vendredi 16 novembre 2007

REFLEXÕES SOBRE A TEOLOGIA DA MISSÃO INTEGRAL

Por Jorge Pinheiro

Nesses estudos que começamos a desenvolver sobre a Teologia da Missão Integral queremos reafirmar alguns conteúdos e expor outros. Assim, começamos, à guisa de definição, afirmando que a TMI é comunicação e presença do evangelho. Com isso queremos dizer que essa teologia correlaciona comunicação e presença, sem colocar um sinal de igualdade entre essas realidades e sem declarar que necessitam sempre ser levadas a termo juntas. Na Teologia da Missão Integral, a comunicação tem conseqüências sociais porque convoca pessoas e comunidades ao arrependimento e ao amor pelos outros em todas as áreas da vida.

A Teologia da Missão Integral vê compromisso social como comunicação e presença, que tem conseqüências para a proclamação da boa nova que se dá através do testemunho da graça do Cristo. Quando há silêncio e cruzar dos braços diante dos sofrimentos do mundo, a Palavra é traída, já que nessas circunstâncias não há o que oferecer ao mundo.

A Teologia da Missão Integral tem como um de seus pilares a diaconia, que em seu sentido cristão significa serviço ao próximo. Diante da alegria pelo que Deus tem feito, ao abençoar as vidas, a Missão Integral propõe como resposta a promoção da diaconia. Nesse sentido, Missão Integral e diaconia são expressões que não podem vir separadas.

Nas primeiras comunidades cristãs, a diaconia teve característica singular de testemunho de fé por meio da vida solidária (At 2.44-45; 4.32-35), já que, como disse Paulo, "se um membro sofre todos sofrem com ele" (1Co 12.26). O fundamento dessa ação solidária repousa nos ensinos e prática de Jesus Cristo. Por isso, para a Missão Integral, o amor a Deus só é possível se este alcança o próximo (1Jo 4.20). Na prática, amar ao próximo consiste em propiciar dignidade humana e reintegração na sociedade (Mt. 9.35+). Por seu ministério e morte, Cristo assumiu a fraqueza humana e sofreu o poder de morte do mundo para, então, superá-los. Assim, a Teologia da Missão Integral desafia ao testemunho do amor de Deus, enquanto ação solidária.

A Teologia da Missão Integral é sentido e luta incondicional pela justiça, entendendo que a justificação pela graça, através da fé, não se refere apenas a fé posicional, mas existencial. É uma instrução de que falamos de Cristo na vida da comunidade de tal maneira que a justificação se transforma em vida aberta. E, assim, é fé material, política, e espiritual, já que transformação da pessoa e transformação estrutural estão correlacionadas. Ser, fazer e dizer, então, estão no coração da teologia da missão integral.


A Teologia da Missão Integral
é uma teologia da transformação holística


1. É uma teologia da centralidade em Cristo, pois a vida de serviço sacrificial de Jesus é o paradigma. Em sua vida e por meio da sua morte, Jesus estabeleceu o modelo de identificação com os excluídos e o exercício da inclusão. Na cruz, Deus revela a seriedade com que Ele olha para a justiça e reconcilia consigo integrados e excluídos, ao cumprir com os requerimentos de sua própria justiça. No caminhar com os excluídos de bens e possibilidades, serve-se no poder do Senhor por meio do Espírito e encontra-se a esperança em submeter todas as coisas a Cristo.

2. É uma teologia da graça de Deus, que concede impulso à comunicação permanente onde todo e qualquer locus é campo privilegiado. Como receptores do amor somos pessoas agraciadas pela generosidade e aceitação dos demais. Tal graça define a justiça frente à situação-limite vivida pelo povo brasileiro, não somente como contrato que deve ser honrado, mas como serviço àquele que se encontra à margem, caído.

3. É uma teologia do Espírito, um convívio com o Espírito, já que este é o sentido cristão da palavra espiritualidade. Dessa maneira, a idéia de uma vida forte, a idéia da vitalidade de uma vida criativa a partir de Deus nos leva à espiritualidade, ou seja, a uma vida espiritualizada por Deus.

Por isso, podemos dizer: as pessoas procuram a Deus porque o Espírito as atrai para si. Estas são as primeiras experiências do Espírito no ser humano. E o Espírito as atrai como um imã atrai as limalhas de ferro. O íntimo e suave atrativo de Deus é experimentado pela pessoa em sua fome de viver e em sua busca de felicidade, que nada no universo pode satisfazer ou saciar.

A espiritualidade da vida se opõe à mística da morte. Quanto mais sensíveis as pessoas se tornam para a felicidade da vida, mais sentem a dor pelos fracassos da vida. Vida no Espírito é vida contra a morte. Não é vida contra o corpo, mas a favor de sua libertação e sua glorificação. Dizer sim à vida significa dizer não à guerra e suas devastações. Dizer sim à vida significa dizer não à miséria e suas humilhações. Não existe uma afirmação verdadeira da vida sem luta contra tudo que nega a vida.

O Espírito é o acontecer da presença atuante de Deus, que penetra até o mais íntimo da existência humana. Ele atua como força de vida no ser humano e transforma aqueles que se encontram sob o senhorio de Cristo.

Cria espaço, põe em movimento, leva da estreiteza para a amplidão. Cria o horizonte e nas nossas vidas amplia o horizonte. Na experiência com o Espírito, Deus não é experimentado somente como Pessoa da Trindade, mas também como aquele espaço e tempo de liberdade onde o ser humano pode se desenvolver.

E onde está o Espírito há liberdade. Com essa experiência do Espírito, Paulo falou sobre a liberdade cristã. Mas para falar da liberdade no Espírito é necessário começar pela fé.

A fé é geralmente entendida como uma concordância formal com a doutrina da igreja ou como uma participação na fé da igreja. Mas a fé que liberta é mais do que isso, é uma fé que nos envolve pessoalmente. A fé que me faz livre não é somente a fé com a qual eu concordo, mas aquela que me leva a partir e repartir o pão e o vinho. Tal fé pessoal é sempre comunitária e o início de uma liberdade que renova inteiramente a vida e vence o caos.

Essa fé é uma experiência que não abandona aqueles que a vivenciam realmente: é libertação do medo para confiança, reviver para uma esperança viva, amor incondicional à vida.

Para a fé que parte e reparte pão e vinho, a liberdade não consiste nem na compreensão de uma necessidade histórica, nem na autonomia sobre si próprio e sobre a propriedade, mas sim no ser tocado pela necessidade do outro que sofre. Fé significa assim, posicionamento existencial, ser criativo diante dessas gentes brasileiras, com suas comunidades, com Deus e no seu Espírito. Crer leva a uma vida criativa e vivificante pelo amor. Crer, por isso, significa ultrapassar os limites da realidade determinada pelo passado marcado pela escravidão e pela exclusão e buscar as possibilidades da vida que não se realizaram. E é essa fé que livra da força do mal, da lei das obras e do poder da morte e leva a uma comunhão direta com o meu próximo e eterna com Deus. Essa é a base e o fundamento da liberdade no Espírito.

4. É teologia da imagem de Deus, e nesse sentido uma teologia para os excluídos, que como todos os humanos são portadores da imagem de Deus Criador. Pessoas e comunidades excluídas de bens e possibilidades têm conhecimentos, habilidades e recursos. Tratar tais pessoas com dignidade significa propiciar condições para que sejam arquitetos de mudança em suas comunidades. Trabalhar com elas envolve a construção de relações que conduzem a uma mudança mútua.

5. É uma teologia para a Igreja, porque Deus por sua graça tem dado as comunidades de fé o desafio da comunicação. O futuro da comunicação se define em termos de expansão do reino de Deus, capacitando as gentes para que transformem suas comunidades. As comunidades de fé devem gerar espaços e tempos de inclusividade, como fruto natural do chamado que receberam. As pessoas e mesmo as comunidades são atraídas por este fazer de amor das comunidades cristã. E é a partir daí que são impactadas pela mensagem cristã.

6. É uma teologia para o Reino de Deus, comunitária, porque a experiência de caminhar com as comunidades excluídas deixa uma interrogação sobre o que significa ser comunidade de fé. A igreja pode ser mera instituição ou organização, mas é nas comunidades de fé em Jesus que se concretizam os valores do Reino. A participação dos excluídos na vida das comunidades de fé possibilita o encontro de novas maneiras de ser igreja no contexto da cultura brasileira, ao invés de ser simples reflexo dos valores da subcultura dominante. A comunicação tem credibilidade na medida em que adota uma aproximação encarnada. Com freqüência as comunidades de fé têm-se dedicado à obtenção de dinheiro, êxito e influência. A comunidade que Jesus Cristo denominou seu pequeno rebanho faz parte do Reino de Deus. As tradições eclesiásticas não podem dificultar o que a Igreja já fez pela expansão do Reino. A igreja pode enfrentar o problema da miséria quando trabalha com os miseráveis e, a partir daí, pressiona atores sociais com a sociedade civil, os governos e o setor privado, sobre a base do respeito mútuo e o reconhecimento do papel de cada participante.

7. É uma teologia social, de apoio às transformações sociais que favoreçam os excluídos e caminhem na direção de acabar com a miséria no Brasil. Vejam de onde vierem essas ações transformadoras. Tais atividades se ampliam para incluir avanços em direção à transformação de valores, o reconhecimento da dignidade das comunidades e a cooperação em questões de justiça. Com sua presença ao lado dos excluídos, as comunidades de fé colocam-se numa posição singular que favorece o trabalho para restaurar a dignidade concedida por Deus, apresentando valores para que produzam recursos próprios e criem redes de solidariedade.

8. É uma teologia da cidadania, de consciência de direitos e deveres de cada pessoa como integrante de uma coletividade, entendendo-se essa coletividade em todas as instâncias do Reino de Deus e de sua presença no mundo. Isso pressupõe a igualdade, que transpõe barreiras de nível sócio-econômico, de etnia, de faixa etária, de sexo, de cultura, de situação civil, de deficiência física, de instituição e, também, pressupõe a unidade na pluralidade, pois trata da existência humana sobre a face da terra, e seu direito à vida, à liberdade, à propriedade, ao trabalho, à educação, à saúde, ao entretenimento e à cultura. É uma teologia por si só inclusiva, pois se contrapõe à opressão, à omissão, à rejeição e à massificação. É também uma teologia espacial, pois considera o mundo como oikos, precisando ser preservado, cuidado, adaptado, sinalizado, para usufruto e bem estar do ser humano; o que integra as demais criaturas de Deus, como parte de seus direitos e deveres, de coroa da Criação.

9. É uma teologia ecológica, que envolve o uso responsável e sustentável dos recursos da criação de Deus e a transformação das dimensões morais, intelectuais, econômicas, culturais e políticas da vida. Isto inclui a recuperação de um sentido bíblico de mordomia. O conceito bíblico do sábado recorda que se deve por limites ao consumo. Os cristãos integrados no Brasil devem usar sua riqueza e seu poder a serviço dos demais. É um compromisso de trabalhar para libertar os ricos de sua escravidão ao dinheiro e ao poder. A esperança de tesouros no céu livra da tirania de Mamon.

10. É uma teologia do amor, da paz e da reconciliação, porque num mundo de conflitos e tensões étnicas tem-se falhado na tarefa de construir pontes. A Teologia de Missão Integral trabalha pela reconciliação entre comunidades divididas etnicamente, entre integrados e excluídos, entre opressores e oprimidos. Reconhece o mandato de falar por quem não pode clamar por si mesmo e, também, a necessidade de defensoria tanto para tratar da injustiça estrutural, como para resgatar o próximo necessitado. Essa teologia clama por outra globalidade, solidária, pois a globalização excludente é o domínio de culturas que têm o poder de promover seus produtos, tecnologias e imagens além de suas fronteiras. A luz deste fato, as comunidades de fé com sua rica diversidade desempenham um papel singular por ser uma comunidade verdadeiramente global.

E, por fim, nessas reflexões da Teologia da Missão Integral para nosso continente, diremos que é uma teologia da solidariedade latino-americana, que faz a crítica da globalização selvagem e chama pessoas e comunidades cristãs à uma solidariedade com a América Latina, construída ao redor de propostas e ações de justiça e paz. A Teologia da Missão Integral considera que os países desenvolvidos devem reconhecer seu papel no desenvolvimento de uma economia global solidária, onde estão incluídas novas formas de pensar e agir em relação ao continente latino-americano.

A Teologia da Missão Integral reconhece o valor do planejamento, da organização, da avaliação e de outras ferramentas similares, mas afirma que estas devem estar a serviço do processo de construção de relações e valorização dos excluídos latino-americanos, sejam eles pessoas ou comunidades.

Dessa maneira, a Teologia da Missão Integral faz um chamado à solidariedade latino-americana, entendendo que pessoas e comunidades cristãs devem ajudar aqueles que clamam pelos Direitos Humanos essenciais e apoiar aqueles que se dedicam a melhorar as condições de vida e possibilidades das populações na América Latina.

jeudi 1 novembre 2007

EINSTEIN E OS CAMINHOS DA CRIAÇÃO

A COSMOGONIA JUDAICA E O CONCEITO ESPAÇO-TEMPO EM GÊNESIS UM
Prof. Dr. Jorge Pinheiro

Aos olhos de Hitler e de seus fiéis, conforme descreve Raphaël Draï [La Pensée Juive et L’Interrogation Divine, Exégèse et Épistémologie (Paris: Presses Universitaires de France, 1966) 1], existia um perigoso pensamento judaico, caracterizado por sua essência maléfica, inspiradora da física de Einstein, da literatura de Kafka, da música de Schoenberg e da psicanálise de Freud. Deixando de lado os delírios hitlerianos, podemos dizer que há um criativo e fecundo pensamento judaico, que através dos séculos soube combinar Torah e conhecimento, ética e epistemologia. Nosso propósito é, numa primeira aproximação, mostrar que os estudos judaicos dos conteúdos de Gênesis Um produziram uma epistemologia que interliga o conceito espaço/tempo em Gênesis Um com a teoria da relatividade. Essa dialética tem especial importância para a teologia cristã, já que a partir dela podemos entender melhor a realidade de Gênesis Um.

