jeudi 5 novembre 2020

Moshe Pinheiro, rabino italiano

A existência, a justiça e a imortalidade


Moshe Pinheiro, rabino italiano, que viveu em Livorno, no século XVII, foi um dos discípulos mais influentes de Shabbetai Zebi, com quem estudou literatura talmúdica e cabalística (1640-1650). Mas não apoiou as reivindicações messiânicas de Shabbetai Zevi, em 1648. Por volta de 1650, deixou Izmir e se estabeleceu em Livorno, onde se tornou um mestre respeitado.
 
E aqui partimos de algumas de algumas reflexões dos ancestrais que nos remetem à questão da justiça. Ou, se recorremos ao Séfer ha Neshamá, a letra jota no alfabeto hebraico tem sentido especial porque para representar a vida (חיים, jayim), precisa de equilíbrio, e por isso se situa entre hesed e gevurah. Isto porque a vida exige um equilíbrio delicado para sua manifestação: nem muito calor, nem muito frio, nem muita expansão, nem contração demais, nem muita dureza, nem muita suavidade, nem muita luz, nem muita escuridão. E assim está associada à justiça, que é a qualidade de ser justo, mas também preciso.
 
Mas há uma outra imagem, muito interessante, que parte da compreensão do Sefer Yetzirah. Nessa imagem, o jota corresponde a uma mulher sentada num trono, que tem uma espada na mão direita e uma balança na esquerda. Ela olha para a frente com os olhos bem abertos. Seu olhar encontra o nosso como um espelho que reflete fielmente o nosso interior. A espada voltada para cima é a espada da verdade, que decepa mentiras e tudo que está fora da Lei. A balança representa o equilíbrio necessário entre polos opostos, e está ligeiramente desequilibrada para um lado, já que a perfeição não existe no mundo manifesto, no qual tudo oscila em maior ou menor grau. O equilíbrio não é permanecer estático, mas evitar a polarização excessiva. A mão com a qual ela segura a balança destaca seus quatro dedos: são os níveis de nossa humanidade: espiritual, mental, emocional e físico, que se encontram com o polegar. É uma mensagem de unidade na diversidade. 
 
Assim, se no corpo existem apenas fenômenos sucessivos, sem laço que ligue o passado ao presente, como se explicam o hábito, a associação de idéias e a memória? Ora, é necessário admitir que existe em nós uma realidade que vai além do cérebro, do mental, e se liga aos atos que praticamos. Esta realidade é a própria identidade que expressa a existência de cada um de nós. E se existe a existência, tenho que perguntar o que ela é.
 
Tomando como modelo a complexidade do mundo, prefiro dizer que devemos ver que existem duas hipóteses: a existência vai além do corpo ou só existe o corpo e o resto é extensão dele. Mas como combinar uma indigestão com o arrependimento?
 
Prefiro, seguindo os ancestrais, dizer que somos substância extensa, divisível e palpável, seguimos e vamos além do corpo. A existência é essa extensão e cada pessoa tem uma identidade na existência. Não é uma unidade numérica, mas una por ser simples e indivisível. Mesmo quando a gente envelhece e o corpo muda, a identidade permanece idêntica a si mesma. Somos um ao longo do tempo e é esta imutabilidade na existência que me confere identidade. Mas continua a leitura ... vamos ver isso mais profundamente na construção e na conclusão destas reflexões.
 
Vamos aprofundar os argumentos. A existência está unida ao corpo e participa da vida do corpo, inclusive para realizar as suas operações. Mas, também é independente do corpo nas suas funções intelectuais. Deste modo, a existência pensa e deseja sem a ajuda destes órgãos. Assim, a existência não está imersa no corpo, é independente sob diversos aspectos.
 
Lembro-me de que Aristóteles dizia que um ser se conhece por suas operações. Ora, de onde vêm as idéias? Ser inteligente, pensar são atividades da pessoa ou da existência? É a existência que trabalha a inteligência. A matéria está presa às leis da matéria, mas a existência por ser extensiva tem maior liberdade diante dos impulsos da sensibilidade. A existência goza de livre arbítrio.
 
A simplicidade que caracteriza os fenômenos da inteligência impede que afirmemos que o cérebro seja a causa do pensamento. Mas, é verdade, a inteligência precisa para se expressar de um cérebro saudável.
 
O cérebro é o instrumento de que se vale a existência para expressar os pensamentos extensos. 
 
Talvez a existência seja a nefeche raiá soprada em nossas narinas, que será construção no caminhar de nossas experiências, sentimentos, emoções. E se for assim até mesmo a identidade é uma construção, algo que nos pertence enquanto potência.
 
O reinar já chegou e começa no aqui e no agora. Esta vida no reinar é a “vida das eternidades”, que começa aqui e continua para sempre. Como a vida do reino é deixar que o Eterno reine no pessoa e no corpo, o céu é a continuação do reinar do Eterno, mesmo após a morte.
 
A morte não interfere no reinar, apenas modifica a esfera de sua atuação. O ser humano continua após a morte o seu relacionamento com o Eterno, seja como for o mesmo -- na intimidade do reinar do Eterno ou na separação do Eterno, o inferno.
 
Se um louco pudesse ter transplantado o cérebro lesado por um outro que fosse são, com certeza pensaria de modo correto. Isto porque a desordem e a deterioração dos órgãos não lesam a inteligência em si mesma, mas somente a privam das condições e meios requeridos para o seu funcionamento normal. Pode-se dizer, então, que o cérebro é a interface entre o espírito e o mundo material.
 
Vimos que a correlação íntima que existe entre as diversas operações da existência pensante, sensibilidade, inteligência e vontade, prova a unidade substancial do princípio de onde elas se originam. Esta mesma correlação se verifica entre as operações psicológicas e as funções orgânicas.
 
Uma comoção violenta da existência faz parar a circulação do sangue, o medo paralisa, e a confiança sustenta as forças físicas, o trabalho intelectual intenso retarda a digestão, poder-se-ia citar fatos que provam a influência do físico no moral, e reciprocamente. Demonstrada a união da existência e do corpo, como se faz esta união? O corpo não existe antes da sua união com a existência. Da existência, o corpo recebe a sua unidade, a organização, a vida e atividades próprias, numa palavra, tudo o que faz dele ser humano.
 
Assim, o corpo apenas se separa da existência pela morte, quando perde todos estes caracteres, todas as suas determinações específicas, dissolvendo-se nos elementos químicos de que foi formado. Quanto à existência, sem dúvida que existirá separadamente do corpo, vivendo a sua vida espiritual mas, sem o corpo, não mais poderá exercer as faculdades que exigem o concurso dos órgãos corporais, como a sensibilidade, a percepção externa e a imaginação.
 
Deste modo se conclui que o corpo é a matéria, e a existência é a forma, e que a união do corpo com a existência faz um todo verdadeiro e substancial. É esta união no ser que faz da existência e do corpo um só princípio de ação, que faz com que não haja ação humana na qual o corpo não faça a sua parte, nem ação humana tão humilde e material que não repercuta na existência. É este o princípio que coloca em cheque o racionalismo.
 
Com a morte, o corpo se dissolve. Acontecerá o mesmo com a existência e morreremos inteiramente? O que é a imortalidade?
 
A imortalidade consiste na sobrevivência substancial e pessoal do eu, na identidade permanente da existência, que conserva as suas faculdades de conhecer e amar, sem as quais não há felicidade humana. Após a morte, a existência mantém a consciência da sua identidade, com as lembranças e responsabilidades do seu passado, sem as quais não poderia haver nem recompensa nem castigo: em uma palavra, não existiria o princípio da justiça divina. A metafísica afirma que a existência é imortal por sua natureza não corruptível. A razão para a sua sobrevivência após a morte do corpo é demonstrada pelo argumento moral. Que esta sobrevivência é indefinida e ilimitada, prova-o o argumento psicológico.
 
O corpo se desagrega e se dissolve logo que se separa do seu princípio de unidade, da sua forma substancial que é a existência. A existência ao ser como é, simples e espiritual, não pode decompor-se nem se desagregar -- não morre, pois, com o corpo. Este é o argumento metafísico da imortalidade da existência.
 
Se há o Eterno e lei moral, a justiça exige absolutamente que o crime seja punido e a virtude seja recompensada. Neste mundo, nem a natureza, nem a sociedade, nem a própria consciência dispõem de sanções suficientes para recompensar plenamente a virtude ou punir adequadamente o vício; é necessário, portanto, que haja outra vida onde a justiça seja plenamente satisfeita, e a ordem seja estabelecida. Este é o argumento moral, que demonstra a sobrevivência da existência, mas não prova que esta existência seja ilimitada na sua duração.
 
O argumento psicológico, que prova a perseverança da existência humana depois da morte, assenta sobre o princípio de que o Eterno não se contradiz, por isso ao dar um fim a um ser, lhe dá também os meios de o atingir. Tudo na natureza do humano aponta para o fato de que é criado para atingir a felicidade. Mas, se não pode alcançá-la neste mundo, deve haver outra realidade onde tal projeto se concretize. E como felicidade pressupõe expansão sem limites, segue-se que a realidade futura teria esta qualidade.
 
O ser humano aspira a um objeto infinito, a uma verdade, beleza e bondade absolutas, cuja posse nos deve fazer felizes. Nossas faculdades superiores possuem capacidade ilimitada, que não se pode satisfazer fora deste bem infinito, que não é outro senão o próprio Eterno.
 
Mas, o que encontramos neste mundo que apague esta sede de felicidade humana, que preencha o vazio do coração criado para o infinito? A natureza é tão limitada e o mundo tão pequeno; esta vida é tão curta e a realidade tão imperfeita! Queremos amar, queremos viver o mais possível, mas encontramos decepção, dor e morte. Assim, é evidente a desproporção entre os nossos meios e as nossas necessidades.
 
O conceito hades é a expressão grega utilizada na Bíblia dos setenta para traduzir o termo hebraico sheol, lugar de continuidade daqueles que deixaram o mundo dos vivos. Na Torá, sheol é uma expressão de origem incerta, mas que aparece 65 vezes no testamento hebraico-judaico. O conceito sofreu mudanças ao longo da história da religião judaica. No rolo de Eclesiastes, por exemplo, nem entra em cogitação a possibilidade de uma vida além-túmulo. Quando, porém, surge na religião de Israel a construção do conceito de vida além-túmulo, surge como lugar de silêncio. O termo sheol, aparece, no entanto, ao lado de outros, como abadon, cujo primeiro significado é destruição, mas vai ser lido também como reino dos mortos. As duas expressões, porém, são imprecisas e estão muito vinculadas ao contexto em que estão inseridas. A idéia geral mais ampla seria de lugar dos que dormem. No rolo do patriarca Jó, abadon é a personificação do lugar de destruição. E o tehom, que pode ser traduzido por profundezas, abismo e, inclusive, pela idéia de deserto são símbolos da religião antiga de Israel para o mundo dos mortos. E uma das passagens mais ilustrativas do conceito de sheol está no rolo do profeta Isaías.
 
“O sheol desde o profundo se turbou por ti, para sair ao teu encontro na tua vinda; ele despertou por ti os mortos, todos os que eram príncipes da terra, e fez levantar dos seus tronos todos os que eram reis das nações. Estes todos responderão, e te dirão: Tu também estás fraco como nós, e te tornaste semelhante a nós. Está derrubada até o sheol a tua pompa, o som dos teus alaúdes; os bichinhos debaixo de ti se estendem e os bichos te cobrem. Como caíste do céu, ó estrela da manhã, filha da alva! Como foste lançado por terra tu que prostravas as nações! E tu dizias no teu coração: Eu subirei ao céu; acima das estrelas do Eterno exaltarei o meu trono; e no monte da congregação me assentarei, nas extremidades do norte; subirei acima das alturas das nuvens, e serei semelhante ao Altíssimo. Contudo levado serás ao sheol, ao mais profundo abismo.”
 
O contraste entre o desespero que se agarrava às existências dos homens no sheol, e a esperança que surgia pela esperança da ressurreição, está expressa no apocalipse do profeta Isaías. Ele diz com respeito aos ímpios: “Os falecidos não tornarão a viver; os mortos não ressuscitarão; por isso os visitastes e destruístes, e fizeste perecer toda a sua memória”. E tomado pela esperança declara que “os teus mortos viverão, os seus corpos ressuscitarão. Despertai e exultai, vós que habitais no pó, porque o teu orvalho é orvalho de luz”. O ser levantado para a vida é realidade do Eterno e do coração reto humano diante do Eterno. No texto cristão do Apocalipse, a morte e o hades são jogados no lago de fogo e sua força sobre a existência é aniquilada, de forma que tais poderes ficam sob o domínio do Eterno.
 
Ao retratar o conceito de inferno, com o emprego de termos como sheol e hades, os limites dos conceitos estão determinados pelas conotações das cosmologias antigas. Na cosmovisão hebraica de universo, o sheol fazia parte do mundo subterrâneo. O rabino de Nawaré trabalha a partir dessa cosmovisão, mas sua intenção na parábola não é realçar a dimensão espacial, mas a realidade relacional. Por isso, inferno não é tanto dimensão espaço-temporal, mas estado de solidão, separação, do Adon da vida. A leitura hebraico-judaica realçava o conceito normativo de retribuição. O justo recebia recompensa material, e o injusto carecia de bens, prazeres e saúde. Ricos eram naturalmente abençoados pelo Eterno e dignos do reino messiânico. Mas o rabino de Nazaré desconstrói essa normatização e nomeia o mendigo. É interessante notar que o pobre tem nome, é Lázaro, mas o rico não.
 
Lázaro é Eliezer, aquele a quem o Eterno ajuda. É grego transliterado. Ter nome compõe identidade, nomeia o quem é quem. Há aí distinção entre o valor da vida do pobre em relação ao rico. Naquela sociedade o rico tinha destaque, e atuava com desprezo frente ao mendigo. O Eterno, porém, o socorre. O rabino de Nazaré faz, assim, críticas às práticas dos fariseus: a negligência para com os despossuídos de bens e direitos, o fazer bem aos que podem retribuir, o orgulho e a infidelidade à lei, que exige amor ao próximo. O ensino do rabino nos últimos capítulos do evangelho do discípulo São Lucas está resumido nesta parábola.
 
O rabino de Nazaré fala da vida e embora trabalhe dentro da cosmologia hebraica antiga, levanta algumas questões que direcionam o pensar além-túmulo: há consciência do estado, memória, juízo imediato, mesmo que intermediário, o que implica em alguma forma de retribuição. Há conforto para os justos oprimidos, não há mudanças no juízo, e a informação para receber o descanso está na lei e nos profetas. Assim, o Eterno se preocupa com aqueles descartados pela sociedade. Não há retorno para esta vida terrestre após a morte. A confiança no Eterno é o único mérito de Lázaro, que se expressa no nome que tem. A vida neste mundo é de pouca valia quando se passa à dimensão além-túmulo.
 
