samedi 9 mai 2009

SOCIALISME ET RELIGION dans le processus de fondation du PARTI DES TRAVAILLEURS au BRESIL

ÉTHIQUE SOCIALE ET SOCIALISME RELIGIEUX. Actes du XV Colloque International Paul Tillich, Toulouse, 2003, Münster 2005 (48-58: Reimer, Allen J.: Tillich on right and law/59-78: Donnelly, Brian: The persistence of Marxism in the American writings of Paul Tillich/79-90: Galibois, Roland: Thomas More, Karl Marx et Paul Tillich/91-101: Stone, Ronald H.: Reinhold Niebuhr and Paul Tillich in New York: political conversations/102-112: Gabus, Jean P.: Ontologie, théologie et politique dans les causeries radiophoniques de Paul Tillich durant la seconde guerre mondiale/113-122: O'Keeffe, Terence: Tillich et l'école de Francfort/125-149: Ehrwein, Céline: Forces et faiblesses de la réflexion politique de Paul Tillich : évaluation critique du socialisme religieux à partir de Hannah Arendt/150-162: Gounelle, André: Une éthique sociale pour aujourd'hui?/163-172: Junker, Théo: Principe protestant et principe socialiste : la double racine du socialisme religieux/173-189: Stenger, Mary A.: La justice créatrice dans les écrits de Tillich sur le socialisme religieux et dans "Amour, pouvoir et justice"/190-201: James, Robison B.: Le socialisme religieux de Tillich comme ressource pour une éthique sociale pragmatiste aujourd'hui/202-210: Toniutti, Emmanuel: Implications pratiques de l'éthique sociale de Paul Tillich dans le management de l'entreprise/211-232: Richard, Jean: Doctrine sociale et théologie de la libération: le débat autour du socialisme/233-249: Higuet, Etienne: Le "socialisme religieux" de Paul Tillich et le socialisme brésilien de "l'ère Lula" : essai de lecture comparative/250-258: Pinheiro, Jorge: Politique et religion: un éclairage tillichien sur le socialisme brésilien/259-266: Müller, Denis: Éthique sociale, religions et socialisme à l'ère de la mondialisation/269-272: Tillich, Paul: [Der Nationalsozialismus und die Französische Revolution] - Le national-socialisme et la révolution française: discours radiodiffusé du 5 juillet 1943).

SOCIALISME ET RELIGION dans le processus de fondation du PARTI DES TRAVAILLEURS au BRESIL.LECTURE A PARTIR DE PAUL TILLICH


Par JORGE PINHEIRO

Introdução

Paul Tillich em A Decisão Socialista [Introdução: As duas raízes do pensamento político, Potsdam 1933, Gesammelte Werke, II, pp. 219-365] afirma que o socialismo é um movimento de oposição, de mão dupla, um movimento de oposição à sociedade burguesa, mas enquanto mediação, uniu-se à sociedade burguesa na oposição às formas feudais e patriarcais de sociedade. Entender esta raiz do socialismo, ajudaria a entender as raízes do pensamento político que lhe deu origem. Tillich parte de uma teologia política onde seu referencial primeiro é o ser. Nesse sentido, podemos dizer que faz uma fenomenologia política quando analisa questões como o ser, a origem do pensamento político, enquanto mito, e a partir daí procura trazer à tona os elementos não reflexivos do pensamento político conservador. E é a partir da análise do pensamento conservador que Tillich vai explicar o surgimento da democracia e do socialismo.

Para Tillich, a distância que separa ser e consciência é necessária para que o ser se eleve à consciência. A consciência supõe não somente uma ligação ao ser, mas também uma distancia que permita reflexão. Assim, o que é abalado em sua ligação original com um grupo ou com uma classe é chamado a dar consciência a outra classe que não é a sua. Marx e Lênin são o exemplo mais evidente disto. Eles mostram que a relação entre a situação social e o pensamento político deve se elevar da esfera biográfica para aquela das relações funcionais. A palavra princípio serve para caracterizar de maneira global os grupos políticos.

O pensamento tem como tarefa extrair uma multiplicidade de fenômenos que constitui a característica comum a todos os indivíduos. Normalmente, se cumpre esta tarefa com ajuda do conceito de essência. Desde Platão, a relação entre essência e o fenômeno domina no Ocidente a teoria do conhecimento. Porém a lógica da essência não é suficiente para explicar as realidades históricas. A essência de um fenômeno histórico é uma abstração vazia, de onde se expulsou a força viva de história. Por isso, não se pode entender o socialismo se não experimentar a exigência de sua justiça como uma exigência do incondicionado. Quem não é confrontado pelo socialismo não pode falar do socialismo, a não ser enquanto expressão que vem do exterior . Não pode falar dele em verdade, porque é contrário às tendências políticas que defende. Aí está o nó da origem.