No começar Deus criando o fogoágua e a terra.
E a terra era lodo torvo e a treva sobre o rosto do abismo
E o sopro-Deus revoa sobre o rosto da água.
[Tradução de Augusto de Campos in Bere’shith, A Cena da Origem, SP, Perspectiva, 1988, p. 45].

O desafio maior para quem analisa significações é o próprio exercício da leitura. O desejo de conservar a linguagem pode levar a uma solução oposta àquela se pretende. Considerar o simbólico como abstrato e irrelevante é, em última instância, separar signo e objeto. Assim quando um texto passa a ser apenas e somente um conjunto fechado costumamos dizer que compreendemos o referido texto. Mas ao fazer isso, na verdade, eliminamos a possibilidade de restaurar sua intenção original e de ultrapassar a letra para captar o sentido primeiro de seu autor. Logicamente, esse midrash tem como ponto de partida, e exige como garantia, a compreensão do primeiro discurso.

Em novembro de 1942, o poeta e crítico Ezra Pound afirmava que “o mistério profundo da vida é descobrir porque os outros não compreendem aquilo que se escreve e diz. A coisa parece simples e clara ao escritor, mas outros o tomam em sentido diferente. E se gastam anos para saber porque e como” [Ezra Pound, Lettere 1907-1958, Milão, Feltrinelli Editore, 1980, p. 7]. Logicamente, como autor e crítico, Pound falava de hermenêutica em seu sentido laico, que não implica na inesgotabilidade do texto sagrado. Produto não inspirado, esse texto, fruto da inteligência e arte de um homem, pode ser percorrido por outro homem em sua totalidade, arrancando do discurso poético os elementos lógicos que lhe deram constituição, interpretando-o com tal maestria e clareza quanto poderia fazê-lo seu próprio autor. Mas mesmo assim, como alerta Pound, isso pode transformar-se em tarefa de anos.

Interpretar o texto bíblico, decifrá-lo, arrancar dele significações é um desafio que não se resume a um homem ou a um curto período de anos. É nosso pressuposto que Gênesis Um enquanto palavra/ordem do Deus criador apresenta mais conteúdos do que é perceptível na leitura de toda uma geração. Aqui há uma dialeticidade que permanecerá no equilíbrio de seus contrários, sem solução ou síntese enquanto houver história: a revelação do que é perfeito dá-se através de um instrumento imperfeito, a linguagem humana. Nossa necessidade histórica de interpretar nasce daí, dessa inadequação entre significante e significado. “A tarefa do intérprete consiste, pois, na explicitação da mensagem divina, através do raciocínio bem dirigido. As conclusões a que se chega nada acrescentam ao significado do texto, pois já estavam contidas ali desde sempre; embora para ele sejam novas, uma vez que diferem do que está escrito, em si mesmas não o são, porque estavam gravadas no subsolo do texto que se interpretou. Contudo, sendo a Bíblia obra de um ser infinito, as interpretações jamais se esgotam. Cada novo corte no texto aprofunda o seu sentido, mas é sempre possível avançar mais. Elas se sucedem através do tempo, porém, por mais surpreendentes que pareçam, têm a garantia de se situarem no mesmo campo inicial”. [Renato Mezan, Freud: A Trama dos Conceitos, SP, Perspectiva, 1982, p. 342].

Exatamente, por isso, parto do pressuposto de que a teologia judaica nos últimos mil e novecentos anos apresenta uma hermenêutica bastante criativa do Gênesis Um. Essa hermenêutica ou midrash não ficou restrita aos círculos rabínicos, mas fez parte da tradição e da cultura do judaísmo através dos séculos. Escritores, artistas e cientistas judeus utilizaram esses conhecimentos em seus campos de trabalho. Einstein conhecia essas fontes, em parte desconhecidas para o mundo cristão, mas ricas e cheias de significados para todo intelectual judeu. Por isso, esta releitura da teoria do caos tem como roteiro a cosmogonia judaica e as idéias centrais da teoria da relatividade.

Albert Einstein era judeu, acreditava em Deus criador, mas não aceitava o conceito bíblico de Deus pessoal. Foi um sionista militante durante toda sua vida, a ponto de em 1952 lhe ser oferecida a presidência de Israel. Não aceitou. Estava casado com a física. “As equações são mais importantes para mim porque a política é feita para o presente, ao passo que uma equação é algo para toda a eternidade”. [Stephen W. Hawking, Uma Breve História do Tempo, RJ, Rocco, 1988, pp. 240-241].

DO TZIMTZUM AO PROCESSIO DEI AD EXTRA

Apesar de seus matizes, o judaísmo mostrou uma coerência em relação à hermenêutica de Gênesis Um, a defesa da criação ex nihilo. Assim, o recuo de Deus para permitir que surgisse o vazio, o nada, e nele o universo finito, é desenvolvido na teoria da contração, em hebraico tzimtzum. Essa teoria formalizada pelo rabino Luria (1534-1572) é uma das concepções mais surpreendentes do pensamento judaico. Isaac Luria, um dos maiores expoentes da tradição mística no judaísmo, nasceu no Cairo, mas desenvolveu seu ministério em Safed, na Palestina.

A expressão tzimtzum significa originariamente concentração, mas acabou sendo entendida como retirada. Segundo Scholem, Luria partiu de textos do Midrash, onde encontramos que Deus concentrou sua Shekiná, sua presença divina, no Santo dos Santos, assim todo seu poder retraiu-se num único ponto. É assim que surge a expressão tzimtzum. [Exod Raba ao Êx 25:10, Lev. Raba ao Lv 23:24; Pessikta de Rab Kahana, Ed. Buber 20 a; Midrasch Schir Ha-Schidim, Ed. Griinhut (1899), f. 15b, citado por Gershom Scholem, A Mística Judaica, SP, Perspectiva, 1972, p. 263].

Infelizmente, as duas expressões, concentração e retirada, que deveriam ser entendidas como complementares, já que Deus se retira e então concentra a sua luz sobre este ponto, passa a dividir os estudiosos em dois grandes grupos: os que defendem o tzimtzum como base para a doutrina da creatio ex nihilo e também para aqueles que defendem a doutrina da emanação (em hebraico atsilu) ou processio Dei ad extra.

Dessa maneira, o próprio Luria, apesar de partir de uma expressão que naturalmente deve levar à creatio ex nihilo, torna-se o principal expositor dentro do misticismo judaico do processio Dei ad extra, que tem por base não um processo no tempo, mas uma estrutura da realidade, enquanto emanação, criação, formação e ação. Assim, para esses rabinos, níveis inferiores de realidade emanaram de níveis superiores que, por sua vez, tiveram origem em Deus. Dentro dessa concepção há um midrash, a teoria do vaso quebrado, que trabalha com a hipótese de que o mundo foi feito de remanescentes de mundos anteriores, que Deus havia destruído. Uma conhecida lenda rabínica explica esse processo como o desprender de uma chama de carvão da roupa de Deus.

“No princípio (Gênesis 1:1), a vontade do Rei começou a gravar signos na esfera superior. Do recesso mais oculto, uma negra chama brotou do mistério do ein sof, o Infinito, como um novelinho de massa informe, como que inserido no aro dessa esfera, nem branca nem preta, nem vermelha nem verde, de nenhuma cor. Somente depois de distender-se como um fio, produziu ela cores para luzir em si. Do âmago da chama, jorrou uma fonte da qual brotaram cores e se espalharam sobre tudo embaixo, oculto na ocultação mais misteriosa do ein sof. Mal rompeu ela, inteiramente irreconhecível, seu círculo de éter, sob o impacto da irrupção, um ponto oculto, superno fulgiu da irrupção final. Aquém desse ponto está excluído todo conhecimento e por isso ele é chamado reschit, princípio, a primeira palavra do Todo”. [O Princípio, Sefer ha-Zohar (Livro do Esplendor), in J. Guinsburg, Do Estudo e da Oração, SP, Perspectiva, 1968, p. 605].

Apesar de sua riqueza teológica, não estaríamos longe da verdade ao classificar a doutrina da emanação como um panenteísmo, que define o mundo material como o desdobramento de Deus em diferentes níveis. E porque o mundo existe dentro de Deus, os defensores do processio Dei ad extra consideram necessário descobrir o que há de divino nos fenômenos do cotidiano.

Se entendermos, porém, a teoria do tzimtzum, como a relação dialética de dois movimentos, o da retirada e o da concentração ficará mais fácil aproveitar os estudos de Luria. O tzimtzum explica o recuo de Deus para permitir que surgisse o vazio, o nada, e nele o universo finito. Como Deus é infinito, sem o tzimtzum não haveria o nada no qual pudesse produzir a estrutura espaço/tempo de uma criação separada. É interessante notar, que se por um lado a dialética da autocontração e concentração divinas deu origem ao mundo material, o choque entre o movimento restritivo e o transbordante amor de Deus criou também a possibilidade do mal. Nesse sentido, a cosmogonia judaica, vê a criação em primeiro lugar como consciente autolimitação e na seqüência como revelação e julgamento. E como julgamento é entendida a imposição de limites, ele faz parte da revelação, que se expressa pela primeira vez como criação de Deus. Em outras palavras: se o mal é uma probabilidade que surge da dialética amor divino e retração, o julgamento passa a ser inerente a tudo na criação, já que todas as coisas estão determinadas enquanto limites.

A tradição do debate sobre a creatio ex nihilo é antiga no pensamento judaico. Na verdade, podemos dizer que começa a ser realizada no segundo século. Por isso, não é de estranhar que encontremos reflexões profundas sobre Gênesis Um nos séculos posteriores. Assim, em um dos textos mais representativos do pensamento caraíta, movimento medieval de retorno à letra da Escritura, considerado por muitos um protestantismo judeu de coloração pietista, a “Explanação dos Mandamentos”, de Aha Nissi ben Noah de Bassorá, que ensinou em Jerusalém na segunda metade do século IX, lemos:

“No primeiro dia, Deus criou sete coisas: o céu, a terra, as trevas, a luz, a água, o abismo e o vento (Gn.1:1-12). Primeiro criou tohu e bohu (a solidão e o caos), dos quais surgiu a terra (Gn.1:1-2). Criou as trevas: ‘Ele formou a luz e criou as trevas’ (Isaías 45:6). Criou o vento, conforme a palavra: ‘e criou o vento’. Criou a água, pois com a criação da terra havia água. Criou o abismo, para que a água tivesse uma profundidade e uma submersão. Criou a luz (Gn.1:3). Para a criação do mundo foram necessárias quatro coisas: a ordem, o trabalho, a determinação e a proclamação” [Nissi ben Noach, Explanação dos Mandamentos, in J. Guinsburg, op. cit., p.309]. Nesse texto aparentemente tão simples, encontramos dois conceitos muito importantes: tohu e bohu fazem parte da criação e para que haja criação é necessário ordem.

Outro grande teólogo judeu, que fez oposição ao pensamento caraíta, foi Saadia Gaon (892-942). Influenciado pela efervescente teologia do Islã e pelo pensamento helenístico clássico, Gaon combateu a presença heterodoxa, de tendência maniqueísta, os remanescentes de Filo e a crítica gnóstica. Seu texto sobre a doutrina da creatio ex nihilo é de uma profunda beleza, apesar de apresentar imperfeições normais ao conhecimento da época, como, por exemplo, sua visão geocêntrica. Mas, de forma brilhante enfrenta opositores bem parecidos aos que encontramos hoje em dia.

“Aqueles que acreditam na eternidade do mundo procuram provar a existência de algo que não tem começo nem fim. Por certo, nunca depararam com uma coisa que percebessem, pelos sentidos, sem ser começo nem fim, mas procuram estabelecer sua teoria por meio de postulados da razão. Semelhantemente, os dualistas empenham-se em provar a coexistência de dois princípios separados e opostos, cuja mistura fez que o mundo viesse a ser. Sem dúvida, nunca testemunharam dois princípios separados e opostos, nem o pretenso processo da mistura, mas tentaram suscitar argumentos derivados da razão pura em favor de sua teoria. De maneira similar aqueles que acreditam numa matéria eterna consideram-na como um hilo, isto é, algo em que não há originalmente qualidade de quente ou frio, de úmido ou seco, mas que se transforma por uma determinada força e assim produz aquelas quatro qualidades. Indubitavelmente, seus sentidos nunca perceberam uma coisa carente de todas essas quatro quantidades, nem jamais perceberam um processo de transformação e a geração das quatro qualidades como é sugerido. (...) Assim sendo, é claro que todos concordam em admitir alguma opinião concernente à origem do mundo que não tem base na percepção sensorial”. [Saadia Gaon, Criação Ex-Nihilo in J. Guinsburg, op. cit., p. 316].

Para sua defesa da criação ex-nihilo, Gaon trabalha com quatro argumentos, três dos quais muito bem expostos: de finitude do universo, estrutura e acidentalidade. “(...) continuou a afirmar que nosso Senhor, louvado e enaltecido seja, informou-nos que todas as coisas foram criadas no tempo, e que Ele as criou do nada (...). Ele nos comprovou essa verdade por meio de sinais e milagres, e nós a aceitamos. Examino ainda mais nesta matéria com o intuito de saber se ela podia ser comprovada por especulação como foi comprovada por profecia. Achei que era este o caso por um certo número de razões, da quais, devido à brevidade, selecionei as quatro seguintes: 1. A primeira prova baseia-se no caráter finito do universo (...). 2. A segunda prova é derivada da união de partes e da composição de segmentos. Vi que os corpos consistem de partes combinadas e de segmentos ajustados entre si (...). 3. A terceira prova baseia-se na natureza dos acidentes. Verifiquei que nenhum dos corpos são desprovidos de acidentes que os afetem direta ou indiretamente. Animais, por exemplo, são gerados, crescem até que alcançam sua maturidade, então, definham e se decompõem. Então eu disse a mim mesmo: Será que a terra como um todo é livre destes acidentes? (...) 4. A quarta prova baseia-se na natureza do tempo. Sei que o tempo é triplo: passado, presente, futuro. Embora o presente seja menor do que qualquer instante, tomo o instante como se toma um ponto e digo: Se um homem tentasse em seu pensamento ascender deste ponto no tempo ao ponto mais elevado, ser-lhe-ia impossível fazê-lo, porquanto o tempo é agora admitido como infinito e é impossível ao pensamento penetrar no ponto mais remoto daquilo que é infinito.” [Saadia Gaon, Quatro Argumentos para a Criação, idem, op. cit., pp. 317-320].