Uma pergunta que provém do estudo da parábola pode bem ajudar a redefinir as prioridades do quotidiano. Que diferença faz a presente circunstância ou forma de atuar em termos de vida daqui a dez mil anos? Em certo sentido, é esta a pergunta do rabino aos fariseus através desta e outras palavras de ensino. Em outra passagem se registra as palavras do rabino em reação à preocupação de ter um corpo inteiro na ressurreição -- para tal queriam guardar qualquer parte do corpo que fosse amputado para ser incluído com o resto do corpo no sepultamento. Nesse contexto, o rabino de Nazaré diz que é melhor arrancar e jogar o olho fora se fizer a diferença no ingressar no reinar de Deus. Muito melhor viver no reino coxo, cego, ou aleijado do que perder o reino por completo.
 
Logo, se há um Eterno sábio e justo, esta contradição não pode ser definitiva; deve haver outra vida onde se restabeleça o equilíbrio entre o que desejamos e o que podemos, uma vida em que sejamos perfeitamente felizes. A duração ilimitada da imortalidade constitui o elemento essencial da felicidade completa; não se pode gozar plenamente um bem quando receamos perdê-lo. A incerteza dói tanto mais quanto maior é o bem possuído.
 
Logo, a vida futura da existência, a imortalidade, não tem fim, é infinita e ilimitada, e a sua tendência natural é a prática da virtude, em conformidade com os desígnios do seu criador, o Eterno.
 
Jorge Pinheiro
 
  

Os limites da existência, terceira parte

que bom saber que o eterno cumpre o que promete. yoffe estava sob a guarda da eternidade. miriam só tinha que ter paciência. qualquer dia ele entraria por aquela porta e a saudade cederia lugar à alegria do reencontro.
  
13.
 
o segundo limite da vida 


noite alta, o segundo limite da vida, mestra da lucidez e palavras, ficou pensando na viagem e na última coisa que o primeiro limite, morador dos castelos de edom, dissera antes de se retirar para a sombra de sua figueira: “limite bem sucedido trabalha em equipe. nós estamos incompletos: o terceiro limite é a parte que falta para criarmos o paraíso que desejamos”. palavras difíceis, como poderia catalogá-las?
 
amo essa terra, adoro essa hora da meia-noite. pensou. sem lua, sem aragem, esse silêncio de tudo. essa é a hora dos meio tons. não está gelado, mas faz frio. está escuro, mas não completamente. existe o mais e o menos. é a hora mais difícil para os humanos. eles ficam inseguros, procurando algo que se mova, que faça um ruído. ao menos uma folha, mas nada. e eu também fico quieta, acompanhando a ordem natural do momento. é certo que o céu está cheio de nuvens, que brincam de fantasmas com as estrelas. mas eles nem percebem. são seres medrosos.
 
às vezes, vem uma nuvem gorda, roliça de gula, e engole um punhado de estrelas. e fica mais escuro. é aí que as árvores e seus galhos secos começam a se espreguiçar. é o momento. vem um vento frio, desses que saem do fundo do inferno. sacudo a solidão eterna, espicho as pernas, vou até a cidade da consolação e começo a falar com os vivos.
 
sou amiga de merodach e sarpanitu. vivi e fui adorado em borsipa, mas na primavera desse país, o primeiro limite ia passando pela beira do grande rio do deus-morto, quando ouviu um soluço fino. um lamento do fundo das trevas. era eu. tinha sido desterrada, exorcizada para os confins do inferno. depois de muitas eras, vim para o cinturão de fogo. é aqui, a 2.660 metros, bem no alto, rodeado de neve, a minha casa, hueñunauca, há doze mil anos acendo o osorno.
 
e lá em baixo, no llanquihue, refletido no lago, vê-se a silhueta do vulcão que esquenta as minhas noites geladas. sua presença imponente domina a paisagem.
 
quem olha para a maravilha, mal pode imaginar os estragos que eu orquestro. na primavera, quando os loucos se apaixonam, derreto o gelo e formo um violento aluvião de barro, cinza, lava e troncos, que arrasta tudo que encontra pela frente. depois da corrida do vulcão, deixo fluir a lava, que incendeia tudo por onde passa. fiz isso em 1851 e foi um sucesso, mas agora tenho outros planos. gosto do gelo das geleiras. esta é a minha casa, a casa do limite. e foi por esses vulcões que entrei no mundo da violência e da morte, pelas mãos da minha irmã, o limite das onze horas.
 
posso estar velha e passar as noites aterrorizando os humanos que encontro, mas tenho bom ouvido. gosto de colecionar as palavras, tirando delas todo sentido, misturando tudo num saco de gatos -- que linda expressão --, e depois soprar nos ouvidos desatentos, convencendo salvos e perdidos de que tudo o que se ouve reflete apenas a loucura do mundo dos homens. falar sobre a vida não é fácil, já que eu estou do outro lado. mas é minha especialidade. a memória humana é uma colcha de sensações. eles sempre se lembram da dor das pedras. o momento suave é fugidio, escorrega na lembrança, mas o chute fica grudado. assim são eles. suas lembranças estão escritas no corpo: a mentira dita casualmente, o roubo rápido e furtivo, o aborto que ninguém soube. tudo fica escrito. até as marcas da saudade não se apagam. e para eu soprar no ouvido deles, basta uma leitura lenta, quase uma tradução de cada cicatriz, de cada marca.
 
aprendi a caçar os fantasmas humanos. mergulho no charco de suas vidas, farejo sentimentos escondidos, estraçalho lembranças esquecidas, levanto cadáveres antigos e mal cheirosos. não há matagal ou pântano que eu não atravesse para chegar à uma boa história de desespero. quem me ensinou esta especialidade limítrofe foi o limite das onze horas. no início ela me disse que o mundo das palavras fica aqui, entre ruínas, e que, por isso, não havia razão para eu me afastar. bastava aprender, com ela, a viajar na memória dos humanos. sempre levo comigo uma bolsa. é a bolsa onde guardo as palavras que vou achando no meio do caminho. são palavras fáceis, como exatamente, que parece precisa, mas que transformo numa centopéia lânguida. ou palavras difíceis, como formidável, que vira uma trilha de formigas incendiadas. são palavras de pobre, como cuspe, frio e maleita. são palavras das quatrocentas, como treme-treme e sezão. junto todas elas e à noite vou tirando-as do saco.
 
tenho o meu catálogo, que é infinito como as estrelas do azulão. e aí, sozinha, vou colocando cada uma delas na sua forma. e ficam todas sem alma: as más, as boas, as alegres, as tristes, as grandes, as pequenas, as gordas, as finas, as de morte. e vou formando frases, que classifico de furtivas, de paixão e destruidoras. o limite é formidável é, logicamente, uma frase furtiva, pois compara o velho  limite das onze horas a uma centúria de formigas flamejantes. na semana santa vou comungar é uma frase de paixão, pois se refere à morte de um deus. e a paixão e a morte são irmãs-gêmeas. ninguém está vendo é uma das minhas frases prediletas, é destruidora. é a porta de entrada da minha casa.
 
ao contrário de nós limites, na vida das gentes sempre ocorre um encontro de grande significado, encontro que modifica o prumo de seus sonhos. lembro-me de um jornalista que não tinha dúvidas. vivia com uma jovem italiana e, no fundo do coração, queria ser o dono do mundo. nessa época, eu, e meus dois outros limites  trabalhávamos juntos. tínhamos organizado uma grande festa.
 
era noite de lua cheia. corpos cheios de limites tinham montado gigantescos labirintos, que terminavam num círculo formado por toras de madeira. representavam os mortos esquecidos e os lembrados. no meio do círculo, comida. do fundo da terra e do oco das árvores saiam sons lindos e terríveis. sons de cantar, dançar e de fazer sexo. nunca me esqueço. o luar cobriu a floresta.  sharon vestida de teias e chorando a sinfonia quatorze de shostakovich penetrou no labirinto e depositou um gato, chamado miró, numa cova rasa. eu, cheia de palavras, resfolegando e soltando fumaça pelas narinas, recitava uma pequena carta de artaud: ... somos a força da vida, mas esta não é eterna, seja ou não o hálito de deus, o que respira não é eterno, e até o hálito-deus tem seu tempo contado. 
 
e sharon pensou: e se vida for uma só. e se a morte do miró for também a minha morte. e se esses dias, quando a vida dele vai se esvaindo, for também um esvair-se da minha vida. e se esses dezessete anos de vida em comum, dividindo a mesma casa, conversando em idiomas diferentes, mas muitas vezes multiplicando emoções e sentimentos, são parte de um todo que eu vejo como caleidoscópio? claro, eu sei que você vai dizer que não é nada disso. que ele é apenas um gato e eu sou apenas uma humana, não tão racional neste momento. e outros vão me achar boba, cheia de sentimentos infantis, piegas, porque estou com emoções em desequilíbrio e triste porque o gato do rabino que, na verdade, é o gato da filha do rabino, está a morrer de velhice aos dezenove anos de vida felina. 
 
e a vida vai deixando ele devagar. vai morrendo aos minutos, às horas, mas de forma vagarosa. não está sofrendo, só deixando de viver. o gerúndio aqui é o jeito mais perfeito de dizer, vai deixando de viver. é como se a vida estivesse nele em camadas, e fossem se desfazendo no ar. ou quem sabe, se de fato tivesse sete vidas que fossem se desprendendo não uma a uma, mas cada uma delas em primeiro lugar formasse uma bolha de vida ao redor dele e essa bolha fosse se esvaziando aos poucos. e é possível que cada uma dessas bolhas dure dias. dias sem comer, sem beber, sem miar, mas que permitem a ele olhar para mim com olhos fundos, mas fundos mesmo, olhasse de dois buracos, e me dissesse, chefa você falou com o eterno sobre mim? a vida que ele me deu, as sete, estão a se esvaziar, cada uma delas, mas quero lá na frente estar contigo, como seu companheiro e matemático. 
 
eu sei miró, nós falamos sobre isso nesses dezessete anos de convívio, quero você lá comigo. falei com o eterno que quero você lá. e como você sabe, e como ele sabe, quero você como meu matemático. meu gato matemático, que sabe falar a linguagem do meu coração e sabe fazer todos os cálculos que eu preciso, como por exemplo a equação para se conhecer a hipotenusa, ou outras mais complexas como a equação de hagen-poiseuille. e querido miró, inteligente, falante e matemático, você vai me dizer que esta é a equação do físico francês jean louis marie poiseuille, que relaciona o caudal q de um tubo cilíndrico transportando um líquido viscoso com o raio r, comprimento l, pressão p e coeficiente de viscosidade n. 
 
e que a equação de hagen-poiseuille é uma lei da física que descreve um fluxo, que não pode ser comprimido, de baixa viscosidade através de um tubo de seção transversal circular constante. e eu vou rir porque sei que é isso mesmo, mas eu quero ter você ao meu lado em minhas viagens por essa eternidade do eterno.
 
mas, por enquanto, estou vendo o seu momento que me parece um momento difícil. as bolhas que se esvaziam devagar, e você quieta conversando com a eternidade. é um momento seu, talvez um momento de sabedoria, de conversa de amigas. e eu só posso olhar e pensar que quero entrar na conversa também. ontem, como boa protestante, cheia do meu jeito brasil, também conversei com o eterno. e disse para ele, que se a minha alienação existencial era a responsável pelo esvair-se de sua vida, que ele me perdoasse. e ele disse para eu deixar de ser convencida, pois o esvair-se da vida é o momento mágico do renascimento. e eu calei o meu pensamento, entendendo perfeitamente que você vai continuar comigo, ranzinza, reclamante, mas cheio de matemáticas, ao meu lado, neste cruzar eterno da eternidade sem fim.
 
estou saindo agora para minhas lides, e se a última bolha se esvaziar... nos vemos depois. te amo, miró. obrigado pela parceria nesses dezessete anos, que projetam a eternidade no meu coração e em nossas vidas.
 
e como não fazíamos há muito tempo, utilizando corpos expropriados, comemos, bebemos, dançamos e fizemos o sexo dos loucos, malditos e suicidas. foi então que apareceu o rapaz. ele olhou, mas não viu. nós vimos, lembramos velhas histórias e falamos.  sharon, toda sensual, chamou: menino, entra na roda.
 
ele levou um susto. não entendeu como sabíamos o nome dele. mas cheio de orgulho, aceitou conversar. quem é você?  sharon respondeu: você sabe, entra na roda e vem dançar comigo.
 
o corpo do terceiro limite era lindo aos olhos humanos. usava um vestido vermelho rodado, todo trabalhado em renda branca. sorria para ele, dançava fazendo o vestido levantar. sob a luz da lua, a cena era encantadora. os atabaques batiam no ritmo do coração. o ar era de sensualidade e magia. cuidadoso, mas cheio de autoconfiança, o rapaz respondeu: não posso entrar aí. sou filho do eterno da guerra.
 
ah! se ele pudesse ouvir nossas gargalhadas. quisemos saltar dentro dele. era uma casa nova, quase limpa, se comparada às que tínhamos. partimos para o ataque, mas uma espada nos impediu. ele pertence à eternidade. estão proibidos de romper os seus limites e tocar na vida dele. esta é uma ordem diante da qual os limites se dobrarão.
 
aquela luz brilhava demais. feriu nossos olhos, apavorou nossos corações. nossa festa tinha chegado ao fim. o ódio odiado estremeceu os corpos que ocupávamos. urramos, gritamos e fizemos com que se lançassem uns contra os outros. depois, semimortos, os abandonamos ali. a partir daquele momento, resolvemos estraçalhar a vida daquele que nos perturbara.
 
nenhum encontro é casual. há sempre aquele que busca. só que nem sempre o que se encontra entra na forma da imaginação. descobri que a carne sente o gosto da madeira e do metal, mas também do ódio e da mentira.
 
no verão, quando sopra aquele vento quente da madrugada, saio pelos montes, atravessando paredes e casas. transformo o calor no frio da morte, mato a esperança com uma palavra de medo, destruo a aliança com um sopro de adultério. sobrevoo as árvores, matas e rios, envolvo tudo em trevas, tudo que vejo, imagino ou pressinto. as folhas que se mexeram sem minhas ordens, a mancha escura da nuvem que corre fugaz, o pensamento feito ladrão, que assalta e mata. e o tempo, para que serve? 
 
 
eu transformo o tempo na memória da solidão. minhas palavras são punhais assassinos. elas amedrontam a noite e congelam o dia. e eu fico encantada, como num conto de fadas. afinal, sou o segundo limite, mestra da loucura, um limite muito especial, cheio de malícia e de palavras. 
  
