Uma análise dos nomes de Deus: Ieouá e Eloim
Moisés disse a Eloim: Quando eu for aos filhos de Israel e disser: O Eloim de vossos pais me enviou a vós e me perguntarem: Qual é o seu nome?, que direi? Disse Eloim a Moisés: Eu sou aquele que é. Disse mais: Assim dirás aos filhos de Israel: Eu Sou me enviou até vós. Disse Eloim ainda a Moisés: Assim direis aos filhos de Israel: Ieouá, o Eloim de vossos pais, o Eloim de Abraão, o Eloim de Isaque e o Eloim de Jacó me enviou até vós. Este é o meu nome para sempre, e esta será a minha lembrança de geração em geração. Êxodo 3.13-15.
Dentro da Teologia Sistemática um dos temas mais difíceis, sem dúvida, é o estudo da unicidade e pluralidade de Deus. O Antigo Testamento nos dá muitas provas da singularidade de Deus, assim como também o Novo Testamento. Mas, o Senhor Jesus Cristo, e também os apóstolos fizeram questão de anunciar, talvez não tão claramente como desejássemos, que Deus é também pluralidade. E, a partir do século quarto, definimos uma formulação ortodoxa: Uma essência em três pessoas.
Muitos teólogos descartam qualquer possibilidade que o Antigo Testamento tenha deixado pistas sobre a pluralidade de Deus. Acreditam que essa revelação só nos é data no Novo Testamento. Sabemos que qualquer abordagem do tema implica em enfrentar dificuldades as mais variadas, mas nos parece que uma análise lingüística aliada a um estudo epistemológico da doutrina de Deus entre os antigos hebreus podem nos levar a uma compreensão mais plástica da discussão.
Nas traduções brasileiras o nome Eloim aparece como Deus. Simplesmente. Ora, sabemos que no Antigo Testamento aparecem diversos nomes para Deus: Eloim, Ieouá, El/Eloá, entre outros. Neste estudo analisaremos apenas dois desses nomes de Deus, Eloim e Ieouá, que acreditamos nos dão elementos para pesquisarmos dois aspectos teológicos da divindade, sua unicidade e sua pluralidade intrínseca. E tomamos como ponto de partida o texto de Êxodo 3.13-15.
A essência em Ieouá
O nome Ieouá ocorre no Antigo Testamento 6.823 vezes. Na verbalização do tetragrama optamos pela sonorização que remete à uma musicalidade ritualística apta para o culto coletivo, para a invocação e para o estado contemplativo. Assim, Ieouá parece pela primeira vez em Gênesis 2.4, junto a outro nome de Deus, Eloim como Eloim-Ieouá. No correr dos segundo e terceiro capítulos continua aparecendo, com exceção da história da tentação, quando aparece apenas Eloim. Na sequência, vamos ver que o nome Ieouá aparece sozinho ou combinado a Eloim, além de termos também apenas Eloim.
Essa situação acaba sendo um problema para os críticos. Afinal, porque Deus haveria de se revelar aos homens, em textos diferentes ou às vezes na mesma frase, ora como Ieouá, ora Eloim-Ieouá, ou apenas como Eloim? Por exemplo, em Gênesis 28.13, quando Jacó sonha, encontramos: Eu sou Ieouá, o Eloim de Abraão, teu pai, e o Eloim de Isaque.
A aparente dificuldade pode nos encaminhar a uma questão fundamental: a da personalidade ou atributos de Deus. Sem, dúvida, a personalidade de Deus está ligada à sua transcendência, mas também à sua imanência e é, em parte, traduzida nesses dois nomes de Deus.
O nome Ieouá deriva do substantivo hebraico hai, vida, que em português também pode ser traduzido por ser e estar. Assim quando balbuciamos, cantamos ou ouvimos o nome Ieouá, devemos pensar nos termos vida, ser, existência, entendendo que Ieouá é o único que possui vida em essência e existência eterna.
É importante observar, também, a conexão e semelhança existente entre o pronome ele em hebraico e hai. Em passagens como Isaías 43.10-11, o pronome é equivalente ao nome do Eterno Deus. No citado trecho de Isaías lemos: Eu sou a vida; antes de mim nenhum Eloim se formou, e depois de mim não haverá nenhum. Eu, eu mesmo sou Ieouá, e fora de mim não há nenhum salvador. E no salmo 102.27 encontramos: mas tu és a vida, e os teus anos jamais findarão.
Em hebraico, a palavra hai aparece muitas vezes como ser, equivalente ao “o mesmo”, aquele que não tem começo, nem fim.
Segundo Moshe Maimonides, erudito judeu da Idade Média, os nomes de Deus que encontramos nas Escrituras estão relacionados com suas ações, com apenas uma exceção, que é Ieouá. E este é considerado o nome por excelência, porque ele mostra em toda a sua extensão a substância de Deus. E na sequência acrescenta que no nome Ieouá, a personalidade do Eterno é expressada claramente. É sempre um nome próprio que traduz a pessoa de Deus.
A origem e o uso do nome Ieouá está ligado a Israel. Quando Moisés pergunta a Deus: Quando eu for aos filhos de Israel e disser: o Eloim de vossos pais me enviou a vós; e me perguntarem: Qual é o seu nome? que direi? E Eloim disse a Moisés: ego sum qui sum [conforme a Vulgata] Eu sou aquele que sou. O que poderia ser traduzido “eu sou aquele que é” ou “eu serei contigo”.
O ponto central dessa expressão, que sonorizamos Ieouá, é que Deus quer revelar-se a Moisés. Por isso, usa Ieouá. Como Ieouá, ele é o Deus que se torna música aos ouvidos humanos, para que possam conhecer aquele que é Eterno, o único. Por isso, ele diz a Moisés: Assim dirás aos filhos de Israel: Eu Sou me enviou a vós. Ieouá, o Eloim de vossos pais, o Eloim de Abraão, o Eloim de Isaque e o Eloim de Jacó me enviou até vós: Este é o meu nome para sempre, e esta será a minha lembrança de geração em geração. E em Êxodo 6.2-3 encontramos: Eu sou Ieouá. Apareci a Abraão, a Isaque e a Jacó como Deus todo-poderoso, mas pelo meu nome Ieouá não fui conhecido por eles.
Bem, aqui surge uma pergunta: Por que Deus diz que não foi conhecido por eles como Ieouá, se em Gênesis encontramos o nome Ieouá, assim como em vários outros trechos, inclusive na própria promessa da aliança?
É importante notar que até Moisés nenhum povo tinha conhecimento da revelação pessoalmente dirigida de Deus. Os povos tinham acesso à revelação católica, aquela que o apóstolo Paulo descreve em Romanos 1.19-21. Essa revelação universal é geral e plena, mas silenciosa: está dentro de todos/as, começou na origem, continua a vigir hoje e torna os humanos conhecedores da existência do Criador.
Mas a partir de Moisés, Deus dá aos filhos de Israel um som especial. Através dessa revelação, o povo de Israel toma conhecimento dos atributos pessoais, morais de Deus, como veracidade, benevolência, fidelidade, graça, justiça, misericórdia e santidade. Este Deus que se revela de forma particular, enquanto pessoa é Ieouá.
Vemos isso em Êxodo 34.6 quando a aliança é renovada e o próprio Deus diz de si mesmo: quo transeunte coram eo ait Dominator Domine Deus misericors et clemens patiens et multae miserationis ac verus [ainda segundo a Vulgata]. Assim, Deus apresenta-se como ser inteligente, com autodeterminação plena e consciência moral.
Ieouá nos apresenta outra característica de Deus: a sua unicidade. Encontramos em Êxodo 20.2-3: Eu sou Ieouá, teu Eloim que te fez sair da terra do Egito, da casa da escravidão. Não terás outros Eloim diante de mim. E em Deuteronômio 6.4 esta declaração é incisiva: audi Israhel Dominus Deus noster Dominus unus est. Esta declaração de Ieouá como o único Eloim será confessada por Davi em 2Samuel 7.22 e por Isaías (41.4; 43.10,11 e 44.6). De fato, é uma confissão que implica em compreensão daquilo que Deus é enquanto único: fundamento da realidade, imutável em suas promessas, aquilo que será. Toda escolha é realizada de conformidade com Sua vontade e prazer.
Pluralidade em Eloim
Só no primeiro capítulo de Gênesis, o nome Eloim aparece 32 vezes. No Antigo Testamento, Eloim ocorre 2.570 vezes. A palavra Eloim é uma derivação de El/Eloá, que transmite a idéia de poder, força, proeminência. Já o nome Eloim traduz uma idéia ampla e precisa, que é a de um criador que tem poder para governar, onipotência e soberania. Isto é indicado em Gênesis 1.1 e 2.4, já que Eloim aparece como o poderoso Deus criador do universo. Ele ordena e do caos o cosmos surge.
Mas há uma peculiaridade no nome Eloim. Ele é plural, na forma usual do masculino plural em hebraico. E em Gênesis 1.1 Eloim está no plural, mas o verbo está no singular. Mais interessante, ainda, é notar que em Gênesis 1.26 encontramos o verbo no plural: Façamos o homem a nossa imagem. Sem dúvida há uma conversa, mas com quem? Na sequência da frase encontramos demut tselem, imagem e semelhança, no singular, concordando com o pronome nossa, que também está no singular. Isto nos leva a deduzir que aquele que fala está se dirigindo a iguais, em imagem e substância. Ora, se quem fala é Deus Supremo, seus interlocutores não são anjos ou seres celestiais, mas Deus. E temos outros textos que nos levam em direção ao mesmo raciocínio: Gênesis 3.22, quando a pessoa desobedece; no castigo aos habitantes de Babel (Gn 11.7); o Salmo 149.2; Salomão em Eclesiastes 12.1; entre outros.
Existe a interpretação de que estamos diante de um plural majestático. Sabemos que a utilização dessa forma plural para reis era um costume comum no mundo semítico, mas devemos levar em conta as várias passagens e o contexto de cada uma delas. Sem dúvida, há textos em que a proposta de plural majestático encaixa-se perfeitamente, como é o caso de Juízes 11.24. Mas a generalização do conceito, sem dúvida, leva ao erro. Tal situação levou um estudioso judeu, Parkhurst, há duzentos anos, a afirmar que os cristãos têm razão em ver no nome Eloim uma expressão da trindade, pois o termo não implica apenas na definição daquele que cria, mas em Godhead.
Essa pluralidade da personalidade de Deus, que nós cristãos chamamos trindade, aparece de forma chocante em Josué 22.21-29, quando os filhos de Rubem, os filhos de Gade e da meia tribo de Manassés, em confissão diante de Deus e dos chefes das famílias de Israel, utilizam na mesma frase, juntos, três nomes de Deus: El/Eloá, Eloim, Ieouá. Expressão que, com variáveis, encontramos em Deuteronômio 10.17 e em Gênesis 33.20, 46:3 e Números 16.22, sendo que nas três citações só aparecem El/Eloá e Eloim. Nossos tradutores, usualmente, recorrem ao superlativo, como em Dt 10.17, Pois Ieouá vosso Deus é o Deus dos deuses e o Senhor dos senhores, o Deus grande, o valente, o terrível, que não faz acepção de pessoas e não aceita suborno. Mas sem dúvida, aqui se fala da personalidade de Deus, e não nos parece que essa utilização seja acidental, principalmente porque não era costumeira entre os hebreus.
Sabemos que os antigos não entendiam a trindade de Deus. Mas nos parece que através dos nomes de Deus, que traduzem atributos, alguns conhecimentos sobre esta pluralidade de Deus foram transmitidos aos hebreus, já que a própria promessa do Messias foi sendo construída nos corações e mentes dos profetas no correr da história de Israel. O rabino David H. Stern, por exemplo, analisando Romanos 3.29-30, afirma que não há contradição entre a declaração da Shemá e a compreensão de que Deus é Pai, Filho e Espírito Santo, pois em nenhum momento a doutrina da trindade afirma que estamos diante de três deuses .
Claro está que para nós cristãos é mais fácil entender a Trindade, pois contamos com textos do Novo Testamento, como 1Co 8.4-6, 1Tm 1.17; 2.5-6, que falam a respeito do Pai; Rm 8.9, At 5.3-4, Jo 3.8 sobre o Espírito Santo; e Jo 10.30, Tito 2.13, Fp 2.6 sobre o Filho. Além das formas trinitarianas em Mateus 28.19-20, 2Co.1.21-22 e 13.13.
Mas não podemos dizer que esses dois nomes de Deus, Ieouá e Eloim para os antigos hebreus fossem a mesma coisa, simples sinônimos.
A exegese tem exatamente essa finalidade, decifrar, traduzir aquilo que o autor original do texto queria dizer. A distância histórica entre a nossa cultura e aquela dos antigos hebreus é uma realidade draconiana. Além do mais, tecnicamente, podemos dizer que cada palavra carrega mais conteúdo do que é perceptível numa rápida leitura. Isto porque Deus ao revelar-se aos povos utilizou um instrumento humano, a linguagem. Dessa inadequação entre significado e significante nasceu a necessidade da hermenêutica. A tarefa do hermeneuta consiste pois -- a partir da utilização de análises histórico-cultural e léxico-sintática -- na explicitação da mensagem, através de uma metodologia bem dirigida. As conclusões a que chega nada devem acrescentar ao significado do texto, pois já estavam contidas nele. Mas, para o estudioso, essas conclusões são novas, pois estavam gravadas no subsolo do texto interpretado.