De todos os pensadores judeus medievais, talvez o mais conhecido fora dos meios judaicos, seja o talmudista francês Shlomo bar Itzhak, o rabi Rashi de Troyes (1040-1105). Exegeta, Rashi apresenta uma tradução para o versículo um de Gênesis que leva em conta estrutura e acidentalidade: “No princípio, ao criar Deus os céus e a terra, a terra era vã...” E segundo seu midrash, o texto não está preocupado em mostrar a ordem da criação, mas em afirmar o ato criador de Deus. Rashi mostra-se preocupado com o sentido literal, mas define claramente sua hermenêutica: “Todo texto se divide em muitos significados, mas, afinal nenhum texto está destituído de seu sentido literal” [Herman Hailperin, Rashi and the Christian Scholars, Pittsburgh, University of Pittsburgh Press, 1963].

A DIALÉTICA DA ESTRUTURA E ACIDENTALIDADE

Dessa maneira, tanto para expositores da creatio ex nihilo como para os defensores do processio Dei ad extra a intenção primeira de Gênesis-Um é apresentar Deus como criador, que utiliza tohu e bohu como matéria prima para a formação do universo. E é a partir dessa relação entre criação e revelação, que os estudiosos judeus entenderão a redenção, já que o fim messiânico ou estágio final do mundo revelado significa uma volta ao começo, uma nova criação.

“A Redenção deveria ser conseguida não por um movimento tempestuoso na tentativa de apressar crises e catástrofes históricas, mas antes pela remarcação do caminho que conduz aos primórdios da Criação e da Revelação, ao ponto em que o processo do mundo (a história do universo e de Deus) principiou-se a desenvolver-se dentro de um sistema de leis. Aquele que conhecia a senda pela qual viera podia ter esperanças eventualmente de poder retornar sobre seus passos”. [Gershom Scholem, A Mística Judaica, SP, Perspectiva, 1972, p. 248].

Assim, mais do que qualquer intencionalidade em apresentar a cronologia da criação, Gênesis Um apresenta uma ordem enquanto dialética da estrutura e acidentalidade. Esse processo é interpretado por Scholem como “o primeiro ato, o ato do tzimtzum, no qual Deus determina e (...) limita a Si mesmo, é um ato de julgamento que revela as raízes dessa qualidade em tudo o que existe. Essas raízes do julgamento divino subsistem em mistura caótica com o resíduo da luz divina que remanesceu, após a retirada ou retraimento original, dentro do espaço primário da criação de Deus. Então um segundo raio de luz emanado da essência do Ein-Sof traz ordem ao caos e põe o processo cósmico em movimento, ao separar os elementos ocultos e moldá-los em nova forma” [Iossef ibn Tabul in Gershom Scholem, Kiriat Sefer, vol. XIX, pp. 197-199].

E dois escritos antigos nos mostram que a doutrina da creatio ex nihilo tem suas bases tanto no Tanach, como apócrifos intertestamentários. Lemos em Isaías: “Assim diz Iahveh, teu redentor, aquele que te modelou desde o ventre materno. Eu, Iahveh, é que fiz tudo, e sozinho estendi os céus e firmei a terra. Com efeito, quem estava comigo?” (Is.44:24). E em II Macabeus 7:28: “Eu te suplico, meu filho, contempla o céu e a terra e observa tudo o que neles existe. Reconhece que não foi de coisas existentes que Deus os fez, e que também o gênero humano surgiu da mesma forma”. Esta, aliás, é a primeira afirmação explícita da criação ex nihilo.

A primeira vista, a cosmogonia judaica define a centralidade de Gênesis-Um no ato criativo de Deus apenas enquanto espacialidade. Seria uma busca do lugar, da centralidade espacial. O que leva muitos a afirmarem que não há nenhum elemento espaço-temporal em Gênesis. Mas, isso não é verdade. Em 1740, Anton Lazzaro Moro, cristão novo, geólogo e exegeta italiano, desenvolveu uma sofisticada defesa da hipótese espaço-temporal em Gênesis Um. Dizia ele que tudo que está “envolto e fechado” precisa de um tempo para libertar-se e tornar-se evidente, e que Deus, ao criar a natureza, colocou-se com administrador das leis criadas. Daí conclui: “Quando a Escritura afirma que ‘Spiritus Dei ferebatur super aquas (...)’ indica uma função que traz consigo sucessão de tempo” [Anton Lazzaro Moro, De Crostacei e degli altri Corpi Marini che si Truovano su Monti, 1740, in Paolo Rossi, A Ciência e a Filosofia dos Modernos, São Paulo, Editora Unesp, 1992, p. 345].

Desenvolvendo sua tese espaço-temporal, explica que toda a criação sofreu duas produções diferentes, que precisam ser cuidadosamente separadas: “a primeira é a do nada pela mão imediata do criador; a outra provém do seio das segundas causas acionadas pelo administrador da natureza. A primeira produção é instantânea e é ato divino proporcionado pela onipotência e eternidade de Deus; a segunda [produção] implica que o ato divino seja adaptado às exigências da natureza que Deus estabeleceu em cada coisa” [Idem, op. cit., p. 345]. A partir daí sua cosmogonia é surpreendente. Explica que é Deus quem moveu circularmente “a celeste matéria de todo o planetário vórtice”, obrigando essa matéria que formaria o Sol a colocar-se no lugar que lhe era destinado. Constatando que seja qual for a velocidade que se queira atribuir ao movimento diário do Sol e de seu vórtice, “isso não aconteceu num só dia e em só vinte e quatro horas”. A formação do Sol, assim como a produção dos planetas, afirma Moro, “comprova que aqueles seis dias não foram de medida igual aos dias modernos, mas que foram espaços de tempo de duração muito mais longa, ou seja, de uma duração proporcional à atividade das causas segundas e à exigência dos efeitos produzidos; espaços esses que foram chamados dias, conforme o costume freqüentemente usado nas Escrituras de exprimir com o nome de dias certos espaços de tempo longos e indeterminados” [Idem, op. cit., p. 347]. É interessante ver como a física do século vinte, principalmente aquela que sofreu influências dessa mesma cosmogonia, traduziu para uma nova linguagem antigos conceitos.

É verdade, que desde Aristóteles a ciência avaliou equivocadamente o conceito tempo, considerando-o absoluto, sem relação imediata e causal com o espaço. Pensou um tempo sem ambigüidades, achando que se fosse medido corretamente, entre dois espaços ou eventos, o intervalo de mensuração seria sempre igual. Durante séculos, inclusive para Newton, o tempo foi independente do espaço. Mas, em 1905, Einstein tornou pública uma nova teoria de espaço, tempo e movimento, que ele chamou de relatividade especial. Comprovada em experiências de laboratório, essa teoria, aceita pela grande maioria dos físicos atuais, levanta algumas hipóteses simplesmente impressionantes, como a equivalência da massa e da energia, a elasticidade do espaço e do tempo e a criação e destruição da matéria. Dez anos depois, na seqüência da teoria anterior, Einstein publica a sua teoria da relatividade geral, com novas e surpreendentes previsões: a curvatura do espaço e do tempo, a possibilidade de que o universo seja finito, mas ilimitado e a possibilidade de o espaço e o tempo se esmagarem, deixando de existir.

”(...) estas considerações levou-nos a conceber teoricamente o universo real como um espaço curvo, de curvatura variável no espaço e no tempo, de acordo com a densidade de distribuição da matéria, susceptível porém, quando considerada em larga escala, de ser tomado como um espaço esférico. Esta concepção tem, pelo menos, a vantagem de ser logicamente irrepreensível, e de ser aquela que melhor se cinge ao ponto da teoria da relatividade geral”. [Albert Einstein, Considerações Cosmológicas sobre a Teoria da Relatividade, in O Princípio da Relatividade, H. A Lorentz, A. Einstein, H. Minkowski, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1958, pp. 239-240].

E ao criticar a teoria do tempo absoluto, Einstein vai mostrar que à medida que o deslocamento de um objeto se aproxima da velocidade da luz, sua massa aumenta mais rapidamente, de forma que gasta mais energia para aumentar sua velocidade. Por isso, muito possivelmente nunca possa atingir a velocidade da luz, pois deixaria de ter massa intrínseca. O importante dessa teoria é ter modificado a compreensão de tempo e de espaço. Antes, considerava-se que a velocidade da luz era a distância que ela percorre, dividida pelo tempo que leva para fazer isso. Agora, compreendemos que a velocidade pode ser a mesma, mas não a distância percorrida. A partir da teoria da relatividade, o conceito de simultaneidade, ou seja, da existência de um mesmo momento em dois lugares diferentes, deixou de ter qualquer significado em termos de universo.

O TEMPO ENQUANTO NÃO-DETERMINAÇÃO

Em linguagem da física da relatividade o tempo gasto é a velocidade da luz multiplicada pela distância que a luz percorreu. Temos então várias medidas de tempo, ou seja, medições diferentes entre dois eventos ou espaços. Gênesis nos apresenta este conceito de tempo com yom que aparece como não-determinação-quando em Gn 3:5; não-determinação-período em Gn.1:14,16,18; não-determinação-época em Gn 2:4. Deixamos de ter, então, dois conceitos separados e absolutos: o tempo e o espaço, para termos um, o espaço-tempo. Ora, um evento é algo que acontece num determinado ponto do espaço e logicamente num tempo também determinado. Só que não há separação entre essas duas unidades. Uma das premissas da teoria da relatividade, conforme expõe Stephen Hawking [Uma breve História do Tempo, RJ, Rocco, 1988, pp. 35-60], é que o tempo corre mais lentamente perto de um corpo volumoso. Assim, na Terra, para tomarmos um exemplo que nos interessa, o tempo é mais lento que em outros planetas ou luas de menor massa. Isto porque existe uma relação entre energia da luz e sua freqüência. Quanto maior a energia, maior a sua freqüência.

Dessa maneira, à medida que a luz percorre verticalmente o campo gravitacional da Terra perde energia e sua freqüência diminui. Em outras palavras, espaço e tempo são quantidades dinâmicas. Quando um corpo se move no universo afeta a curva do espaço-tempo e, por sua vez, a curva do espaço-tempo afeta a forma como os corpos se movem e as forças atuam. Só que, e esse conceito é importantíssimo para a relatividade geral, não há como falar de espaço-tempo fora dos limites do universo. Essa premissa é interessante, pois descarta a idéia de um universo imutável, que sempre existiu, para trabalhar com a possibilidade de um universo que teve início, é plástico e encontra-se em expansão.

Ora, o que Gênesis está mostrando é que o universo teve um início, que a criação não é um mito. “Não há nenhum paralelo bíblico aos mitos pagãos que relatam a morte de deuses mais velhos (ou poderes demoníacos) pelos mais jovens; não se acham presentes nos tempos primevos quaisquer outros deuses. As batalhas de Iahveh com monstros primevos, aos quais é feita ocasionalmente alusão poética, não são lutas entre deuses pelo domínio do mundo. As batalhas de Iahveh com Raabe, o dragão, Leviatã, no mar, a serpente veloz, etc., não são esclarecidas pela referência ao mito da derrota de Tiamat por Marduc e sua subsequente tomada do poder supremo”. [Yehezkel Kaufmann, A Religião de Israel, São Paulo, Perspectiva, 1989].

Assim, para a teoria da relatividade o universo tem começo como singularidade, que ficou conhecida como Big Bang e deverá ter um final também singular, o colapso total ou Big Crunch. Mesmo sem querer forçar, o Big Crunch nos leva ao texto de Pedro: “Ora, os céus e a terra estão reservados pela mesma palavra ao fogo (...) O dia do Senhor chegará como ladrão e então os céus se desfarão com estrondo, os elementos, devorados pelas chamas se dissolverão e a terra, juntamente com suas obras, será consumida” (II Pedro 3.7 e 10). Só que, como o espaço-tempo é finito, mas sem limites, o Big Crunch poderia levar a uma concentração de energia tal, que muito possivelmente possibilitaria a formação de um novo universo. E essa formulação nos leva a outro texto bíblico: “Vi então um céu novo e uma nova terra, pois o primeiro céu e a primeira terra se foram (...)” Apocalipse 21.1.

“De forma semelhante, se o universo explodisse novamente, deveria haver um outro estado de densidade infinita no futuro, o Big Crunch, que seria o fim do tempo. Mesmo que o universo como um todo não entrasse novamente em colapso, haveria singularidades em algumas regiões determinadas, que explodiriam para formar buracos negros. Essas singularidades seriam o fim do tempo para quem ali caísse. Na grande explosão e demais singularidades todas as leis são inoperantes. Então, Deus ainda teria tido completa liberdade para escolher o que aconteceu e como o universo começou”. [Stephen Hawking, op. cit., p. 236].

Ora, como a expansão do universo implica em perda de temperatura, que é uma medida de energia, quando o universo dobra de tamanho, sua temperatura cai pela metade. Assim, quando Deus cria o universo, supõe-se que tinha tamanho zero e temperatura infinitamente quente. Mas à medida que se expande, a temperatura cai. Isso explica porque o universo é tão uniforme, e parece igual mesmo nos mais diferentes pontos do espaço. Uma das consequências, caso consideremos o fiat divino como o Big Bang, é que a partir da grande explosão não houve tempo de a luz se deslocar por ilimitadas distâncias. É por isso que Gênesis apresenta em primeiro lugar tohu e bohu, as trevas e o abismo, e só no versículo três o surgimento da luz.