14.
 
espero alegremente a saída


vai e goza a vida com a mulher que tu amas, pois isso é tudo o que você vai receber pelos seus trabalhos nesta vida dura que a eternidade lhe deu, disse aquele que anuncia. 

diego rivera e frida kahlo serão pintores, peregrinos e apaixonados. o pensamento está na ponta de suas mãos, nos olhares. eles vivem em seus corpos, como numa dança, num ato sexual, e se projetam em seus quadros, é assim que se falará deles. a pintora e sua arte virarão tela na produção estrelada. 

atípica, frida não será apenas pintora, mas uma das mais incríveis personalidades do século vindouro. viverá de forma intensa, até morrer deixando não apenas os seus quadros de trágica beleza, mas ideias. será filha da revolução e terá uma vida marcada por tragédias. vai contrair pólio, será para as amigas do colégio frida perna de pau... 

agora, vou olhar para trás. anos mais tarde, quando já havia superado a doença, o ônibus em que viajava chocou-se contra um bonde. sofreu múltiplas fraturas e uma barra de ferro atravessou-a, entrando pela bacia e saindo pela vagina. por causa do acidente fez várias cirurgias e ficou muito tempo presa à cama. começou a pintar durante a convalescença, quando a mãe pendurou um espelho no teto. 

"eu pinto-me porque estou muitas vezes sozinha e porque sou o assunto que conheço melhor". 
pintou os medos e o amor por diego, o marido. produziu uma arte íntegra e, em toda a vida, não aceitou nada que limitasse sua liberdade. pintar significou declarar amor por diego, o sofrimento desse amor, o limite terrestre e a crença na eternidade do amor. escreveu em seu diário:

diego-princípio, diego-construtor, diego-meu menino, diego-pintor, diego-meu pai, diego-meu filho, diego-meu amante, diego-meu esposo, diego-meu amigo, diego-minha mãe, diego-eu, diego-universo, diversidade na unidade. por que o chamo meu diego? nunca foi nem será meu. é dele mesmo.

frida se tornou membro da trilha em 1928. alguns de seus quadros, como o auto-retrato com stalin, revelam a fé no comunismo. foi nessa época que conheceu diego rivera.

apaixonaram-se e se casaram no ano seguinte. há quem afirme que foi um casamento meio por amor, meio por ser diego alguém que a compreendia. diego tinha muitas amantes e frida, por mágoa ou opção, teve alguns. um desses amantes de frida foi o revolucionário russo león trotsky, quando do exílio no méxico. 

frida pintou, em 1926, o auto-retrato com vestido de veludo, o primeiro trabalho sério de sua vida e que deixava entrever o interesse pela pintura renascentista italiana. nele, ela retratou o seu pescoço de forma alongada, ao estilo de amedeo modigliani, numa pose aristocrática e algo melancólica. a partir desse momento, seus trabalhos passaram a evidenciar não apenas anseios profundos, como sentimentos ambíguos e a realidade de suas crenças. 

"pensaram que eu era um surrealista, mas eu não era. nunca pintei sonhos. pintei a minha própria realidade". 

ao final da vida, como na juventude, a revolução voltou a ter força para o marido diego. ele retomou o caminho da sua arte, imperioso, sensual, que escapa a trivialidade e inventa a lógica do extraordinário. diego morreu em 25 de junho de 1957. três anos após a morte de frida, em 13 de julho de 1954, de embolia pulmonar. 

na última página do diário de frida, diante do anjo da morte, palavras cheias de beleza expressam sua postura diante da vida: "espero alegremente a saída -- e espero nunca mais voltar -- frida". 

e eu pergunto, os peregrinos vão para o céu? para além da metáfora, ir para o céu é liberdade na eternidade. para aqueles que consideram a possibilidade da liberdade eterna, conforme acreditarão muitas pessoas, na plenitude do tempo todas as pessoas renascerão para a vida restauradas para a eternidade. hosea ballou, dirá no futuro em seu tratado sobre a expiação, que o sacrifício não é uma posição jurídica, mas moral. 
 
sofremos a violência para a humanidade, mas não em seu lugar. a liberdade dos humanos leva à morte, e este é o último limite. libertação é amanhã, é ir além dos limites da alienação e dos alvos errados, mas, também é presente que nasce da misericórdia: amizade com o sem fim e fora de todos os limites. donde, fica a provocação: os peregrinos vão para o céu?
 
 
a terceira chave
os bons ventos da paz
  
15.
  
quem não gosta de wilhelm reich?
 
 
este inverno está terrível. eu e reyna estamos nos separando. não tem lógica nenhuma. eu a amo, eu preciso dela, mas não aguento ir ao pedagógico, assistir aulas, vê-la alegre e cercada de amigos.
 
ando deprimido, não consigo aceitar a československá como minha nova morada, com a possibilidade de nunca mais voltar ao  a terra dos brasis. o frio, as árvores desfolhadas, esse sol de virilidade duvidosa que não esquenta nada, nem ninguém...
 
hoje resolvi andar sem destino. peguei a bernardo o’higgins e caminho como se carregasse um trem nas costas. o inverno de praha é noiva a caminhar para o altar. e eu carrego o meu trem nevado sobre terra e sob céu, brancos. paro num bar, sento e peço um conhaque. tiro um livro do bolso e começo a ler. sou professor assistente da cadeira de psicologia social. dou aulas de reich.
 
a análise do caráter e a revolução sexual estão entre meus livros prediletos. tenho nas mãos o livro de um autor que não é encontrado nesta československá de masaryk/dubček. os peregrinos não gostam de reich e pressionam para eu desistir de meu projeto. 
 
a vida é tão simples (...). apenas torna-se complicada pela estrutura humana caracterizada pelo temor à vida. a consecução geral teórica e prática da função vital e da segurança de sua produtividade chama-se revolução cultural. sua base somente pode ser a alegria do trabalho natural. amor, trabalho e saber são as fontes de nossa existência. deverão regê-la também, afirma o amigo reich. eu até acho que ele tem razão, mas nunca vi alguém viver isso.
 
irina, minha amiga e catedrática de psicologia social, me enturmou com um pessoal que está realizando uma experiência inédita aqui em praha, uma clínica de terapia de grupo ao ar livre, com jogos, pouca roupa e muito rock. é meio woodstock, mas eu gosto. só não sei se vai dar certo. já tive vários problemas.
 
vi minha terapeuta transando com um dos nossos. vi por acaso, mas não gostei. na verdade, morri de ciúme. márcia é uma jovem belíssima. do tipo loira esguia. às vezes, tomamos banhos juntos, todo mundo, debaixo de uma árvore centenária. somos uns dez, mais ela e rodolfo, outro terapeuta.
 
num desses dias, estávamos sentados em roda, e márcia pediu que eu expressasse o que sentia para um jovem que estava ao meu lado. ele se levantou. eu me levantei e dei-lhe um soco no meio da cara. foi a maior confusão. mas por que você fez isso? e o sujeito chorando. chorando de soluçar. imagina, chega na terapia e leva um soco na cara.
 
por que eu fiz? porque queria. você não disse para eu me expressar? então quebrei a cara dele. pressionaram e eu dei um abraço nele. pedi desculpas. ele aceitou.
 
outra vez saímos da terapia, em grupo. estávamos, não sei porque, na maior felicidade. ríamos, brincávamos, quando saiu um sujeito de um bar e passou a mão, espalmada e vagarosamente, nas partes de liliane. a menina deu o maior berro, de susto, imagino.
 
dei um grito, um salto e quebrei o nariz do sujeito. ele correu para dentro do bar, com a mão no nariz. os amigos pegaram tacos de sinuca e vieram contra mim. parei no meio da rua e comecei a lutar contra uns cinco. todo o esforço do lurton, que nos dava treinamentos especiais para briga de rua, floreava naturalmente. eu era um bailarino, voando nos peitos daqueles coitados.
 
uma mulher, cambaleante de bêbada, com uma criança no colo começou a gritar desesperadamente.
 
-- ele deu um murro no meu filhinho, deu um murro no meu filhinho.
 
perdi a concentração. o balé perdeu seu ritmo, pessoas começaram a me rodear e, de repente, uma multidão correu atrás de mim. os dos tacos de sinuca, gente com paus e pedras. uma multidão. eu ia ser linchado...
 
liliane me salvou. chamou a polícia, que de viatura e sirene aberta me agarrou e me levou para a delegacia. mas a multidão não desistiu. correu para a delegacia. queriam me linchar de qualquer jeito. eu era um perigo para a pacífica  československá.
 
e uma outra história foi contada ao delegado. eu, um carateca humano, louco, havia esmurrado uma criancinha de colo e, por isso, aqueles pacatos jogadores de sinuca se sentiram na obrigação de defender a criança e sua mãe.
 
depois de umas duas horas de xilindró, a situação se acalmou e o delegado me chamou. já tinha ouvido o depoimento de liliane e do pessoal da terapia. ouviu o meu, me deu alguns conselhos sobre não ficar usando meus conhecimentos de artes marciais por aí, me desejou boa sorte e me soltou.
 
irina e márcia diagnosticaram machismo incurável. liliane gostou, passou a dizer que era seguro andar comigo. 
 
o conhaque é espanhol. reich continua a falar mal da família e da monogamia, diz que a comuna é a nova família. os peregrinos nunca vão aceitar isso.
 
a compulsão à destruição é obsessiva. conheci uma jovem loura e tímida, que acaba de chegar de brasília. joguei reyna fora, sem ao menos me dar conta de que estava vivo graças aos cuidados dela. mudei de casa e iniciei um longo mergulho de sensualidade e niilismo. eu e náiade fazemos sexo doze horas seguidas. e dormimos as outras doze horas. conseguimos passar semanas inteiras sem sair de casa, sendo alimentados pelos amigos, que estarrecidos, deixam as refeições na porta do apartamento, para que não morramos de fome. só depois de um mês de puro sexo saímos pela primeira vez. 
 
é impossível esquecer aquela noite. era inverno, passamos pela casa de gabriel, bebemos muito, e fomos assistir à uma peça de teatro na universidade da československá. antes mesmo de terminar o espetáculo, eu aplaudia e gritava como um alucinado. mal se fecharam as cortinas, pulei no palco e fui abraçar os atores. minha euforia era contagiante. noite gelada, céu estrelado e uma sensação de gaudiosos poderes. náiade se enroscava em mim. estava feliz. todos meus amigos estavam felizes. yoffe superou a crise, está curtindo a vida, apaixonado. não vai se suicidar.
 
aliás, já tinham realizado algumas reuniões de cúpula com mário pedrosa e mary, sobre minha situação. e o velho mário, muito sábio, declarou: "não se preocupem, é uma crise epistemológica. se ele superar, aprende com ela e vai em frente. cresceu. se não superar, se suicida. não merece a vida que tem". todos tinham um amor muito grande por mim. muito grande mesmo. eu era violento, assassino e suicida em potencial, mas meus amigos me amavam. só que eu não tinha tempo para olhar para esses detalhes. o importante era guerrear a guerra da vida. o resto, ora que resto?
 
era noite de são iohanan. convidei um grupo de amigos para jantar em casa. tínhamos feito um peixe assado, o vinho branco estava na geladeira, e íamos servir o jantar à luz de velas. antes, porém, fui fazer uma visita ao iohanan. quando cheguei lá, vi um sujeito que não conhecia e que, coitado, acabava de chegar do rio de janeiro. estava acompanhado de uma moça magra, elétrica, que vestia verde e usava uma boina, imaginem, verde também. parecia um grilo. olhei para o sujeito, gritei que não ia com a cara dele. dei um urro horroroso e pulei com os dois pés do peito dele. o sujeito quase caiu morto: de susto, aterrorizado. convenceram-me a ir embora e saí babando de ódio. com náiade do lado, mansa como se nada tivesse acontecido. horas mais tarde, quando íamos dar início ao jantar, entre os convidados, quem chega? os dois. ele e ela.
 
todos se sentam à mesa. levanto-me, dirijo-me à carioca recém-chegada e pergunto:
-- vou tomar um banho de banheira, você quer vir comigo?
 
ela responde afirmativamente. todo mundo está estatelado, principalmente náiade. 
 
eu pergunto:
-- como é seu nome?
 
-- annabella.
 
eu e alex fazendo pesca submarina na praia vermelha. a gente sai cedo de casa e leva toda a tralha em duas sacolas grandes: pés de pato, máscaras de mergulho, tubos de respiração, facas e arpões. não usamos acqualung. mergulhamos no fôlego.
 
levamos também água potável, dois sanduíches e duas maçãs.
 
da praia vermelha, ali ao lado do forte, nadamos uns quinhentos metros, cada um com sua sacola, até a ponta da pedra. ficamos em frente ao mar aberto. 
 
instalamos nosso qg ali. escolhemos uma área protegida para as sacolas e a comida e iniciamos a pesca.
 
o mergulho. o sol atravessa às duras penas a transparência do mar. só aqui no fundo encontro o verde que eu quero verde. os cardumes de peixes coloridos diante de meu nariz e as algas que docemente oscilam ao sabor da corrente dão a agradável sensação de vôo livre.
 
o arpão está armado, mas a primeira hora de mergulho é só de observação. eu e alex sempre mergulhamos aqui, por isso já conhecemos esses amigos das profundezas. a gruta da lagosta, que sempre foge à nossa chegada e que não nos preocupamos em caçar. nem fisga para lagosta a gente traz. bagre e peixe pequeno a gente também não pesca. é a maior vergonha aparecer lá em cima com alguma coisa pequena.
 
caçonete é a meta. mas não é fácil. depende da temperatura da água, da corrente e até mesmo da claridade do dia. água fria, turva, e dia nublado favorecem a caçada, mas mesmo assim não é fácil encontrar o cação.
 
depois do cação vem a arraia e o polvo. se o mar tem cação, tudo bem. é uma questão de destreza e mira. às vezes, ele passa diante da tua cara e quando você vai atirar, ele já saiu da linha de tiro. você persegue e ele mergulha. você vai até onde o fôlego dá. pode ter sorte ou ter que subir rápido porque os pulmões ameaçam explodir.
 
já a arraia são outros quinhentos. ela fica lá em baixo, quietinha, mimetizada na areia. se bobear, você passa por ela e nem vê. ela então dá uma deslizada rápida pelo fundo, em busca de outro esconderijo. 
 
esse é o momento. você está em vôo livre, por cima, armado. tchum... o arpão corta a água e atravessa a arraia. ela fica grudada no fundo se contorcendo. você tira a faca e corta o rabo dela. segura o arpão e a traz para a superfície.
 
-- peguei, peguei uma arraia...
 
alex me ajuda, a enrola em jornal e coloca numa das sacolas.
 
tem ainda o polvo. o certo é pescá-lo com fisga. ele se esconde nos buracos das pedras e acertá-lo com arpão não é fácil. o melhor é a fisga. por isso, só levamos polvo para casa, quando, num golpe de sorte, ele dá bobeira e a gente consegue acertá-lo.
 
parada para o lanche.
 