Se, de fato, os nomes de Deus revelam a sua personalidade, e isso uma análise léxico-sintática parece confirmar, assim como alguns textos -- um exemplo é Josué 22.21-29 --, então podemos dizer, tecnicamente, que cada novo corte nas expressões estudadas aprofundará o sentido primeiro. Ou seja, ao voltarmos à leitura do chamado de Moisés, depois do estudo que realizamos em Êxodo 3.13-15, temos o horizonte ampliando em relação à unicidade e pluralidade de Deus.
samedi 7 mars 2009
mardi 3 mars 2009
O ser humano. Antropologia bíblica
Antropologia bíblica [Teologia Sistemática II]. Questões para serem discutidas em sala de aula.
O SER HUMANO
“Façamos o ser humano segundo a nossa imagem, semelhante a nós”. Gn 1.26
Toda a criação de Deus é o mundo do ser humano. Assim afirmam os dois relatos da criação e o Salmo 8. Mas em que sentido o ser humano é a imagem de Deus? Como Deus confere ao ser humano essa correspondência? A partir da antropologia bíblica podemos ver que:
[1] Em primeiro lugar o ser humano é fruto de uma intervenção de Deus. Há uma concessão de encargo que diferencia o ser humano do resto da criação. Ele é apresentado como um momento especial que coroa a ação criadora de Deus (Sl 8.6). Ele recebe responsabilidade (Gn 2.15-17) e poder de decisão (2.18-23).
[2] Em segundo lugar, Deus deixa claro a finalidade da decisão de criar um ser pessoal, segundo sua imagem. Tal ser deverá ter uma relação especial com o restante da criação (1.26). Deus cria e entrega ao ser humano sua criação. Este ser pessoal deverá estar sobre ela, numa relação de administração, cuidado e produção (2.15,16,19). O ser humano relaciona-se com a criação e através do uso dela e de suas descobertas em relação a ela, mantém uma permanente relação com Deus.
[3] Em terceiro lugar, a imagem de Deus é traduzida na relação que mantém com as criaturas, já que é uma relação de domínio. Ele reina sobre o universo produzido pelo poder criador de Deus. Mas aqui há um detalhe importante: este direito de domínio não lhe é próprio, ele reina enquanto imagem de Deus. Ele não é proprietário, nem tem autonomia irrestrita sobre a criação.
[4] Mas imagem de Deus traduz abertura à transcendência. Aqui estão dados os elementos que nos permitem entender porque faz parte da humanidade o abrir-se à transcendência e viver com ela. Há um deslumbramento permanente diante do absoluto, do sobrenatural e do mistério. Estamos diante de um ser que pode pensar o que não está aqui e agora, e que pode refletir sobre o que vai além da realidade factual.
E é por poder pensar tais realidades que não podem ser vistas, que o ser humano enquanto imagem de Deus pode refletir sobre a eternidade e relacionar-se com o transcendente. Assim, ao ser feito imagem de Deus, o próprio Deus transfere à humanidade a capacidade de relacionar-se com Ele.
UM SER PLURAL
[5] Esse ser humano de que fala Gn 1.26, que deve ser uma imagem de Deus, não é uma pessoa em particular, pois a continuação do texto fala que eles dominem. Estamos diante da criação da humanidade e o domínio do universo não é dado a uma pessoa, mas a comunidade dos seres humanos. Assim, ninguém pode ser excluído da autoridade de domínio dada por Deus à humanidade.
Da mesma maneira, em Gn 1.27 temos uma outra característica fundamental dessa mesma humanidade: ela é formada por conjuntos pares. Para alguns teólogos, como Karl Barth, tal explicação de Gn 1.27b, de uma humanidade formada por pares, é apresentada por Deus “quase à maneira de definição”.
Logicamente, há uma intenção para que o texto bíblico aprofunde-se em tais minúcias. É a de apresentar como o universo criado deveria ser administrado: através da convivência de seres que se completam e se amam. Ou seja, esse ser plural só poderia exercer o domínio através da comunidade, completando-se como homem e mulher.
Para onde aponta o domínio?
Se toda a criação de Deus é o mundo do ser humano, há a total desmitização da natureza. Não há astros divinos, terra divina, animais divinos. Todo o universo pode tornar-se o ambiente do ser humano, seu espaço, que ele pode adaptar às suas necessidades e administrar.
E como ele consegue isso? Através da cultura, enquanto processo social e objetivo de sujeição da natureza, e através dessa necessidade de expansão e domínio, pessoal e subjetivo, que é peculiar a todo homem e mulher livres.
O afastamento de Deus fez com que a humanidade perdesse sua capacidade de ser imagem de Deus viva e eficaz. Seu caráter inicial está distorcido e o mal perpassa todas suas ações. Assim, o ser humano lançou-se ao domínio de seus iguais, inclusive através do derramamento de sangue; suprimiu o equilíbrio e a mútua ajuda entre homem e mulher; mitificou a ciência e técnica; e lançou-se à destruição da própria natureza.
Cristo é “a verdadeira imagem do Deus invisível” (Cl 1.15 cf. 2Co 4.4) e a Ele cabe fazer, a nível escatológico, aquilo que à humanidade tornou-se impossível. “Foi-me dado todo o poder no céu e na terra, por isso, indo, fazei discípulos em todas as nações” (Mt 28.18).
O SER HUMANO
“Façamos o ser humano segundo a nossa imagem, semelhante a nós”. Gn 1.26
Toda a criação de Deus é o mundo do ser humano. Assim afirmam os dois relatos da criação e o Salmo 8. Mas em que sentido o ser humano é a imagem de Deus? Como Deus confere ao ser humano essa correspondência? A partir da antropologia bíblica podemos ver que:
[1] Em primeiro lugar o ser humano é fruto de uma intervenção de Deus. Há uma concessão de encargo que diferencia o ser humano do resto da criação. Ele é apresentado como um momento especial que coroa a ação criadora de Deus (Sl 8.6). Ele recebe responsabilidade (Gn 2.15-17) e poder de decisão (2.18-23).
[2] Em segundo lugar, Deus deixa claro a finalidade da decisão de criar um ser pessoal, segundo sua imagem. Tal ser deverá ter uma relação especial com o restante da criação (1.26). Deus cria e entrega ao ser humano sua criação. Este ser pessoal deverá estar sobre ela, numa relação de administração, cuidado e produção (2.15,16,19). O ser humano relaciona-se com a criação e através do uso dela e de suas descobertas em relação a ela, mantém uma permanente relação com Deus.
[3] Em terceiro lugar, a imagem de Deus é traduzida na relação que mantém com as criaturas, já que é uma relação de domínio. Ele reina sobre o universo produzido pelo poder criador de Deus. Mas aqui há um detalhe importante: este direito de domínio não lhe é próprio, ele reina enquanto imagem de Deus. Ele não é proprietário, nem tem autonomia irrestrita sobre a criação.
[4] Mas imagem de Deus traduz abertura à transcendência. Aqui estão dados os elementos que nos permitem entender porque faz parte da humanidade o abrir-se à transcendência e viver com ela. Há um deslumbramento permanente diante do absoluto, do sobrenatural e do mistério. Estamos diante de um ser que pode pensar o que não está aqui e agora, e que pode refletir sobre o que vai além da realidade factual.
E é por poder pensar tais realidades que não podem ser vistas, que o ser humano enquanto imagem de Deus pode refletir sobre a eternidade e relacionar-se com o transcendente. Assim, ao ser feito imagem de Deus, o próprio Deus transfere à humanidade a capacidade de relacionar-se com Ele.
UM SER PLURAL
[5] Esse ser humano de que fala Gn 1.26, que deve ser uma imagem de Deus, não é uma pessoa em particular, pois a continuação do texto fala que eles dominem. Estamos diante da criação da humanidade e o domínio do universo não é dado a uma pessoa, mas a comunidade dos seres humanos. Assim, ninguém pode ser excluído da autoridade de domínio dada por Deus à humanidade.
Da mesma maneira, em Gn 1.27 temos uma outra característica fundamental dessa mesma humanidade: ela é formada por conjuntos pares. Para alguns teólogos, como Karl Barth, tal explicação de Gn 1.27b, de uma humanidade formada por pares, é apresentada por Deus “quase à maneira de definição”.
Logicamente, há uma intenção para que o texto bíblico aprofunde-se em tais minúcias. É a de apresentar como o universo criado deveria ser administrado: através da convivência de seres que se completam e se amam. Ou seja, esse ser plural só poderia exercer o domínio através da comunidade, completando-se como homem e mulher.
Para onde aponta o domínio?
Se toda a criação de Deus é o mundo do ser humano, há a total desmitização da natureza. Não há astros divinos, terra divina, animais divinos. Todo o universo pode tornar-se o ambiente do ser humano, seu espaço, que ele pode adaptar às suas necessidades e administrar.
E como ele consegue isso? Através da cultura, enquanto processo social e objetivo de sujeição da natureza, e através dessa necessidade de expansão e domínio, pessoal e subjetivo, que é peculiar a todo homem e mulher livres.
O afastamento de Deus fez com que a humanidade perdesse sua capacidade de ser imagem de Deus viva e eficaz. Seu caráter inicial está distorcido e o mal perpassa todas suas ações. Assim, o ser humano lançou-se ao domínio de seus iguais, inclusive através do derramamento de sangue; suprimiu o equilíbrio e a mútua ajuda entre homem e mulher; mitificou a ciência e técnica; e lançou-se à destruição da própria natureza.
Cristo é “a verdadeira imagem do Deus invisível” (Cl 1.15 cf. 2Co 4.4) e a Ele cabe fazer, a nível escatológico, aquilo que à humanidade tornou-se impossível. “Foi-me dado todo o poder no céu e na terra, por isso, indo, fazei discípulos em todas as nações” (Mt 28.18).
vendredi 6 février 2009
Do Logos de Heráclito ao Logos joanino
Leitura para meus/minhas alun@s de Filosofia II. Favor ler também o artigo anterior postado no blog: A amizade como pretexto.
Logos, no grego 'palavra', foi entendido pelo filósofo grego Heráclito de Éfeso, como o princípio supremo de unificação, portador do ritmo, da justiça e da harmonia que regem o Universo. ["Bem dizia Heráclito: homens são deuses e deuses são homens, porque o Logos é um só" (Hipólito, Refutações, IX, 10,6)]. Assim, Heráclito diante da mobilidade de todas as coisas denominou fogo ao elemento primitivo, e viu este comandado por uma lei natural inteligente ou racional, o Logos. Considerou o Logos dotado de dois princípios internos contrários a operar, ditos por ele, antropomorficamente, guerra e paz (ou discórdia e concórdia). Estas duas forças contrárias transformavam o elemento primitivo, ora na direção da solidificação, ora de retorno ao estado móvel do fogo. Portanto, o Logos, concebido por Heráclito como uma lei natural ordenadora, a tudo comanda em forma dialética. E segundo Platão é o princípio de ordem, mediador entre o mundo sensível e o inteligível. Assim, para a filosofia grega, Logos era o princípio da inteligibilidade, a razão.
Mas, exatamente por ser razão e palavra, Logos mantém uma relação de complementação com sabedoria, e por isso é pensada por Heráclito como harmonia, o próprio nexo original entre Logos e physis. Todavia, para que, diante da ameaça do relativismo trazido pelas argumentações sofísticas, encontre-se melhor determinado o que se compreende por verdade, o pensamento de Sócrates e Platão vai formular explicitamente a questão: o que é? Esta questão busca definir isso que subjaz sempre idêntico a si mesmo, a substância ou essência, fundamento de +toda instabilidade acidental da existência aparente. O que em Heráclito se delimitava como o encontro da harmonia passa a ser, a partir do pensamento de Sócrates e Platão, uma procura: nasce, assim, a filosofia como um desejo de conhecimento. Aristóteles caracteriza expressamente esta transformação quando afirma em sua obra que "O que desde sempre, agora e para sempre, é constantemente procurado, porque sempre de novo a questão fracassa, é o problema: o que é o ser?". A filosofia constitui-se, a partir das concepções socrática, platônica, aristotélica, como o pensamento que investiga a questão do ser.
O conceito razão relaciona-se a três outros: essência, existência e essencialização. A essência não é apenas aquilo que uma coisa é, mas também aquilo que faz com que uma coisa possa ser. Nesse sentido, essência é potencialidade, o poder de ser e a fonte de existência: origem do ser. Mas também é o reino da cognição, do pensamento, impossível de penetrar. Pari passo à essência, o Logos correlaciona mente e realidade, tornando possível o conhecimento. Quando alguém compreende e fala sobre a realidade, faz juízos e define padrões, que são comuns aos outros seres humanos, se comunica. E quem possibilita a comunicação é o Logos. Assim, o Logos é a origem da razão e também do ser. Mas, origem do ser aqui não significa conhecimento a priori, é estar colocado à parte do reino da finitude e por isso a origem do ser só é conhecida por um ato de revelação.
A importância do logos
Dentre as inúmeras transformações que surgem com a pólis, a mais importante é a extraordinária preeminência da palavra sobre todos os outros instrumentos de poder.