1. AS MATRIZES DA FORMAÇÃO DO PT

1.1. O marxismo: ortodoxia e heterodoxia

Em artigo publicado em Das neue Deutschland , em 1919, Paul Tillich afirma que o socialismo é o produto da evolução espiritual e econômica, que foi lentamente preparado e que se impõe com a Renascença, a Reforma e com o surgimento do capitalismo. O socialismo surge em oposição à cultura autoritária e unitária da Idade Média e sedimenta suas bases nas criações culturais dos últimos séculos.

O socialismo só pode ser compreendido a partir desta evolução e sua permanência está ligada diretamente a este desenvolvimento. Deve-se reafirmar, porém, que é do interior do cristianismo que brota o socialismo e que um socialismo sem estes pressupostos é uma quimera, e que aqueles que defendem o socialismo devem defender também os princípios sobre os quais ele repousa . A organização espiritual e econômica da Idade Média, afirma Tillich, estava fundada sobre um sistema de centralização da autoridade que, ancorado no sobrenatural, associava a natureza e o supranatural numa unidade poderosa , à qual os povos e os espíritos estavam sujeitos.

Mas a partir do Iluminismo, explica Tillich, no domínio espiritual, político, econômico, nada pode ficar de positivo que não seja pensado, confrontado com a consciência pensante, medido e negado. Os sistemas de fé, as formas de Estado, as definições econômicas sofrem o assalto da autonomia, que não tem nenhum respeito pelas autoridades humanas e divinas . Lamenta-se a perda do sistema de autoridade ou festeja-se tal acontecimento como um passo em direção à maturidade cultural. De todas as maneiras, há o reconhecimento de que a vida cultural não pode ser pensada sem autonomia e que o socialismo está presente em todos os lugares. Líderes e camponeses tem o mesmo sentimento, conquistar a liberdade das mãos do autoritarismo irracional, seja ele imanente ou transcendente. Este é o primeiro fato que o cristianismo deve levar em conta , conclui Tillich.

Do lado positivo, explica Tillich, a autonomia significa o reinado da razão . Pela primeira vez, depois de um milênio e meio, a razão humana não vê limites para seu poder. Através da análise ela penetra as profundezas da vida cultural e social, simultaneamente, e através da síntese dos elementos descobertos apresenta um sistema novo, racional. Depois de séculos de arbítrio, os homens são possuídos por uma vontade de dar forma ao mundo de maneira racional . E a vida econômica também deve ser formulada racionalmente. Não é o prazer de certos indivíduos ou povos que deve fazer a lei, mas é a humanidade inteira, que é sujeito e objeto dos processos econômicos, quem deve fazê-lo a partir de critérios racionais .

A mesma autonomia que substituiu a autoridade, a partir da razão precisa construir um mundo sem arbítrio. Eis o segundo fato que o cristianismo deve levar em conta . Mas, explica Tillich, sem dúvida foi Marx quem introduziu o pensamento histórico objetivo do idealismo alemão no socialismo, ao dizer que a razão precisa ser separada da decisão humana e colocada ao nível das necessidades objetivas. O processo dialético é racional e a fé nele é uma fé na razão: uma fé que adquire uma força enorme graças à sua amarração metafísica objetiva e que se tornaria o dogma fundamental de milhões de pessoas .

Foi o processo da própria história que fez o mundo conformar-se à razão e levou este combate a tornar-se vitorioso. E foi essa vitória que deu cara ao mundo que conhecemos como moderno. Para Tillich, a fé na razão está fundamentada sobre os resultados conquistados pela ciência da natureza. Mas atrás da ciência da natureza veio a cultura moderna. Preparada de várias maneiras a partir do fim da Idade Média, ele surge com uma força irresistível na Renascença e conduziu a uma afirmação alegre deste mundo, que durante muito tempo foi negado, desdenhado e rebaixado por um outro onírico e místico .

Os outros mundos empalideceram diante da nova astronomia, diante da validade universal das leis da natureza, diante da beleza redescoberta do real na arte, diante da consciência de unidade do finito e do infinito na filosofia da natureza . É assim que a imanência ressoa no humanismo e na filosofia das Luzes, com Goethe e no idealismo alemão, da mesma maneira que o socialismo se une à consciência da autonomia e à fé do poder formador da razão na construção de um sentimento unitário da vida e do mundo. Este é o terceiro fato que o cristianismo deve levar em conta , afirma Tillich. Se o socialismo é, nesse sentido, uma herança da cultura universal, ele tem, no entanto, uma originalidade que não se restringe aos conceitos, mas à experiência vivida.

O conceito de humanidade, diz Tillich, que manifesta a vitória da idéia de tolerância, não teve na evolução da burguesia mais que uma realização acidental. A consciência da humanidade é neutralizada pela consciência de classe, educação e de dependência nacional . A humanidade se colocou antes de tudo no campo das confissões, sob formas absolutamente contrárias a idéia de uma transformação racional do mundo. É somente pela pressão sobre os trabalhadores nos primeiros decênios do moderno capitalismo, explica Tillich, que nasceu uma consciência solidária, no coração do qual está presente o sentimento universal de humanidade, que se opõe àquele que vê no homem um meio e não um fim .