-- tia lucy fez os sanduíches. misto quente, frio.
-- ta bom.
-- você está gostando de morar com o aeyal?
-- ele é gente fina. está me ensinando boxe.
 
eu e alex sempre nos demos muito bem, mesmo quando brigamos. geralmente sou eu quem brigo. ele é muito inteligente. aprendeu a ler aos três anos de idade, mas prefere a contra-mão. já fugiu da escola várias vezes. é menino do rio. passa o dia na praia. magro, muito queimado de sol, olhos negros, sobrancelhas enormes, lembra o shemtós, diz orgulhosa a pequena miriam. é um garoto lindo, saudável, um pequeno animal selvagem. marinho.
 
-- gostaria de ter conhecido o shemtós, ou me lembrar dele.
-- você era o nariz de batatinha. ele gostava tanto de você, que você recebeu sua primeira surra aos três anos.
-- pó, e isso é sinal de gostar?
-- para ele sim. o shemtós tinha um padrão de educação meio antigo. quem ama, educa.
-- você apanhou muito, não é?
-- não mais que o necessário. shemtós e miriam ficavam loucos comigo. eu era um moleque da pá virada.
-- por falar nisso, acho que o tempo vai virar. vamos mergulhar mais um pouco. se o mar picar, adeus pesca.
-- vamos lá.
 
já temos uma arraia, mas sei que alex não quer voltar de mãos vazias. quando não pescamos nada, levamos mariscos. eles aqui são grandes e bonitos.
 
tia lucy gosta. transforma peixes em caldeiradas e frutos do mar em paellas. nas mãos dela tudo vira banquete. e na hora do jantar, sempre regado a suco de frutas brasileiríssimas, carambola, jabuticaba, tamarindo, faz um elogio rasgado à nossa destreza de pescadores submarinos.  waldemar, daniel e eduardo também comentam e aprovam. eu e alex somos os heróis da noite.
 
waldemar é filho de alemães. seu pai tinha uma metalúrgica em joinville, onde daniel e eduardo nasceram.
 
ele e tia lucy se conheceram no rio, quando ele fazia faculdade de medicina. depois a fábrica pegou fogo, um dia depois do seguro vencer, o pai deixou de mandar dinheiro e ele passou a representar madeireiras do sul aqui no rio.
 
é um sujeito esperto, com muito tino para os negócios. trabalha sozinho, em casa. usa telefone, a western para seus telegramas, e toda a madeira vem de navio, cif ou fob, a gosto do cliente. forneceu madeira para a construção do maracanã e está ganhando muito dinheiro.



 


mercredi 4 novembre 2020

Os limites da existência, segunda parte

 a segunda chave
as muitas águas da justiça
8.
 
quero o azul dos teus olhos

 
 
quem é fraco numa crise é realmente fraco”. provérbios 24.10. quando falamos de crises lembramo-nos de problemas que nos cercam ou que são externos a nós. o que está fora é uma parte da questão, a outra é como nós enfrentamos os problemas. o provérbio acima não fala do que está acontecendo no mundo, mas analisa a nossa maneira de enfrentar as crises.
 
esse provérbio se divide em três momentos. primeiro fala da pessoa que é fraca. a palavra hebraica que traduzimos por fraco, pode ser mais bem traduzida por frouxo. não como expressão grosseira ou agressiva, mas como metáfora de algo que está solto, que não tem firmeza. assim, quem se mostra frouxo, fica desalentado, deixa cair a bola, relaxa e afunda.
 
o segundo momento do provérbio é a expressão idiomática “dia da sara”, que foi traduzida na versão em linguagem de hoje por crise. a expressão “dia da sara” tem o sentido de “aquela que importuna” ou “de esposa rival”. isto porque na tradição do judaísmo antigo, sara, mulher de abraão, era vista como brava e brigona, que maltratou agar, a ponto dessa última fugir de casa.
 
devemos nos lembrar que a família hebraica antiga era poligâmica e a esposa chamada de rival era aquela que em determinado momento entrava em choque com a outra, ou com as outras e desestabilizava o equilíbrio da família. para o senhor, esse era um momento da crise. o homem era o senhor e regente dessa família de estrutura patriarcal, e caso se mostrasse frouxo, diz o ditado hebraico, perderia o controle da situação, entraria em depressão e afundaria.
 
o provérbio parte de uma realidade cultural, ilustrada na família patriarcal machista, onde as mulheres se chocam, e o marido não pode ser frouxo.
 
apesar de não concordarmos com a estrutura poligâmica, patriarcal e machista dessa família, a lição do provérbio permanece válida. assim, contextualizado, podemos dizer que a atitude que você deve tomar diante da crise não pode ser de alguém que se deixa desorientar e afundar.
 
a crise aí descrita fala de um momento onde há um elemento desestabilizador, que enlouquece um ambiente ou uma situação. ser frouxo, ter uma atitude de “deixa estar que depois melhora” pode levar todos a afundarem juntos. esse é o momento da liderança consciente, momento de encarar o problema com sabedoria e firmeza.
 
como aconselhou o rabino shaul, devemos estar alertas, ficar firmes na fé, ser corajosos e fortes. que deus lhe dê firmeza e sabedoria para enfrentar problemas e conquistar vitórias!
 
rua santa clara. posto 4. o sol está de derreter asfalto. dá para fritar ovos na atlântica. aeyal joga peteca com os amigos. a filha de nabukov, de maiô cavado nas costas, lembra o escritor russo, ao menos na minha cabeça de menino.
 
--yoffe, passa dagelle nas minhas costas.
 
obediente, gosto dessa mistura do cheiro do bronzeador com a maresia, cumpro à risca, devagar, a ordem recebida.
 
caio e tercius, à beira d’água, fazem seus castelos de areia, que a arrebentação, feroz realidade, desfaz um a um. como formigas insistem, gritam e dançam, quando uma onda maior alisa a areia.
 
miriam fez para mim um calção que é uma bandeira. pegou uma blusa estampada de rosas grandes e como costura muito bem fez um calção lindo, o mais colorido de toda a praia. mas caiu bem.
 
e a turma, uma gang atribulada, quase todos do externato duque de caxias, elogiou. minha pequena, jussara, cujo pai trabalha na souza cruz, ela me deu de presente um pacote do recém-lançado minister, me agarrou pelo braço e saímos... eu com ela, ela com o rebelde dela.
 
jussara tem 14 anos, faz balé e mora na serzedelo correia. eu tenho 16 e fui aluno de latim do pompílio da hora no atheneu são luís, no catete. o velho pompílio gostava do meu latim, eu era o melhor aluno dele. certa vez, me expulsou da sala. e me fez sair pela janela, aos gritos:
 
-- você não é digno de sair pela porta.
pulei. e quando já estava fora, me fez voltar à sala, com um ensinamento estranho:
-- nunca viva de maneira que possam dizer para você: “puxa yoffe, nunca imaginei que você fizesse isso”.

pompílio, primeiro negro humano a ser nomeado embaixador na áfrica, dando lições de transgressão a seu pupilo.
 
jussara me agarra pela cintura, rindo e apontando para o mar. a gangue, de calções abaixados, brinca de boto furando as ondas...
 
morena de olhos azuis, ela não é bonita, é linda. a vida toda se resume nisso: futebol de areia todas as tardes depois das quatro, toda televisão que dá para ver, muito livro e jussara para me levar ao cinema. e saímos na maior pinta. eu de rancheira e camisa de banlon branca e ela de vestido de fustão rodado. depois do cinema, comemos waffles ali na n. s. de copacabana.  
 
os anos começam a desabrochar. lá em casa, aeyal e a filha de nabukov deram adeus ao juscelino kubistchek, um pouco preocupados com os ares que sopram. aeyal prefere o general lott, mas o povo vai de jânio quadros. o jeitão do magrela não me agrada. é o homem da caspa de talco, do sanduíche de mortadela e da vila maria, em são paulo. 
 
toda minha família sempre foi juscelinista, até o tio aeyal que é austríaco e veio para cá no meio da guerra. magro, um metro e noventa, cabelos lisos e negros, foi atleta do flamengo. remava. foi capataz de fazenda. levou um tiro de um peão, na barriga. casou-se com minha tia iracema, que era estilista e dona de loja no centro. depois da morte de iracema veio a filha de nabukov, filha de mãe espanhola e pai italiano. bailarina. é vinte anos mais nova que o aeyal e doze anos mais velha do que eu. é amiga, confidente e, às vezes, mãe. esta última função é a que menos gosto.
 
alguns anos depois da morte do shemtós, aeyal e a filha de nabukov me convidaram para morar com eles. os dois filhos, caio e tercius, vieram mais tarde.
 
hoje,  aeyal tem loja de moda, um jaguar 53, usa tanga na praia, um escândalo que a filha de nabukov aprova, e joga religiosamente peteca com os amigos domingo de manhã na praia. 
 
-- no que você está pensando? está tão calado.
-- o azul dos teus olhos é mais bonito que o azulão besta do mar.
-- bobo!
-- é verdade. prefiro esse azul aqui àquele lá.
-- bobo duas vezes. aquele lá é maior. olha, nem fim tem...
-- é, mais o teu eu posso levar comigo.
-- só se eu deixar...
-- e você deixa?
-- depende...
-- de que?
-- ué, para onde?...
-- quero o azul dos teus olhos como farol, que baila, na ilha, no meio do mar...
-- puxa, então eu deixo.
 

a eternidade concede a paz e a vida para o povo da estrela e todos nós. a oração do justo aplaina os montes e vales da existência.
 
9.
 
moças enjauladas


as situações de limite exemplificam as maravilhas do renascer em vida. vemos isso, por exemplo, na expressão do rabino de nazaré "onde pouco é perdoado, pouco amor é mostrado".

lembro-me de uma moça nigeriana, aminal lawal, que foi condenada por ter um filho dois anos depois de separar-se do marido. seria apedrejada, conforme ordena a lei islâmica, a sharia. 

há mais de três mil anos, uma jovem chamada raabe, na palestina, também correu o risco de ser assassinada. 

e para entender o milagre do renascer em vida faço uma rápida correlação entre as histórias de aminal e de raabe. mas é bom lembrar que a cultura da época situava a prostituição como comércio ilegal do amor sexual. e perdão diante de tal culpa e limite era, desculpa, renúncia às consequências punitivas justificáveis em face desta ação que transgredia preceitos afetivos jurídicos, morais e religiosos.

a sharia é a aplicação do alcorão na prática cotidiana, e em alguns países ainda é aplicado como lei. assim, a morte por apedrejamento era um costume no oriente médio, e essa norma também fez parte da torá judaica.

aminal, a moça muçulmana, teve um filho fora do casamento. e por isso devia ser apedrejada. mas o mundo ocidental se manifestou pela revogação da sentença. então, os juízes islâmicos, pressionados pela opinião pública, usaram um subterfúgio para salvar aminal. alegaram que segundo a tradição islâmica um bebê pode estar em gestação por um período de até cinco anos. ou seja, aminal poderia estar grávida do marido.
 
mas, me lembrei de uma caminhada pelo red light district, área livre de amsterdam para o consumo de drogas e sexualidades várias, que fica entre warmoesstraat, oudezijds voorburgwal e oudezijds achterburwal e suas ruas perpendiculares. é aqui que, por trás de cada vitrina de néon vermelho, moças se colocam, corpos à mostra, a espera de clientes. 
 
red light district é, na verdade, um parque temático sexual, onde são desovados diariamente milhares de turistas e adolescentes que chegam em ônibus pulmann. note-se que é proibido tirar fotos das moças que estão nas vitrinas. é um bairro que faz o tipo boêmio, embora aqui tudo seja milimetricamente planejado. está cheio de bares, sex shops e tabacarias onde você pode comprar sementes de maconha das mais diferentes qualidades. a atmosfera é surrealista. 
 
as moças nas vitrinas me lembraram a boneca barbie, que já passou dos 50, mas continua a ser a plastificação da sexualidade de consumo. aquelas moças estão barbificadas sob as luzes de néon, numa espécie de jogo virtual, onde personalidades e imagens sexuais são criadas para transmitir uma ideia de liberdade que não existe no mundo real. falo de jogo virtual porque as vitrinas transmitem a sensação de interação on-line, de plataforma virtual, presente no imaginário da garotada que se pluga ali. a moça não existe, mas sim a personagem, ou avatar, que recebe a missão de seduzir. a noção de jogo é sutil, mas está presente e é desafiante.
 
as moças estão de roupas íntimas, ou nuas, com um olhar maroto para os passantes. caso haja interesse, negociarão serviços e preços. o serviço padrão é 15 minutos de sexo oral e coito por 50 euros. o que acontece nas vitrines não é domínio do real, mas o virtual usado como plataforma de jogos da imaginação. o comportamento sexual acaba sendo irrelevante ou responsável por emoções de vida real. num jogo desse tipo, a função do olhar e os possíveis mergulhos no imaginário é o que conta. por isso, vemos grupos de jovens, tirando sarro, desafiando uns aos outros, como se estivessem num parque de diversões. não basta olhar, é necessário ser olhado e as moças sabem disso, e provocam com piscadelas ou um sorriso mais provocante e dirigido. e a garotada vem abaixo, como se tivesse realizado uma conquista de verdade. sexo com a moça da vitrina é de simples execução. afinal, com a personagem não se dialoga, se pergunta quanto custa. por isso, apesar da expressão grotesca, é um fast food para jovens em bando. 
 
após um século de lutas femininas por direitos e sentido de vida, é difícil, mesmo sob o argumento econômico de que elas fazem assim porque querem, olhar sem constrangimento mulheres enjauladas. 
 
aqueles que defendem a permanência da prostituição de vitrina em amsterdam dizem que tem vantagens, porque as moças são seus próprios patrões, não têm que pagar percentagem dos rendimentos para o proprietário de um bordel -- a não ser o aluguel razoavelmente alto do quarto – e pode escolher seu próprio horário de trabalho. além do que, dizem, como há um fluxo interminável de clientes, podem faturar algumas centenas de euros por dia de trabalho. e porque trabalhar aqui pode ser mais seguro, pois com um gesto de mão podem acionar um botão para chamar o proprietário ou a polícia. 
 
mas a verdade é que tal exposição humilha. elas estão expostas lá na vitrina para que todos possam ver e, por isso, a maioria delas não vive em amsterdam. não querem ser reconhecidas por amigos, parentes e vizinhos. outro fato importante é que a maioria delas não é natural dos países baixos, mas moças que vieram da europa oriental ou da södra unionen. 
 
red light district é o mais antigo bairro de amsterdam. tem fachadas do século xiv, canais e becos encantadores. aqui está a mais antiga igreja da cidade, a igreja de são nicolau, construída entre 1366 e 1566. e como o bairro era point da marujada, aqui na igreja você encontra as tumbas de almirantes em pinturas e esculturas de barcos. a torre octogonal é de estilo gótico-renascentista, era uma referência para os barcos que atracavam no porto.
 