A palavra deixa de ser o termo ritual e passa a ser a fonte para o debate, discussão e reflexão, sendo ela, ou melhor, o seu uso de forma mais persuasiva, que irá definir o orador vencedor dos embates dialéticos (dialética é compreendida como a arte real da discussão: as normas para uma discussão correta). Todas as questões de interesse geral passam a ser submetidas à arte da oratória e as decisões são as conclusões dos debates. A política se torna a arte do domínio da linguagem. Com a popularidade dos debates e das discussões, a polis se fundamenta na publicidade das manifestações sociais; se distinguem os interesses comuns dos privados, consolidam-se as práticas abertas e o domínio público, a base social da estrutura.
Porém, esse desenvolvimento traz uma profunda transformação, já que ao tornar comuns os elementos de uma cultura, levamos os mesmos à crítica e à controvérsia. Todos os elementos estão expostos a interpretações diversas e a debates apaixonados. Já não era possível se impor só por prestígio pessoal ou religioso... Devia haver o convencimento pela dialética.
A palavra constituiu-se no instrumento da vida política. Sua vertente escrita trouxe em si a possibilidade de uma completa divulgação do conhecimento. Neste momento, a escrita tornara-se pública, não mais estando presente apenas no palácio – como no período micênico. Neste contexto, o saber pode tornar-se igualmente público, deixando de estar restrito aos magistrados ou sacerdotes. Depois de divulgadas, as idéias deverão ser submetidas ao debate político e à aceitação popular.
A sabedoria e o logos
Com a consolidação da importância da palavra, o saber passa a ser um bem público. E a sabedoria, tão exaltada por filósofos como Platão, para o qual a sabedoria pertencia ao passado, ofereceu aos seus contemporâneos o amor à sabedoria, à filosofia. Assim, a sabedoria percorreu as veredas da linguagem, da palavra, do discurso, do logos, da dialética: este caminho tornou-se característico da cultura grega. Pode-se, em última instância, argumentar que a filosofia nasceu no momento em que se tentou recuperar algo perdido, a sabedoria, mesclada à dialética.
Não foi sem resistência que esse percurso foi seguido. A popularização do saber, antes inacessível, foi questionada. Havia uma articulação para que os mitos que chegassem à praça publica e fossem objeto de exame, mas não deixassem de ser um mistério. A sua reformulação produziu um salto no desenvolvimento humano, mantendo seus reflexos até hoje.
Na contemporaneidade latino-americana, partindo da dialética, Enrique Dussel propõe a dialética analógica da alteridade, a abertura da totalidade à alteridade, transcendendo o âmbito do logos. O logos permanece no mundo e não pode avançar mais além. O logos que transcende é análogos, mais além do logos, analogia que se articula na dialética da voz ouvida que leva a ouvir: ou seja, a ouvir a voz. Assim, o logos chega ao seu limite, e confia no que ouve do outro pela fé, pois sem a confiança no outro, não se pode escutar sua voz. Fé aqui significa ir mais além do horizonte da physis, ir mais além do horizonte da ontologia do mesmo, afirmando a ontologia da negatividade, isto é, já que o outro não se origina no idêntico, é diferente. Brota como ouvido, é âmbito ao qual a totalidade pode abrir-se, e ao abrir-se muda de estatuto, tornando-se ontologia negativa.
Em sua reflexão sobre a superação das totalidades ontológicas a partir da abertura à alteridade, Dussel afirma que tal superação se dá com a metafísica, entendida como além do fundamento. E se dá assim porque a metafísica não é somente ontológica, mas opera através da descoberta de um mais-além do mundo. E como em grego aná significa mais além, e logos significa palavra, análogos toma o sentido de palavra que irrompe no mundo desde um mais além do fundamento. O método ontológico-dialético chega até o fundamento do mundo desde um futuro, porém se detém diante do outro como um rosto de mistério e liberdade, de história distinta, mas não diferente. 1 Mas se o outro é distinto, não há diferença, nem retorno, embora haja história e crise. Por isso, para Dussel, se este logos irrompe enquanto interpelante indo mais além da compreensão, ele é análogo.
Essa interpretação de Dussel repousa na compreensão do Logos joanino, que repousa em Jesus, o Cristo, acima da tradição filosófica, quer de Heráclito, quer de Platão ou do neoplatonismo, e ainda da filosofia judaica expressa em Filón de Alexandria. Nesse sentido, se antes estávamos diante da personificação do Logos, ainda assim não há na tradição da filosofia grega ou judaica a idéia de encarnação do Logos. Esse Logos joanino, por isso, vai além de toda a tradição filosófica, embora João a utilize como ponte para falar à cultura de sua época.
Há ainda uma ponte com o pensamento judaico, principalmente no que se refere aos textos de Gênesis um e de Provérbios 8.22-31. O primeiro ao utilizar a expressão “en arqué” e o segundo ao personalizar a sabedoria. Nesse sentido, o Logos de João se apresenta como análogo. Análogo a Deus, porque é pessoa divina, e análogo aos seres humanos, porque é pessoa humana.
Análogo significa que o Logos vem de mais-além, isto é, que há um primeiro momento no qual surge uma palavra interpelante, mais além do mundo, que é o ponto de apoio do método dialético porque passa da ordem antiga à ordem nova. Embora, este Logos eterno se reflita através de nossos pensamentos e por isso não possa existir um ato do pensamento sem a secreta premissa de sua verdade incondicional [Romanos 12.2 e 1Coríntios 2.16].
Mas a verdade incondicional não está ao nosso alcance. Em nós humanos há sempre um elemento de aventura e risco em cada enunciado da verdade. Mas mesmo assim, podemos e devemos correr este risco, sabendo que este é o único modo que a verdade pode ser revelada a seres finitos e históricos.
Quando mantemos relação com o Logos eterno e deixamos de temer a ameaça do destino demoníaco, aceitamos então o lugar que cabe ao destino em nosso pensamento. Podemos reconhecer que desde o princípio esteve submetido ao destino e que sempre desejou livrar-se dele, mas nunca conseguiu.
Tarefa teológica da maior importância, na análise cristã do destino é saber relacionar Logos e kairós. O Logos deve alcançar o kairós. O Logos deve envolver e dominar os valores universais, a plenitude do tempo, a verdade e o destino da existência. A separação entre Logos e existência chegou ao fim. O Logos alcançou a existência, penetrou no tempo e no destino. E isso aconteceu não como algo extrínseco a ele próprio, mas porque é a expressão de seu próprio caráter intrínseco, sua liberdade.
É necessário, porém, entender que tanto a existência como o conhecimento humano estão submetidos ao destino e que o imutável e eterno reino da verdade só é acessível ao conhecimento liberto do destino: a revelação. Dessa maneira, ao contrário do que pensavam os gregos, todo o ser humano possui uma potencialidade própria, enquanto ser, para realizar seu destino. Quanto maior a potencialidade do ser – que cresce à medida que é envolvido e dominado pelo Logos – mais profundamente está implicado seu conhecimento no destino.
Nosso destino, que aqui pode ser entendido como missão, é servir ao Logos num novo kairós, que emerge das crises e desafios de nossos dias. Quanto mais profundamente entendermos nosso destino [no sentido de prokeimai, estar colocado, ser proposto] e o de nossa sociedade, tanto mais livres seremos. Então, nosso trabalho será pleno de força e verdade.
Nota
1. Enrique Dussel, “El Método de Pensar Latinoamericano: la Analéctica como Ruptura Teórica”, conferência proferida em novembro de 1972, in Introduccion a Una Filosofia de la Liberación latinoamericana, México D.F., Ed. Extemporâneos, 1977, pp. 117 a 138.
Logos, no grego 'palavra', foi entendido pelo filósofo grego Heráclito de Éfeso, como o princípio supremo de unificação, portador do ritmo, da justiça e da harmonia que regem o Universo. ["Bem dizia Heráclito: homens são deuses e deuses são homens, porque o Logos é um só" (Hipólito, Refutações, IX, 10,6)]. Assim, Heráclito diante da mobilidade de todas as coisas denominou fogo ao elemento primitivo, e viu este comandado por uma lei natural inteligente ou racional, o Logos. Considerou o Logos dotado de dois princípios internos contrários a operar, ditos por ele, antropomorficamente, guerra e paz (ou discórdia e concórdia). Estas duas forças contrárias transformavam o elemento primitivo, ora na direção da solidificação, ora de retorno ao estado móvel do fogo. Portanto, o Logos, concebido por Heráclito como uma lei natural ordenadora, a tudo comanda em forma dialética. E segundo Platão é o princípio de ordem, mediador entre o mundo sensível e o inteligível. Assim, para a filosofia grega, Logos era o princípio da inteligibilidade, a razão.
Mas, exatamente por ser razão e palavra, Logos mantém uma relação de complementação com sabedoria, e por isso é pensada por Heráclito como harmonia, o próprio nexo original entre Logos e physis. Todavia, para que, diante da ameaça do relativismo trazido pelas argumentações sofísticas, encontre-se melhor determinado o que se compreende por verdade, o pensamento de Sócrates e Platão vai formular explicitamente a questão: o que é? Esta questão busca definir isso que subjaz sempre idêntico a si mesmo, a substância ou essência, fundamento de +toda instabilidade acidental da existência aparente. O que em Heráclito se delimitava como o encontro da harmonia passa a ser, a partir do pensamento de Sócrates e Platão, uma procura: nasce, assim, a filosofia como um desejo de conhecimento. Aristóteles caracteriza expressamente esta transformação quando afirma em sua obra que "O que desde sempre, agora e para sempre, é constantemente procurado, porque sempre de novo a questão fracassa, é o problema: o que é o ser?". A filosofia constitui-se, a partir das concepções socrática, platônica, aristotélica, como o pensamento que investiga a questão do ser.
O conceito razão relaciona-se a três outros: essência, existência e essencialização. A essência não é apenas aquilo que uma coisa é, mas também aquilo que faz com que uma coisa possa ser. Nesse sentido, essência é potencialidade, o poder de ser e a fonte de existência: origem do ser. Mas também é o reino da cognição, do pensamento, impossível de penetrar. Pari passo à essência, o Logos correlaciona mente e realidade, tornando possível o conhecimento. Quando alguém compreende e fala sobre a realidade, faz juízos e define padrões, que são comuns aos outros seres humanos, se comunica. E quem possibilita a comunicação é o Logos. Assim, o Logos é a origem da razão e também do ser. Mas, origem do ser aqui não significa conhecimento a priori, é estar colocado à parte do reino da finitude e por isso a origem do ser só é conhecida por um ato de revelação.
A importância do logos
Dentre as inúmeras transformações que surgem com a pólis, a mais importante é a extraordinária preeminência da palavra sobre todos os outros instrumentos de poder.
A palavra deixa de ser o termo ritual e passa a ser a fonte para o debate, discussão e reflexão, sendo ela, ou melhor, o seu uso de forma mais persuasiva, que irá definir o orador vencedor dos embates dialéticos (dialética é compreendida como a arte real da discussão: as normas para uma discussão correta). Todas as questões de interesse geral passam a ser submetidas à arte da oratória e as decisões são as conclusões dos debates. A política se torna a arte do domínio da linguagem. Com a popularidade dos debates e das discussões, a polis se fundamenta na publicidade das manifestações sociais; se distinguem os interesses comuns dos privados, consolidam-se as práticas abertas e o domínio público, a base social da estrutura.
Porém, esse desenvolvimento traz uma profunda transformação, já que ao tornar comuns os elementos de uma cultura, levamos os mesmos à crítica e à controvérsia. Todos os elementos estão expostos a interpretações diversas e a debates apaixonados. Já não era possível se impor só por prestígio pessoal ou religioso... Devia haver o convencimento pela dialética.
A palavra constituiu-se no instrumento da vida política. Sua vertente escrita trouxe em si a possibilidade de uma completa divulgação do conhecimento. Neste momento, a escrita tornara-se pública, não mais estando presente apenas no palácio – como no período micênico. Neste contexto, o saber pode tornar-se igualmente público, deixando de estar restrito aos magistrados ou sacerdotes. Depois de divulgadas, as idéias deverão ser submetidas ao debate político e à aceitação popular.
A sabedoria e o logos
Com a consolidação da importância da palavra, o saber passa a ser um bem público. E a sabedoria, tão exaltada por filósofos como Platão, para o qual a sabedoria pertencia ao passado, ofereceu aos seus contemporâneos o amor à sabedoria, à filosofia. Assim, a sabedoria percorreu as veredas da linguagem, da palavra, do discurso, do logos, da dialética: este caminho tornou-se característico da cultura grega. Pode-se, em última instância, argumentar que a filosofia nasceu no momento em que se tentou recuperar algo perdido, a sabedoria, mesclada à dialética.
Não foi sem resistência que esse percurso foi seguido. A popularização do saber, antes inacessível, foi questionada. Havia uma articulação para que os mitos que chegassem à praça publica e fossem objeto de exame, mas não deixassem de ser um mistério. A sua reformulação produziu um salto no desenvolvimento humano, mantendo seus reflexos até hoje.
Na contemporaneidade latino-americana, partindo da dialética, Enrique Dussel propõe a dialética analógica da alteridade, a abertura da totalidade à alteridade, transcendendo o âmbito do logos. O logos permanece no mundo e não pode avançar mais além. O logos que transcende é análogos, mais além do logos, analogia que se articula na dialética da voz ouvida que leva a ouvir: ou seja, a ouvir a voz. Assim, o logos chega ao seu limite, e confia no que ouve do outro pela fé, pois sem a confiança no outro, não se pode escutar sua voz. Fé aqui significa ir mais além do horizonte da physis, ir mais além do horizonte da ontologia do mesmo, afirmando a ontologia da negatividade, isto é, já que o outro não se origina no idêntico, é diferente. Brota como ouvido, é âmbito ao qual a totalidade pode abrir-se, e ao abrir-se muda de estatuto, tornando-se ontologia negativa.
