste de forma misteriosa a bênção da presença do povo judeu, que mais tarde brotará abençoando povos e nações e assim cumprindo o mandato que Deus deu ao pai Abraão.
Disse que falaria sobre e a partir de Franz Rosenzweig porque, sem dúvida, temos muito a aprender com ele em matéria de diálogo e fraternidade. Foi um estudioso da teologia protestante de Aldolf Harnack, mas permaneceu judeu porque esta era a religião de seus pais e porque gostava de observar os costumes judaicos e de refletir, à maneira judaica, sobre as histórias bíblicas. Seu primo, Hans Ehrenberg, se converteu ao cristianismo e foi batizado em 1911.
Diante disso, Rosenzweig refletiu sobre sua cultura alemã e escreveu a seus pais dizendo: “Nós somos cristãos em todas as coisas, nós vivemos em um estado cristão, freqüentamos as escolas cristãs, lemos livros cristãos, nossa cultura inteira tem por base uma fundação cristã”, mas isso não fez dele um cristão. Mais tarde, em 1913, ao discutir a conversão de judeus com Eugen Rosenstock e seus primos Hans e Rudolf Ehrenberg, Rosenzweig disse que até poderia vir a batizar-se, mas colocou uma questão: gostaria de examinar o que significaria aceitar o batismo, o que tal ato representaria diante de seu judaísmo, já que não era um pagão, mas um judeu.
Pediu a seus parentes um tempo para reflexão, para pensar e celebrar os dez dias santos que vão do Rosh ha Chanah ao Yom Kippur. Esses dez dias foram fundamentais para Rosenzweig, pois se transformaram nos dez dias de retorno as suas raízes judaicas. Mais tarde, ele escreveu a Rudolf que a conversão ao cristianismo “parece desnecessária e impossível agora. Eu sou um judeu”.
E fez uma leitura teológica judaica do evento Jesus. Concordou com a presença de Cristo e de sua igreja no mundo, mas afirmou que ninguém vem do Pai, mas através dele. (João 14.6). E que isso é assim em relação ao povo judeu, pois como povo não precisa ir ao Pai, porque já está com ele. Essa é a realidade do povo de Israel, do povo, e não do judeu individual. Assim, Rosenzweig fez uma distinção entre o mundo gentio que precisa conhecer a Deus, e o povo judeu que, em última instância, é a estrela da redenção. Ou como disse: “Diante de Deus, judeus e cristãos são, por isso, trabalhadores de uma mesma obra. Não se pode prescindir de nenhum dos dois. Entre os dois sempre existiu inimizade, mas ainda assim estão juntos na mais estreita reciprocidade. Assim, a verdade, toda a verdade, pertence tão pouco a eles quanto a nós”. (A Estrela da Redenção, p. 489). O caráter e a história da sinagoga, para Rosenzweig, são diferentes da igreja, mas não excludentes. Às vezes se chocam, embora estejam juntas na oposição ao paganismo que não tem a revelação por base. Para ele, a revelação é a garantia da vocação permanente, do comissionamento que sustenta e dá sentido tanto à igreja como à sinagoga.
A revelação é a origem objetiva tanto da sinagoga como da igreja, e dá as duas uma orientação firme que, ao mesmo tempo, as diferencia, mas também as une. Rosenzweig estudou medicina, história e filosofia. Partiu do idealismo alemão e construiu seu próprio pensar teológico. Bebeu em Goethe e Kant, mas seguiu seu próprio caminho. Professor, considerou que só no período do idealismo alemão o professor da filosofia e o filósofo eram um e o mesmo. E de certa forma procurou seguir esta tradição: procurou encontrar sua própria resposta filosófica para as questões da vida e da espiritualidade, sem abandonar suas funções de professor. Estudou judaísmo com Hermann Cohen (1842-1918), que dava um curso de Filosofia da Religião Judaica na Universidade de Marburg. A partir de Cohen, Rosenzweig passou a utilizar o método da correlação, que mais tarde seria utilizado também por Paul Tillich. Para Rosenzweig a filosofia pecara por ser monista, já que a palavra “e” tinha sido descartada. 
A partir da correlação passou a fazer uma nova teologia: Deus e humanidade, humanidade e Deus, Deus e natureza, natureza e Deus. Repensou seu judaísmo. Reconsiderou as relações em que as coisas se encontram, ampliou seu universo teológico, que antes estava imerso em idéias que se bastavam, presas aos conceitos e às essências. Lançou, assim, bases filosóficas para se olhar o outro como igual, pensamento que mais tarde norteou a ética de Emmanuel Lévinas.