zlabya, raabe, a moça da cidade de jericó, depois da sua libertação, tornou-se mulher de salmon, filho de calebe, e mãe de boaz. é bom lembrar que as prostitutas na antiguidade, cultuais ou não, começavam seu ofício ainda na puberdade. na vida escura e duvidosa dessa jovem, prostituta e mentirosa, deve ter brilhado a centelha de que com os hebreus havia um eterno maior do que todos os deuses que ela conhecera. a cidade de jericó estava em pânico, temendo um ataque dos hebreus, e entre o povo se comentava o que o eterno dos hebreus fizera na saída do egito e durante a caminhada no deserto: soubemos que o senhor secou o mar vermelho diante de vocês quando saíram do egito. também ficamos sabendo como, a leste do rio jordão, vocês mataram seom e ogue, os reis dos amorreus, e destruíram os seus exércitos.
 
zaná é uma palavra hebraica que pode ser traduzida como praticar prostituição, mas seu sentido literal quer dizer manter relações sexuais ilícitas. é a palavra que designa a atividade de raabe, a jovem que escondeu os espiões enviados por josué. tal palavra normalmente se refere a mulheres e apenas duas vezes diz respeito a homens. a forma feminina é usada para indicar a prostituta. tais pessoas recebiam pagamento, tinham marcas características que as indicavam, tinham suas próprias casas e deviam ser evitadas. poucas vezes, a mulher com quem o ato é cometido é identificada como mulher casada, mas também nunca se afirma que é solteira.
 
ambas mulheres, aminal e raabe, foram consideradas prostitutas, conforme o costume de suas culturas. a primeira adulterou e a segunda, segundo estudiosos, era uma sacerdotisa da religião dos cananeus, ou seja, uma prostituta cultual. ambas mereciam a morte, mas renasceram para a vida pelo milagre do perdão. e perdão implica em libertação oferecida e esquecimento, por isso não importa mais se aminal adulterou ou se raabe era prostituta. mas há uma diferença, não sei se para aminal houve de fato libertação.
 
já raabe confiou na misericórdia e no poder da eternidade e renasceu em vida. e fez um declaração marcante ao reconhecer que o eterno estava acima dos deuses cananeus: a eternidade é em cima no céu e aqui em baixo na terra. 
 
estas palavras, proferidas por raabe, são sentido pleno da vida e contrição. 
centenas de anos mais tarde, o rabino de nazaré, descendente da prostituta raabe, disse a um religioso que o convidou para jantar: você está vendo esta moça? quando entrei, você não me ofereceu água para lavar os pés, porém ela os lavou com as suas lágrimas e os enxugou com os seus cabelos. você não me beijou quando cheguei; ela, porém, não para de beijar os meus pés desde que entrei. você não pôs azeite perfumado na minha cabeça, porém ela derramou perfume nos meus pés. eu afirmo a você, então, que o grande amor que ela mostrou prova que os seus alvos errados estão perdoados. mas onde pouco é perdoado, pouco amor é mostrado. 
 

perdoar é esquecer, libertar, renascer. eis o milagre que cobriu raabe. mas como ficam as outras moças enjauladas?
  
10.
 
o inverno de todos os levantar-se
 
 
a contemplação de iohanan, também conhecido como o apocalipse, não deve ser lido como fonte de argumentos em prol de iminente fim do mundo. para fundamentar tal visão, partimos da análise de teólogos como agostinho, de reconhecido peso na história da igreja, e de teólogos contemporâneos como hans schwars, que escreveu o mistério das sete estrelas.
 
o núcleo da contemplação de iohanan dispõe-se em três septenários, que recapitulam a história da humanidade e da igreja sob forma simbólica, mostrando que as calamidades da história estão englobadas num plano sábio do eterno. este dirá a última palavra, mas o livro não permite calcular a data da consumação dos tempos ou da parusia do messias. o apocalipse é um livro de conforto e esperança e não um livro de desgraças. deve ser lido dentro dos parâmetros do gênero literário apocalíptico, que tem estilo e linguajar próprios. quem não leva em conta tais peculiaridades corre o risco de deduzir do texto o que ele não quer dizer.
 
a contemplação de iohanan, com seus símbolos, leva muita gente à tentativa de calcular a data do fim do século presente. por isso, antes de qualquer coisa, vamos trabalhar com os critérios deduzidos do próprio gênero literário apocalíptico e apresentar os problemas suscitados pelo livro e as soluções mais plausíveis para o mesmo. 
 
querida zlabya dividiremos esta reflexão em quatro partes: o que é um apocalipse? o contexto histórico da contemplação de iohanan. e sua interpretação. questões especiais. 
 
a palavra grega apokálypsis quer dizer revelação. o gênero literário apocalíptico esteve voga entre os estelares nos dois séculos anteriores e posteriores ao mashiah. a sua origem se deve ao fato de que os profetas foram escasseando em israel após o exílio babilônico, 587-538 antes da era comum -- os últimos profetas bíblicos, ageu, malaquias e zacarias, exerceram o seu ministério nos séculos seis e cinco antes de o.
 
após o século quinto o povo da terra da estrela continuou sujeito ao jugo estrangeiro: retornando do exílio babilônico em 538 a.e.c., ficou sob o domínio persa até alexandre magno (336-323 a.e.c.) da macedônia, que conquistou a terra da estrela, anexando-a ao império macedônico. 
 
após a morte do imperador, a palestina ficou sob os egípcios, na dinastia dos ptolomeus, até o ano de 200 antes da era comum nesta data, os sírios ocuparam e dominaram a terra da estrela, constituindo aí o período dos antíocos ou selêucidas. 
 
as questões escatológicas que surgem durante o período macabeu traduzem três tipos de preocupações: como israel se libertará da dominação pagã e o reino de deus se realizará? qual o destino último dos justos e dos pecadores? quando terminará o caos e a maldade na história?
 
acontece que as guerras e as violentas transformações sociais vividas por israel não levantaram apenas questões escatológicas, mas também éticas e políticas. assim, durante esses anos de crise generalizada, a visão espiritual rompeu suas cadeias formais e permitiu uma produção multifacetada até então inédita na história judaica. esquematicamente, podemos agrupar este processo de produção de novas idéias em três grandes grupos: nacionalista, de sabedoria e apocalíptico.
 
para falar dos três é preciso entender que a visão profética clássica nasce de uma profunda compreensão do momento presente e do coração de deus. nesse sentido, o profeta clássico tem sempre um conhecimento da dialética do momento presente e, chamado pelo eterno, apresenta sua vontade ao povo. mas, o profeta não é apenas um analista crítico e sim um atalaia que prega uma postura correta diante do eterno. nesse sentido, a profecia clássica sempre foi também um exercício ético.
 
a história da terra da estrela sob os macabeus foi uma história de crise social. tempo que permitiu o surgimento e necessitou a presença de profetas. tempo onde a memória dos servos do eterno emergiu com toda a sua radicalidade: ele está ao lado do perseguido e contra o perseguidor. esta memória se transformou numa visão global da história. e não nasceu da acomodação, nem da alienação diante da injustiça, mas da compreensão daquele momento presente e da vontade do eterno para seu povo escolhido.
 
sem dúvida, o eterno falou a seu povo através de sábios e mestres, mesmo quando estes, para evitar a perseguição e o martírio, reeditavam antigos manuscritos, traduziam para a realidade presente histórias memoriais, e, sobretudo, omitiam seus verdadeiros nomes. durante todo o período, antigas promessas foram apresentadas com maiores detalhes. avivados pela palavra profética, o povo tomou conhecimento da revelação do eterno. se há na história da revelação um desenvolvimento gradual e se a base histórica da revelação é linear, mas o desenvolvimento da fé não o é, no período macabeu chegou-se a um processo combinado, onde aspectos até então pouco definidos emergiram com claridade.
 
dessa maneira, quer nos escritos éticos, quer nos escritos políticos, encontramos uma visão profética, resgatada da memória dos textos bíblicos antigos. mas, sem dúvida, essa revolução do pensamento religioso estelar alcançará seu momento de maior expressão com a literatura apocalíptica.
 
situamos na época dos macabeus, período que vai da ascensão dos selêucidas até 67 antes da era comum, a seguinte literatura: apócrifos éticos, literatura de sabedoria: tobias; sentenças de ieshua ben sirah, eclesiástico; livro da sabedoria de salomão. apócrifos políticos, literatura nacionalista: i macabeus, ii macabeus. apócrifos apocalípticos, literatura de revelação: judite, ii esdras e baruch. entre os pseudepígrafos da era dos macabeus, temos a carta de aristéia; o livro dos jubileus; os oráculos sibilinos; enoque etiópico; e o testamento dos doze patriarcas.
 
como a profecia anterior, a contemplação de iohanan é uma revelação de aviso do julgamento do eterno e promessa de salvação. mas sob vários aspectos, é uma transformação na forma e conteúdo da experiência de revelação do judaísmo anterior.
 
os profetas clássicos, por exemplo, falavam à sua própria sociedade, o que requeria imediatas escolhas políticas e éticas, que podiam afetar ou modificar o juízo divino iminente. para eles, o futuro permanecia aberto, porque a decisão do eterno poderia mudar, caso a comunidade se arrependesse.
 
os apocalípticos, no entanto, encaram a história como um processo fechado e unificado, vendo a sua própria era como derradeiro elo de eventos que se desenrolam em sequência pré-ordenada. ao contrário das promessas escatológicas da profecia clássica, que viam um “fim dos dias” no futuro distante, o autor apocalíptico crê que a meta está a seu alcance: está aqui o fim da dominação pagã, a completa salvação da terra da estrela, a manifestação final do reino do eterno na terra. o escritor apocalíptico oferece um panorama muito mais amplo da ascensão e queda de vastos impérios, mas seu interesse em relação ao mundo real e imediato é muito menor que o do profeta clássico. seu olho focaliza outro mundo.
 
outra diferença entre a profecia clássica e a literatura apocalíptica envolve sua proximidade com o reino do céu. os profetas clássicos, com exceção de ezequiel, eram reticentes nos relatos do que viam durante a revelação. sua tarefa principal era comunicar a ordem oral e não apresentar uma descrição visual da corte divina. já o apocalíptico descreve suas visitas ao céu com pormenores, mencionando os anjos pelos nomes e falando dos palácios, sala do trono e membros da corte celestial que cercam o divino rei.
 
o simbolismo misterioso e a ênfase na escatologia indicam uma ligação com a profecia tardia do pré-exílio, mas o pensamento apocalíptico deve muito à tradição da sabedoria helenística. 
 
o ponto mais importante de contato entre a literatura apocalíptica e a sabedoria grega é a idéia de uma ordem cósmica predeterminada. anteriormente, foi a idéia de inacessibilidade que levou às meditações de eclesiastes sobre a ilusão do esforço humano. agora, a literatura apocalíptica traduz essa ordem em plano providencial do eterno para a história.
 
a preocupação do escritor apocalíptico com o definitivo não cessa com a história. o poder do eterno não pode ser limitado pela morte, de modo que a escatologia política é tanto pessoal como histórica. assim, o capítulo doze de daniel é o primeiro texto bíblico a referir-se claramente à ressurreição dos mortos: “alguns para a vida eterna, outros para a vergonha e desprezo eternos”. no final dos dias, os justos “que dormem no pó da terra” retornarão para “brilhar como as luminárias do firmamento... como estrelas, para todo o sempre”.
 
é importante notar que é no período macabeu que a idéia da ressurreição toma corpo, a ponto de transformar-se numa idéia-força do judaísmo popular daí para a frente. a fé na ressurreição dos mortos aparece de forma muito clara em ii macabeus e é o fundo da história do martírio dos sete irmãos. antes, só temos em todo o antigo testamento dois versículos que falam do ser levantado da morte.
 
outras obras importantes que fazem parte da literatura apocalíptica da época -- embora considerados apócrifos e pseudepígrafos, por não estarem no cânon estelar -- são os livros de enoque, ii esdras e baruch.
 
enoque é uma obra longa, uma edição de fragmentos vários. no correr do livro, o narrador enoque (gn. 5.21-24) descreve suas visitas aos extremos da terra e sua ascensão aos palácios celestiais. o livro inclui um tratado sobre astronomia, poemas sobre o destino derradeiro do justo e do pecador, e uma seção chamada similitudes, referente ao eleito ou filho do homem, que será mandado pelo eterno nos últimos dias para julgar a humanidade.
 
em ii esdras, o narrador sente-se perplexo ante as calamidades que recaem sobre israel, o aparente abandono em que o eterno deixa seu povo e pergunta por que tão poucos merecerão a vida eterna. um anjo dá a esdras conta do significado da história e seu fim, instruindo que escreva e esconda “setenta livros” que consolarão os que viverem antes dos últimos dias.
 
baruch, de quem se diz ter sido escriba de jeremias, trata de questões similares. contém uma oração de confissão e de esperança, um poema sapiencial, no qual a sabedoria é identificada com a lei, um trecho profético, onde a cidade de david personificada se dirige aos estelares da diáspora e onde o profeta a encoraja com a evocação das esperanças messiânicas.
 
a importância dessa coleção de textos sob o nome de baruch é nos levar às comunidades da diáspora e de nos mostrar como a vida religiosa também lá, distante, estava relacionada com a cidade de david, pela oração, pelo culto à lei, pelas promessas proféticas e pelo espírito messiânico.
 
assim, a partir dos diferentes textos apocalípticos podemos definir os elementos formais desse gênero de literatura: a pseudonímia do autor. é um contemporâneo dos seus primeiros leitores, mas fala como se fosse um personagem antigo. o caráter reservado das revelações. estas foram comunicadas ao personagem da antiguidade; deviam, porém, ficar em segredo até os dias do autor do apocalipse.  frequentes intervenções de anjos. estes aparecem, nos apocalipses, ora como ministros do eterno que colaboram com a providência divina na dispensação da salvação, ora como intérpretes das visões ou revelações que o autor do livro descreve. um simbolismo singular. animais podem significar pessoas e povos; feras e aves representam geralmente as nações pagãs; os anjos bons são descritos como se fossem homens, e os maus como estrelas caídas. 
 
o recurso aos números é frequente, explorando-se então o simbolismo dos mesmos -- 3, 7, 10, 12, 1000 como símbolos de bonança; 3 ½, como símbolo de penúria e tribulação. é a exuberância do simbolismo dos apocalipses que torna difícil a compreensão dos mesmos. o leitor deve entender esse simbolismo a partir de passagens bíblicas e extra-bíblicas paralelas. há símbolos que se repetem com a mesma significação: gafanhotos, águias, cedro, três anos e meio, mil anos ... os autores de apocalipses se sentem livres para conceber seus símbolos, suas visões e personificações. propõem cenas sem se preocupar com o verossímil da realidade. nesse sentido constroem virtualidades, conforme vemos na descrição da cidade de david futura. e uma forte escatologia. 
 