Em sua reflexão sobre a superação das totalidades ontológicas a partir da abertura à alteridade, Dussel afirma que tal superação se dá com a metafísica, entendida como além do fundamento. E se dá assim porque a metafísica não é somente ontológica, mas opera através da descoberta de um mais-além do mundo. E como em grego aná significa mais além, e logos significa palavra, análogos toma o sentido de palavra que irrompe no mundo desde um mais além do fundamento. O método ontológico-dialético chega até o fundamento do mundo desde um futuro, porém se detém diante do outro como um rosto de mistério e liberdade, de história distinta, mas não diferente. 1 Mas se o outro é distinto, não há diferença, nem retorno, embora haja história e crise. Por isso, para Dussel, se este logos irrompe enquanto interpelante indo mais além da compreensão, ele é análogo.
Essa interpretação de Dussel repousa na compreensão do Logos joanino, que repousa em Jesus, o Cristo, acima da tradição filosófica, quer de Heráclito, quer de Platão ou do neoplatonismo, e ainda da filosofia judaica expressa em Filón de Alexandria. Nesse sentido, se antes estávamos diante da personificação do Logos, ainda assim não há na tradição da filosofia grega ou judaica a idéia de encarnação do Logos. Esse Logos joanino, por isso, vai além de toda a tradição filosófica, embora João a utilize como ponte para falar à cultura de sua época.
Há ainda uma ponte com o pensamento judaico, principalmente no que se refere aos textos de Gênesis um e de Provérbios 8.22-31. O primeiro ao utilizar a expressão “en arqué” e o segundo ao personalizar a sabedoria. Nesse sentido, o Logos de João se apresenta como análogo. Análogo a Deus, porque é pessoa divina, e análogo aos seres humanos, porque é pessoa humana.
Análogo significa que o Logos vem de mais-além, isto é, que há um primeiro momento no qual surge uma palavra interpelante, mais além do mundo, que é o ponto de apoio do método dialético porque passa da ordem antiga à ordem nova. Embora, este Logos eterno se reflita através de nossos pensamentos e por isso não possa existir um ato do pensamento sem a secreta premissa de sua verdade incondicional [Romanos 12.2 e 1Coríntios 2.16].
Mas a verdade incondicional não está ao nosso alcance. Em nós humanos há sempre um elemento de aventura e risco em cada enunciado da verdade. Mas mesmo assim, podemos e devemos correr este risco, sabendo que este é o único modo que a verdade pode ser revelada a seres finitos e históricos.
Quando mantemos relação com o Logos eterno e deixamos de temer a ameaça do destino demoníaco, aceitamos então o lugar que cabe ao destino em nosso pensamento. Podemos reconhecer que desde o princípio esteve submetido ao destino e que sempre desejou livrar-se dele, mas nunca conseguiu.
Tarefa teológica da maior importância, na análise cristã do destino é saber relacionar Logos e kairós. O Logos deve alcançar o kairós. O Logos deve envolver e dominar os valores universais, a plenitude do tempo, a verdade e o destino da existência. A separação entre Logos e existência chegou ao fim. O Logos alcançou a existência, penetrou no tempo e no destino. E isso aconteceu não como algo extrínseco a ele próprio, mas porque é a expressão de seu próprio caráter intrínseco, sua liberdade.
É necessário, porém, entender que tanto a existência como o conhecimento humano estão submetidos ao destino e que o imutável e eterno reino da verdade só é acessível ao conhecimento liberto do destino: a revelação. Dessa maneira, ao contrário do que pensavam os gregos, todo o ser humano possui uma potencialidade própria, enquanto ser, para realizar seu destino. Quanto maior a potencialidade do ser – que cresce à medida que é envolvido e dominado pelo Logos – mais profundamente está implicado seu conhecimento no destino.
Nosso destino, que aqui pode ser entendido como missão, é servir ao Logos num novo kairós, que emerge das crises e desafios de nossos dias. Quanto mais profundamente entendermos nosso destino [no sentido de prokeimai, estar colocado, ser proposto] e o de nossa sociedade, tanto mais livres seremos. Então, nosso trabalho será pleno de força e verdade.
Nota
1. Enrique Dussel, “El Método de Pensar Latinoamericano: la Analéctica como Ruptura Teórica”, conferência proferida em novembro de 1972, in Introduccion a Una Filosofia de la Liberación latinoamericana, México D.F., Ed. Extemporâneos, 1977, pp. 117 a 138.
A amizade como pretexto
Leitura para meus/ minhas alun@s de Filosofia II
O QUE É FILOSOFIA?
“Dizem-me: esse gênero de amor não é viável. Mas como avaliar a viabilidade? Por que o que é viável é um Bem? Por que durar é melhor que inflamar?1”
Mais curioso que a pergunta -- o que é a filosofia? -- é a relação que os filósofos fazem da juventude com a ingenuidade. Afirmam que na juventude filosofavam sem saber o que faziam, que não possuíam a fúria da velhice que tenta nominar os conceitos. Agora velhos, quando se perguntam o que é a filosofia, apenas colocam de forma clara, simbólica, o que sempre fizeram. E, assim, a resposta é: filosofia é a arte de formar, de inventar, de fabricar conceitos.
A origem grega da palavra filosofia pode ser traduzida como amigo da sabedoria. Mas seria mesmo uma amizade?
O filósofo espanhol Francisco Ortega é um dos pensadores contemporâneos que ressalta a importância da amizade como objeto de reflexão filosófica.2 Incluindo-se nas correntes de pensamento que reivindicam para a filosofia a descentralização do sujeito e a tarefa de criar uma nova política da imaginação. Ortega projeta a amizade no contexto de uma nova ordem subjetiva, além da metáfora familiar aonde estes temas são reconhecidos e despolitizados. Politizar a amizade, para Ortega, é uma tarefa a ser assumida pela filosofia, no sentido proposto por Foucault, com "o deslocamento e a transformação das molduras do pensamento, a modificação dos valores estabelecidos e todo o trabalho que se faz para pensar de uma maneira diferente, para fazer outra coisa, para tornar-se outro do que se é".
Analisando o conceito de amigo, percebemos que a amizade possibilita uma relação íntima do ser humano com os conceitos, e que a condição para o exercício do pensamento é que tanto humano quanto conceito sejam vitais um para o outro.
Quando uma relação se torna condição para a existência de duas pessoas chamamos estas não de amigas mas de amantes. Eis a questão: amigos ou amantes?
Ora, o amor é esta tendência de um se unir com o outro, possuí-lo de modo contínuo, ou formar um todo com ele ("amor a Deus"). Em Platão é aspiração ao belo e ao bom, ao absoluto. Platão, em O Banquete, afirma que o amor é a principal motivação da filosofia, descobrindo assim o lugar central deste conceito. Mas convém distinguir o amor egoísta, possessivo, que persegue o outro como um objeto a ser devorado ("o amante ama o amado como o lobo ama o cordeiro", escreve Platão) e o amor que liberta do sofrimento e do desejo e conduz a alma ao banquete divino. O amor verdadeiro só pode ser satisfeito pela contemplação, para além do belo, do verdadeiro e do bem.
Uma amizade pode ser o final de um grande amor, mas nunca o início. As amizades transformadas em amor, sempre foram amor. E partindo dessa premissa poderíamos dizer o que é a filosofia.
Da reunião dessas duas idéias, amigo e amante, podemos inferir uma multiplicidade de conceitos. Podemos dizer que o filósofo é ele próprio conceito em potência e, a partir daí, que a filosofia deixa de ser apenas arte de fabricar conceitos, passando a ser a disciplina que consiste em criar conceitos. Mas quando falamos em criar conceitos estamos falando em definir idéias. Assim, definir um conceito é manifestar a sua compreensão. Deste modo, definir é delimitar as fronteiras. Geralmente a definição faz-se pelo gênero próximo e pela diferença específica.
Os conceitos não nos esperam feitos, como corpos celestes. Não há céu para os conceitos. Eles devem ser criados, e não seriam nada sem a assinatura daqueles que os criam. Nietzsche determinou a tarefa da filosofia quando escreveu: “os filósofos não devem mais se contentar em aceitar os conceitos que lhes são dados, para somente limpá-los e fazê-los reluzir, mas é necessário que eles comecem por fabricá-los, criá-los, afirmá-los, persuadindo os homens a utilizá-los”.
Agora, já podemos tentar abordar, partindo do outro extremo, o que a filosofia não é. Não é contemplação, “pois as contemplações são as coisas elas mesmas enquanto vistas na criação de seus próprios conceitos”. Não é reflexão, “posto que ninguém precisa de filosofia para refletir sobre o que quer que seja, isto é, artistas, por exemplo podem pensar sua arte sem que sejam filósofos, já que a reflexão pertence à própria criação individual, respectiva”. Não trabalha opiniões, pois nunca visa o “consenso”, mas sim o “conceito”. O primeiro princípio da filosofia deve ser que os universais não explicam nada, eles próprios devem ser explicados.
Conhecer-se a si mesmo, fazer como se nada fosse evidente, espantar-se: estas determinações e outras compõem a filosofia.
Mas não há garantias na manutenção dos conceitos criados, que podem ser revistos, fazendo com que a “exclusividade da criação de conceitos assegure à filosofia uma função, mas não lhe dê nenhuma proeminência, nenhum privilégio, pois há outras maneiras de pensar e criar, outros modos de ideação”.
Utilizando estes argumentos e retomando às denominações propostas do amigo, amante, pretendente e rival, a filosofia segue seu caminho de provação. Nesta via caminha despojando-se dos limites impostos pela obrigação dos benefícios sociais, que não são sua finalidade, mas um de seus usos finais.
A filosofia, encarnada na pele do filósofo, faz com que ele se delineie como um pretendente ao conhecimento, que no jogo da sedução se fantasie de amigo para obter sua conquista e assim tornar-se amante. Em sua fase apaixonada, intensa, criativa, o filósofo acaba por tornar-se um rival de seus próprios conceitos através da insaciabilidade por recriá-los. Por fim, vem a maturidade e as criações da velhice, frutos de uma profunda amizade.3
Notas
1. Roland Barthes, Fragmentos de um discurso amoroso, Rio de Janeiro, Francisco Alves, 1981, p. 17.
2. Francisco Ortega, Para uma política da amizade, Arendt, Derrida, Foucault, Rio de Janeiro, Relume-Dumará, 2000.
3. Gilles Deleuze, F. Guattari, O que é a filosofia?, Rio de Janeiro, Ed. 34, 1992. pp.9-21.
O QUE É FILOSOFIA?
“Dizem-me: esse gênero de amor não é viável. Mas como avaliar a viabilidade? Por que o que é viável é um Bem? Por que durar é melhor que inflamar?1”
Mais curioso que a pergunta -- o que é a filosofia? -- é a relação que os filósofos fazem da juventude com a ingenuidade. Afirmam que na juventude filosofavam sem saber o que faziam, que não possuíam a fúria da velhice que tenta nominar os conceitos. Agora velhos, quando se perguntam o que é a filosofia, apenas colocam de forma clara, simbólica, o que sempre fizeram. E, assim, a resposta é: filosofia é a arte de formar, de inventar, de fabricar conceitos.
A origem grega da palavra filosofia pode ser traduzida como amigo da sabedoria. Mas seria mesmo uma amizade?
O filósofo espanhol Francisco Ortega é um dos pensadores contemporâneos que ressalta a importância da amizade como objeto de reflexão filosófica.2 Incluindo-se nas correntes de pensamento que reivindicam para a filosofia a descentralização do sujeito e a tarefa de criar uma nova política da imaginação. Ortega projeta a amizade no contexto de uma nova ordem subjetiva, além da metáfora familiar aonde estes temas são reconhecidos e despolitizados. Politizar a amizade, para Ortega, é uma tarefa a ser assumida pela filosofia, no sentido proposto por Foucault, com "o deslocamento e a transformação das molduras do pensamento, a modificação dos valores estabelecidos e todo o trabalho que se faz para pensar de uma maneira diferente, para fazer outra coisa, para tornar-se outro do que se é".
Analisando o conceito de amigo, percebemos que a amizade possibilita uma relação íntima do ser humano com os conceitos, e que a condição para o exercício do pensamento é que tanto humano quanto conceito sejam vitais um para o outro.
Quando uma relação se torna condição para a existência de duas pessoas chamamos estas não de amigas mas de amantes. Eis a questão: amigos ou amantes?
Ora, o amor é esta tendência de um se unir com o outro, possuí-lo de modo contínuo, ou formar um todo com ele ("amor a Deus"). Em Platão é aspiração ao belo e ao bom, ao absoluto. Platão, em O Banquete, afirma que o amor é a principal motivação da filosofia, descobrindo assim o lugar central deste conceito. Mas convém distinguir o amor egoísta, possessivo, que persegue o outro como um objeto a ser devorado ("o amante ama o amado como o lobo ama o cordeiro", escreve Platão) e o amor que liberta do sofrimento e do desejo e conduz a alma ao banquete divino. O amor verdadeiro só pode ser satisfeito pela contemplação, para além do belo, do verdadeiro e do bem.