São Paulo, 28/3/2009 -- ViaPolítica/O autor


Fontes
Franz Rosenzweig, The Star of Redemption, tradução William Hallo, University of Notre Dame Press: London, 1985.
N. H. Glatzer, Franz Rosenzweig, His Life and Thought, New York, 1961. 
Rüdiger Lux, Franz Rosenzweig, 1986.
WEB: www.jewishvirtuallibrary.org 

mercredi 23 novembre 2011

A alegria é a prova dos nove
ou sexo e rede no colo da cunhã

Por Jorge Pinheiro, de Paris


Colonos e parentes indígenas em revolta contra as regras e proibições resolveram liquidar com o comandante Villegagnon. Seria o fim da aventura da França Antártica e a hora da fundação de um novo Brasil?
Imagem de André Thévet

“Tupi or not tupi that is the question.” 
Oswald de Andrade, Manifesto antropófago

Você já parou para pensar que em menos de cinco anos, entre 1555 e 1560, cerca de 400 franceses emprenharam mulheres tupinambás e tiveram mais de mil filhos, segundo alguns, na verdade, dois mil brasileirinhos? Bem, talvez você não saiba porque a história é sempre situada, espacial e ideologicamente.
Quando se faz uma pesquisa na área acadêmica, geralmente, há um subproduto que não utilizamos, porque não está diretamente ligado ao nosso objeto, embora seja cientificamente interessante. É o caso deste artigo: surgiu a partir de elementos da pesquisa que desenvolvo na Europa, mais especificamente em Montpellier e Paris, sobre os huguenotes, protestantes franceses que estiveram no Rio de Janeiro, em 1557.
Neste artigo sobre o início da presença francesa no Brasil e dos relacionamentos entre franceses e tupinambás, utilizo o caminho da correlação como forma de aproximação de um fato histórico fundante. O método da correlação relaciona polos, o discurso eurocêntrico, no caso, e a interpretação desse discurso, que deve levar em conta a situação daqueles a quem ela se destina. Situação, aqui, são as formas políticas e sociais através das quais os franceses exprimiram as suas interpretações da existência tupinambá, geradora do mito do bom selvagem. Nesse sentido, o método da correlação possibilita que perguntas venham à tona, que haja individuação das respostas, permitindo travessias correlatas às perguntas colocadas pela própria existência dos brasis e seus costumes.
Nicolau Durand de Villegagnon (1510-1571) foi colega de João Calvino durante seus estudos em Paris. Junto com os Cavaleiros de Malta, a partir de 1531, participou das expedições militares de Carlos V contra Argel. Mas ficou conhecido como navegador. Vice-almirante da Bretanha, sua aventura mais empolgante e polêmica foi a fundação, em 1555, de um projeto de colonização que ficou conhecido como França Antártica, na baía de Guanabara. Para desenvolver tal projeto, recebeu o apoio do almirante Gaspard de Coligny, homem de confiança do rei e militar de importante presença protestante, e dez mil libras para financiar a empreitada.
A intenção francesa era fundar uma colônia no Brasil, a fim de fazer frente à expansão espanhola e portuguesa nas Índias Ocidentais e no Novo Mundo, onde calvinistas pudessem praticar o seu catolicismo reformado e evangelizar os brasis. Três navios partiram de Le Havre, com mais de 400 colonos, a maioria ex-presidiários indultados por se juntarem à aventura de Villegagnon. E, assim, chegaram ao Brasil em novembro de 1555. Villegagnon construiu, então, o forte Coligny, em uma ilha na baía de Guanabara, e passou a usar o título de vice-rei da França Antártica.
As relações com os brasis da região se mostraram tão boas que Villegagnon e os colonos passaram a frequentar as festas, travaram contato com o comunismo libertário dos brasis, e muitos colonos acabaram por optar por essa nova forma de vida.
A França Antártica a princípio foi tolerante com os costumes dos brasis e as opções dos colonos, mas, com o tempo, Villegagnon percebeu que estava a perder seus homens. Estes passaram a ter companheiras tupinambás, a viver nas aldeias, e adotavam a cultura dos brasis. Foi, então, que Villegagnon, por razões militares e de ocupação do território, proibiu todo comércio com os brasis, os acasalamentos, e exigiu que seus colonos abandonassem as aldeias e voltassem ao forte. Ora, exigência quase impossível de ser respeitada, afinal aqueles homens tinham sido libertos das prisões francesas com a proposta de viajar para um novo mundo de aventuras inimagináveis. E tinham encontrado esse mundo, com espaços sem fim, mulheres brasis e sexo sem constrangimentos. Tinham descoberto que a alegria é a prova dos nove.
Uma das dimensões importantes da cultura tupinambá era o cunhadismo. Este elemento fundante da cultura dos brasis no litoral do Rio de Janeiro é uma hipótese para se compreender a construção das ótimas relações que tupinambás e franceses construíram entre si. Os franceses se uniram sexual e matrimonialmente com as mulheres brasis, e assim se inseriram na estrutura social tupinambá, como genros ou cunhados. Pesquisas acadêmicas mostram que muitos europeus, e aí se incluem os franceses, e não apenas portugueses, se adaptaram com facilidade aos costumes brasis, a ponto de alguns tornarem-se lideranças expressivas entre os tupinambás.
Darcy Ribeiro considerou o cunhadismo a instituição social que possibilitou a formação do povo brasileiro. O cunhadismo estruturava as relações de parentesco entre os tupinambás ao incorporar pessoas estranhas à comunidade. O homem agregado à tribo recebia uma moça tupinambá como cunhã, ou seja, esposa. E, quando a assumia, estabelecia laços de parentesco com todos os membros da comunidade.