É interessante ver que uma das possibilidades que alguns físicos baralham, um pouco a contragosto, é a de que Deus escolheu a configuração inicial do universo por razões que não temos condições de compreender. Consideram que os acontecimentos do surgimento do universo não se deram de forma arbitrária, mas refletem um ordem comum. Hawking, como não é teólogo, opta por uma variável que chama limitação caótica ou escolha ao acaso. Dentro desse ponto de vista, o universo primordial surgiu como caos. Ora a segunda lei da termodinâmica mostra que há essa tendência no universo, e que a ordem e o equilíbrio, ou seja, a vida, que é a forma mais organizada da matéria, surge como oposição a este caos.

“Einstein uma vez formulou a pergunta: ‘Que nível de escolha Deus teria tido ao construir o universo?’ Se a proposta do não limite for correta, ele não teve qualquer liberdade para escolher as condições iniciais. Teria tido, ainda naturalmente, a liberdade de escolher as leis a que o universo obedece. Isto, entretanto, pode não ter sido um grau assim tão elevado de escolha. Pode ter sido apenas uma, ou um pequeno número de teorias completas unificadas, tal como a teoria do filamento heterótico, que são autoconsistentes e permitem a existência de estruturas tão complexas quanto os seres humanos, que podem investigar as leis do universo e fazer perguntas acerca da natureza de Deus”. [Stephen Hawking, op. cit., p. 237].

“Toda variação de entropia no interior de um sistema termodinâmico pode ser decomposta em dois tipos de contribuição: a entrada exterior de entropia, que mede as trocas com o meio e cujo sinal depende da natureza dessas trocas, e a produção de entropia, que mede os processos irreversíveis no interior do sistema. É essa produção de entropia que o segundo princípio define como positiva ou nula”. [Ilya Prigogine e Isabelle Stengers, Entre o Tempo e a Eternidade, São Paulo, Companhia das Letras, 1992, p. 53].

“(...) as leis científicas não distinguem entre as direções para frente e para trás do tempo. Entretanto, há pelo menos três setas de tempo que distinguem o passado do futuro, que são a seta termodinâmica, direção do tempo em que a desordem aumenta; a seta psicológica, direção do tempo na qual se recorda o passado e não o futuro; e a seta cosmológica, direção do tempo em que o universo se expande mais do que se contrai. Demonstrei que a seta psicológica é essencialmente a mesma que a termodinâmica, de modo que ambas sempre apontam para a mesma direção. A proposta do não limite para o universo prevê a existência de uma seta termodinâmica do tempo bem definida, porque o universo deve começar num estado plano e ordenado. E a razão por que se observa esta seta termodinâmica se adequar à cosmologia é que os seres inteligentes só podem existir na fase de expansão”. [Stephen Hawking, idem, op. cit., pp. 210, 211].

Coerente com sua visão de que Deus não joga dados com o universo, Einstein dará um feroz combate às teses de acausalidade na mecânica quântica, defendidas pelas escolas de Copenhagem e Gottingen. “Não posso suportar a idéia de que um elétron exposto a um raio de luz possa, por sua própria e livre iniciativa, escolher o momento e a direção segundo o qual deve saltar. Se isso for verdade, preferia ser sapateiro ou até empregado de uma casa de jogos em vez de ser físico”. Citado por Franco Selleri, Paradoxos e realidade, Ensaios sobre os Fundamentos da Microfísica, Lisboa, Fragmentos, 1990, p. 41. Em 1944, voltaria à carga: “Nem sequer o grande sucesso inicial da teoria dos quanta consegue convencer-me de que na base de tudo esteja o indeterminismo, embora saiba bem que os colegas mais jovens considerem esta atitude como um efeito de esclerose. Um dia saber-se-á qual destas duas atitudes instintivas terá sido a atitude correta”. [Ibidem, op. cit. p. 59].

Guardadas as devidas proporções, Agostinho, pai e mestre da igreja cristã, também considera que o caos transcende o tempo. “E por isso o Espírito, Mestre do vosso servo, quando recorda que no princípio criaste o céu e a terra, cala-se perante o tempo. Fica em silêncio perante os dias. O céu dos céus, criado por Vós no princípio, é, por assim dizer, uma criatura intelectual, que apesar de não ser coeterna convosco, ó Trindade, participa contudo da vossa eternidade. (...) Sem movimento nenhum desde que foi criada, permanece sempre unida a Vós, ultrapassando por isso todas as volúveis vicissitudes do tempo. Porém, este caos, esta terra invisível e informe não foi numerada entre os dias. Onde não há nenhuma forma nem nenhuma ordem, nada vem e nada passa; e onde nada passa, não pode haver dias nem sucessão de espaços de tempo” [Santo Agostinho, Confissões, XII, 9, SP, Abril, 1973, pp. 264, 265].

O bispo de Hipona faz claramente uma separação, não somente neste texto, entre os céus dos céus, uma dimensão além dos limites da ciência, e “o nosso céu e a nossa terra” (universo), que segundo ele é terra. Para ele é totalmente compreensível que essa terra fosse “invisível e informe”, pois estava reduzida a um abismo sem luz, exatamente porque não tinha forma. Diríamos hoje, não há espaço-tempo. E, de maneira brilhante, tenta uma definição, apesar de alertar para suas limitações: “um certo nada, que é e não é”. Interessante, Nissi ben Noach diria praticamente a mesma coisa.
“O conceito de tempo não tem significado antes do começo do universo. O que foi apontado pela primeira vez por Agostinho, quando indagou: O que Deus fazia antes de criar o universo?”[Stephen Hawking, op. cit., p. 27].

Conhecemos as três principais teorias cristãs sobre a criação: tudo é criação original, teoria da brecha e teoria do caos. A partir do que vimos, gostaria de fazer alguns acréscimos à teoria do caos:

1. O versículo primeiro de Gênesis-Um está fora do espaço-tempo. Nesse sentido refere-se à dimensão divina do céus dos céus conforme explicita Agostinho. A criação do espaço-tempo começa com o próprio caos, que não deve ser entendido como negação ou pura ausência, mas como entropia. É ex-nihilo enquanto universo-espaço-temporal que surge, mas não enquanto realidade de Deus, que repousa naqueles quatro conceitos enumerados por Noach: determinação, proclamação, trabalho e ordem.
2. O tempo não pode ser medido pois não é cronológico, é o tempo da ordem/organicidade de Deus. Isso é explicável porque não há um tempo, mas diversos tempos. A criação implica na expansão do espaço-tempo. Assim o espaço-tempo de Gênesis 1:3 é totalmente diferente do espaço-tempo de Gênesis 1:12. Yom em Gênesis-Um só pode ser entendido enquanto tempo não-determinado.
3. Toda discussão que tente uma polaridade entre evolução teísta ou criação de seis dias de vinte e quatro horas não procede. Isto porque o espaço-tempo entre os seis dias não são iguais. Há criação e expansão da massa, o que na Bíblia traduz-se em criação e sustentação. “És tu, Iahveh, que és o único! Fizeste os céus, os céus dos céus, e todo o seu exército, a terra e tudo o que ela contém, os mares e tudo o que eles encerram. A tudo isso és tu que dás vida, e o exército dos céus diante de ti se prostra”. (Neemias 9.6).

lundi 8 octobre 2007

José Manoel da Conceição, o reformador brasileiro visto por três autores

Extraído do livro Entrevista com Ashbel Green Simonton, Editora Ultimato, págs. 43-46.

José Manoel da Conceição nasceu em São Paulo, seis meses antes da Independência do Brasil, em março de 1822. Mudou-se para Sorocaba em 1824 e foi educado pelo tio, o padre José Francisco de Mendonça. Começou a ler a Bíblia aos 18 anos. Pouco depois, travou amizade com uma família inglesa e várias famílias alemãs, todas protestantes, e ficou impressionado com a vida religiosa deles.
Naturalmente devoto, abraçou a carreira sacerdotal, tendo sido ordenado padre aos 22 anos. Exerceu o sacerdócio de 1844 a 1864, sempre na Província de São Paulo: Monte Mor, Piracicaba, Santa Bárbara, Taubaté, Sorocaba, Limeira, Ubatuba e Brotas. Os paroquianos gostavam muito dele. Por seu apego à Bíblia e por sua simpatia aos protestantes, ganhou o curioso apelido de "O Padre Protestante".
Atraído pela simplicidade do evangelho e pela Reforma Religiosa do Século XVI, Conceição deixou o sacerdócio católico em setembro de 1864, dois meses antes de o papa Pio IX publicar a encíclica Quanta Cura, que continha o famoso Silabo de Erros – uma lista de 80 erros modernos que deveriam ser repudiados pelas autoridades católicas, entre eles a total liberdade de culto e de imprensa. Tornou-se membro da igreja Presbiteriana do Rio de Janeiro, organizada dois anos antes pelo primeiro missionário presbiteriano a vir para o Brasil.
Antes de ser ordenado pastor evangélico em dezembro de 1865, há 130 anos, Conceição dedicou-se à evangelização de seus amigos paroquianos em Brotas, interior de São Paulo. Graças ao seu testemunho e a sua pregação, os missionários pioneiros organizaram em Brotas a terceira Igreja Presbiteriana brasileira.
A conversão de Conceição mudou por completo o quadro e o avanço da obra missionária protestante no Brasil. A dedicação dele a Jesus Cristo era muito grande, e o seu ministério itinerante era muito bem sucedido. Ele ardia de paixão pelas almas perdidas e pelos excluídos. Conceição tinha um temperamento muito especial. Não era capaz de ficar parado atrás de uma mesa, de gastar tempo com a organização eclesiástica, nem de assumir um pastorado fixo. Não se sentia atraído pelos grandes centros urbanos nem por pessoas bem vestidas. Era um incorrigível pregador de vila em vila. Hospedava-se em qualquer lugar e não se aproveitava de ninguém. Pregava, curava e desaparecia sem mais nem menos. Às vezes, deixava um bilhetinho, agradecendo a hospedagem ou dizendo que tinha ido embora. Nunca dizia para onde, porque ele mesmo não tinha um itinerário antecipadamente traçado. Viajava, a pé, distâncias enormes, às vezes de uma província para outra. Comia pouco e se contentava com qualquer comida. Sofria pressões do clero católico. Não poucas vezes era expulso de uma vila, ameaçado de morte, chamado de apóstata, anticristo e até de pastor louco.
Conceição era de uma simplicidade incrível, não obstante fosse muito preparado: sabia comunicar-se com os estrangeiros em suas próprias línguas, traduzia livros do inglês, do francês e do alemão, e tinha noções de medicina. Chegava a se vestir mal, roupa surrada demais. A herança que recebeu da família foi toda distribuída com obras de beneficência. Preocupava-se demais com os outros e muito pouco consigo mesmo. Embora desimpedido do voto do celibato por ter se desligado de Roma, o Padre José, como era chamado, nunca se casou, e sua pureza de vida sempre estava fora do alcance de qualquer maledicência. Não era servil aos missionários americanos, não obstante ser o único obreiro nacional no meio deles. Por causa de sua experiência na Igreja Católica, morria de medo de uma igreja excessivamente organizada. Realizava um ministério diferente dos missionários, e o seu trabalho era o que crescia mais. Conceição sonhava com um movimento profundo de reforma nos sentimentos e experiência religiosa do povo, aliado ao esclarecimento bíblico, que tornasse possível a criação de um cristianismo brasileiro puro e evangélico, mas enraizado nas tradições e hábitos populares.
Conceição gastou vinte anos como sacerdote católico (dos 22 aos 42 anos) e oito anos como pastor protestante (dos 43 aos 51 anos). Morreu no dia em que mais uma vez se comemorava no Império do Brasil e do mundo inteiro a encarnação do Verbo, a 25 de dezembro de 1873. Morreu dormindo, na Enfermaria Militar do Campinho, no Rio de Janeiro, depois de ser atendido por um médico e um farmacêutico e depois de pedir para ficar a sós com Deus. Mas seu corpo está sepultado ao lado do fundador da Igreja Presbiteriana no Brasil, o missionário Ashbel Green Simonton, no Cemitério dos Protestantes, anexo ao Cemitério da Consolação, nas proximidades do Hospital das Clínicas, em São Paulo. Na lápide de Conceição está gravado: "Não me envergonho do Evangelho de Cristo".
Extraído de Émile-G.Léonard, O Protestantismo Brasileiro: Estudo de Eclesiologia e História Social, tradução do manuscrito original em francês por Linneu de Camargo Schützer, ASTE, São Paulo, 1963, pp.56-67.