Uma amizade pode ser o final de um grande amor, mas nunca o início. As amizades transformadas em amor, sempre foram amor. E partindo dessa premissa poderíamos dizer o que é a filosofia.
Da reunião dessas duas idéias, amigo e amante, podemos inferir uma multiplicidade de conceitos. Podemos dizer que o filósofo é ele próprio conceito em potência e, a partir daí, que a filosofia deixa de ser apenas arte de fabricar conceitos, passando a ser a disciplina que consiste em criar conceitos. Mas quando falamos em criar conceitos estamos falando em definir idéias. Assim, definir um conceito é manifestar a sua compreensão. Deste modo, definir é delimitar as fronteiras. Geralmente a definição faz-se pelo gênero próximo e pela diferença específica.
Os conceitos não nos esperam feitos, como corpos celestes. Não há céu para os conceitos. Eles devem ser criados, e não seriam nada sem a assinatura daqueles que os criam. Nietzsche determinou a tarefa da filosofia quando escreveu: “os filósofos não devem mais se contentar em aceitar os conceitos que lhes são dados, para somente limpá-los e fazê-los reluzir, mas é necessário que eles comecem por fabricá-los, criá-los, afirmá-los, persuadindo os homens a utilizá-los”.
Agora, já podemos tentar abordar, partindo do outro extremo, o que a filosofia não é. Não é contemplação, “pois as contemplações são as coisas elas mesmas enquanto vistas na criação de seus próprios conceitos”. Não é reflexão, “posto que ninguém precisa de filosofia para refletir sobre o que quer que seja, isto é, artistas, por exemplo podem pensar sua arte sem que sejam filósofos, já que a reflexão pertence à própria criação individual, respectiva”. Não trabalha opiniões, pois nunca visa o “consenso”, mas sim o “conceito”. O primeiro princípio da filosofia deve ser que os universais não explicam nada, eles próprios devem ser explicados.
Conhecer-se a si mesmo, fazer como se nada fosse evidente, espantar-se: estas determinações e outras compõem a filosofia.
Mas não há garantias na manutenção dos conceitos criados, que podem ser revistos, fazendo com que a “exclusividade da criação de conceitos assegure à filosofia uma função, mas não lhe dê nenhuma proeminência, nenhum privilégio, pois há outras maneiras de pensar e criar, outros modos de ideação”.
Utilizando estes argumentos e retomando às denominações propostas do amigo, amante, pretendente e rival, a filosofia segue seu caminho de provação. Nesta via caminha despojando-se dos limites impostos pela obrigação dos benefícios sociais, que não são sua finalidade, mas um de seus usos finais.
A filosofia, encarnada na pele do filósofo, faz com que ele se delineie como um pretendente ao conhecimento, que no jogo da sedução se fantasie de amigo para obter sua conquista e assim tornar-se amante. Em sua fase apaixonada, intensa, criativa, o filósofo acaba por tornar-se um rival de seus próprios conceitos através da insaciabilidade por recriá-los. Por fim, vem a maturidade e as criações da velhice, frutos de uma profunda amizade.3
Notas
1. Roland Barthes, Fragmentos de um discurso amoroso, Rio de Janeiro, Francisco Alves, 1981, p. 17.
2. Francisco Ortega, Para uma política da amizade, Arendt, Derrida, Foucault, Rio de Janeiro, Relume-Dumará, 2000.
3. Gilles Deleuze, F. Guattari, O que é a filosofia?, Rio de Janeiro, Ed. 34, 1992. pp.9-21.
mardi 3 février 2009
Uma introdução ao estudo dos anjos
Teologia Sistemática II
Caros alunos e alunas, eis o texto que prometi a vocês, que servirá como uma introdução à antropologia bíblico-teológica. O texto está dividido em três partes: uma apologética, sobre a doutrina cristã dos anjos; a segunda apresenta uma breve história da angelologia, entendida como mitologia surgida no Oriente Médio, onde utilizamos um texto de Gilberto Schoereder; e a terceira parte, dentro da tradição judaico-cristã, fazemos uma leitura ampla sobre anjos bons e demônios. Um abraço, Jorge Pinheiro.
Primeira leitura
Um serviço secreto especial
A partir dos anos 1990, o Brasil viveu uma moda mística, a febre dos anjos. Apesar de seu aspecto bombástico, essa moda teve um lado positivo, colocar em pauta a discussão sobre a existência ou não dos anjos. E é sobre isso que desejamos falar.
Muitas pessoas, em nome da racionalidade, lançam fora a água e a criança. Negam não somente o misticismo eclético, mas também a realidade do mundo espiritual. Criticam um erro, a superstição, e despencam em outro, o agnosticismo racionalista.
O maior e mais antigo tratado sobre anjos são as Escrituras judaicas e neotestamentárias, apócrifas e canônicas. No Antigo Testamento canônico, cujos escritos vão do segundo milênio antes de Cristo até a era dos macabeus, temos 109 referências a anjos. No português transliteramos do grego a palavra ἄγγελος (angelós), que era utilizada num sentido amplo, indo de embaixador de um rei ou nação até mensageiro de deuses e, no caso neotestamentário, de Deus. O correlato de ἄγγελος (angelós) na tradição veterotestamentária é לאך (malaque). No Novo Testamento, cujos escritos vão dos anos 49 a 100 depois de Cristo, temos 186 referências a anjos.
É interessante que nas Escrituras os anjos não tem nada a ver com a angelologia proposta pela misticismo eclético. Não são entidades etéreas, que não tem memória e nunca julgam. Não são parecidos com bebês com asas, com um sorriso de criança.
Embora o assunto seja extenso, vejamos três aspectos da doutrina cristã sobre anjos, que responde à pergunta central sobre estes seres. Por que existem os anjos?
1. Os anjos são seres espirituais.
2. Têm atividades definidas pelo próprio Deus.
3. Protegem os filhos de Deus.
Em relação ao primeiro item, é interessante ver que as Escrituras nos apresentam os anjos como seres espirituais, geralmente invisíveis. “Então, o que são os anjos? Todos são espíritos que servem a Deus e são mandados para ajudar os que vão receber a salvação”. Hebreus 1.14.
Os anjos têm personalidade e inteligência. “Ele fez isso para resolver este caso. O senhor é sábio como um anjo de Deus e sabe tudo o que acontece”. 2 Samuel 14.20.
Têm também direito de escolha e sentimentos, e isso fica claro quando se refere a Satanás, um anjo rebelado. “Você ficou ocupado, comprando e vendendo, e isso o levou à violência e ao pecado. Por isso, anjo protetor, eu o humilhei e expulsei do monte de Deus, do meio das pedras brilhantes. Você ficou orgulhoso por causa da sua beleza, e a sua fama o fez perder o juízo”. Ezequiel 28.16-17.
E o próprio Jesus fala da alegria dos anjos. “Pois digo que assim também os anjos de Deus se alegrarão por causa de uma pessoa de má fama que se arrepende”. Lucas 15.10.
A primeira conclusão é de que são seres espirituais, a serviço de Deus, para ajudar aqueles que serão salvos. Geralmente aparecem como adultos, têm capacidades especiais, memória, uma inteligência aguçada e sentimentos. De certa forma, não são muito diferentes de nós.
Esses seres ministradores tem atividades específicas. Adoram e servem a Deus. “Louvem ao Deus eterno todos os anjos do céu, que o adoram e fazem a sua vontade”. Salmo 103.21.
Participarão do juízo divino, conforme explica o apóstolo Paulo: “Porque Deus fará o que é justo. Ele trará sofrimento sobre aqueles que fazem vocês sofrerem e dará descanso a vocês e também a nós que sofremos. Ele fará isso quando o Senhor Jesus vier do céu e aparecer junto com seus anjos poderosos”. 2Tessalonicenses 1.6-8.
Eles trazem importantes notícias, instruem e guiam os filhos de Deus. Segundo o escritor da carta aos Hebreus, os mandamentos foram entregues a Moisés por anjos. “Por isso devemos prestar mais atenção nas verdades que temos ouvido, para não nos desviarmos delas. Ficou provado que a mensagem que foi dada pelos anjos é verdadeira, e aqueles que não a seguiram nem lhe obedeceram receberam o castigo que mereceram”. Hebreus 2.2.
Ao contrário do que a vulgarização sobre angelologia prega, eles não estão debaixo da nossa vontade. Mas agem de acordo com a justiça de Deus nos julgamentos divinos. Participaram dos juízos de Sodoma e Gomorra, do Egito opressor, da destruição do exército de faraó na travessia do Mar Vermelho e em muitos outros eventos. E estarão com Cristo por ocasião do grande julgamento final.
E por fim, protegem e cuidam dos filhos de Deus. “O anjo do Deus Eterno fica em volta daqueles que O temem e os livra do perigo”. Salmo 34.7.
Dessa maneira, uma de suas principais tarefas é acompanhar os filhos de Deus, em todos os momentos de suas vidas, mas especialmente naqueles de dificuldades. Não damos ordens aos anjos, já que eles são ministros de Deus, agentes secretos do Criador para proteção de seus filhos.
A angelologia mística propõe um relacionamento com os anjos através de práticas esotéricas, via astrologia, numerologia e ancoragem (magia branca). São utilizadas dezenas de invocações, velas, incensos e talismãs. Estamos, de fato, diante de uma cosmovisão gnóstica. Conforme, explica Scott Horrell, esta é “uma angelologia sem Deus definido, sem estrutura moral e sem explicação sobre o porque da própria existência dos anjos".
Aqueles que se aproximam de Deus devem se lembrar do que diz Paulo, o apóstolo: “pois há um só Deus e um só mediador entre Deus e os homens, um homem, Cristo Jesus, que se deu em resgate por todos”. 1Timóteo 2.5.
Segunda leitura
As tradições do Médio Oriente
Anjos fazem parte de nossa tradição cristã. Afinal, não podemos esquecer que, conforme nos diz Lucas, havia, naquela mesma comarca, pastores que estavam no campo e guardavam durante as vigílias da noite o seu rebanho. E eis que um anjo do Senhor veio sobre eles, e a glória do Senhor os cercou de esplendor, e tiveram grande temor. E o anjo lhes disse: Não temais, porque eis aqui vos trago novas de grande alegria, que será para todo o povo, pois, na cidade de Davi, vos nasceu hoje o Salvador, que é Cristo, o Senhor. E isto vos será por sinal: achareis o menino envolto em panos e deitado numa manjedoura. E, no mesmo instante, apareceu com o anjo uma multidão dos exércitos celestiais, louvando a Deus e dizendo: Glória a Deus nas alturas, paz na terra, boa vontade para com os homens!
Assim, anjos anunciaram o seu nascimento e a presença deles foi permanente no ministério de Jesus. E, segundo a promessa, na parusia, os anjos estarão com ele. Mas, agora, queremos ver o que a história das religiões fala sobre eles.
Ferreira apresenta na Antologia Sistemática duas visões dos seres angelicais que considero importantes, a listagem de Strong, que podemos chamar conservadora, e a de Brunner, para quem "a autoridade última não é o que a Escritura diz, mas a sua relação com o centro da fé da fé cristã, como um todo, isto é, a vontade de Deus que foi-nos revelada em Jesus Cristo". Ou seja, uma visão que muitos chamariam de liberal. Essas duas visões merecem um artigo futuro.
Já Schoereder, ao analisar a história da angelologia, entendida como mitologia, diz: "acredita-se que a angelologia tenha surgido no Oriente Médio, provavelmente na Suméria. É dessa cultura imagens mostrando seres alados. Os sumérios possuíam uma religião politeísta, repleta de deuses e espíritos, alguns dos quais foram chamados de mensageiros dos deuses, e que se deslocavam entre os deuses e os humanos. Diz-se que os sumérios acreditavam que cada pessoa tinha uma espécie de sombra, possíveis anjos de guarda".
Assim, anjos anunciaram o seu nascimento e a presença deles foi permanente no ministério de Jesus. E, segundo a promessa, na parusia, os anjos estarão com ele. Mas, agora, queremos ver o que a história das religiões fala sobre eles.
Ferreira apresenta na Antologia Sistemática duas visões dos seres angelicais que considero importantes, a listagem de Strong, que podemos chamar conservadora, e a de Brunner, para quem "a autoridade última não é o que a Escritura diz, mas a sua relação com o centro da fé da fé cristã, como um todo, isto é, a vontade de Deus que foi-nos revelada em Jesus Cristo". Ou seja, uma visão que muitos chamariam de liberal. Essas duas visões merecem um artigo futuro.
Já Schoereder, ao analisar a história da angelologia, entendida como mitologia, diz: "acredita-se que a angelologia tenha surgido no Oriente Médio, provavelmente na Suméria. É dessa cultura imagens mostrando seres alados. Os sumérios possuíam uma religião politeísta, repleta de deuses e espíritos, alguns dos quais foram chamados de mensageiros dos deuses, e que se deslocavam entre os deuses e os humanos. Diz-se que os sumérios acreditavam que cada pessoa tinha uma espécie de sombra, possíveis anjos de guarda".
"Quando os povos semíticos conquistaram a Suméria, cerca de dois mil anos antes de Cristo, absorveram conceitos a respeito dos anjos. Mais tarde, a angelologia suméria chegou aos egípcios".