“Já tínhamos o comunismo. Já tínhamos a língua surrealista. A idade de ouro.” 
Oswald de Andrade, Manifesto antropófago

O cunhadismo, enquanto sistema de parentesco, relacionava um brasil ou agregado com os outros e, por extensão, com todos os membros da tribo. Assim, ao receber a cunhã, o francês passava a ter nela sua temericó, e nos parentes da geração dos pais, outros pais ou sogros. O mesmo ocorria em sua própria geração, em que todos passavam a ser irmãos ou cunhados. Na geração inferior eram todos seus filhos ou genros. Esses termos de afinidade classificavam o grupo com quem podia ou não manter relações sexuais. Com os sogros e sogras devia evitar relações, mas podia manter relações abertas com os cunhados e cunhadas, assim como com genros e noras.
Segundo Ribeiro, os franceses fundaram criatórios na baía de Guanabara com base no cunhadismo. E citou Capistrano de Abreu, quando este afirmou que por muito tempo não se sabia se o Brasil seria francês ou português, tal a força da presença e o poder da influência francesa junto aos brasis do litoral do Rio de Janeiro. Ainda segundo Ribeiro, mais de mil brasileiros, no caso franco-brasis, foram gerados como fruto do cunhadismo, quando franceses, tamoios e tupinambás viviam ao longo dos rios que desaguam na baía, inclusive na ilha do Governador, onde deveria ser implantada a França Antártica.
Assim, fruto da boa vida no paraíso dos brasis, os colonos não concordaram com seu vice-rei, revoltaram-se, e aliados aos brasis, agora seus parentes, passaram a tramar o assassinato de Villegagnon. Diante de guerrilha que se avizinhava, o vice-rei recorreu ao amigo Calvino que, por esses tempos, exilara-se em Genebra, e pediu para mandar reforço religioso a fim de restaurar a moral e os bons costumes. E, em setembro de 1556, 14 huguenotes, entre os quais dois pastores, Chartier e Richer, e um jovem muito promissor, Jean de Léry, deixaram a Suíça, embarcaram em Honfleur, sob a liderança de Du Pont de Corguilleray, e chegaram ao forte de Coligny em março 1557. Mas essa já é outra história.