O homem que abriria ao protestantismo o interior do Brasil — conquistando não apenas indivíduos isolados mas famílias extensas e sólidas —, assegurando, assim, seu estabelecimento, foi um padre. Esta particularidade — que nos reconduz à época da Reforma e às facilidades que ela encontrou no ministério sacerdotal de um Zwinglio e muitos outros — corresponde também àquilo que fôra o sonho de Feijó: a reforma da Igreja brasileira por um padre brasileiro.
Nascido em São Paulo em 1822, José Manuel da Costa Santos, que tomou o nome de José Manuel da Conceição, tornou-se padre em 1845, após brilhantes estudos realizados em Sorocaba, onde seu tio-avô era cura, e no seminário diocesano. As relações que teve bem cedo com estrageiros protestantes, entretanto, o gosto pela leitura da Bíblia que estes lhe inspiraram, a tradução alemã de uma História Sagrada do Antigo e Novo Testamento publicada pela editora protestante do Rio, Laemmert, mas sem a autorização episcopal, valeram-lhe, em pouco tempo, a alcunha de "padre protestante" e a suspeita da autoridade diocesana. Esta mantinha-o nas funções de vigário encomendado, enviando-o durante quinze anos a uma dezena de paróquias, Limeira, Piracicaba, Monte-Mor, Taubaté, Ubatuba, Santa Bárbara e, finalmente, Brotas, para onde foi transferido em 1860. Os bispos protegiam, assim, seus fiéis, contra uma influência que, sendo exercida durante muito tempo, pensavam, tornar-se-ia nociva; mas, como se afirmou, "sem que o percebessem, traçavam o itinerário da Reforma na sua diocese".
Esta má vontade por parte da hierarquia mostrava ao Pe. Conceição a impossibilidade de realizar esta reforma da Igreja no plano local, ao qual se consagrava, procurando, em cada uma de suas paróquias, reavivar a vida espiritual, centralizando-a na leitura da Bíblia. Conhece profundas crises vocacionais que ajuntaram ao seu cognome "padre protestante" o de "padre louco". Parece que Brotas, por algum tempo, restituiu-lhe a paz. Essa povoação recentemente fundada (datando de cerca de 1840) era povoada por pequenos fazendeiros, grande parte vinda do sul de Minas, os Gouvea, os Cerqueira Leite, os Garcia, os Lima. Pessoas ativas, decididas e progressistas, aprovaram sem dificuldade a construção de uma nova igreja e a substituição da velha imagem da padroeira do santuário Nossa Senhora das Dores. Conceição pregou-lhes a leitura da Bíblia, e conta-se que um velho, havendo descido com enorme esforço da serra, para se informar sobre o que havia, respondeu: "Então vou aprender a ler para estudá-la", e o fez. Às noivas que procuravam confessar-se antes de seu casamento, Conceição respondia: "Eu e você precisamos nos confessar a Deus e não aos homens".
Este episódio nos mostra que, nesse mês de março de 1862, ele procurava apenas melhorar as condições da vida religiosa na sua paróquia. Passava por uma profunda crise espiritual, exatamente a da questão da salvação e do valor meritório das obras. Como Lutero, condenava as indulgências que proporcionavam uma falsa paz, acusando a Igreja pelo seu "sistema de comutação" que "implica e explica a negação da graça de Jesus". Não lhe sendo possível continuar no exercício do ministério, quis abandoná-lo, tendo sido, por sua vontade, dispensado apenas de suas funções propriamente sacerdotais, após o que foi viver como simples particular, em uma pequena casa de campo nos arredores de Rio Claro. Aí foi encontrá-lo o missionário Blackford, atraído pela fama do "padre protestante". Este acabou por ceder às suas exortações, batizando-se na Igreja Presbiteriana do Rio em 23 de outubro de 1864.
Sua decisão, entretanto, também não lhe proporcionou a paz interior. Nova crise manifestou-se nele, em virtude da advertência bíblica "Não se zomba de Deus", crise que provinha de sua consciência de que não era bastante haver abandonado os erros da Igreja romana, depois de havê-los divulgado por tanto tempo. Três vezes evitou seus amigos missionários, subtraindo-se às suas visitas, até que, finalmente, estas outras palavras da Bíblia "O sangue de Jesus Cristo purifica de todo pecado" trouxeram-lhe tranqüilidade ao coração. Escreveu então uma Profissão de Fé Evangélica onde narra suas lutas espirituais, num estilo convulsivo e ardente, uma das mais belas obras da mística protestante (2). Protestante pelas experiências e afirmações dogmáticas nas quais repousa, guarda ela profundamente, entretanto, o tom da literatura espiritual e da piedade católica. Neste ponto, como veremos, é o espelho fiel de seu autor.
Brotas fôra a última paróquia onde o Pe. Conceição exercera o ministério católico. Possuía ali laços familiares desde que sua irmã mais moça, Tudica, se casara com um Cerqueira Leite. Muitos de seus paroquianos haviam conhecido suas lutas espirituais e alguns as haviam mesmo partilhado. Além disso, os missionários seus amigos haviam iniciado ali um trabalho de propaganda com grande resultado, e esse foi o ponto decisivo: dirigiu-se a Brotas em meados de outubro a fim de tomar parte na campanha de pregações que deveria realizar-se durante diversas semanas, havendo pregações de casa em casa. Eis uma descrição das duas últimas reuniões, feitas por Blackford, que nos mostra o modo como eram realizadas e como se criou o primeiro núcleo protestante verdadeiramente brasileiro:
"Na segunda-feira 13 (de novembro) reunimo-nos em casa de Antônio Francisco de Gouvêa, no sítio, com o objetivo de organizar uma igreja. O Sr. Conceição pregou a mais de 30 presentes, após o que fizeram pública profissão de fé e receberam o sacramento do batismo as seguintes pessoas: Joaquim José de Gouvêa e sua mulher Lina Maria de Gouvêa, seu filho Francisco Joaquim de Gouvêa e sua filha Sabina Maria de Gouvêa; Antônio Francisco de Gouvêa, sua mulher Sabina Maria de Gouvêa e suas três filhas Belmira Maria de Gouvêa, Maria Vitória de Gouvêa e Maximina Maria de Gouvêa; Severino José de Gouvêa e sua mulher Maria Joaquina de Gouvêa. Com eles celebramos o amor de Nosso Senhor ao morrer, comendo e bebendo os símbolos do seu corpo partido e sangue derramado. Era a primeira vez que qualquer deles participava desse sacramento, ou o via. Foram horas de júbilo para o coração dos que participaram e de profunda impressão para os que presenciaram, ao menos para alguns.
"O Sr. Conceição dirigiu a oração final; julgo ter sido a mais jubilosa explosão de agradecimento que jamais ouvi. Deu graças pela vinda do Evangelho até eles, pela misericórdia que os tinha levado a ouvir e aceitar, e pelos privilégios daquela hora, etc. De envolta com as ações de graças e ferventes pedidos exortações e solicitações aos presentes para que aceitassem o livramento oferecido em Cristo. Na mesma ocasião foram batizadas as seguintes crianças: Antônio Francisco de Gouvêa, Maria Luiza, José Francisco e Sabina Maria de Gouvêa (3) e Maria Luiza, José Venâncio, Domicília Maria, Inocência, Herculano José e Elias de Gouvêa, filhos de Severino José e Maria Joaquim de Gouvêa.
"A 14 de novembro, no culto em casa do Sr. Tenório foram batizados Joaquim, Antônio Joaquim, Lino José, Honório José e Cassiano, filhos de Joaquim José e Lina Maria de Gouvêa.
"Quarta-feira, 15 de novembro, deixamos Brotas" (4).
Onze adultos membros professos e dezessete crianças batizadas, não pessoas isoladas, e sim uma grande família: os três irmãos Gouvêa com suas esposas e filhos (sete de Severino José, cinco de Antônio Francisco e cinco de Joaquim José). A seguir vieram os parentes de Conceição que, nas semanas seguintes, aderiram à Igreja; sua cunhada, um sobrinho, sua irmã mais moça Tudica. Esta atraiu seu marido, sua sogra D. Cândida Cerqueira Leite, a mais respeitada e influente fundadora do povoado, e todos os filhos desta.
Gradualmente a comunidade de Brotas desenvolveu-se de maneira extraordinária. Em 1867 possuía 61 membros professos, em 1871, 116 (e 123 crianças); em 1874, 140 membros. "Gente da vila e gente dos sítios: Buenos, Prados, Magalhães, Borges, Oliveiras, Morais, Cardosos e Cardosas, Barros, Coutinhos e Garcias. Gente de várias procedências e diversas famílias, espalhadas num raio de dez a quinze léguas por aqueles sertões. Negros e ex-escravos: em 21 de outubro desse mesmo ano de 1866, professavam e eram batizados João Claro Arruda e sua mulher Maria Antônia de Arruda; a mulher era índia; e João Claro ex-escravo e ex-sacristão de José Manoel da Conceição (5).
A igreja de Brotas foi, durante muito tempo uma das maiores igrejas protestantes do Brasil, ao lado da do Rio. É verdade que a chegada bem tardia de um pastor residente (vindo apenas em 1868) permitiu ao clero católico a restrição de sua atividade assoladora. O movimento protestante, que durante um momento parecera prestes a ganhar toda a população, deu origem apenas a uma comunidade minoritária: desde 1866 um Cerqueira Leite debatia-se sozinho, na Câmara Municipal, contra o projeto de interdição das reuniões protestantes. Limitada no seu lugar entretanto, a influência dos protestantes de Brotas propagou-se pelas regiões onde se havia originado e naquelas para onde se transferiram esses protestantes. Vimos que os três irmãos Gouvêa eram de Borda da Mata; possuíam um irmão ainda nesse lugar, Antônio Joaquim, que se converteu a convite dos outros, junto com seu genro Belisário Corrêa Leite; esta foi a origem da Igreja Presbiteriana de Borda da Mata – distante de Brotas mais de 200kms, em linha reta, incontestavelmente sua filha – fundada em 23 de maio de 1869 com o batismo de 15 adultos (dos quais seis Gouvêa, dois Leite e três de seus escravos) e vinte crianças. Tendo-se transferido de Brotas para Dois Córregos, um dos irmãos Gouvêa estabeleceu ali, em 25 de março de 1875, uma Igreja constituída de 19 membros adultos e 15 crianças.
Conceição, Pastor Itinerante
Conceição concedera, assim, os protestantismo brasileiro, seu mais forte grupo e seu melhor centro de irradiação. Brotas, entretanto, não havia sido sua única paróquia, e logo que uma Igreja se tivesse constituído punha-se ele a caminho com fito de visitar as outras localidades nas quais a desconfiança dos bispos de São Paulo o havia obrigado a peregrinar. Onde havia sido cura, para aí regressava pastor, pois recebera a consagração pastoral num presbitério realizado em São Paulo em meados de novembro desse ano de 1865.
Estas viagens, entretanto, não constituíam a tranqüila realização de um plano deliberado com os missionários americanos. Estes penetravam também pelo interior a dentro: das grandes cidades onde se haviam instalado partiam em expedições com destino a alguma localidade onde houvesse simpatizantes, e aí pregavam, faziam visitas, voltando depois às suas casas. Mas a grande campanha de evangelização que Conceição desenvolveu em uma parte considerável da província de São Paulo, durante três anos, foi de origem e caráter bem diferentes.
Teve início com uma de suas costumeiras crises de melancolia. Blackford, junto a quem Conceição procurava apoio, não o compreendia. "Ensinaram-lhe na teologia que quando alguém se converte está salvo para todo o sempre, sem possibilidade de se perder, e ele, agora, não é capaz de compreender a luta, a dúvida, a angústia desnorteante do amigo. Aquele paroxismo final da velha modéstia da alma, contraída na sacristia, mais lhe parece "aberração moral ou mental" que uma crise da grande alma de santo que existe em Conceição, e que luta para se afirmar" (6). Blackford teve, pois, grande trabalho em persuadir seu amigo e subordinado de que lhe era necessário cuidar de si. Conceição pareceu concordar, mas, nota Blackford em seu diário particular, "desapareceu, sem deixar indicação alguma sobre seu destino, havendo escrito apenas um bilhete avisando-nos de que não o esperássemos em casa. No dia 3 de março comuniquei esses fatos ao Dr. Furtado, chefe de polícia em exercício, que prometeu escrever a todos os delegados da província pedindo notícias de Conceição".
Enquanto o protestantismo americano não conseguia compreender que sua própria mensagem tivera força bastante para lançar a angústia nessa alma que recebera, Conceição, - o "pastor louco" para os missionários, como fora outrora o "padre louco" para os católicos – empenhava-se em abrir, ao protestantismo, os caminhos dessa mesma província onde a polícia o procurava. No mesmo dia em que Blackford escrevia ao Chefe da Polícia, Conceição achava-se em Ibiuna, pregando o Evangelho e fora o sub-delegado dessa localidade que, impressionado pela sua mensagem, lhe dera abrigo, antes de haver recebido comunicações oficiais. Nessa viagem dirigiu-se em seguida a Sorocaba, onde havia passado parte de sua juventude, e foi tal o interesse despertado nesse lugar, que enviou a Blackford uma lista com os nomes de 90 pessoas que deveriam ser visitadas. O missionário atendeu ao chamado tendo verificado então o belo trabalho realizado por seu amigo. Este, entretanto havia regressado a Brotas, de onde tornou a voltar, pregando em Limeira, Campinas, Belém, Bragança e Atibaia. Chegando a São Paulo no dia 3 de junho, iniciou nova viagem no dia seguinte.
Visitou, dessa vez, o vale do Paraíba, que percorrera outrora como cura de Taubaté. Viram-no pregar e distribuir Evangelhos em São José dos Campos, Caçapava, na sua antiga paróquia de Taubaté, em Pindamonhangaba e Aparecida – onde se diz que discutiu com os padres – além de outras pequenas cidades pitorescas e ricas dessa região fronteira, Guaratinguetá, Queluz, Rezende, Barra Mansa, Piraí. Aí consentiu em embarcar para ir até o Rio, onde participou da consagração pastoral do missionário Chamberlain, mas a 13 de julho retomou em sentido inverso sua viagem pelo vale do Paraíba, chegando em São Paulo em princípios de outubro.
Após um mês de trabalho na capital inicia, no fim de outubro, a evangelização rumo ao Norte: Cotia, Ibiuna, Piedade, São Roque, Piracicaba, Porto Feliz, Itú, até sua querida igreja de Brotas, onde permaneceu algumas semanas percorrendo toda a região, para voltar, em seguida, por Itaquarí, Rio Claro, Limeira, Piracicaba, Capivarí, Campinas, Belém (Itatiba) Bragança, Atibaia, Santo Antônio da Cachoeira (Piracaia), Nazaré, Santa Isabel e São Paulo, onde vamos encontrá-lo a 16 de dezembro.
A 21 de janeiro seguinte (1867) reinicia a viagem do Vale do Paraíba: Jacareí, Taubaté, Pindamonhangaba, voltando por Caçapava, São José, Jacareí, Taubaté e São Paulo; foram dezoito dias particularmente esplêndidos, com grandes auditórios simpatizantes, nessa região especialmente católica.
Permanecendo em São Paulo uma semana apenas, dirigiu-se, a 14 de fevereiro, ao sul de Minas, onde os protestantes de Brotas haviam iniciado já o trabalho de propaganda, entre seus parentes de Borda da Mata e Santa Ana do Sapucaí. Fazendo paradas em Santa Isabel, Nazaré, Santo Antônio da Cachoeira, Bragança, Amparo, Mogi Mirim, Ouro Fino, chegou finalmente à fazenda de Antônio Joaquim Gouvêa, a uma légua de Borda da Mata e depois a Santa Ana.
Em São Paulo, onde se achava de regresso a 2 de abril, esperava-o sua sentença de excomunhão, cuja promulgação havia sido até então adiada pelo bispo de São Paulo, que vacilara durante muito tempo entre a longanimidade habitual da Igreja em tais casos, e a necessidade de deter o sucesso da pregação do padre apóstata. Escreveu então um Resposta que, na opinião de seu último biógrafo, "abre a série dos clássicos protestantes do Brasil". No mesmo dia, 3 de maio, em que acabava de escrevê-la e ensiná-la, partiu novamente em viagem pelos arredores de São Paulo; sua excomunhão não impediu que um cura lhe desse hospitalidade. A 20 de maio, em companhia de Blackford, dirigia-se ao Rio; consagrou o mês de junho à evangelização dos arredores da capital. Apresentou, em uma reunião do presbitério que se realizou então no Rio, um relatório pormenorizado, no qual seu entusiasmo se traduzia em verdadeiras estrofes de louvores:
"Nós porém, que temos visto (com os nossos próprios olhos e ouvido, com os nossos próprios ouvidos) o poder da Palavra de Deus na conversão das almas, quer em sua letra quer em seu espírito;
"nós que temos visto as crianças irem, cantando e saltando, quebrar os ídolos de seus pais, e outras, pregando com a Bíblia nas mãos, a seus pais e vigários;
"nós sabemos, e com júbilo vos anunciamos que a evangelização em nosso país é a realidade mais benéfica em todos os resultados;
"e temos confiança, e ansiosamente desejamos vê-la progredir, concorrendo com quanto houver em nossas poucas forças para que mais e mais Jesus Cristo ganhe almas para sua glória" (7).
"Nossas poucas forças". Conceição havia dito também "A continuar como nos últimos tempos, antevejo que pouco poderei prestar" (8). Acabava, realmente, de fazer cinco grandes viagens no decurso de um ano. Seus companheiros de jornada – missionários como Blackford, Chamberlain, Schneider, Simonton, e ainda jovens evangelistas brasileiros ou portugueses como Miguel Torres, Modesto Perestrelo de Barros, Antônio Pedro, José Rodrigues, Carvalhosa – revezavam-se cada vez. Ele, entretanto, estava sempre a caminho. Fora já obrigado a parar em uma de suas passagens por Brotas, incapaz de continuar sua viagem. Os membros do presbitério, que acabavam de ouvir seu relatório com interesse apaixonado, julgaram necessário fazê-lo repousar e o enviaram aos Estados Unidos, para que expusesse lá o trabalho realizado no Brasil. Embarcou no Rio no início de outubro de 1867.
Conceição separa-se dos missionários. O apostolado solitário.
Regressara em outubro de 1868, para a reunião do presbitério, que deveria ser realizada em São Paulo. Suas "férias" – constituídas de viagens de conferências, pregações nas Igrejas portuguesas de Jacksonville e Springfield, além de trabalhos literários, traduções de livros e revisão de uma versão portuguesa do Novo Testamento – não o haviam descansado absolutamente. Não abandonou, entretanto, suas viagens e, no fim de outubro, regressa do Rio a São Paulo, na companhia de Chamberlain, passando por Angra dos Reis, Paratí, Cunha e Lorena. Durante sua estadia nos Estados Unidos Blackford fundara (março de 1868) nesta última cidade, um pequeno núcleo protestante. A chegada de um antigo padre provocou aí desordens contra os adeptos da nova religião, sem que a polícia interviesse (13 de novembro). O Ministro da Justiça, José Martiniano de Alencar, avisado por Tavares Bastos, em uma carta severa dirigida ao Presidente da Província de São Paulo (26 de novembro), lembrou-lhe que os cultos protestantes eram autorizados, sob a condição... conhecemos o que se segue. Nota-se que o liberalismo dos autores de Iracema e das Cartas do Solitário tirava o maior partido possível, e de maneira quase paradoxal, do texto constitucional: a interpretação desse texto, por Silva Paranhos, dez anos antes, era, como dissemos, bem diferente, e isso nos mostra que a propaganda protestante havia, decididamente, ganho a partida junto às supremas autoridades do Império. Mas nesse momento os missionários mudaram de tática.
Conceição, ao retomar seu trabalho de evangelização, trabalho que costumava realizar sem plano ou orientação, havia perdido o apoio ente os missionários. Apercebeu-se disso no presbitério realizado em São Paulo em meados de outubro de 1869: até ali seus relatórios sempre tinham sido considerados curtos e nesse ano dizem o seguinte as Atas da Assembléia: "tendo sido muito extenso seu relatório, foi-lhe solicitado um resumo deste, que pudesse ser conservado nos arquivos".
Conceição fora útil aos missionários para abrir-lhes caminho, conseguir-lhes simpatizantes em toda província, lançar os fundamentos de Igrejas. Sendo pouco numerosos, entretanto, isolados uns dos outros, separados, muitas vezes, por dissentimentos, auxiliados por bem poucos colaboradores brasileiros (e os mais merecedores dentre eles haviam sido justamente então enviados ao Rio, a fim de fazer estudos de Teologia, encontrando-se entre eles Miguel Torres, Carvalhosa, Antônio Pedro Cerqueira Leite e Antônio Trajano) não podiam esses missionários dar conta de todo trabalho preparado por Conceição. O abandono dessas almas bem dispostas, entregues a si próprias (e às investidas do clero), acabou por tornar insensível à propaganda protestante, regiões que haviam despertado as maiores esperanças. Vimos que, mesmo em Brotas, tardara bastante a vinda de um pastor residente; no Vale do Paraíba, a impossibilidade de aproveitar o entusiasmo despertado por Conceição, suspendeu durante longo tempo, para satisfação do catolicismo, o desenvolvimento desse caminho de leste, no qual apenas a Igreja de Lorena vivendo na inatividade.
Muitas vezes os missionários pediram a Conceição que se fixasse, passando da evangelização à organização. Seu temperamento, entretanto, não o permitia; tivera, sem dúvida, nos Estados Unidos, experiências sobre organizações que facilmente se reduzem à administração, e bem cedo à burocracia. Continuou no seu ministério de apóstolo itinerante. Os missionários, que, enviando os jovens evangelistas brasileiros a estudar no Rio, haviam-no privado de seus companheiros habituais, tinham outras coisas a fazer que seguir esse nativo, tão independente quanto psicologicamente incompreensível. E assim, daí por diante, Conceição fazia suas viagens de pregação só, como havia feito no começo, quando o acreditavam louco (não se estava, aliás, voltando a essa idéia?).
Nessa divergência, entretanto, havia algo mais profundo que diferenças de temperamento ou técnica missionária. Conceição, cuja experiência religiosa muito se assemelhava à de Lutero, tinha, com relação a questões eclesiásticas, uma posição vizinha à do Reformador. Saído de uma igreja cujo principal defeito fora talvez deixar-se dominar pela organização, sentia bem pouco a necessidade de uma contra-Igreja organizada. Rompendo com Roma como Lutero, almejava, como Lutero, difundir a mensagem de salvação, sem se preocupar muito em destruir instituições para elevar outras. Seu último biógrafo (9) transcreve, a esse respeito, uma página notável que é necessário reproduzir na íntegra:
"Se queremos imprudentemente comunicar a homens sem preparatório algum, verdades que lhes são absolutamente incompreensíveis, empregadas desta sorte, falsa e prejudicialmente, não promoveremos assim a ilustração. Ilustrar é conduzir o homem pensador à meditação, para faze-lo valoroso, e capaz de poder por si mesmo descobrir a verdade, que lhe comunicamos.
"Tanto seria loucura, se os pais quisessem insinuar a seus filhos malcriados e fracos as verdades que sabem; quão fátuo querer imbuir adultos sem prévia e conveniente disposição de coisas e princípios, que lhes é impossível compreender".
"Tudo tem seu tempo".
"Há muitos homens incultos que são crianças a muitos respeitos, que devem ser doutrinados com grande circunspeção. Porque o exterminar certos prejuízos e costumes úteis, usos que muitas vezes substituem a verdade mesma, por nenhum modo é isso ilustração; porém leviandade desumana, crueldade inexcedível".
"Respeitem-se, portanto, os costumes e usos antigos do povo, que, em falta de mais profundos esclarecimentos são aptos para guiá-los e contê-los no bem".
"Ó meu Deus! Eu respeitarei a religião do ignorante – a fé daqueles que não tem tantas ocasiões de conhecer-vos, de venerar-vos de um modo mais digno. Jamais servirei à vaidade e presunção, de tal sorte que abale a fé piedosa dos outros com palavras e ações inconsideradas".
Estas palavras, como se disse, "embora dirigidas àqueles que pregam o materialismo em nome da ciência, evidentemente estabelecem um princípio geral de conduta bem definido. Princípio que se opunha ao método dos missionários estrangeiros, preocupados em destruir, como supersticiosos e idólatras, os hábitos religiosos encontrados entre o povo brasileiro – enquanto o primeiro dentre eles, Kidder, fora capaz de receber que esses hábitos denunciavam, e mesmo sustentavam, a existência de uma fé ignorante, mas profunda e sincera. Manifestava-se no Brasil, uma vez mais – depois de Feijó e Kidder – a visão de uma Reforma realmente brasileira, harmonizada com o temperamento e os hábitos do país, visão que, aliada ao seu apego à evangelização itinerante, iria fazer dele "um desconhecido" para seus companheiros e amigos missionários, "que desejavam ajudá-lo, mas não sabiam como" (10).
Não tinha havido um rompimento entre ele e seus companheiros, mas sua missão não era o ministério organizado e a propaganda confessional, à qual se dedicavam então os missionários; nem mesmo se dedicava mais à evangelização itinerante, com auditórios relativamente grandes e representantes de todas as classes. O antigo cura, de boa família, possuidor de grande cultura, dedicava-se agora ao ministério de caridade e instrução religiosa entre os mais humildes. O insigne teólogo, que estava a par da literatura espiritual de toda a Europa, comprazia-se com os mais modestos conselhos de higiene como meios de obter a paz da alma. Comovente declínio de um homem que experimentara até o paroxismo, todas as lutas do espírito. Essa mesma humildade levava-o a viver essa "vida pobre" que se aproxima de São Francisco de Assis, e da qual o protestantismo brasileiro guardou admirativa memória, mesclada de alguma surpresa.
"Chegando a um sítio, diz o major Fausto de Souza, se resolvia a ter aí alguma permanência, ele procurava alguma choça ou telheiro que lhe servisse de abrigo, às vezes mesmo edificado por suas mãos e coberto de ramos; se, porém, sua demora era passageira, ele pedia hospedagem em qualquer casa, preferindo as de modesta aparência; e, antes de sair dela, procurava dar um sinal de seu reconhecimento, servindo de enfermeiro a algum doente, consolando tristezas ou mesmo prestando vários serviços humildes, como varrer, lavar, etc., etc.
"... Sua frugalidade era tal que com qualquer coisa se satisfazia durante o dia inteiro: uns ovos, leite, um pouco de farinha de milho ou de mandioca, ervas, café e açúcar, constituíam quase sempre o seu alimento. Desses gêneros, os que lhe davam agradecia com humildade; mas se assim não acontecia, também não os pedia, mas comprava-os em pequena quantidade, à proporção que deles necessitava, porque, conformando-se com a ordem dada por Jesus Cristo aos apóstolos, ele não possuía alforge para o caminho, nem duas túnicas, nem calçado, nem bordão, e mesmo o dinheiro que levava para o seu parco sustento limitava-se a alguns tostões" (11).
Entretanto, de maneira alguma havia ele renunciado à vida intelectual:
"Durante suas longas peregrinações ocupava as horas de ócio em escrever a lápis sermões, traduzir artigos religiosos, tomar apontamentos e notas curiosas sobre tudo o que via, observações topográficas e meteorológicas, vocábulos e termos especiais usados nos diversos povoados, procurando sua origem e raízes, quaisquer fatos que lhe pareciam interessantes da história natural, acompanhando-os às vezes de desenhos explicativos, ligeiros, mas que denunciavam rara aptidão. Quando se demorava por algum tempo em um sítio onde podia dispor de comodidade, passava a limpo seus sermões, hinos, notas e traduções, empregando em tudo muito método, clareza e belíssima letra; e todos esses papéis ele os conduzia consigo em viagem, dentro de um envoltório de pano que cuidadosamente cozia para não se dispersarem, até poder dar-lhes destino, enviando uns aos amigos, outros à redação da Imprensa Evangélica, de que não se esquecia (12).
Esta vida de pregador solitário durou quatro anos. Quatro anos durante os quais Conceição pregava aos arrieiros e viajantes que encontrava, aos pobres em cuja casa residia e dos quais cuidava, vítima muitas vezes de sevícias por parte de populações fanáticas, outras vezes considerando traumaturgo e obrigado a subtrair-se a uma espécie de culto.
Nos seus ratos encontros com os missionários, para com os quais se mostrava sempre reconhecido e afetuoso, achava-se cada vez mais fraco. No fim de 1873, Blackford convenceu-o a repousar ao seu lado, nos arredores do Rio. Conceição tomou o trem, dessa vez, mas em uma baldeação, seu pobre vestuário e seus pés descalços atraíram a atenção da polícia que o prendeu. E quando as informações recebidas lhe abriram as portas da prisão, não possuía dinheiro para comprar uma nova passagem. Continuou à pé seu caminho, sob sol e a canícula, caindo prostrado, na noite de 24 de dezembro, sob a sacada de uma venda, em Irajá, não longe de Piraí. O chefe de uma enfermaria militar vizinha, major Fausto de Souza, deu-lhe um leito. Tendo agradecido aos que o haviam socorrido, pediu que o deixassem "só com seu Deus" e morreu, tendo adormecido, ao que parece, por volta do fim da missa da noite de Natal.
O protestantismo brasileiro teve, em Conceição – que abriu seus caminhos e nimbou seus primórdios de uma auréola mística – um santo. O bondoso homem que lhe dera um leito para morrer, e ao qual Conceição não pudera proporcionar ensinamento nenhum, Major Fausto de Souza, impressionou-se de tal modo nesse contacto de alguns instantes que estudou a vida desse estranho ente errante, publicando sua primeira biografia. Convertido ao protestantismo, tendo-se tornado uma sumidade médica e política – (principalmente como presidente da província de Santa Catarina) foi seu grande defensor.
Percebe-se, entretanto, que esse santo, não obstante sua dogmática e sua ruptura com a Igreja, era ainda, pelas nuances de sua vocação, um católico (13), um desses católicos reformados como almejaram Feijó e Kidder.
[Notas]
1. Sua biografia foi escrita pelo coronel Fausto de Souza, ligado a ele em circunstâncias memoráveis, como veremos mais adiante. Foi tratada também por Vicente Themudo Lessa, Padre José Manuel da Conceição (2ª ed., 1935). Acaba de aparecer (1950) um bom estudo feito pelo Rev. Boanerges Ribeiro, onde se encontrará uma bibliografia completa. [Nota do Web Master: O livro, que teve o título de O Padre Protestante, foi publicado pela Casa Editora Presbiteriana, São Paulo, SP, em 1950].
2. Encontramos grandes passagens desse livro na obra de Rev. Boanerges Ribeiro que acaba de ser publicada, sob o título O Padre Protestante (São Paulo, 1950). [Nota do Web Master: o autor não explica porque não citou o nome do livro na nota anterior].
3. Filhos de Antonio Francisco e Sabina Maria
4. Boanerges Ribeiro, op.cit., págs. 128-129.
5. Ibidem.
6. Ibidem, pág.146.
7. Ibidem, pág.171.
8. Ibidem, pág.170.
9. Ibidem, pág.206.
10. Ibidem, pág.206.
11. Ibidem, pág.200-201.
12. Ibidem, pág.202-203.
13. Parece que isso foi sentido pelo cônego Rossi, no seu excelente Diretório Protestante no Brasil. Depois de se referir na pág. 58 ao "sacerdote apóstata José Manuel da Conceição", o que não nos admira, escreve numa nota: "Incansável propagador do presbiterianismo manifestou, no dizer de alguns protestantes, a pobreza de São Francisco de Assis e o zelo de São Paulo Apóstolo". E isso sem protestar contra tais assimilações. É curioso ver Conceição tornar-se um argumento contra o "papado protestante" norte-americano nas Cartas ao Chefe do Protestantismo no Brasil, do espírita Luiz de Matos (Rio, 1928), citados por um protestante passado ao racionalismo, Manoel José da Fonseca.
Extraído de Carl Joseph Hahn, História do Culto Protestante no Brasil, ASTE, São Paulo, 1989, pp.187-195. Tradução do inglês por Antonio Gouvêa Mendonça.