"Antecedentes dos anjos também estavam presentes no Egito, na representação dos deuses. Hórus, por exemplo, era representado como um falcão; Tot às vezes era representado como um homem com cabeça de íbis. Ísis e Maat também eram representados com asas. Os arqueólogos dizem que nos textos egípcios mais antigos é possível identificar cerca de 1.200 deidades, muitas delas próximas da idéia que se faz dos anjos. Além disso, conseguiram identificar um culto dedicado a evocar a ajuda de Hunmanit, grupos de entidades ligadas ao sol e representadas como raios de sol, muito semelhante à representação cristã do coro angelical dos serafins. Eles teriam a responsabilidade de cuidar tanto do sol quanto da humanidade, e alguns estudiosos entendem que é possível ver essas entidades como versões antigas dos anjos da guarda.
"É com o zoroastrismo que se apresenta mais claramente a natureza dualista da religião, com o Bem e o Mal definidos nas figuras de Ormuzd e Ahriman. A religião foi desenvolvida por Zoroastro. A idéia básica é que os dois deuses estariam em constante combate, comandando seus exércitos. Alguns historiadores acreditam que o zoroastrismo possa ter influenciado a cultura dos hebreus, já que Abraão viveu em Ur, na Mesopotâmia, entre dois mil e mil e oitocentos anos antes de Cristo. No entanto, muitos entendem que Zaratustra surgiu depois, por volta de 650 a.C., e que sua influência teria outra origem. Ocorrera quando Ciro (560-530 a.C.) construiu o império que se tornaria um dos maiores da história. Quando conquistou a Babilônia, deu liberdade aos judeus que estavam no cativeiro, que na diáspora teriam acolhido conceitos persas, entre eles o da existência dos anjos".
Dessa forma, para Schoereder, o judaísmo "teria unido conceitos do zoroastrismo com alguns próprios dos primórdios da religião, especialmente no que diz respeito à existência de inúmeros espíritos, como os do vento e do fogo, que pesquisadores acreditam ter sido a base para o surgimento dos querubins e serafins. Posteriormente, os anjos se tornaram cada vez mais os mensageiros de Deus".
A expressão beni Elohim, em Gênesis 6.2, segundo Bietenhard, está presente num documento de Cunram (1QH frag. 2.3), e exegetas judeus e alguns cristãos traduzem a expressão como filhos de Deus / anjos, que acasalaram-se com humanas.
Particularmente discordo dessa compreensão e como Schoereder afirma, "a interpretação menos mitológica, é que os homens de grande valentia ou de grande maldade – que em na maioria das traduções modernas aparecem como gigantes -- surgiram do acasalamento dos filhos de Deus, isto é, dos descendentes de Sete, que adoravam o Eterno, com as filhas dos homens, isto é, com as descendentes de Caim, que eram idólatras. As descendentes de Caim deviam ser bonitas para os padrões da época, assim, os filhos de Deus deixaram de lado seus compromissos com Deus. Desses casamentos nasceram os heróis da antiguidade. A partir daí, Deus viu que o caminho humano tinha se degenerado, e respondeu, então, com o extermínio da espécie".
Outra questão presente no estudo dos anjos é se eles têm liberdade de escolha, se são seres moralmente livres. O Novo Testamento fala que serão condenados ao lago de fogo e enxofre, e documentos de Cunram (1QH 10.34-35; IQM 14.15), conforme Bietenhard, afirmam que Deus julgou os anjos. A questão, então é, podem ser julgados se não são seres morais?
Entende-se que o fato de existirem anjos caídos (2Pe 2.4; Jd 6) seria prova de que existe o livre-arbítrio entre eles. E a história desses estaria ligada à tentativa dos anjos, como Lúcifer, em trazerem para a humanidade um conhecimento que nos fora negado a princípio.
Uma terceira leitura
Os bons e os demônios
A época da criação dos anjos não é indicada com precisão em parte alguma, mas é provável que tenha se dado juntamente com a criação dos céus (Gn 1.1 ). Pode ser que tenham sido criados por Deus imediatamente após a criação dos céus e antes da criação da terra, pois de acordo com Jó 38.4-7, rejubilavam todos os filhos de Deus quando Ele lançava os fundamentos da terra. Que os anjos não existem desde a eternidade é mostrado pelos versículos que falam de sua criação (Ne 9.6, Sl 148.2,5; Cl 1.16). Embora não seja citado número definido nas Escrituras, acredita-se que a quantidade de anjos é grande (Dn 7.10; Mt 26.53; Hb 12.22).
Os anjos são diferentes dos humanos, eles não estão limitados às condições naturais e físicas. Aparecem e desaparecem e movimentam-se com uma rapidez imperceptível sem usar meios naturais. Apesar de serem espíritos, têm o poder de assumir a forma de corpos humanos a fim de tornar visível sua presença aos sentidos do homem (Gn 19.13).
São incorpóreos conforme Ef 6.12, onde Paulo diz que "a nossa luta não é contra a carne nem sangue, e sim contra os principados e potestades, contra os dominadores deste mundo tenebroso, contra as forças espirituais do mal, nas regiões celestes". Outras referências. Sl 104.4; Hb 1.7,14; At 19.12; Lc 7.21; 8.2; 11.26; Mt 8.16; 12.45. Não têm carne nem ossos e são invisíveis (Cl 1.16 ).
Várias passagens das Escrituras indicam que há um número grande de anjos (Dn 7.10; Mt 26.53; Sl 68.17; Lc 2.13; Hb 12.22), e são mencionados como exércitos do céus ou de Deus. No Getsêmani, Jesus disse a um discípulo que queria defendê-lo dos que vieram prendê-lo: "Acaso pensas que não posso rogar ao meu pai, e ele me mandaria neste momento mais de doze legiões de anjos"? (Mt 26.53).
Aos anjos são atribuídas características pessoais. São inteligentes, dotados de vontade e atividade. O fato de que são seres inteligentes parece inferir-se do fato de que são espíritos (2Sm 14.20; Mt 24.36, Ef 3.10; 1 Pe 1.12; 2 Pe 2.11). São superiores aos humanos em conhecimento (Mt 24.36) e por ter natureza estão sob obrigação moral; são recompensados pela obediência e punidos pela desobediência.
As Escrituras falam dos anjos que permanecerem leais como "santos anjos" (Mt 25.31; Mc 8.38; Lc 9.26; At 10.22; Ap 14.10) e retrata os que caíram como mentirosos e pecadores (Jo 8.44; 1 Jo 3.8-10).
A imortalidade dos anjos está ligada ao sentido de que os anjos bons não estão sujeitos à morte (Lc 20.35-36), além de serem dotados de poder formando o exército de Deus, uma hoste de heróis poderosos, sempre prontos para fazer o que o Senhor mandar (Sl 103.20; Cl 1.16; Ef. 1.21; 3.10; Hb 1.14), enquanto que os anjos maus formam o exército de Satanás empenhado em destruir a obra do Senhor (Lc 11.21; 2Ts 2.9; 1 Pe 5.8).
Ilustrações do poder de um anjo são encontradas na libertação dos apóstolos da prisão (At 5.19; 12.7) e no rolar da pedra de mais de quatro toneladas que fechou o túmulo de Cristo (Mt 28.2).
Pressupõe-se que todos os anjos tiveram uma boa condição original (Jo 8.44; 2Pe 2.4; Jd 6). e receberam graça suficiente para habilitá-los a manter sua posição de perseverança, pela qual foram confirmados em sua condição e agora são incapazes de pecar. São chamados também de "santos anjos ou anjos de luz" (2Co 11.14). Sempre contemplam a face Deus (Lc 9.26) e tem vida imortal (Lc 20.36 ). Sua atividade mais elevada é a adoração a Deus (Ne 9.6; Fp 2.9-11; Hb 1.6; Jó 38.7; Is 6.3; Sl 103.20; 148.2 Ap 5.11).
São exércitos de seres alados (Dn 9.21; Ap 14.6) para nos favorecer. Desde a entrada do pecado no mundo, eles são enviados para dar assistência aos herdeiros da salvação (Hb 1.14). Eles se regozijam com a conversão de um pecador (Lc 15.10), exercem vigilância protetora sobre os crentes (Sl 34.7; 91.11 ), protegem os pequeninos (Mt 18.10), estão presentes na igreja (1Tm 5.21), recebem aprendizagem das multiformes riquezas da graça de Deus (Ef 3.10; 1 Pe 1.12) e encaminham os crentes ao seio de Abraão (Lc 16.22,23).
Ao lado do nome geral anjo, as Escrituras empregam nomes específicos para indicar classes de anjos. Temos assim os querubins, que são responsáveis pela guarda da entrada do paraíso (Gn 3.24), observam o propiciatório (Ex 25.18,20; Sl 80.1; 99.1; Is 37.16; Hb 9.5) e constituem a carruagem de que Deus se serve para descer à terra (2Sm 22.11; Sl 18.10). Como demonstração do seu poder de majestade (Ez 1, Ap 4) são representados simbolicamente como seres vivos em várias formas. Mais do que outras criaturas, eles foram destinados a revelar o poder, a majestade e a glória de Deus, e a defender a santidade de Deus no jardim do Éden, no tabernáculo, no templo e na descida de Deus à terra.
E os serafins, mencionados somente em Is 6.2,6, constituem uma classe de anjos muito próxima dos querubins. São representados simbolicamente em forma humana com seis asas cobrindo o rosto, os pés e duas prontas para execução das ordens do Senhor. Permanecem servidores em torno do trono do Deus poderoso, cantam louvores a Ele e são considerados os nobres entre os anjos.
E por fim os arcanjos, termo que só ocorre duas vezes nas Escrituras (1Ts 4.16; Jd 9), mas há outras referências para ao menos um arcanjo, Miguel. Ele é o único a ser chamado de arcanjo e aparece comandando seus próprios anjos (Ap 12.7) e como príncipe do povo de Israel (Dn 10.13,21; 12.1). A maneira pela qual Gabriel é mencionado também indica que ele é de uma classe muito elevada. Ele está diante da presença de Deus (Lc 1.19) e a ele são confiadas as mensagens de mais elevada importância com relações ao reino de Deus (Dn 8.16; 9.21).
Principados, potestades, tronos e domínios não são classes de anjos, mas posições de autoridades no mundo angélico (Ef 3.10; Cl 2.10) -- tronos (Cl 1.16), domínios (Ef 1.21; Cl 1.16) e poderes (Ef 1.21, 1Pe 3.22). Estes nomes não indicam espécies de anjos, mas diferenças de dignidade entre eles. Embora em Ef 1.21 a referência pareça incluir tanto anjos bons quanto os maus, nas outras passagens essa terminologia se refere aos anjos maus (Rm 8.38; Ef 6.12; Cl 2.15).
Lúcifer (em hebraico, heilel ben-shachar, הילל בן שחר; em grego na Septuaginta, heosphoros, significa a estrela da manhã (a estrela matutina), a estrela d'Alva, o planeta Vênus, mas também foi o nome dado ao anjo da ordem dos querubins, que estavam ligados a adoração de Deus. Nos dias de hoje, numa nova interpretação da palavra, o chamam de Diabo (caluniador, acusador), ou Satã, cuja origem é o termo hebraico Shai'tan, que significa simplesmente adversário. Atualmente, discute-se a probabilidade de Lúcifer ter sido um rei assírio da Babilônia.
O nome Lúcifer ocorre uma vez nas Escrituras e apenas em algumas traduções da Bíblia em língua portuguesa. Por exemplo, a tradução de Figueiredo verte Isaías 14.12. "Como caiste do céu, ó Lúcifer, tu que ao ponto do dia parecias tão brilhante?".
Lúcifer significa o que leva a luz, representando a estrela da manhã, o planeta Vênus, que é visível antes do alvorecer. A designação descritiva de Isaías 14.4 e12, provém duma raiz que significa "brilhar" (Jó 29.3 ) e aplicava-se a uma metáfora referente a um rei da Babilônia, não a uma entidade em si. Assim, Isaías não estava falando do Diabo, mas através de imagens retiradas de um antigo mito cananeu referia-se aos excessos de um ambicioso rei babilônico.
A expressão hebraica (heilel ben-shachar) é traduzida como "o que brilha", em outras versões. A tradução Lúcifer (portador de luz) deriva da Vulgata latina de Jerônimo e isso explica a ocorrência desse termo em diversas versões da Bíblia.
Muitos exegetas afirmam que não existe fundamento bíblica para identificar Lúcifer como o Satã tentador. Esta confusão com Satã foi ocasionada por uma má interpretação de Isaías 14.12-15. "Como caiste desde o céu, ó estrela da manhã, filha da alva! Como foste cortado por terra, tu que debilitavas as nações! E tu dizias no teu coração. Eu subirei ao céu, acima das estrelas de Deus exaltarei o meu trono, e no monte da congregação me assentarei, aos lados do norte. Subirei sobre as alturas das nuvens, e serei semelhante ao Altíssimo. E, contudo, levado serás ao Sheol (inferno), ao mais profundo do abismo".
Esta interpretação é geralmente atribuída a Jerônimo, que ao traduzir a Vulgata considerou Lúcifer o anjo caído, a serpente tentadora das religiões antigas, embora antes dele esta interpretação não existisse. As igrejas cristãs, em conjunto, não atribuem a Lúcifer o papel de Diabo, mas apenas o estado de "caído".