“Contra a realidade social, vestida e opressora, cadastrada por Freud – a realidade sem complexos, sem loucura, sem prostituições e sem penitenciárias do matriarcado de Pindorama.” Oswald de Andrade, Manifesto antropófago.

31/7/2010
Fonte: ViaPolítica/O autor 

mardi 22 novembre 2011

Vive Louis!



En 1628, la Rochelle, protestante, assiégée par Richelieu, tombe aux mains de Louis XIII, les trois quarts des habitants ont péri. La victoire est célébrée sans le faste habituel et le défilé prend des allures de carnaval dans cette chanson anonyme, peut être huguenote, qui brocarde les bourgeois et les sous fifres ...

Interprétation: Paul Barré, coffret 33t "Histoire de France par les chansons" de Barbier et Vernillat.

Monsieur d'Uzès capitaine
Et Briais son lieutenant
Et la Place port. enseigne
Vive le Roy !
Menoient les Bourgeois de Paris
Vive Louis.

Ils avoient des chausses rouges
Des pourpoints de satin blanc
Avec des plumaches jaunes
Vive le Roy !
Par dessus leurs chapeaux gris
Vive Louis.

Du Fresnoy apothicaire
aydé de sergent major
Porte à l'arson de sa selle
Vive le Roy !
Sa seringue et son estuy
Vive Louis.

Et Renouard , son beau frère
avait de forts beaux habits
et n'osoit chier dans ses chausses ,
vive le Roy !
car elles n'étoient pas à luy
vive Louis !

Il y survint une pluie
Qui les mit en désarroy
Aussitôt Briais s'écrie
Vive le Roy !
Adieu tous nos beaux habits
Vive Louis.

Marchoit devant la noblesse
Monsieur Haudessens le fils
Avec son bel habit jaune
Vive le Roy
Chevauchant comme un marquis
Vive Louis.

Vous eussiez vu les bourgeoises
Dedans leurs plus beaux atouts
Regardant par les fenestres
Vive le Roy
Tous leurs c...s de maris
Vive Louis.

Vous eussiez vu les Jésuittes
Criant comm' des enragez
Ils pensaient faire la musique
Vive le Roy !
Ils faisaient de piteux cris
Vive Louis.

Car ces bons pères jésuites,
firent de beaux chariots
les chevaux qui les trainoient,
vive le Roy !
sont aux boueux de Paris
vive LOuis !

Puis un beau feu d'artifice
Situé dans un grand bateau
Fut tiré sur la rivière
Vive le Roy !
Devant le Louvre à Paris
Vive Louis.

Le lendemain de l'entrée
Monsieur Clermont fit porter
le triomphe et les trophées
vive le Roy !
droit à sa maison d'Atis
vive Louis !

Le tout avec la licence
de messieurs les échevins
qui n'ont pas grande science
vive le Roy !
car ils n'ont guère d'esprit
vive Louis !