Em 28 de junho de 1900 apareceu um artigo em "O Puritano" órgão oficial da Igreja Presbiteriana do Brasil, intitulado "Rev. José Manuel da Conceição por A. B. Trajano". O artigo diz o seguinte:
"Faz agora vinte e sete anos que o Rev. José Manuel da Conceição deixou este mundo de trabalho e tentações para ser recebido nas mansões celestiais por seu pai celestial. Este longo espaço de tempo não foi capaz de apagar a preciosa memória, as saudades dele que permanecem nos corações de todos os que o conheceram e ouviram suas pregações e testemunharam seu admirável e verdadeiro ministério e labores a serviço de Deus.
Quando o ouvíamos proclamar o Evangelho e víamos como o evangelista se fazia acompanhar do exemplo, cumprindo fielmente a plenitude dos preceitos que pregava, isso produzia em nossas almas efeitos tão inspiradores, tão edificantes e duradouros que jamais podem ser esquecidos ou apagados de nossa memória.
Eu vi o Rev. José Manuel da Conceição nesta capital de São Paulo, em Lorena, em Sorocaba e na vila de Cotia. Vi com admiração sua plena humildade, sua sinceridade e sua total dedicação ao serviço de Jesus Cristo. Lembro ainda perfeitamente de tudo isto porque os trabalhos deste servo de Deus não eram normalmente os de um evangelista comum, mas um exemplo vivo de um verdadeiro apóstolo da evangelização. Por isso, a lembrança dele, lembrança acompanhada de ternas saudades, permanece até hoje em mim como estímulo de inspiração para imitar sua dedicação até o último limite de minhas forças" (1).
A. B. Trajano foi um dos primeiros quatro jovens que estudaram (2) para o ministério Presbiteriano no Brasil. Trajano era o mais velho dos quatro e também foi o último a morrer. Foi excelente aluno no curso teológico, sendo licenciado pelo Presbitério do Rio de Janeiro em 22 de agosto de 1870. Foi em seguida enviado para Borda da Mata (3), em Minas Gerais, para trabalhar como evangelista. Cinco anos após, em 10 de agosto de 1875, foi ordenado e colocado como pastor da igreja mãe, a Igreja Presbiteriana do Rio de Janeiro, que fora organizada por Simonton em 1862. Trajano serviu a esta igreja até 1893. Ele era pastor emérito desta igreja-mãe quando escreveu o citado artigo.
O tributo pessoal que Trajano prestou a memória do ex-padre Conceição provavelmente poderia ser prestado por quaisquer dos demais pastores e evangelistas brasileiros que tiveram algum contato com Conceição. O mesmo poderia ser dito pelos missionários que aprenderam (4) a evangelizar o Brasil com ele. Ele deixou uma indelével marca em todo o protestantismo brasileiro.
Conceição não foi somente o primeiro padre no Brasil a deixar a Igreja Católica Romana mas, segundo Trajano, ele foi o primeiro brasileiro ilustre a enfrentar abertamente a tormenta de perseguições ao romper com a Igreja Romana. Conceição contou sua vida num livrinho intitulado "Profissão de Fé Evangélica pelo Padre José Manuel da Conceição", livro agora esgotado e difícil de ser encontrado, mas que foi reimpresso seguidas vezes em "O Puritano" (5).
Conceição afirma que nasceu na cidade de São Paulo, em 15 de março de 1822, filho de um canteiro português que trabalhava em construções (6). Foi criado e educado pelo padre José Francisco de Mendonça, irmão do avô de Conceição. Seu primeiro professor, diz ainda Conceição, foi "o virtuoso Heliodoro de Vasconcelos" (7), cuja influência, somada às do padre com quem vivia, levou-o a escolher o sacerdócio. No entanto, aos dezoito começou a ler a Bíblia e a narrativa da criação do homem e da mulher no Gênesis produziu nele sérias dúvidas a respeito da doutrina Romana do celibato. Pouco tempo depois, uma conversa (8) que teve com um francês, seu professor de desenho, levou-o a posteriores dúvidas sobre os ensinos da Igreja. Seu professor passou pela frente do altar da Igreja sem tirar o chapéu e o zeloso Conceição discutiu com ele quase no ponto de agredi-lo fisicamente. O francês tentou explicar-lhe que o amor ao próximo e a Deus eram mais importantes do que o zeloso cumprimento de regras exteriores. Esta conversa deixou profunda impressão na vida do jovem Conceição.
Outra experiência que conduziu seu pensamento na direção do protestantismo foi o contato que teve com ingleses e famílias protestantes européias numa vila próxima à Igreja de seu tio. Diz Conceição:
"Eu ia com freqüência a uma fundição de ferro em Ipanema (em Sorocaba, na minha região) onde visitava a família Godwin, cujo pai, Mr. Godwin, era superintendente da casa de máquinas. Eu me comovia profundamente ao observar o completo silêncio que lá reinava aos domingos. Era uma família inglesa. Mais tarde, quando eu fui admitido na comunidade, eu vi a totalidade das famílias a ler a Bíblia e livros devocionais. Mais tarde eu visitei quase todas as famílias alemãs e em todas eu encontrei o mesmo quadro de devoção e religião. Comecei a pensar: quem sabe se estes estrangeiros têm tanta religião como nós, os brasileiros? Seria a religião deles igual à nossa? Ainda, quem sabe se eles são mais religiosos que nós porque são mais civilizados do que nós?" (9)
Vê-se de novo aqui a enorme influência dos imigrantes protestantes que prepararam o caminho para as missões protestantes no Brasil.
Conceição faz também menção de sua amizade e dívida para com um médico liberal dinamarquês ou alemão (10) que praticava a medicina na mesma vila, com quem ele estudou o idioma alemão, assim como história e geografia, além de rudimentos de medicina. O Dr. Teodoro Langaard, além de ensinar alemão a Conceição, pô-lo em contato com a literatura alemã sobre artes e medicina. Os conhecimentos de medicina, assim como a capacidade para ler os mais recentes livros médicos em alemão, tornaram-se valiosos para Conceição quando, nos anos seguintes, como evangelista itinerante, tratava (11) do povo brasileiro do interior que não tinha acesso à assistência médica. Mais tarde ele escreve a respeito deste período de sua vida:
"Eu estava destinado ao sacerdócio, mas a leitura da Bíblia e os meus contatos com os protestantes tornaram-me um mau candidato e depois um pobre, muito pobre padre católico romano. Todos os outros padres, exceto o Bispo, chamavam-me de Padre Protestante" (12).
Conceição afirmou que apesar dessas suas dificuldades a tolerância do Bispo e o fato de ser por natureza solitário, possibilitaram-no continuar os estudos para o sacerdócio. Tratava-se, todavia de mais uma experiência perturbadora.
Conceição passou nos exames e foi para São Paulo para ser ordenado mas, momentos antes da cerimônia, foi avisado de que não receberia a ordenação. Ele não tinha agido politicamente a fim de encontrar um padrinho nas áreas clericais. Foi, para ele, um grande choque descobrir o jogo político existente na Igreja. Esteve, por algum tempo, decidido a abandonar a carreira, mas foi persuadido a retornar e foi ordenado diácono em 29 de setembro de 1844, começando seu trabalho sacerdotal como assistente de seu tio-avô, o Padre Mendonça, em Sorocaba. A hierarquia da Igreja Romana não depositava inteira confiança nele, de maneira que ele veio a ser um padre encomendado, isto é, sujeitos a remoções ao gosto das autoridades. Foi primeiro enviado para Limeira, onde ministrou para imigrantes europeus aos quais falava em alemão, que era o idioma deles. Não cobrava nada pelo seus serviços e lhe recomendava que lessem a Bíblia. O bispado continuou transferindo-o de lugar para lugar na Província de São Paulo, mas em todos os lugares ele aconselhava o povo a ler a Bíblia e a confessar seus pecados diretamente a Deus. Os bispos, sem saberem, estavam permitindo que a futura Reforma brasileira fizesse itinerância em suas dioceses (13). Alguns anos mais tarde, como pastor protestante, ele percorria as mesmas áreas pregando as Boas Novas que bem antes havia tentado proclamar. As autoridades católicas ficaram alarmadas e Conceição, sabendo que não mais poderia sustentar os dogmas e práticas da hierarquia romana, pediu demissão para deixar o ministério. O bispo, por seu turno, sugeriu uma outra solução: ele seria nomeado para o "vicariato de vara", isto é, seria um representante do bispo servindo segundo as necessidades e desejos sem responsabilidades sacerdotais, Conceição aceitou a sugestão e comprou uma pequena fazenda perto de São João do Rio Claro, decidido a se tornar fazendeiro.
Blackford, visitando a região de Rio Claro, ouviu falar daquele estranho padre, antigo vigário da cidade, e decidiu ir vê-lo. O padre apreciou a visita e logo foi a São Paulo a fim de conversar mais com Blackford.
Dentro de alguns meses já tinha decidido renunciar ao sacerdócio católico romano e ligar-se à Igreja Presbiteriana. Em 23 de outubro de 1864, ele fez sua profissão de fé na pequena sala que servia de igreja para o trabalho presbiteriano em São Paulo. Ele tinha então quarenta e dois anos de idade. Em 16 de dezembro do ano seguinte ele era ordenado pastor por Simonton, Blackford e Schneider que haviam, naquele dia, organizado um presbitério com o expresso propósito de ordenar Conceição.
A conversão de Conceição teve grande influência no começo do protestantismo no interior do Brasil; primeiro, por chamar as atenções sobre os protestantes e, segundo, por estabelecer um modelo de evangelização e culto. Boanerges Ribeiro, que escreveu uma excelente biografia do ex-padre, diz:
"Mas foi a conversão do padre que chamou a atenção da capital provinciana para os cultos protestantes; entre os turbulentos estudantes de direito houve logo alguns que tomaram aquilo a sério..." (14).
Ele menciona alguns dos estudantes que começaram a aparecer na casa e nos cultos do missionário presbiteriano a fim de pedir informações. Entre eles estava Pedro Perestrello da Câmara, que comprou uma Bíblia em inglês e levou alguns folhetos de evangelização. Mas, mais importante para a questão da pregação e do culto foi o modelo que Conceição estabeleceu e a influência que veio a ter sobre os missionários e os jovens que entravam para o ministério, assim como sobre as pequenas congregações em formação ao longo de sua trilha pioneira.
Escreve Boanerges Ribeiro:
"José Manuel da Conceição lhes forneceu essas cabeças de ponte, abrindo para o nascente movimento protestante a província de São Paulo toda, e mais ao Sul de Minas; supriu a falta de homens, entregando-se à constante itinêrancia que o esgotou; desfez a natural timidez daqueles estrangeiros pregadores, unindo com eles sua sorte" (15).
A ordenação de Conceição anunciou o alvorecer de um novo dia do culto evangélico no Brasil. Por meio século os imigrantes vinham calmamente realizando o culto familiar em suas casas e na "casas de oração", tendo Kalley alargado um pouco o quadro ao convidar seus vizinhos para participarem do círculo familiar. Colportores tinham vendido Bíblias de vila em vila, mas agora o programa de evangelização intensiva de casa em casa estava começando. Deus levantara um homem, um ex-padre brasileiro, alguém que entendia os anseios de seus conterrâneos e de como ir ao encontro de suas necessidades. Nessa época não havia evangelismo de massa, conquanto houvesse reuniões ao ar livre nas praças das cidades e em campos abertos, mas agora o impulso principal era ir de casa em casa ao longo das estradas, de longas e longas estradas.
Escreve Ribeiro:
"Aproximava-se a hora do destino, em que a jovem igreja nacional criaria seu próprio método de desbravamento e propagação evangélica: essa luta árdua e exaustiva das estradas, de fazenda em fazenda; o contato pessoal e direto com a pessoa evangelizada; a oração de joelhos na salinha de chão batido e, sobretudo, o poder de um homem possuído do Espirito Santo e disposto a matar-se pregando a cada família em particular, de casa em casa, de indivíduo a indivíduo, de alma a alma. Não haveria nesse desbravamento os grandes lances oratórios que tanto encantam nossa mentalidade mestiça, nem o brilho dos pregadores selecionados e bem pagos: haveria a propagação de um fogo interior, que iluminava uma vida e iluminaria quatro estradas do Brasil" (16).