Assim, o termo brilhante ou Lúcifer é visto como expressão proverbial contra o rei da Babilônia, de modo que faz parte duma expressão dirigida à dinastia babilônica. Que o termo brilhante é usado para descrever um homem e não uma criatura espiritual é notado na declaração. "No Sheol serás precipitado". Sheol é a sepultura comum da humanidade, não um lugar ocupado por Satanás, o Diabo. Além disso, os que vêem Lúcifer levado a essa condição perguntam. "É este o homem que agitava a terra?" É evidente que Lúcifer se refere a um humano, não a uma criatura espiritual. (Isaías 14.4, 15, 16).
Mas por que se dá tal ilustre descrição à dinastia babilônica? Temos de dar-nos conta de que o rei de Babilônia seria chamado de brilhante apenas depois da sua queda e de forma escarnecedora. (Isaías 14.3). O orgulho induziu os reis da Babilônia a se elevarem acima dos reis em sua volta. A arrogância da dinastia era tão grande, que ela é retratada fazendo a seguinte declaração jactanciosa. "Subirei aos céus. Enaltecerei o meu trono acima das estrelas de Deus e assentar-me-ei no monte de reunião, nas partes mais remotas do norte... Assemelhar-me-ei ao Altíssimo". (Isaías 14.13, 14).
As estrelas de Deus são os reis da linhagem real de Davi. (Números 24.17) A partir de Davi, essas "estrelas" governavam desde o Monte Sião, e com o tempo, o nome Sião passou a ser aplicado a toda a cidade. Por decidir subjugar os reis judeus e depois removê-los daquele monte, Jerusalém, Nabucodonosor declara sua intenção de se colocar acima dessas "estrelas". Em vez de atribuir a Deus o mérito dessa vitória sobre eles, coloca-se no lugar Dele. Portanto, é depois da sua queda que a dinastia babilônica é chamada de "brilhante". Com certeza a arrogância dos governantes babilônicos refletia a atitude de Satanás, o Diabo, também chamado de o "deus deste sistema de coisas" ou o "deus deste mundo". (2Coríntios 4.4).
Mas alguns estudiosos consideram que Ezequiel 28.15 se refere mesmo a Satanás. Se for assim, ele é mostrado como tendo sido criado perfeito. Mas diversas passagens mostram alguns dos anjos como maus (Sl 78.49; Mt 25.41; Ap 9.11; Ap 12.7-9). Isto se deve ao fato de terem deixado seu próprio principado e habitação (Jd 6) e ao pecado (2 Pe 2.4).
Mas alguns estudiosos consideram que Ezequiel 28.15 se refere mesmo a Satanás. Se for assim, ele é mostrado como tendo sido criado perfeito. Mas diversas passagens mostram alguns dos anjos como maus (Sl 78.49; Mt 25.41; Ap 9.11; Ap 12.7-9). Isto se deve ao fato de terem deixado seu próprio principado e habitação (Jd 6) e ao pecado (2 Pe 2.4).
A queda dos anjos se deu devido a sua revolta contra Deus. Grande esplendor e poder parecem ser apontadas como possíveis causas. Em Ezequiel 28.11-19, o rei de Tiro parece simbolizar Satanás e diz-se que ele caiu devido a essas coisas. Ambição e desejo de ser mais que Deus parecem ser a outra causa. O rei da Babilônia é acusado de ter essa ambição, ele também parece simbolizar Satanás (Is 14.13-14).
Os anjos caídos perderam a sua santidade e se tornaram corruptos em natureza e conduta (Mt 10.1; Ef 6. 11-12; Ap 12.9). Alguns estão acorrentados até o dia do julgamento (2Pe 2.4). Outros permanecem em liberdade e trabalham em definida oposição à obra dos anjos bons (Ap 12.7-9; Dn 10.12,13,20,21; Jd 9). Pode também ter havido um efeito sobre a criação original. A terra foi amaldiçoada pelo pecado de Adão (Gn 3.17-19) e a criação está gemendo por causa da queda (Rm 8.19-22). Não é improvável, portanto, que o pecado dos anjos tenha tido algo a ver com a ruína da criação original no capítulo primeiro de Gênesis. Eles serão, no futuro, atirados para a terra (Ap 12.8-9), e após seu julgamento (1 Co 6.3), no lago de fogo e enxofre (Mt 25.41; 2 Pe 2.4; Jd 6).
Os anjos maus passam o tempo nos ares que nos rodeiam (Jo 12.31; 14.30; 2 Co 4.4; Ap 12.4,7-9). Exercem poder sobre a humanidade (2Co 4.3,4; Ef 2.2; 6.11,12) e este poder está aniquilado para aqueles que são fieis a Cristo, pela redenção que ele consumou (Ap 5.9; 7.13,14). Os anjos não são contemplados no plano da redenção (1Pe 1.12), mas no inferno foi preparado o eterno castigo dos anjos maus (Mt 25.41).
As Escrituras não descrevem a origem dos demônios. Essa questão parece ser parte do mistério que rodeia a origem do mal. Porém, as Escrituras dão testemunho da sua existência e de sua posição (Mt 12.26-28). Nos Evangelhos aparecem os espíritos maus desprovidos de corpos, que entram nas pessoas, das quais se diz que têm demônios. Os efeitos desta possessão se evidenciam por loucura, epilepsia e outras enfermidades, associadas principalmente com o sistema mental e nervoso (Mt 9.33; 12.22; Mc 5.4,5). O indivíduo sob a influência de um demônio não é senhor de si mesmo; o espírito fala através de seus lábios ou emudece à sua vontade; leva-o aonde quer e o usa como instrumento, revestindo-o, às vezes, de uma força sobrenatural.
Ainda que alguns falem em diabos, como se houvesse muitos de sua espécie, tal expressão é incorreta. Há muitos demônios, mas existe um único diabo. Diabo é a transliteração do vocábulo grego diabolos, nome que significa acusador e é aplicado nas Escrituras exclusivamente a Satanás. A palavra demônio é uma transliteração do grego.
Os demônios são seres inteligentes (Mt 8.29,31; 1Tm 4.1-3; 1Jo 4.1 e Tg 2.19), possuem características de ações pessoais o que demonstra que possuem personalidade (Mc 1.24; Mc 5.6,7; Mc 8.16; Lc 8.18-31). São seres espirituais (Lc 9.38,39,42; Hb 1.13,14; Hb 2.16; Mt 8.16; Lc 10.17,20). São reputados idênticos aos espíritos imundos, no Novo Testamento. São seres numerosos (Mc 5.9) de tal modo que tornam Satanás praticamente ubíquo por meio desses seus representantes. São seres vis e perversos, baixos em conduta (Lc 9.39; Mc 1.27; 1Tm 4.1; Mt 4.3). São servis e obsequiosos (Mt 12.24-27). São seres de baixa ordem moral, degenerados em sua condição, ignóbeis em suas ações, e sujeitos a Satanás. Apossam-se dos corpos dos seres humanos e dos irracionais (Mc 5.8, 11-13). Afligem os humanos mental e fisicamente (Mt 12.22; Mc 5.4,5). Produzem impureza moral (Mc 5.2; Ef 2.2);
Satanás, a partir dessa segunda leitura, era originalmente Lúcifer, o mais glorioso dos anjos. Mas aspirou a ser "como o Altíssimo" e caiu em condenação (Ez 28.12,19; Is 14. 12-15). O nome "Satanás" revela-o como "o adversário", não do homem em primeiro lugar, mas de Deus. Ele investe contra Adão como a coroa da produção de Deus, forja a destruição, razão pela qual é chamado destruidor, Ap 9.11, e ataca Jesus, quando Este empreende a obra de restauração. Depois da entrada do pecado no mundo ele se tornou acusador, acusando continuamente o povo de Deus, Ap 12.10. Ele é apresentado nas Escrituras como o originador do pecado (Gn 3.1,4; Jo 8.44; 2 Co 11.3; 1 Jo 3.8; Ap 12.9; 20.2,10) e aparece como reconhecido chefe dos que caíram (Mt 25.41; 9.34; Ef 2.2). Ele continua sendo o líder das hostes angélicas que arrastou consigo em sua queda, e as emprega numa desesperada resistência a Cristo e ao seu reino. É também chamado "príncipe deste mundo" (Jo 12.31; 14.30; 16.11) e até mesmo "deus deste século" (2 Co 4.4). Não significa que ele detém o controle do mundo, pois Deus é quem o detém, e Ele deu toda autoridade a Cristo, mas o sentido é que Satanás tem sob controle este mundo mau, o mundo naquilo em que está separado de Deus (Ef 2.2).
Ele é mais que humano, mas não é divino. Tem poder, mas não é onipotente. Exerce influência em escala, mas restrita (Mt 12.29; Ap 20.2) e está destinado a ser lançado no abismo (Ap 20.10). É presunçoso (Mt 4.4,5), orgulhoso (1Tm 3.6; Ez 28.17), poderoso (Ef 2.2), maligno (Jó 2.4), astuto (Gn 3.1; 2 Co 11.3), enganador (Ef 6.11), feroz e cruel (1 Pe 5.8).
Sua obra consiste em perturbar a obra de Deus (1Ts 2.18). Opor-se ao Evangelho (Mt 13.19; 2Co 4.4). Dominar, cegar, enganar e laçar os ímpios (Lc 22.3; 2Co 4.4; Ap 20.7,8; 1Tm 3.7). Afligir e tentar os santos de Deus (1Ts 3.5).
Satanás é forte, mas para aqueles que crêem em Cristo, ele é um inimigo derrotado (Jo 12.31). É forte diante daqueles que cedem à tentação. Apesar de rugir é covarde (Tg 4.7). Não pode tentar (Mt 4.1), afligir (1 Ts 3.5), matar (Jó 2.6), nem tocar no crente sem a permissão de Deus.
Mas Satanás não limita sua operações aos ímpios e depravados. Muitas vezes age nos círculos mais elevados como "um anjo de luz" (2Co 11.14). Assiste às reuniões celestes, o que é indicado pela sua presença no ajuntamento dos anjos (Jó 1.6). Tenta enganar os santos com "doutrina de demônios" (1Tm 4.1) e procura criar "sinagoga de Satanás" (Ap 2.9). Muitas vezes, seus agentes se fazem passar por "ministros de justiça" (2Co 11.15).
Deus decretou sua derrota (Gn 3.14,15). Será lançado da esfera celeste à terra (Ap 12.7-9) e aprisionado no abismo (Ap 20.1-3). Ao final, será lançado no lago de fogo (Ap 20.10). Dessa maneira, a Palavra de Deus assegura a derrota final do mal.
Referências bibliográficas
Bíblia de Jerusalém, São Paulo, Edições Paulinas, 1985.
Bíblia Sagrada, tradução na Linguagem de Hoje, São Paulo, Sociedade Bíblica do Brasil, 1988.
Bietenhard, H., "Anjo, mensageiro, Gabriel, Miguel" in Brown, Colin e Coenen, Lothar, Dicionário Internacional de Teologia do Novo Testamento, São Paulo, Edições Vida Nova, 2000, pp. 145-147.
Ferreira, Julio Andrade, "Os seres angélicos" in Ferreira, Julio Andrade (org.) Antologia Teológica, São Paulo, Fonte Editorial, 2005, pp. 282-288.
Horrell, J. Scott, Anjos Cabalísticos, in Vox Scripturae, São Paulo, AETAL, 1995, p. 245.
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Schoereder, Gilberto, "Anjos no céu e na terra",
www.ippb.org.br/index.php?option=com_content&view=article&id=3704&catid=80 e revista Sexto Sentido 49, pp. 26-32.
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jeudi 22 janvier 2009
O tempo das cerejas
Ou, para que não sejamos covardes!
Ontem, já em São Paulo, eu cometi um crime. Não, não foi um crime, foi uma dilaceração. Peguei todas as notas de compras da viagem, cada papelito e rasguei e joguei no lixo. E por que foi um ato tresloucado? Porque a minha memória é construída de emoções, sensações, racionalizações e muitos, mas muitos pequenos papéis de viagens. E talvez porque uma tragédia nunca se faça sozinha, peguei todos os meus cartazes e notas e papéis de minha viagem a Cuba e também joguei fora. Foram-se passando as horas e uma angústia foi me dominando. Um sentimento de ausência, de perda, uma tristeza louca por estar jogando fora um pedaço de mim. Na verdade um pedaço de minhas memórias. Sou um escritor de pedaços: cada notinha, ainda que seja de compra num free shop tem um valor enorme, maior do que o preço do produto, que certamente já foi consumido. Para minha alegria, a lata de lixo, que não é de lata mas de plástico, fica da área de serviço da casa. E agora, hoje, eu tenho uma preciosidade, um montão de papel picado e cartazes rasgados, não sujos, mas empoeirados, meio amassados, que vou guardar e pesquisar como um cientista louco por palavras sem sentido.
É isso mesmo, gosto de palavras, mas não gosto da palavra dada, entregue, pronunciada. Gosto da palavra destruída de sentido, desmantelada, que apresenta novos significados, que se torna signo desconhecido, apontando realidades que só existem depois, ao final. É por isso que sofro com aquele revisor, que indevidamente conserta palavras que desejo desconsertadas.