Fonte
Chansons histoire de france Youtube

lundi 21 novembre 2011


As lições da Europa
BOAVENTURA DE SOUSA SANTOS

Mercados financeiros nunca vão recompensar os países pelos sacrifícios que fazem, pois isso alimenta os lucros do investimento especulativo
A Europa está assombrada pelo fantasma da exaustão histórica. Depois de durante cinco séculos ter atribuído a si a missão de ensinar o mundo, parece ter pouco a ensinar e, o que é mais trágico, parece não ter capacidade para aprender com a experiência do mundo.
O cantinho europeu, apesar de ser cada vez menor no contexto mundial, não consegue compreender o mundo senão por meio de conceitos gerais e princípios universais e nem sequer se dá conta de que a sua própria fidelidade a eles é hoje uma miragem.
Partindo da ideia de que a compreensão do mundo é muito mais ampla que a compreensão europeia do mundo, as dificuldades que a Europa passa podem ser um campo de aprendizagem fértil para o mundo. Eis as principais lições.
Primeira lição: a ideia de que as crises são oportunidades é uma verdade ambígua, porque as oportunidades vão em direções opostas e são aproveitadas por quem melhor se prepara antes da crise.
A direita usou a crise para aplicar a "doutrina de choque" das privatizações e da destruição do Estado social (privatização da educação e da saúde). Não tinha conseguido fazê-lo por via democrática, mas foi preparando a opinião pública para a ideia de que não há alternativa ao senso comum neoliberal.
A esquerda, pelo contrário, deixou-se desarmar por esse senso comum, e por isso não pôde aproveitar a crise para mostrar o fracasso do neoliberalismo (tanto pela estagnação como pela injustiça) e propor uma alternativa pós-neoliberal.
O movimento ecológico, que era forte, deixou-se bloquear pelo slogan do crescimento, mesmo sabendo que esse crescimento é insustentável, perdendo, assim, a oportunidade que lhe foi dada pela reunião da Rio+20 do próximo ano.
Segunda lição: a liberalização do comércio é uma ilusão produtiva para os países mais desenvolvidos. Para ser justo, o comércio deve assentar-se em acordos regionais amplos, que incluam políticas industriais conjuntas e a busca de equilíbrios comerciais no interior da região.
A Alemanha, que tanto exporta para a Europa, deverá importar mais da Europa? Para isso ser possível é preciso uma política aduaneira e de preferências comerciais regionais, assim como uma refundação da Organização Mundial do Comércio.
Aliás, a OMC já hoje é um cadáver adiado, no sentido de começar a construir o modelo de cooperação internacional do futuro: acordos globais e regionais que, cada vez mais e sempre na medida do possível, façam com que os lugares de consumo coincidam com os lugares de produção.
Terceira lição: os mercados financeiros, dominados como estão pela especulação, nunca recompensarão os países pelos sacrifícios feitos, já que não reconhecer a suficiência destes é o que alimenta o lucro do investimento especulativo. Sem domar as dinâmicas especulativas, o desastre social ocorre tanto pela via da obediência como pela via da desobediência aos mercados.
Quarta lição: a democracia pode desaparecer gradualmente e sem ser por golpe de Estado. Vários países da Europa vivem uma situação de suspensão constitucional, um novo tipo de Estado de exceção que não visa perigosos terroristas, mas, sim, os cidadãos comuns, os seus salários e as suas pensões.
A substituição de Berlusconi (para a qual havia boas razões democráticas) foi decidida pelo Banco Central Europeu.
O estatuto dos Bancos Centrais, criado para torná-los independentes da política, acabou por tornar a política dependente deles.
A democracia, depois de parcialmente conquistada, pode ser gradualmente esventrada pela corrupção, pela mediocridade e pusilanimidade dos dirigentes e pela tecnocracia em representação do capital financeiro, a quem sempre serviu.

BOAVENTURA DE SOUSA SANTOS, sociólogo português, é diretor do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra (Portugal). É autor, entre outros livros, de Para uma Revolução Democrática da Justiça (Cortez, 2007).
Fonte
http://www1.folha.uol.com.br/fsp/opiniao/10192-as-licoes-da-europa.shtml

vendredi 18 novembre 2011

O reencontro do erotismo

Por Jorge Pinheiro, de São Paulo  

A paixão explode em chamas e queima como um incêndio devastador. Um olhar sobre Spinoza, Teresa de Ávila e George Bataille em busca da experiência religiosa, da paixão e da morte. 