os apocalipses se voltam todos para os tempos finais da história e os descrevem apresentando a intervenção do eterno em meio a um cenário cósmico, o julgamento dos povos, o abalo da natureza, a punição dos maus e a exaltação dos bons, estando reservado para israel nesse contexto um papel de relevo e recompensa.
 
este traço diferencia a profecia do apocalipse. a profecia é sempre uma palavra dita em nome do eterno (propheemi = dizer em lugar de). nem sempre visa ao futuro, refere-se muitas vezes a situações do presente, procurando sacudir os homens de sua indiferença ou da hipocrisia de vida, levando-os a conduta moral digna e correta. a profecia tem um caráter moralizante, válido para os contemporâneos, mas nem sempre voltado para a escatologia. 
 
nos apocalipses o foco moral perde força: o que preocupa iohanan são os acontecimentos finais da história, que redundarão em derrota definitiva dos maus e prêmio para os bons. os símbolos e visões, que os profetas já cultivavam, tornam-se os elementos dominantes na forma literária dos apocalipses. 
 
assim, durante o período macabeu muitas idéias novas afloraram em meio à vida judaica. podemos citar desde o ressurgimento da figura da mulher, com a história de judite e a personificação da sabedoria, o casamento monogâmico, o batismo, e elementos conceituais da doutrina do espírito. mas, sem dúvida, duas idéias revolucionaram o judaísmo: a recompensa apresentada pelas profecias apocalípticas, que se traduz concretamente na ressurreição; e a promessa da autoridade profética, restauradora da justiça, apresentada na figura do mashiah.
 
essas duas idéias deram uma vida nova ao judaísmo, fazendo com que transcendesse às formalidades das leis e rituais. a partir desse momento, surgiu um judaísmo da pessoa comum, cheio de fé na aparição iminente do messias e na recompensa divina através da ressurreição. esse judaísmo ocupou as ruas, subiu os montes, fugiu para o deserto. 
 
os romanos em 63 antes da era comum invadiram o território palestino e impuseram seu jugo aos estelares, jugo que perdurou até que o povo da terra da estrela foi expulso da sua terra no ano 70 da era comum, com a queda e ruína da cidade de david. nessas circunstâncias de vida o povo da terra da estrela, não tendo profeta, sentia necessidade de ser consolado e alentado para não desfalecer. foi então que autores estelares se puseram a cultivar o gênero literário apocalíptico, que tem afinidade com a profecia, mas não se identifica com esta. 
 
iohanan tinha razões para consolar seus companheiros perseguidos e predizer a vitória final do bem sobre o mal, porque esta é anunciada pelas profecias e promessas feitas a israel. o autor de um apocalipse nada acrescenta a essas promessas, apenas as tornam atuais, repetindo-as de maneira enfática em momento penoso da história do seu povo e anunciando para breve o cumprimento das mesmas. de resto, a salvação, já oferecida pelo eterno em fases anteriores de tribulações da terra da estrela, era penhor de que o senhor não abandonaria seu povo. 
 
no fim do século primeiro depois da era comum tornava-se cada vez mais penosa a situação dos discípulos do rabino de nazaré disseminados no império romano. em verdade, ieshuah deixou este mundo, intimando aos discípulos para que aguardassem sua volta gloriosa; não lhes quis indicar, porém, nem o dia nem a hora de sua vinda, pois esta deveria ser tida como a de um ladrão que aparece imprevistamente à meia-noite; vigiassem, pois, e orassem em santa expectativa. todavia, apesar da sobriedade das palavras de ieshuah, os discípulos esperavam que a sua vinda se desse em breve, enquanto ainda vivesse a geração dos apóstolos mesmos. à medida, porém, que se passavam os decênios, essa esperança se dissipava; a não poucos parecia que o mashiah havia esquecido a sua igreja e que vão era crer no evangelho. 
 
a situação se tornara ainda mais angustiosa desde que nero, em 64, desencadeara a primeira perseguição violenta contra os discípulos do rabino de nazaré. ser discípulo equivalia a ser tido como inimigo de césar. havia naturalmente um confronto entre mentalidade cristã e mentalidade pagã, e por viverem numa sociedade pagã, os discípulos do rabino de nazaré se abstinham de participar de festas de família, das celebrações cívicas, dos jogos públicos, e de profissões e ramos de negócio, que traduziam a mentalidade politeísta e supersticiosa da época. 
 
na ásia menor o ambiente estava carregado dessa presença do pensamento do pensamento pagão: o culto ao imperador era ponto chave da fidelidade de um cidadão romano. desde 195 a.c., esmirna possuía um templo consagrado à deusa roma. em 26 d.c., as autoridades da cidade ergueram outro santuário em honra à tibério, lívio e ao senado. em pérgamo, desde 29 a.c., se instituiu o culto ao imperador. na cidade de éfeso, nos inícios do reinado de augusto, foi construído um altar dedicado a ele, que ficava no templo de diana. os habitantes da ásia menor praticavam estes cultos e sentiam beneficiados pelos governantes de roma, já que eles puseram fim às guerras civis na região, o que assegurou à população desenvolvimento da indústria, do comércio e da cultura. 
 
outro perigo para o cristianismo se fazia notar na ásia menor em fins do século i. as gentes dessa região era religiosa, de sorte que dava acolhida não somente às religiões tradicionais do império e ao cristianismo, mas também aos cultos de mistério de mitra, cibele e apolo, trazidos do oriente. tais mistérios fascinavam pela sua índole secreta e por sua promessa de divinização. 
 
esse estado de coisas permite tirar a seguinte conclusão: na ásia menor uma religião que, como o cristianismo, professasse rigorosamente um deus único e transcendente manifestado por um só salvador, ieshuah, devia necessariamente defrontar-se em breve com formidável aliança de todas as forças do paganismo: sistemas religiosos, interesses políticos, planos econômicos deviam armar-se num combate unânime e cerrado contra o monoteísmo cristão; ser discípulo do mashiah, em tais circunstâncias, significaria sofrer o ódio e o boicote geral de parentes, amigos e concidadãos não discípulos do rabino de nazaré, de tal modo que até mesmo na vida cotidiana do lar o cristão se sentiria sufocado por causa de sua fé. 
 
assim, o império romano realizou dez perseguições contra os discípulos do rabino de nazaré, dirigidas por nero (64), domiciano (95), trajano (112), marco aurélio (117), sétimo severo (fim do segundo século), maximiano (235), décio (250), valeriano (257), aureliano e diocleciano (303).
 
a situação sugeria a não poucos discípulos de ieshuah ou a apostasia em relação ao divino mestre ou uma espécie de pacto com as idéias do paganismo, de sorte a dar origem ao sincretismo religioso (caracterizado principalmente pelo dualismo ou o repúdio à matéria que a mística oriental muito propalava). foi em tais circunstâncias sombrias que iohanan quis escrever a contemplação vivida. 
 
a finalidade do livro torna-se assim evidente. o autor visava, acima de tudo, alentar nos seus fiéis a coragem; a contemplação de iohanan, em consequência, é essencialmente o livro da esperança cristã ou da confiança inabalável no senhor em ieshuah e nas suas promessas de vitória. pergunta-se então: como terá iohanan procurado levantar o ânimo e corroborar a esperança dos leitores? haverá, em nome de deus, prometido dias melhores aqui na terra em recompensa da fidelidade a cristo, de maneira que quem fosse hostilizado por causa de ieshuah viria a ser estimado pelos concidadãos e acariciado por prósperas condições de vida temporal? 
 
como se sabe, grande é o número de sistemas que tentam interpretar o apocalipse. todos concordam sobre o sentido geral do livro, que quer anunciar a vitória do bem sobre o mal, do reino do mashiah sobre as maquinações dos pecadores. divergem, porém, quando tentam indicar a época precisa em que o apocalipse situa essa vitória. as diversas teorias se agrupam sob os títulos seguintes:
 
sistema do fim dos tempos: iohanan estaria descrevendo os embates finais da história. esta interpretação esteve em voga na antiguidade; foi posta de lado na idade média; do século xvi aos nossos dias é mais e mais prestigiada principalmente por parte de correntes que profetizam o fim do mundo para breve;
 
sistema da história antiga (do século i aos séculos iv/v): o apocalipse descreveria a luta do judaísmo e do paganismo contra os discípulos do mashiah, luta que terminou com a queda da roma pagã (476) e o triunfo do cristianismo;
 
sistema da história universal: o apocalipse apresentaria, sob a forma de símbolos, uma visão completa de toda a história do cristianismo; descreveria sucessivamente os principais episódios de cada época e do fim do mundo. 
 
todas estas interpretações são, de algum modo, falhas, pois não levam em conta suficiente o estilo próprio do livro e querem deduzir do apocalipse notícias que satisfaçam aos anseios ou à curiosidade do leitor. por isto, deixando-as de lado, propomos a leitura da recapitulação, proposta por alio. examinemos essa teoria:
 
antes do mais, é necessário observar que nem todo o livro do apocalipse está redigido em estilo apocalíptico. as coisas que são, revisão da vida das sete comunidades da ásia menor às quais iohanan escreve; o estilo é sapiencial e pastoral; as coisas que devem acontecer depois. esta é a parte apocalíptica propriamente dita, para a qual se volta a nossa atenção. observemos a estrutura dessa parte: a corte celeste, com sua liturgia. o cordeiro "de pé, como que imolado", recebe em suas mãos o livro da história da humanidade. tudo o que acontece no mundo está sob o domínio desse senhor, que é o rei dos séculos. notemos assim que a parte apocalíptica do livro se abre com uma grandiosa cena de paz e segurança; qualquer quadro de desgraça posterior está subordinado a essa intuição inicial. 
 
o corpo do livro, que se segue, compreende três septenários: os sete selos: as sete trombetas: as sete taças. 
 
pergunta-se: uma estrutura construída de forma tão sofisticada poderá ainda ser o reflexo imediato da história tal como ela é vivida pelos homens? não seria, antes, o fruto de um arranjo lógico ou do trabalho de alguém que reflete sobre os acontecimentos e procura discernir alguns fios condutores por debaixo das diversas ocorrências da vida cotidiana?
 
sabemos que o estilo de iohanan é comparado ao voo de uma águia que gira em torno do objeto contemplado até finalmente dar o bote ou dizer claramente o que quer. levando em conta esta peculiaridade de estilo, podemos dizer que o autor não expõe os sucessivos acontecimentos concretos da história do cristianismo, mas apresenta a realidade invisível que se vai afirmando por trás dos episódios visíveis da história. 
 
em outros termos: o apocalipse apresenta (sob a forma de símbolos) a luta entre ue satanás, luta que é o fundo e a coluna dorsal de toda a história. cada septenário (o dos selos, o das trombetas e o das taças) é uma peça literária completa em si mesma; o número sete, aliás, significa plenitude ou totalidade, segundo a mística dos antigos. 
 
após os três septenários, ocorre a queda dos agentes do mal: a queda de babilônia, símbolo da roma pagã; a queda das duas feras que regem babilônia, o poder imperial pagão e a religião oficial do império; a queda do dragão, supremo instigador do mal. 
 
em contrapartida, a seção final mostra a cidade de david celestial, esposa do cordeiro e antítese da babilônia pervertida. os versos 22.16-21 constituem o epílogo do livro. aprofundemos um pouco mais o sentido do tríplice septenário central do apocalipse. 
 
o primeiro, o dos selos, nos dá a ver a paulatina abertura do livro que está nas mãos do cordeiro. é o septenário mais sóbrio e nítido, que, pode-se dizer, resume o livro inteiro; examinemo-lo de perto:
 
o primeiro selo corresponde a "um cavalo branco, cujo cavaleiro tinha um arco. deram-lhe uma coroa e ele partiu vencedor e para vencer ainda". o cavalo branco reaparece em 19,11-16; seu montador é o senhor dos senhores e o rei dos reis. - consequentemente dizemos que o primeiro septenário se abre com uma figura alvissareira: a do verbo de deus ou evangelho que, vencedor, porque já propagado no mundo, se dispõe a mais ainda se difundir. sobre este pano de fundo vêm os três flagelos clássicos da história:
 
o segundo selo corresponde ao cavalo vermelho, símbolo da guerra; 0 terceiro selo é o do cavalo negro, símbolo da fome negra e da carestia que a guerra acarreta; o quarto selo é o do cavalo esverdeado, símbolo da peste e da morte decorrentes da guerra e da fome (6,7s). aí estão os três flagelos que afligem os homens em todos os tempos e que as escrituras do povo da estrela frequentemente menciona. 
 
depois disto, o quinto selo apresenta os mártires no céu pedindo a deus justiça para a terra ou o fim da desordem que campeia no mundo. reproduzem o clamor dos justos de todos os tempos ansiosos de que termine a inversão dos valores na história da humanidade. em resposta, é-lhes dito que tenham paciência e aguardem que se complete o número dos habitantes da cidade de david celestial. 
 
o sexto selo já nos põe em presença do desfecho da história: chegou o grande dia do juízo final. aparecem então os justos na bem-aventurança celeste: os estelares representados por 144.000 assinalados, e os provenientes do paganismo, a constituir "uma multidão inumerável de todas as nações, tribos, povos e línguas"; celebram a liturgia celeste. 
 
aqui se encerra propriamente o primeiro septenário; compreende em suas grandes linhas os aspectos aflitivos da história da humanidade e o anseio dos justos para que a ordem se restabeleça; a consumação da história é, para os fiéis, vitória e felicidade. a consolação que iohanan quer transmitir aos seus leitores, consiste precisamente em mostrar que as calamidades sob as quais os homens gemem, estão envolvidas num plano sábio de deus, onde todos os males estão dimensionados para que sirvam à salvação das criaturas e à glória do criador. eis aí a síntese do apocalipse apresentada com clareza no primeiro septenário. 
 
e o sétimo selo corresponde a um silêncio de meia-hora. sim, o livro se abriu por completo. iohanan espera a execução dos desígnios de deus contidos no livro aberto. este silêncio de meia-hora é o "gancho" que remete ao segundo septenário. 
 
o segundo e o terceiro septenários retomam o conteúdo do primeiro com algumas variantes. observemos, para começar, que terminam cada qual com a consumação da história. o segundo septenário tem em vista principalmente os flagelos que afligem o mundo profano: a terra, a vegetação, as águas, os astros... ao contrário, o terceiro septenário tem em mira as sortes da igreja perseguida pelo dragão (satanás) e seus dois agentes (o poder imperial pagão, que manipula a religião oficial do estado pagão). observemos dentro do segundo septenário o "gancho" do qual pende o terceiro septenário: é entregue a iohanan um livrinho, doce na boca e amargo no estômago. como entender isto? -- o segundo septenário apresenta a execução do plano de deus contido no livro cujos selos se abriram. portanto, se deve haver outra série de revelações, deve haver também outro livro que as traga; é precisamente este que iohanan recebe, amargo no estômago, porque portador de notícias pesadas para os discípulos do rabino de nazaré fiéis. 
 