Em três anos este homem "transformou radicalmente o mapa da reforma no Brasil". Com a Bíblia na mão e a paz de Deus no coração ele ia de casa em casa ao longo das estradas do Brasil explicando a palavra de Deus, orando com o povo e comunicando-lhe a convicção que o que estava dizendo era a verdade.
Em um dos primeiros lugares onde ele pregou, iniciando sua vida itinerante de São Francisco do Brasil, duzentas pessoas se reuniram para ouvi-lo, segundo seu relato. Ele enviou a Blackford uma lista de noventa nomes de pessoas convertidas, em sua maioria família por família. Regressou a São Paulo para apanhar um suprimento de Bíblias para pessoas que desejavam estudá-la por si mesmas. O relatório de Conceição comoveu o coração de um dos jovens estudantes de direito que havia comprado uma Bíblia do missionário presbiteriano e começado a freqüentar alguns cultos. Este jovem, Perestrello Barros de Carvalhosa, acompanhou Conceição a Sorocaba. Esta foi uma viagem histórica. Carvalhosa ficou tão encantado e convencido do evangelho que apressou-se a tornar a São Paulo onde fez sua profissão de fé, foi batizado, e começou sua longa carreira de colportor, estudante, pastor e o primeiro escritor de liturgia (17) da Igreja Presbiteriana. Nessa viagem Conceição parou na casa de Sr. José Carlos de Campos, às margens do Rio Sorocaba. "Ó de casa!" gritou à distância. Entrando na casa com a Bíblia na mão, abriu em João 3.16 e pediu licença para ler a respeito do grande amor de Deus por toda a humanidade e sua graciosa oferta de perdão pela fé somente. Depois, estendendo no chão de terra batida um lenço colorido, derramou seu coração em comovente oração pela família que tinha sido parte de sua paróquia quando ele era padre naquela cidade.
O Sr José Carlos de Campos que, em anos passados, tinha se confessado a Conceição, ficou muito impressionado e ligou seu destino à nova fé doando terreno para construir uma igreja e, juntamente com sua numerosa família, tornou-se o núcleo de uma igreja (18) na comunidade de Votorantim, a algumas milhas de Sorocaba.
O modelo estava estabelecido. Conceição, com ou sem a companhia de algum jovem da igreja, ia pelas ruas das cidades e pelas estradas, de casa em casa, perguntando às pessoas se elas sabiam que eram pecadoras e dizendo-lhes que Deus as amava, pedindo permissão para ler a palavra de Deus, ajoelhando-se sobre o seu lenço colorido e orando pela sua fé e conversão. Quando possível enviava ao missionário Blackford, em São Paulo, lista de pessoas que se tinham decidido por Cristo. O mais cedo possível, Blackford, ou um de seus auxiliares, estava na mesma estrada visitando as famílias indicadas. Boanerges Ribeiro, cuidadoso e diligente biógrafo, acompanhou esse itinerário de vila em vila, de cidade em cidade, pelo espaço de alguns anos, traçando, ao mesmo tempo, o mapa das primeiras igrejas presbiterianas no interior do Brasil.
Nos anos imediatamente anteriores à sua conversão, Conceição pregou realmente a mensagem protestante da fé em Jesus Cristo, recusou pagamento por casamentos e funerais, tendo sua conduta preocupado tanto o bispo que este o manteve em constante mudança – nunca mais do que uns poucos anos em cada lugar. Estes mesmos lugares Conceição voltava agora a visitar, lugares estes que vieram a ser os futuros centros de novas igrejas presbiterianas: Sorocaba, Taubaté, Ubatuba, Brotas, São João do Rio Claro, Limeira, Campinas, Bragança, Atibaia etc. Três jovens (19) que vieram a se tornar notáveis pastores da Igreja Presbiteriana acompanhavam fielmente agora a Conceição nestas viagens. O mais fiel companheiro era Carvalhosa, mas Miguel Torres e Antonio Pedro foram também com freqüência seus companheiros. Estes jovens estavam sendo preparados pelos missionários para serem pastores, mas o mais importante ensino lhes foi dado por Conceição na medida que compartilhavam com ele da poeira das estradas, da palavra de Deus, de sua fé, de suas lágrimas, vendo brotar a fé nos corações dos homens e das mulheres. Sofreram também com ele algumas esporádicas perseguições: cachorros, pedras, insultos, aprendendo a suportar tudo com regozijo.
Um mapa (20) mostrando as viagens deste moderno São Francisco revela a quase inacreditável história de suas jornadas. Nos quatro meses anteriores à reunião do presbitério, em julho de 1866, ele percorreu, a maior parte pé, uma distância comparável à de Inverness a Londres (21), pregando, ensinando e curando. Nos tempos de estudante ele fizera valiosa amizade com um médico alemão em Sorocaba que lhe ensinou alemão e o pôs em contato em contato com os melhores livros de medicina nessa língua. Com este conhecimento Conceição tornou-se eficiente no tratamento das doenças comuns no Brasil. Assim, quando era convidado a pernoitar nalguma casa, ele freqüentemente retribuía a hospitalidade cuidando de algum eventual doente da família. Isto fez com que ele se tornasse uma pessoa muito estimada por onde passava e firmasse um padrão de serviço e assistência que os missionários acompanharam. Numa terra de extensas áreas sem nenhuma espécie de assistência médica, os simples conhecimentos possuídos pela média dos missionários e pastores eram freqüentemente valiosos.
O primeiro biógrafo de Conceição, o Coronel Fausto de Souza, que lhe deu abrigo e cuidados na noite de sua morte, descreveu o método, a humildade e a dedicação dele durante os últimos anos de seu ministério itinerante:
"Chegando a um sítio, se ele resolvia a ter aí alguma permanência, procurava alguma choça ou telheiro que lhe servisse de abrigo, às vezes mesmo edificado por suas mãos e coberto de ramos; se, porém, sua demora era passageira, ele pedia hospedagem em qualquer casa, preferindo as de modesta aparência; e antes de sair dela procurava dar um sinal do seu reconhecimento, servindo de enfermeiro a algum doente, consolando tristezas, ou mesmo prestando vários serviços humildes, como varrer, lavar, etc...
Sua frugalidade era tal, que com qualquer coisa se satisfazia durante o dia inteiro: uns ovos, leite, um pouco de farinha de milho ou de mandioca, ervas, café e açúcar, constituíam quase sempre o seu alimento. Desses gêneros, os que lhe davam, agradecia com humildade; mas quando assim não acontecia, também não os pedia, mas comprava-os em pequena quantidade, à proporção que deles necessitava, porque conformando-se com a ordem dada por Jesus Cristo aos apóstolos, ele não possuía alforge para o caminho, nem duas túnicas, nem calçado, nem bordão (Mt 10.10) e o mesmo dinheiro que levava para o seu parco sustento, limitava-se a alguns parcos tostões." (22)
Com tudo isto era Conceição um homem profundamente culto, lendo fluentemente português, alemão, francês e inglês, traduzindo constantemente alguma coisa em simples pedaços de papel. Ele observava e descrevia qualquer planta ou animal incomum que por acaso encontrasse em suas viagens e tomava notas a respeito da geografia e da geologia das regiões por onde viajava. Escreveu sermões, hinos e comentários enquanto ia e vinha. Enviava, de vez em quando, artigos para seus amigos e para a Imprensa Evangélica para serem publicados.
Conceição voltava dessas longas andanças completamente exausto, mas após alguns dias de descanso estava de novo na estrada. Na semana do Natal de 1873 Conceição viajava de volta ao Rio para um merecido descanso. Todavia, não chegou ao seu destino. Forçado a uma baldeação ele teve que se abrigar por uma noite na estação. Suas roupas andrajosas e seus pés nus convenceram um policial de que se tratava de um vagabundo sendo, por isso, levado à prisão onde permaneceu três dias e três noites até que chegasse do Rio de Janeiro a confirmação de sua identidade. Quando posto em liberdade ele não tinha dinheiro suficiente para continuar a viagem de trem e partiu a pé. Na pequena vila de Irajá, cambaleante, caiu junto a um pequeno armazém. Um soldado da milícia estadual levou-o a uma enfermaria militar próxima onde o diretor, Major (mais tarde Coronel) Fausto de Souza, supervisionou o tratamento do andarilho desconhecido.
Era véspera de Natal e o espírito da data provavelmente entrou em cena porque os militares mudaram as roupas de Conceição, deram-lhe um banho e um prato de sopa, assim como os necessários cuidados médicos. Conceição agradeceu-lhes e pediu para ser deixado a sós com Deus. Os sinos da vizinhança anunciavam a missa da meia-noite quando o espírito de Conceição deixava seu corpo para a morada final. O Major Fausto, naqueles poucos momentos de contato com Conceição, foi levado a ligar seu destino ao povo protestante. Ele escreveu uma biografia de Conceição, tornou-se franco defensor da fé evangélica e traduziu do francês um dos clássicos da literatura evangélica no Brasil. "Cristo é Tudo". A fé evangélica encontrara os modelos realmente brasileiros. A próxima seção analisará a vida e ministério de um dos jovens mais chegados a Conceição que, através de uma longa existência no ministério protestante, procurou consolidar a obra, além de evangelizar, e veio a ser um notável líder da liturgia na Igreja Presbiteriana do Brasil: Modesto P. B. de Carvalhosa.
REFERÊNCIAS
1. O Puritano, Ano II, Núm.56, 28 de junho de 1900, pág.1.
2. O primeiro a ser ordenado foi o ex-padre Conceição, mas ele não acompanhou nenhum curso teológico com os missionários. Os outros três estudantes eram Antonio Pedro Cerqueira Leite, Miguel Gonçalves Torres e Modesto Perestrello Barros de Carvalhosa.
3. Essa pequena congregação das montanhas era filha da Igreja de Brotas. Alguns membros desta igreja mudaram-se para Borda da Mata e tornaram-se o núcleo de uma nova Igreja Presbiteriana naquela região.
4. Ver o registro de Blackford no seu Journal... Record a respeito desta experiência com Conceição nos meses da Missão que antecederam a organização da Igreja de Brotas, assim como durante sua organização.
5. O Autor não teve acesso ao livro original, mas colheu notas de publicação em "O Puritano". Há uma biografia em português, do Rev. Boanerges Ribeiro, intitulada "O Padre Protestante", que é a principal fonte deste capítulo.
6. O Puritano, 14 de junho de 1900, pág. 1.
7. Loc. cit.
8. Loc. cit..
9. Ibid., pág.1 ss.
10. O Puritano, 14 de junho de 1900, Ano II, n.º 54.
11. Como os evangelistas itinerante, Conceição servia amiúde de enfermeiro e médico para doentes nas casas onde se hospedava. Ele fazia isso em pagamento pela hospedagem, vez que habitualmente viajava sem dinheiro. Semelhante a esta é a história de Willis Robert Banks, no vale do Rio Juquiá.
12. O Puritano, 21 de junho de 1900, Ano II, nº 55. Continuação da reimpressão do livrinho de Conceição, "Profissão de Fé Protestante", pág. 2.
13. Júlio Ferreira, História ... op. cit.. vol. 1. Pág. 31
14. Boanerges Ribeiro, O Padre Protestante, Casa Editora Presbiteriana, São Paulo, 1950, pág. 135.
15. Ibid., págs. 135-136.
16. Ibid., págs. 144-145.
17. Infra. Ver a seção seguinte a respeito de Carvalhosa.
18. Ainda hoje é umas das boas igrejas do Brasil, tendo o Autor pregado nela várias vezes. A família do Sr. José Carlos de Campos tornou-se proeminente na Igreja Presbiteriana, sendo uma de suas filhas a esposa de William Kerr e a mãe de uma nora do Autor. Membros desta família têm freqüentemente evocado para o Autor memórias da primeira visita de Conceição.
19. Boanerges Ribeiro, op. cit., págs. 191, 164, 147, 151, 156, 187 etc
20. Vide Apêndice. O mapa foi preparado por Boanerges Ribeiro, um dos biógrafos de Conceição.
21. O Autor apresentou esta obra em Edimburgo, Escócia. Daí o seu referencial à geografia conhecida pelos seus primeiros leitores (Nota do Tradutor).
22. Major Fausto de Souza, "Ex-Padre José Manuel da Conceição", publicado na Imprensa Evangélica, Fevereiro de 1884.