Imaginei um pensar transverso entre Baruch de Spinoza (1632-1677), Teresa de Ávila (1515-1582) e Georges Bataille (1897-1962). Não uma conversa que deve levar a leituras definitivas, mas a compreender a percepção de cada um dos três sobre a experiência religiosa, a paixão e a morte. 
"Vivo sin vivir en mí, y de tal manera espero, que muero porque no muero". 
O filósofo Baruch Spinoza considerava a teologia um pensar primitivo, que caía muito bem na construção pré-científica da realidade. Achava que a tal busca das últimas causas não acrescentou nada à compreensão da natureza. E, que, só quando a humanidade parou de olhar para cima, olhou para si própria e ao seu redor, pode pensar a física, a geologia e as demais ciências e progredir no conhecimento da natureza. Gosto de Spinoza, mas acho que foi enganado ao colocar a teologia fora do humanismo e do naturalismo que defendia. Na verdade, se olharmos a teologia e, por extensão, a experiência religiosa apenas como formas de um supranaturalismo, elas se mostram, sem dúvida, superficiais. 
"Vivo ya fuera de mí después que muero de amor; porque vivo en el Señor, que me quiso para sí; cuando el corazón le di puse en él este letrero: que muero porque no muero". Mas, há um lado do pensamento de Spinoza que não pode ser desacreditado: o comportamento humano não pode ser explicado de modo diferente ao dos outros comportamentos na natureza. Ou seja, para ele, não poderia haver plena liberdade, nem plena responsabilidade no comportamento humano. Deveria, por isso, ser descrito em termos de causas mecanicistas, como os fenômenos da natureza. Assim, para Spinoza bom é aquilo que nos dá prazer e mal o que nos causa dor. Será mesmo, amigo Spinoza? 
"Esta divina prisión del amor con que yo vivo ha hecho a Dios mi cautivo, y libre mi corazón; y causa en mí tal pasión ver a Dios mi prisionero, que muero porque no muero". 
E se você, amigo Spinoza, tivesse lido as confissões de uma jovem monja carmelita, chamada Teresa, que assim contou um dos seus muitos momentos de êxtase: 
“Vi nele uma comprida lança de ouro e sua ponta parecia ser um ponto de fogo. Parece que ele a enterrou muitas vezes em meu coração e perfurou minhas entranhas. Quando retirava a lança, parecia também retirar minhas entranhas e me deixar toda em fogo do grande amor de Deus. A dor era tão grande que me fazia gemer, porém, a doçura dessa dor excessiva era tal que eu não podia pensar em ficar livre dela... A dor não é corporal, mas espiritual, embora o corpo tenha sua parte e mesmo uma grande parte. É uma carícia de amor tão doce, que então acontece entre a alma e Deus, que rogo a Deus em sua bondade que faça com que ela seja experimentada quem quer que pudesse acreditar que estou mentindo”. (1) 
Mas, vamos ouvir um pensador maldito, Georges Bataille. Para ele a experiência religiosa está marcada pelo prazer. O prazer de viver. E é esse tropismo ao prazer que leva à superação, no cristianismo, à acentuação de uma teologia do pecado, com a consequente culpa infindável. Mas, aqui estamos diante de um paradoxo, pois a tradição cristã enfrenta esta pedra de tropeço, pois enquanto construção simbólica pesa sobre ela a sombra de um instrumento de tortura do qual pendeu seu fundador. De todas as maneiras, mesmo sem negar o pecado e a culpa, a experiência religiosa recupera o prazer de viver e leva o fiel em êxtase a saborear as frutas que a vida oferece, doces e amargas. 
"¡Ay, qué larga es esta vida! ¡Qué duros estos destierros, esta cárcel, estos hierros en que el alma está metida! Sólo esperar la salida me causa dolor tan fiero, que muero porque no muero". 
É por isso que Teresa, em meio à solidão da cela, fala da liberdade do êxtase. 
“Durante os dias em que isso acontecia, ficava meio abobada; não queria ver nem falar, mas ficar abraçada com meu sofrimento que para mim era a maior glória. Isto ocorria algumas vezes, quando o Senhor queria que me viessem estes arrebatamentos intensos, que mesmo estando entre pessoas, não podia resistir. Antes que esse sofrimento de que falo agora comece, parece que o Senhor arrebata a alma e a põe em êxtase, e assim não há lugar para dor e padecimento, porque logo vem o gozar". (2) 