merece atenção especial o intervalo ocorrente entre o segundo e o terceiro septenários. ele prepara a série das taças, apresentando os grandes protagonistas da história da igreja: a mulher e o dragão no capítulo 12; as duas bestas, manipuladas pelo dragão, sendo que a primeira sobe do mar, quem olha da ilha de patmos para o grande mar, se volta para roma e representa o poder imperial perseguidor, ao passo que a segunda besta sobe da terra -- quem de patmos olha para o continente próximo, volta-se para a ásia menor, onde campeia o culto religioso do imperador. 
 
a sede capital destes dois agentes é babilônia, a roma pagã. o cap. 12, ao apresentar a mulher e o dragão, é também uma síntese da mensagem da apocalipse e da história da igreja, que será comentada na quarta parte deste estudo. - como dito, os agentes do mal estão fadados a perecer, como se lê em 17,1-20,15, dando lugar à cidade de david celeste e à bem-aventurança dos justos. 
 
por conseguinte as calamidades que o apocalipse apresenta a se desencadear sobre o mundo, não hão de ser interpretadas ao pé da letra; antes, depreender-se-á o seu sentido à luz das cenas de paz e triunfo que iohanan intercala entre as narrativas de flagelos (enquanto os justos padecem na terra, há plena segurança no céu, conforme o apocalipse). justapondo aflições na terra e alegria no céu, iohanan queria precisamente dizer aos seus leitores que as tribulações desta vida estão em relação estrita com a sabedoria de deus; foram cuidadosamente previstas pelo senhor, que as quis incluir dentro de um plano muito harmonioso, plano ao qual nada escapa. 
 
em consequência, ao padecer as aflições da vida cotidiana, os discípulos do rabino de nazaré deviam se lembrar de que tais adversidades não esgotam toda a realidade, mas são apenas as facetas externas e visíveis de uma realidade que tem seu aspecto celeste e grandioso. as calamidades sob as quais os discípulos do rabino de nazaré do primeiro século se sentiam prestes a desfalecer, não os deveriam impressionar, constituíam como que o lado de baixo de um tapete que, visto no seu aspecto autêntico e superior, é um verdadeiro tapete oriental, cheio de ricas cores e belos desenhos. 
 
eis a forma de consolo que iohanan queria incutir aos seus leitores, não só do séc. i, mas de todos os tempos da história: os acontecimentos que nos acometem aqui na terra são algo de ambíguo ou algo que tem duas faces: uma exterior, visível, a qual é muitas vezes aflitiva e tende a nos abater; outra, porém, interior, invisível aos olhos da carne, mas perceptível aos olhos da fé, a qual é grandiosa e bela, pois faz parte da luta vitoriosa do bem sobre o mal; é mesmo a prolongação da obra do cordeiro que foi imolado, mas atualmente reina sobre o mundo com as suas chagas glorificadas. por isto, enquanto os discípulos do rabino de nazaré na terra gemem (ai, ai, ai!), os bem-aventurados na glória cantam (aleluia, aleluia, aleluia!). 
 
no céu os justos não se acabrunham com o que acontece de calamitoso na terra: continuam a cantar a deus porque percebem o sentido verdadeiro das nossas tribulações. no dizer de iohanan, essa mesma paz e tranquilidade devem tornar-se a partilha dos discípulos do rabino de nazaré na terra, pois, embora vivam no tempo e no mundo presentes, já possuem a eternidade e o céu sob forma de semente, semente da graça santificante, que é semente da glória celeste. 
 
assim o apocalipse oferece uma imagem do que é a vida dos seguidores do rabino de nazaré e a vida da comunidade de fé: é uma realidade simultaneamente da terra e do céu, do tempo e da eternidade. na medida em que é da terra e do tempo, apresenta-se aflitiva. este aspecto, porém, está longe de ser essencial: no seu âmago, a vida do cristão é celeste e, como tal, é tranquila, à semelhança da vida dos justos que no céu possuem em plenitude aquilo que os discípulos do rabino de nazaré possuem na terra em germe. 
 
o capítulo doze sintetiza toda a história da igreja sob a forma da luta entre a mulher e o dragão, figuras paralelas às da mulher e da serpente. este trecho apresenta uma mulher gloriosa e sofredora ao mesmo tempo. está para dar à luz um filho que um monstruoso dragão espreita para abocanhá-lo. a mulher gera seu filho, que tem os traços do messias. ele escapa ao dragão e é arrebatado aos céus. dá-se então uma batalha entre miguel com seus anjos e o dragão, que acaba sendo projetado do céu sobre a terra, onde procura abater a mulher-mãe, perseguindo-a de diversos modos. mas o próprio deus se encarrega de defender a mulher no deserto durante os três anos e meio ou os quarenta e dois meses ou os mil duzentos e sessenta dias de sua existência. 
 
vendo que nada pode contra essa figura grandiosa, a serpente antiga atira-se contra os demais filhos da mulher, tentando perdê-los. que significa este capítulo? está claro que o dragão representa satanás, aquele que é "mentiroso e homicida desde o início". 
 
quanto à mulher, não pode ser identificada com algum personagem individual, mas é a mulher que perpassa toda a história da salvação. com efeito; já à primeira hawah, mãe da vida, deus prometeu um nobre papel na obra da redenção. a primeira hawah se prolongou na filha de sião, o povo da terra da estrela, do qual nasceu o messias. a filha de sião culminou na segunda hawah, a igreja de cristo. por isso, a mulher é gloriosa, mas sofredora como o povo da terra da estrela, pois os filhos que ela gera estão sujeitos a ser atingidos pela sanha do dragão, que age neste mundo como um adversário já vencido, mas desejoso de arrebanhar os incautos que lhe deem ouvidos. agostinho diz que o demônio é um cão acorrentado: pode ladrar, fazendo muito barulho, mas só morde a quem se lhe chegue perto. por último, esta mulher-mãe, igreja que exerce sua maternidade por toda a história da salvação, se consumará na cidade de david celeste, a esposa do cordeiro. 
 
a batalha entre miguel e o dragão não corresponde à queda original dos anjos, mas significa plasticamente a derrota de satanás, vencido quando cristo venceu a morte por sua ressurreição e ascensão. deus permite satanás tentar os homens nestes séculos da história da igreja, com um fim providencial, provar e consolidar a fidelidade dos crentes. satanás só age por permissão de deus. 
 
a duração de 1260 dias ou três anos e meio que a mulher passa no deserto, não significa cronologia, mas tem valor simbólico. com efeito, três anos e meio, 42 meses e 1260 dias são termos equivalentes entre si: correspondem à metade de sete anos. sete é o símbolo da totalidade, da perfeição, da bonança e, por conseguinte, a metade de sete é o símbolo do que está inacabado, da dor. portanto, três anos e meio (e as expressões equivalentes em meses e dias) no apocalipse traduzem toda a história da igreja na medida em que não é algo concluído, que é a penosa luta da igreja entre a primeira e a segunda vinda de cristo, no deserto deste mundo. 
 
e o capítulo vinte fala de um aparente reino milenar do rabino de nazaré sobre a terra, estando satanás acorrentado. o milênio seria inaugurado pela primeira ressurreição, reservada aos justos apenas, aos quais seria dado viver em paz e bonança com cristo. terminado o milênio, satanás seria solto para realizar a seu ataque final, que terminaria com a sua derrota definitiva. dar-se-iam então a segunda ressurreição, para os demais seres humanos, e o juízo final. 
 
a teoria milenarista, entendida ao pé da letra, foi professada por antigos escritores da igreja: justino (+165), irineu (+202), tertuliano (+ após 220), lactâncio (+ após 317). agostinho (+430) propôs novo modo de entender o texto, a partir a leitura de iohanan 5.25-29, onde se lê: “em verdade, em verdade vos digo, aquele que ouve a minha palavra... passou da morte para a vida. em verdade, em verdade vos digo, que vem a hora, e já veio, em que os mortos ouvirão a voz do filho de deus e os que a ouvirem viverão”. 
 
“não vos admireis disto, pois vem a hora em que ouvirão sua voz todos os que estão nos sepulcros. os que praticaram o bem sairão para a ressurreição da vida, os que, porém, praticaram o mal, sairão para a ressurreição do juízo". 
 
nesse trecho, o senhor distingue duas ressurreições: uma, que se dá "agora" ("e já veio"), no tempo presente, quando ressoa a pregação da boa nova: é espiritual e publicitada através do batismo; equivale à passagem da vida no pecado para a vida na graça que santifica. a outra é futura e se dará no fim dos tempos, quando os corpos forem transformados pela vida na graça por enquanto latente nos salvos. 
 
assim, no apocalipse a ressurreição primeira é a passagem da morte para a vida que se dá na conversão de cada cristão, quando este começa a viver a vida sobrenatural ou a vida do céu em meio às lutas da terra. a segunda ressurreição é, sim, a ressurreição dos corpos, que se dará quando cristo vier em sua glória para julgar todos os homens e por termo definitivo à história. 
 
mil anos designam a história da igreja na medida em que é luta vitoriosa ("mil" é um símbolo de plenitude, de perfeição; "mil felicidades", na linguagem popular, são "todas as felicidades"). pela redenção na cruz, cristo venceu o príncipe deste mundo, tornando-o semelhante a um cão acorrentado, que muito pode ladrar, mas que só pode morder a quem voluntariamente se lhe chegue perto (agostinho). 
 
é justamente esta a situação do maligno na época que vai da encarnação à parusia do mashiah ou no decurso da história do cristianismo. por isto os três anos e meio que simbolizam o aspecto doloroso desses séculos (já estamos no vigésimo-primeiro século), são equivalentes a mil anos, caso queiramos deter nossa atenção sobre o aspecto feliz, transcendente ou celeste da vida do cristão que peregrina sobre a terra: a graça santificante é a semente da glória do céu. 
 
assim se vê quanto seria contrário à mentalidade de iohanan tomar ao pé da letra os mil anos do capítulo 20 e admitir um reino milenário de cristo visível na terra após o término da história atual. 
 
o sistema da recapitulação proposto merece a preferência aos demais, pois é o que mais leva em conta a mentalidade e o estilo de iohanan. este, também no seu evangelho, recorreu ao estilo da recapitulação em espiral. contudo não se pode negar as alusões do apocalipse aos personagens e situações da história antiga -- nero, a invasão dos bárbaros, roma, babilônia ... 
 
mediante essas referências, iohanan não tinha em vista deter a atenção do seu leitor sobre episódios da antiguidade, mas mencionar tipos característicos de mentalidades humanas ou de situações de vida que acompanham toda a história da igreja: assim nero vem a ser o protótipo dos soberanos políticos que perseguem a igreja em qualquer época -- há muitas reproduções de nero através da história. por isto também o número seiscentos e sessenta e seis da besta do apocalipse, adversária dos discípulos do rabino de nazaré, equivale, segundo a interpretação mais provável, à expressão kaisar neron, imperador nero. 
 
roma e babilônia, por sua vez, designam de maneira típica o poderio deste mundo que, com seus mil atrativos de esplendor e prazer, procura seduzir os discípulos de cristo para o pecado. a luta a que iohanan assistiu, entre roma pagã e a igreja, é evocada no apocalipse não por causa da luta propriamente dita, mas dentro de uma perspectiva mais ampla, isto é, a fim de simbolizar e predizer o combate perene que se vai travando entre o poder diabólico e cristo através dos séculos, até terminar com a plena vitória de ieshuah. 
 
estas considerações concorrem para evidenciar quanto é vã a tentativa de descobrir a predição de fenômenos estranhos da hora presente (bombas atômicas, explosões, enchentes e secas, discos voadores) nos quadros da contemplação de iohanan. estes são quadros típicos e perenes, quadros que se reproduzem por todo o decorrer da história, variando apenas de aspectos. 
 
a sua mensagem abrange todas as situações análogas: querem, sim, dizer que as desgraças da vida presente, por mais aterradoras que pareçam, estão sujeitas ao plano da eternidade que provê, a qual tudo faz concorrer para o bem daqueles que 0 amam. 
 
reyna dá a sua famosa risadinha, não liga para as contemplações do profeta. é pé no chão.  sarcasmo puro. ela é libertária, já está com os solidários, mas discorda da ala reformista. reyna é a nossa rosa luxemburg.
 
e ela me lembra duas outras mulheres-guerreiras, que fogem aos parâmetros de gênero colocados pela cultura patriarcal estelar-cristã. a primeira faz parte da literatura humana, é diadorim. 
 
de diadorim, disse guimarães rosa, através de riobaldo, no grande sertão: veredas -- “montado à baiana, gineta, com estribos curtos e rédea muito ponderada, bridando bem, em seu argel travado, às upas: cavalo bulideiro, cavalo de olhos pretos conforme como a noite”.
 
 “guerreava delicado e terrível nas batalhas. (...) como era que era: o único homem que a coragem dele nunca piscava; e que, por isso, foi o único cuja toda coragem às vezes eu invejei. aquilo era de chumbo e ferro”.
 
mas diadorim, “que quando ferrava não largava” tinha seu inimigo nomeado: hermógenes.
 
 “vigiei diadorim; ele levantou a cara. vi como é que olhos podem. diadorim tinha uma luz. reponho: em tanto já estava noitinha, escurecendo; aquela escuridão queria mandar os outros embora. o que diadorim reslumbrava, me lembro de hei-de me lembrar, enquanto o eterno dura. mas, entre nós dois, sem ninguém saber, nem nós mesmos no exato, o que a gente acabava de fazer, entestando nos fundos, definitivamente por morte, era o julgamento do hermógenes”.
 
“eu dizendo que a mulher ia lavar o corpo dele. ela rezava rezas da bahia. mandou todo o mundo sair. eu fiquei. e a mulher abanou brandamente a cabeça, consoante deu um suspiro simples. ela me mal-entendia. não me mostrou de propósito o corpo. e disse…

diadorim - nu de tudo. e ela disse:
- 'ao eterno dada. pobrezinha…'
e disse. eu conheci! como em todo o tempo antes eu não contei ao senhor - e mercê peço: -- mas para o senhor divulgar comigo, a par, justo o travo de tanto segredo, sabendo somente no átimo em que eu também só soube… que diadorim era o corpo de uma mulher, moça perfeita… estarreci. a dor não pode mais do que a surpresa. a coice d'arma, de coronha…” 
 
grande sertão: veredas, caminho e descaminho, verde e seco, limite. diadorim possui jeitos de fêmea, atos másculos de jagunço, “homem é rosto a rosto: jagunço também: é no quem-com-quem”: bravo e a feroz na luta. sempre pronto para o combate, diadorim “se fazia em fúria”, “de pancada”, “ansiando raiva”. 
 
a segunda mulher-guerreira é jael e faz parte da literatura hebraica antiga. dela nos conta juízes 4.
 