Escrevi: “em Santiago fixo irado”. E disse para a Naira, minha mulher, algum maledetto vai reescrever “em Santiago fico irado”. E fazer isso será um absurdo porque “fico” é do verbo ficar e “fixo” é do verbo fixar. Escrevo “em Santiago fixo irado” porque na minha época houve um guerrilheiro que se chamava Tiro-fijo, em espanhol, e que traduzido quer dizer “tiro certeiro”, mas que eu sempre li e entendi como “tiro-fixo”, porque debruçado na mira, como amante sobre sua amada, era mortal. Só quem sofreu com os papéis lançados na lata de plástico do lixo pode dizer se eu em Santiago fico irado. Não fico irado não, fixo irado.
Desmontei a palavra, depois, remontei-a conforme a minha estética precária exige. É isso mesmo, a estética exige, tem jeitos que ela mesma define, é uma senhora brava, uma matrona cheia de manias. Mas a minha é precária, pois no diálogo com essa matrona, ela entra com sua autoridade e eu com minha fragilidade de escritor. E, então, se dirá: mas, e o leitor?
Bem, o leitor é o grande construtor da realidade estética do texto. E repare por quê! O autor é o momento da luta com o caos, ele criou seu texto a partir de emoções, sensações, racionalizações e muitos, mas muitos pequenos papéis de viagens. E da dilaceração permanente, contínua, de cada palavra, de cada sentença, tirou delas o sentido esperado. Fez do esperado, desespero. Criou sentidos que só pertencem a ele, como o exemplo do fixo irado. Mas, o leitor é o ato de liberdade que possibilita a todos os sentidos e a qualquer sentido ter de fato sentido. Por isso quando eu digo em Santiago fixo irado, você vai convidar a matrona para a cama, vai dormir com ela, nem que seja só para se aquecer. De todas as maneiras, ela vai se adocicar diante da sua ternura e abrir possibilidades novas que o autor nunca, jamais, tinha pensado. E o leitor tem esse direito, porque ao possuir o texto vai fazê-lo dele, é quem de fato lhe dá vida.
Mas vamos falar agora, um pouco de minha viagem a Santiago, que posso traduzir como uma volta ao local do crime. Crime meu e crime cometido contra milhares e eu aí incluído. Crime contra a democracia, a liberdade e o pensamento.
Naira comprou cerejas numa banca de frutas em frente à Universidade do Chile. É tempo de cerejas no Chile e elas são tão doces que doem na garganta. Tinha ido visitar a minha antiga universidade e cultivar lembranças. Geralmente se cultiva lembranças como frutas, é preciso terra. Donde a necessidade de voltar ao local do crime, de sentir os pés sobre a terra, respirar o cheiro do lugar, ouvir sons que estão adormecidos na memória. Por isso, caminhamos degustando cada cereja, porque as frutas já não eram frutas apenas, mas o açúcar do tempo das cerejas.
Veja como é estranho. “O tempo das cerejas” é uma canção de dois franceses, Jean Baptist Clément e Antoine Renard. Foi escrita e musicada em 1866, antes de explodir a Comuna de Paris, uma pequena, mas grande revolução que durou apenas três meses, de 26 de março a 28 de maio de 1871. Mudou a maneira de se pensar o socialismo. Marx, por exemplo, ficou extasiado diante daquela experiência do proletariado. O tempo das cerejas não é uma canção revolucionária, mas de amor. A última estrofe foi agregada posteriormente e dedicada a uma enfermeira morta em defesa da Comuna. Essa estrofe foi escrita debaixo do fogo da semana sangrenta, quando milhares de combatentes da Comuna foram massacrados. “Le temps des cerises”, que você pode ouvir e baixar na internet, me lembra o Hotel Residencial Londres, que fica na calle Londres, em Santiago. O prédio foi construído entre 1923 e 1929, e em 1964 transformado em hotel por Ilic e Adela Dumand. E deu um charme especial ao bairro Paris-Londres no centro da cidade. Na calle Londres, no Hotel Residencial Londres fui preso em setembro de 1973, no terceiro dia do golpe militar.
O tempo das cerejas entregou a cabeça da mulher
serviu o sangue da virgem num cálice
cada gole tem o sabor da vida derramada
mochileiros franceses, macho, fêmea e filhote, dizem à demain para as cerejeiras
a rua está perfumada
a alameda é atravessada.
Para quem gosta de palavras é muito difícil deixar Gabriela Mistral e Pablo Neruda de lado. São monstros sagrados da literatura universal. Neruda tinha uma mania que eu também tenho, gostava de casas. Casa para ele não era abrigo ou lugar de morar. Era navio, lugar de memórias e casulo para amar. Por isso, mandou construir La Chascona, a desgrenhada, que foi a casa dele com a terceira companheira, Matilde Urrutia. É bom lembrar que Matilde tinha cabelos vermelhos. E eu, numa homenagem transversal ao poeta, também cheguei lá de cabelos vermelhos. E me senti muito bem, ruivo, a papear com Paloma no jardim. Ricardo Eliécer Neftalí Reyes Basoalto foi um homem de muitas faces, mas a que mais admiro, além daquela de poeta, foi a de militante comunista. Estudou pedagogia, foi diplomata, senador, prêmio Nobel de literatura, mas nós nos lembramos dele como Neruda, o poeta comunista.
De 1953 até 1973, viveu em La Chascona. Morreu aí, junto com a democracia, a liberdade e o pensamento. La Chascona, que agora é história, está ao lado do Cerro San Cristóbal e foi construída em níveis. Um jardim serpenteia a casa e cria hoje paisagens propícias ao cultivo de memórias. Nesse jardim, eu e Paloma descansamos, olhando para a sombra das pequenas árvores, quietos, silentes, vendo turistas passantes e Naira desaparecida a fotografar.
O tempo das cerejas fugirá para outras bandas
Miró mia nas minhas lembranças
rabisco no La Chascona ao poeta
bardo brado
por onde anda a ode?
flagelo e sal
sangue e semente
formigas desfilam sobre o açúcar derramado
você e eu descarrilados
por poemar instantes
beleza é água na garganta seca.
Você já prestou atenção no caminhar? É diferente caminhar em terra batida, em terra molhada, na grama. São apenas duas ruas de paralelepípedos e mansões dos anos 1920, uma se chama Paris, como aquela da Comuna, e a outra Londres, como aquela de Cromwell e seus republicanos. De manhã, caminhar em ruas de paralelepípedos nos dá a sensação de segurança e desequilíbrio. Você sai do asfalto, do cimento e vai devagar a pisar paralelepípedos. Sinta com atenção. Veja a diferença. Sentiu, Naira? Veja como é gostoso, Paloma? Aqui as ruas não são apenas belas, estão paradas no tempo, frescas, sombreadas. Aqui não há lojas. Há pequenos hotéis, escolas e esse café maneiro ao lado do hotel. Com uma praça e tudo, à moda antiga, um pedaço da Europa no meio de Santiago.
Mas como sonho e pesadelo são estados do adormecido, em frente ao meu Hotel Residencial Londres há um prédio pichado “aqui torturaram e assassinaram”. E quando meio dormindo, meio acordado, tentava descobrir o que estava lendo, um cicerone não convidado se aproximou e disse: “Esta era uma das muitas casas onde a ditadura torturava e assassinava pessoas”. Conversamos poucas frases sobre violência e crimes políticos, e tráfico de drogas no Brasil, mas rapidamente meu interlocutor escafedeu-se.
Essas ruas de Santiago, manchadas de sangue, me remetem a um militante, homem de fé, Martin Luther King Jr, herói dos trezentos milhões de negros espalhados pelo mundo e do novo presidente estadunidense. Mas tudo começou com Rosa Parks. Ou como contou o jornal Versus:
1955. Uma costureira negra, dirigindo-se do trabalho para casa em Montgomery, Alabama, recebeu ordens de um motorista branco para que se transferisse para a parte de trás do ônibus. Rosa Parks estava sentada, em um dos bancos da frente, e simplesmente recusou-se a mudar de lugar. Foi presa por violação às leis de segregação do Alabama. A comunidade negra enfureceu-se. Os negros disseram que já vinham sendo insultados há demasiado tempo por motoristas de ônibus brancos, e declararam que não tomariam mais qualquer ônibus até que a segregação fosse eliminada e certo número de motoristas negros fosse admitido.
Liderados pelo jovem ministro batista Martin Luther King, os negros de Montgomery simplesmente boicotaram os ônibus até que a empresa, quase à bancarrota, submeteu-se às exigências. Em breve, os negros de muitas cidades do Sul recorreram à técnica do boicote para conseguir melhor tratamento nas lojas e outras casas comerciais, e para assegurar melhor emprego para sua gente. Se os autores do boicote usavam a não-violência, eram ao mesmo tempo militantes e obstinados. Certamente, tiveram importância na obtenção de certas mudanças que o Sul dos Estados Unidos, com sua veemente resistência a toda e qualquer transformação, consideraria revolucionária.
Também foi em 1955 que King finalizou sua tese A Comparison of the Conceptions of God in the Thinking of Paul Tillich and Henry Nelson Wieman. King conhecia o pensamento do teólogo teuto-estadunidense e, por isso, sua ação militante repousou em parte sobre o pensamento socialista de Tillich.
Tanto para King como para Tillich, o poder autêntico era a verdade. Entretanto, esta verdade não seria norma abstrata que se impõe à realidade. Seria, sobretudo, a expressão concreta da tendência última do real. A verdade só teria poder se fosse uma tendência de vida, de uma sociedade, a verdade de um grupo que detém, interiormente, na sociedade, o poder.
Teoria e prática se fizeram carne e sangue na vida de King e, no dia 4 de abril de 1968, quando preparava uma marcha dos negros na cidade de Memphis, Tennessee, foi atingido por tiros. Anos depois, o jornal Versus orou pelo companheiro abatido:
Desde a época em que chefiou o boicote dos ônibus em Montgomery, inúmeras foram as ameaças à sua vida. Foi publicamente denunciado e alvo de abjetos epítetos. O próprio clima tornou-se tão carregado que, considerando-se agora as coisas, percebe-se que um fim violento para o grande líder negro era inevitável. Todavia, a América branca não podia antecipar a reação da América negra ao assassinato a sangue frio de um de seus líderes mais poderosos. Vários dias de desordens, incêndios e pilhagens em muitas cidades foram a louca manifestação de um amargo desespero e frustração. Mesmo os que prantearam a morte de Martin Luther King sem qualquer mostra exterior de emoção revelaram-se tão sensíveis no apreço de seu significado quanto aqueles cuja reação foi violenta. Descanse em paz, Dr. Martin Luther King!
Tanto para Tillich como para King, a conquista violenta dos instrumentos de poder social não decidia a vitória de uma revolução. Isso só aconteceria quando se estabelecesse uma nova estrutura de poder, amplamente reconhecida. Seria um erro pensar, afirmava Tillich, que amparar a revolução no aparelho do poder garantiria a vitória. O aparelho do poder deveria ser renovado constantemente a partir das forças da sociedade, forças pessoais, materiais e ideais. Caso contrário, a revolução ruiria, mesmo quando os meios técnicos permitissem que se impusesse por tempo maior àquele de épocas não desenvolvidas.
Mas do que palavras, a militância política de King traduziu a compreensão de que há uma dialética de ferro entre verdade e poder. E que o poder verdadeiro nasce da verdade última, aquela que transcende o momento presente e permanece no coração e mente dos excluídos. Essa compreensão, mesmo quando não é corretamente traduzida pelo grupo que chega ao poder, continua a marcar o horizonte último da ética socialista.
Londres-fixo
aranhas sopradas pelo vento norte
lugar de sonhos desperdiçados
picadas na carne nova
matinais de 11 de setembro
o azul cede ao cinza
morcegos desconstroem flores
palavras duras decretam o fim da esperança
olhos mareados
a porta esmurrada
a fronte torturada
o corpo desfilado
olho perdido na esquina.
Deixo para trás Paris-Londres, olho a igreja de San Francisco, a construção mais antiga da cidade. Caminho algumas quadras na sequidão sob um sol de trinta e poucos graus pela principal avenida da cidade, que a corta de leste a oeste, e se chama Libertador Bernardo O’Higgins, mas é conhecida como Alameda apenas. Ali perto, a poucas quadras, há um palácio, o La Moneda.
E me lembro de um político, Salvador Allende, que depois de três derrotas, veio a vencer as eleições presidenciais em 1970. Governou com uma frente popular capitaneada por socialistas e comunistas. Acreditava que poderia levar o Chile ao socialismo através do processo democrático, sem enfrentamentos violentos. Mas isso não aconteceu. E como a direita e os Estados Unidos viam Allende como o príncipe das trevas, todos os setores de oposição, inclusive os democratas cristãos, se organizaram e com apoio dos militares, se lançaram ao golpe. Allende foi derrubado. O Palácio La Moneda e fábricas, onde trabalhadores organizavam a resistência, foram bombardeados. Foi um tempo de chacina.
Londres-fixo
nem Caetano
nem Gil
é ilha no nada
lagartos da inexistência
tristeza, espanto, perplexidade
Tiago não tem salvador
coturnos abundam!
Os demônios estão mortos. Curto a cidade limpa, com metrô e prédios modernos. Metrópole neoliberal, segundo o modelo dos Chicago Boys, liderados pelo economista Milton Friedman. Mas, permanece a sensação de que caminhamos sobre cadáveres que não foram sepultados com dignidade. Ignavi ne simus.
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