E Bataille em sua explicação sobre a experiência mística, que está presente em todos os movimentos cristãos, mesmo os mais conservadores, diz que, como a proibição criou, na violência organizada das transgres¬sões, o erotismo inicial, proibindo a transgressão organizada, por sua vez, aprofundou os graus da expressão sensual. E dá como exemplos as noites dos sabbats, ou da solidão em celas, onde, por exemplo, o marquês de Sade escreveu Cent Vingt Journées. E cita Baudelaire quando afirmou que a única e suprema volúpia do amor jaz na certeza de fazer o mal. Ou seja, homem e mulher sabem que é no mal que se acha a volúpia. 
"¡Ay, qué vida tan amarga do no se goza el Señor! Porque si es dulce el amor, no lo es la esperanza larga. Quíteme Dios esta carga, más pesada que el acero, que muero porque no muero". 
Bem, se o prazer se liga à transgressão, como explicar o êxtase religioso, que não produz culpa? E aí é onde Bataille cresce e completa Spinoza quando critica o pensar teológico. Para Bataille, o mal não é a transgressão, é a transgressão condenada. O mal é o pecado. E é do pecado que falou Baudelaire. Da mesma maneira, as narrações dos sabbats falam de uma procura pelo pecado. Mas, Sade e Teresa negam o mal e o pecado. Mas ambos – tanto Sade como Teresa – fazem intervir a idéia de irregularidade para transmitir o desencadeamento da crise voluptuosa. 
"Sólo con la confianza vivo de que he de morir, porque muriendo, el vivir me asegura mi esperanza. Muerte do el vivir se alcanza, no te tardes, que te espero, que muero porque no muero". 
O cristianismo negou o caráter sagrado da atividade erótica encarada na transgressão. Em contrapartida, os místicos negaram o que a igreja considerava divino. Nessa negação, o cristianismo, com o tempo, perdeu em parte o poder religioso de evocar uma pre¬sença sagrada: perdeu-o na medida em que o diabo deixou de estar na base duma perturbação fundamental. Ao mesmo tempo, os místicos, aqueles que foram marcados pela experiência religiosa do êxtase, deixaram de acreditar no mal. Desse modo, encaminharam-se para um estado de coisas em que o erotismo, deixando de ser um pecado, deixava de ser uma certeza de fazer o mal. Por isso, na experiência profana, tem razão Spinoza, só há mecânica animal. Mas, a partir da experiência religiosa, e mais exatamente do êxtase místico, como aqueles de Teresa de Ávila, somos chamados a ultrapassar uma situação, sem que isso signifique regressar ao ponto de partida. 
"Mira que el amor es fuerte, vida, no me seas molesta; mira que sólo te resta, para ganarte, perderte. Venga ya la dulce muerte, el morir venga ligero, que muero porque no muero". 
E por que? Porque, nos explica Bataille, há na liberdade a impotência da liberdade, mas nem por isso a liberdade deixa de ser disposição de nós por nós próprios. As a¬ções dos corpos podem, na lucidez, abrir-se à recordação inconsciente duma metamorfose infindável, cu¬jos aspectos não deixarão de estar disponíveis. Veremos, então, que, por caminhos não prescritos o erotismo se reencontra. Chegamos, então, ao erotismo dos corações, ao erotismo mais ardente, quando, aparentemente, o erotismo dos corpos já sucumbiram. 
"Vida, ¿qué puedo yo darle a mi Dios, que vive en mí, si no es el perderte a ti para mejor a Él gozarle? Quiero muriendo alcanzarle, pues tanto a mi Amado quiero, que muero porque no muero". (4) 
Ou como diz uma canção, lá no primeiro Testamento, o amor é poderoso como a morte; e a paixão é forte como a sepultura. O amor e a paixão explodem em chamas e queimam como fogo furioso. 
São Paulo, 8/11/2009 
Fonte: ViaPolítica/O autor 
Referências 
1. Santa Teresa de Jesus, Livro de sua vida, cap. XXIX. 
2. Santa Teresa de Jesus, idem, obra citado. 
3. Georges Bataille, O Erotismo, Lisboa, Antígona, 1988. 
4. Santa Teresa d´Ávila, “Versos nacidos al fuego del amor”, in Obras Completas, Burgos, Editorial Monte Carmelo. 
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