“porém sísera fugiu para a barraca de jael, mulher de héber, o queneu. ele fez isso porque jabim, rei de hazor, estava em paz com a família de héber. jael saiu da barraca para encontrar sísera e lhe disse: entre, meu senhor. entre na minha barraca. não tenha medo. então ele entrou, e jael o cobriu com um tapete. e sísera pediu a ela: por favor, me dê um pouco de água porque estou com muita sede. ela abriu um odre de leite e lhe deu de beber. depois cobriu sísera de novo. e ele disse: fique na porta da barraca e, se alguma pessoa vier e perguntar se há alguém aqui, diga que não”.
 
“sísera estava muito cansado e caiu num sono profundo. aí jael pegou um martelo e uma estaca da barraca, entrou de mansinho e fincou a estaca na cabeça dele, na fonte. a estaca atravessou a cabeça e entrou na terra. e ele morreu. quando baraque chegou, perseguindo sísera, jael saiu para encontrá-lo e disse: venha cá, e eu lhe mostro o homem que você está procurando. então baraque foi com ela e encontrou sísera no chão, morto, com a estaca atravessada na cabeça”.
 
jael, a cabra selvagem, no século 12 antes da era comum matou sísera, o chefe das milícias cananeias. débora, profeta efraimita, disse que jael era a mais abençoada das mulheres, porque pegou uma estaca numa mão e uma marreta noutra e esmagou a cabeça de sísera, furou e deixou a cabeça dele em pedaços. 
 
é isso mesmo, dançando débora cantou que jael foi a mais bem-aventurada das mulheres porque sísera, o diabo encarnado, isso sou eu quem está dizendo, caiu morto aos pés dela. 
 
a história em juízes 4 fala de uma época sem limites, como os sertões das gerais de guimarães rosa. jael não era efraimita e juntamente com seu homem, héber, fazia parte de um clã nômade, queneu. mas por bravura guerreira foi elogiada por baraque, mor chefe da jagunçada efraimita. e foi bem-vinda no bando. 

num momento de dispersão dos clãs hebreus, débora convocou baraque e seus guerreiros para lutar. o texto estelar de juízes mostra a liderança de débora, e a coragem de jael, em oposição à racionalidade militar de baraque e a miserabilidade de sísera. o texto ressalta o papel carismático da profeta ao exortar homens e convocar os clãs à união. essa convicção e posicionamento é dançada com gritos de vitória e o ritmo quente da música cananeia-palestina. mil e trezentos anos depois, na carata cristã aos hebreus, o autor fará menção ao tempo dos juízes, cita baraque, mas omite débora e jael. e a mulher-guerreira parece esquecida.

no que se refere a diadorim e jael é necessário desconstruir as ideias de exclusão da mulher-guerreira e analisar os relatos sob uma nova leitura. 
 

a mulher-guerreira não é a mãe, nem a esposa, nem a prostituta, nem a feiticeira. ela deve ser procurada ali onde não estão as anteriores. assim teremos diadorim e jael para homem nenhum botar defeito. igual a reyna. 

11.
 
a canção de reyna
 
“mulheres da cidade de david, eu sou negra e bela. sou negra como as barracas do deserto, como as cortinas do palau de salomão”. cantares de salomão.
 
zlabya, talvez você conheça essas imagens de amor deste que é considerado um dos mais belos poemas da humanidade. mas, a moça em torno da qual gira a narrativa é motivo de acirrada polêmica, já que o livro de cantares traz à tona os detalhes dolorosos da animosidade entre grupos étnicos no reinado de salomão. 

aqui estamos diante de uma constatação fundamental: a moça inspiradora dos poemas de amor do livro de cantares era uma bela negra. e quando as filhas da cidade de david, que faziam parte da casta dominante ligada à corte, protestaram ao descobrir a paixão do rei, a sulamita respondeu ao clamor preconceituoso com a famosa afirmação: "eu sou negra e formosa, ó filhas da cidade de david, como as tendas de quedar, como as cortinas de salomão".

na versão inglesa king james a moça era negra, porém bela, mas no texto estelar não há distinção entre "porém" e "e". a conjunção hebraica “ve” pode ser traduzida por "porém" e "e". o tradutor decidirá por um ou por outro com base no contexto. mas, tanto no inglês, como no português, a escolha pode fazer uma diferença enorme.  
mas, por que os tradutores ocidentais optaram pelo “porém”? porque essas traduções foram feitas através do filtro cultural branco e racista, a partir da versão latina dos textos estelares e discípulos do rabino de nazaré, a vulgata, que introduziu o “porém”: “nigra sum sed formosa”. eu sou negra, “porém” formosa. não negra e bela, mas bela apesar de negra.  

no texto estelar de reis, no primeiro livro, encontramos a história da rainha do sul, ou seja, rainha de sabá. uma mulher inteligente, que fez perguntas duras a salomão. queria saber se ele era tão sábio quanto se comentava. assim, o antigo texto estelar está interessado nela por causa de sua inteligência. mas um fato significante sobre sabá é que ela era negra. não se sabe exatamente de que região. poderia ser do iêmen ou do norte da áfrica, possivelmente a etiópia. os falashas, estelares etíopes, e os rastafares reivindicam ser descendentes de menelik, o filho de salomão e sabá. e também para os discípulos do rabino de nazaré negros de todo o mundo, sabá surge como ícone racial e é vista como a musa de cantares de salomão. 
 
o poeta w. b. yeats releu o versículo “sou negra e bela” e poemou assim: salomão cantou a sabá e beijou a face negra dela.     

onde os discípulos do rabino de nazaré africanos celebraram a cor negra de sabá, o cristianismo europeu marginalizou sua história. na rainha de sabá viu a história de uma mulher pagã, uma mulher estrangeira que tinha se rendido à convicção hebreia. em sua rendição, aparentemente, sabá perdeu também a cor negra de sua pele.

assim a história de uma mulher sábia não combina com a história de uma negra, e tal leitura produziu uma terrível alienação na igreja cristã europeia e norte-americana, que levou o terror e o medo ao “outro de cor negra”. dessa maneira, o “outro de cor negra” foi domesticado, seduzido e subjugado. e a leitura cristã do texto é que sabá capitula a salomão e torna-se culturalmente “branca”. 

sabá foi companheira de salomão e o texto pode ser lido assim. mas a tradição, a partir da vulgata, fez dele um conquistador e dela uma conquista, gerando ideologias como a da vitória da europa sobre oriente, do homem sobre a mulher e do branco sobre o negro. 

mas os textos estelares falam de negros e de nações africanas como cuxe, mizraim e pute, que hoje são etiópia, egito e líbia. e até a construção do canal de suez, em 1859, não se fazia distinção entre as terras bíblicas. o cenário da atuação divina cobria também a península do sinai, o egito, que está na áfrica. e israel era visto como parte do continente africano. só com a construção do canal de suez, a áfrica passou a ser olhada como continente separado do oriente médio. nos textos estelares e dos discípulos do rabino de nazaré, a terra do povo é uma nação africana e semita, e a mensagem que leva ao mundo teve início nesse continente negro.  


e, embora muitos humanos da áfrica vejam as comunidades dos discípulos do rabino de nazaré como de origem europeia, a análise da história demonstra que a religião da terra da estrela teve origem multirracial e que começou a ser escrita na áfrica. 
a canção da sulamita é a preferida de reyna, mulher-guerreira consciente de raça e gênero que diz: “eu sou negra e bela, como as barracas do deserto, como as cortinas do palau de salomão”.

12.
 
não toquem na vida do yoffe
 
são paulo, vila santa isabel. é noite de sexta-feira. noite de festa em bairro da periferia. bailes de são iohanan em cada esquina. uma senhora, em seu quarto, porta fechada a chave, de joelhos, abraça a bíblia, como se fosse um filho muito querido e ora:
 
-- senhor, eu não sei do yoffe. não sei porque largou a manchete, viajou para tão longe, o que está fazendo e como está vivendo. ah! senhor, ouve esta mãe. acalma o coração dele, dê-lhe paz. ajuda ele, pai adorado. eu gosto tanto dele, mas ele me escreve tão pouco. ajuda também a reyna. é uma moça tão boa. não permita que yoffe a faça sofrer.
 
miriam não vê, mas alguns mensageiros da eternidade acompanham com atenção e reverência aquela oração de fé. ela está conversando com o eterno criador dela e deles. suas asas, enormes, estão abertas. o ambiente brilha com intensidade. ah! se ela pudesse ver. se pudesse... de memória, aquela simples e pequena mulher de fé, começa a orar o salmo 91...
 
-- aquele que habita no esconderijo do altíssimo, a sombra do onipotente, descansará...
 
de olhos cerrados, coloca a bíblia sobre a cama, junta as mãos com força, como se estivesse esperando já, nesse momento, a resposta do eterno. e completa a oração.
 
-- porque a mim se apegou com amor, eu o livrarei, pô-lo-ei a salvo, porque conhece o meu nome. ele me invocará, e eu lhe responderei, na sua angústia eu estarei com ele, livrá-lo-ei, e o glorificarei. saciá-lo-ei com longevidade e lhe mostrarei a minha salvação.
 
as lágrimas escorrem por seu rosto. rosto de mãe que recorda o filho ainda pequeno orando com ela o pai nosso. sorri, como se o menino estivesse ali, do seu lado. lembra-se dele, no colo do pai, ouvindo as histórias de um rapaz corajoso, que enfrentou sozinho um gigante chamado golias. e o menino vibra, pula, quando o pai imita o barulho da queda do filisteu.
 
era um apartamento gostoso aquele de santa teresa, no rio. ela cheia de vida, moça ainda, não tinha muito do que reclamar. era apaixonada pelo marido. pena que a vida às vezes muda tão bruscamente. shemtós morreu de complicação cardíaca. foi tudo muito rápido. perderam o apartamento. tiveram que ir para perdões. ela e os dois filhos, um pequenino, com apenas três anos. foram para a fazenda do  ari. ela ficou lá uns meses e voltou para o rio. tinha que conseguir trabalho, alugar casa, cuidar das crianças.
 
e aquela jovem mãe, criada em berço de ouro, que nunca tinha trabalhado na vida, mostrou-se tão valente como o garoto davi. foi massacrada pelas circunstâncias. empobrecida, moravam num quarto alugado na rua paissandu, ali no flamengo. o menor, já tinha 12 anos, mas só andava em más companhias. o dia todo na praia. o yoffe trabalhava e estudava. lia a bíblia, tinha amigos crentes. o eterno, sem dúvida, haveria de ajudá-lo.
 
mas a vida era muito dura. recebiam ajuda da igreja, além de pacotes de trigo e leite em pó doados pela aliança para o progresso. num momento de desespero, cortou os pulsos. e em plena crise, foi internada em um castelo psiquiátrico em jacarepaguá. 
 
de pé, miriam coloca a bíblia sobre a mesa. e continua a lembrar-se das visitas que o yoffe lhe fazia aos domingos. ela sedada, estava inchada pelos medicamentos, quase não conseguia andar. ria da situação, para não deixar o filho chorar de desespero. mas ela sabia que um jovem não resolve muito bem certos problemas.
 
meses depois, recebeu alta. casou-se com um professor de são paulo, dono de uma escola no bairro do carrão. mudou-se para a casa dele. casa grande, de dois andares, que entre outros confortos tinha uma biblioteca. levou o rapaz alex. yoffe afastou-se dela, da família, de todos.
 
passaram-se anos. será que ele me odeia? será que ele não vai me perdoar, nunca, pelos anos difíceis que vivemos? pela fome? a esta mãe só restava a oração. e como crente que era, orava todos os dias pelos dois filhos, em especial pelo pródigo. 
 
se ela pudesse ver a revoada de anjos ao redor da casa, naquelas noites de oração. era um quartel-general do eterno no quarteirão. mas ela sabia que não estava sozinha. no mínimo, uma dezena de pessoas orava diariamente pelo yoffe. as tias lucy e alice, que temiam por sua vida, e vários irmãos de sua igreja, que tinham iniciado uma corrente de oração por ele.
 
e foi assim, por misericórdia e amor, que o eterno ordenou a seus anjos guardarem a vida do yoffe. é certo que essa guarda só podia ir até certo ponto. yoffe declarava-se ateu e, conscientemente tinha rompido todos os relacionamentos com a fé. só confiava em si próprio. e não queria ajuda de ninguém. mal sabia ele que a seu lado, como conselheiro chegado, havia um limite, ahava, o limite das onze horas. e como ahava não trabalhava sozinha, lá estavam em parceria permanente, sharon e  adara. o inferno particular de yoffe era alucinado, degenerado e violento. mas quem definia o rumo era ahava. 
 
os mensageiros do eterno já haviam advertido aos limites: eles não tinham permissão para tocar na vida do rapaz. mas permaneciam à distância. há uma lei que nem o eterno viola. é o livre arbítrio que ele próprio deu às pessoas. assim, yoffe tinha o direito inalienável de escolher seus conselheiros e amigos. daí a cena, sem dúvida estranha, que acompanhava sua vida. estava sempre rodeado dos três limites, que o envolviam opressivamente, formando uma névoa negra e compacta. a certa distância, em revoada atenta, sempre havia três anjos. eles não penetravam a névoa, mas sua presença era uma lembrança permanente para os limites, da ordem que tinha vindo do trono do eterno: não toquem na vida do yoffe.
 
miriam  não podia ver o mundo espiritual. mas estava em seu coração a lembrança dos momentos em que a intervenção divina salvara a vida do menino. quando ele tinha apenas um ano de idade, ela estava fazendo um mingau e por algum motivo afastou-se do fogão por momentos. a criança, andando desequilibradamente, apoiou-se com força no fogão e a panela de mingau fervendo entornou sobre ela. desesperada, uma das tias, iracema, pegou o menino e o colocou debaixo do chuveiro frio. a pele de todo o corpo escorreu e ficou no fundo da banheira. durante dias, entre a vida e a morte, yoffe ficou internado, nu, sobre folhas de bananeira.
 
miriam orava insistentemente para que a criança não morresse. e fez um acordo com o  eterno eterno. prometeu que a criança seria dele, para ele, conforme fosse o desejo dele. deu seu primogênito como oferta ao senhor. nazireu do eterno. sem dúvida, ela fica lembrando... o eterno ouviu sua oração e aceitou sua oferta. a segunda guerra mundial tinha terminado fazia um ano, e da itália chegou uma pomada milagrosa: penicilina. três vezes por dia, passavam a pomada em todo o seu corpo. um mês depois teve alta.

que bom saber que o eterno cumpre o que promete. yoffe estava sob a guarda da eternidade. miriam só tinha que ter paciência. qualquer dia ele entraria por aquela porta e a saudade cederia lugar à alegria do reencontro.