O combate contra o feudalismo, o capitalismo, o nacionalismo e o confessionalismo constitui a expressão negativa da consciência incondicional de humanidade, que derruba barreiras e reconhece o homem em cada homem. Este é o quarto fato que o cristianismo deve levar em conta, conclui Tillich. O que fica claro em Tillich é que autonomia e socialismo são processos históricos que se complementam, mas que não são idênticos. O processo de autonomia vivido pela sociedade européia no período que se abre a partir do Iluminismo e que põe em xeque a tradição e o autoritarismo, servirá de base para a ação socialista. Autonomia é o momento supremo da razão e da imanência, e é a partir daí que o socialismo vai construir um sentimento unitário da vida e do mundo, embora sua originalidade não se limite aos conceitos, mas à experiência vivida.

A luta dos trabalhadores contra a alienação e exclusão social vai gerar consciência solidária e sentimento universal de humanidade. Mas, ainda assim, ao se limitar ao campo da autonomia, sem uma atitude que permita à incondicionalidade apoderar-se da própria autonomia, o socialismo deixa aberto o caminho para o autoritarismo e o arbítrio.

Quando olhamos o socialismo latino-americano a partir da crítica ao eurocentrismo, podemos dizer que hoje se repete o que sucedeu há quinhentos anos com a conquista da América: o homem europeu, e por extensão estadunidense, constitui o sentido do ser latino-americano e do brasileiro, encontrado a partir da totalidade de sentido européia. Na verdade, o habitante da América índia, negra e mestiça não foi descoberto como outro, mas como o mesmo já conhecido e, em seguida negado, ocultado e transformado em objeto do ego moderno.

O ponto fundamental dessa crítica é que a Europa, num primeiro momento, e Estados Unidos depois descobriram um novo espaço geográfico, compreendeu-o como horizonte fundamental do ser do centro, campo de batalha no qual exerce uma práxis de dominação. Tal formulação desconstrói o sistema ontológico da dominação, a partir da exterioridade do outro como sujeito ético, como rosto e como corporeidade, que grita e reclama justiça. Os excluídos do sistema cultural ocidental devem ser tomados como centro de um novo modelo de racionalidade, ético-crítica.

Diante das massas crescentes de deserdados que tomam consciência de sua negação originária como subjetividade excluída ou objetivada dentro do sistema dominante, os poderosos utilizam a guerra e, se admitem o diálogo, é no interior de sua comunidade de comunicação hegemônica, que não garante a reprodução e o desenvolvimento da vida humana. A teologia deve pensar a realidade mundial além da fronteira do centro, que distingue entre populações dotadas de direitos e poderes e populações excluídas e utilizadas como instrumentos manipuláveis.

Se entendermos esse processo de construção da dominação, podemos analisar o processo de gestação do Partido dos Trabalhadores a partir da exposição que Tillich faz acerca da passagem da heteronomia à autonomia e, posteriormente, à teonomia, enquanto ciclos que procuram romper a lógica de ferro da dominação. Para ele, os movimentos de massa são encontrados em movimentos religiosos, nos movimentos políticos e raciais de imigrantes e nos movimentos econômicos do socialismo. Embora esses movimentos possam ser encontrados em diversas épocas, também o são em diferentes esferas da cultura. Mas sempre são movimentos de libertação: já que é parteira de escravos, de povos excluídos, ou de escravos livres, trabalhadores assalariados, que a industrialização levou a uma dinâmica de massa que transbordou a história.

2.2. A presença cristã

Mas o exemplo cristão não chega só de além-fronteiras. No Brasil ele é contundente. E Versus explica porque.

Hoje são quase 50 mil Comunidades Eclesiais de Base, organizando cerca de um milhão e quinhentas mil pessoas, no Brasil. Elas identificam o pecado-raiz de toda a opressão: “...esse grande pecado é agora social e se chama sistema capitalista”, concluiu o III Encontro Intereclesial de Comunidades de Base, em julho de 78 na Paraíba. Já não se contam mais nos dedos as Comissões Diocesanas de Justiça e Paz. A Igreja Católica foi, talvez, o primeiro setor organizado, com peso efetivo na sociedade brasileira, a empunhar a bandeira de luta pelos direitos humanos. Ligada às parcelas mais exploradas do povo, sofrendo a perda de padres e freiras perseguidos e mortos, a Igreja se organizou para combater as ameaças à Justiça e à Paz. Deixa, enfim, o regaço dos poderosos, não sem contradições e conflitos dentro de sua própria estrutura.

E para entender os caminhos da catolicidade, o jornal entrevistou D. Adriano Hipólito, bispo de Nova Iguaçu. Mas, explica Versus, qualquer que seja o resultado da reunião, a luta entre as tendências conservadoras da Igreja e os setores progressistas vai continuar. Ela não é um fenômeno apenas superestrutural, ela reflete um processo mais amplo de lutas sociais, e faz parte da movimentação política das massas latino-americanas, hoje num processo irreversível de construção de sua própria história.

Nova Iguaçu era àquela altura, modelo brasileiro de cidade dos pobres e excluídos:
(...) oitavo município mais populoso do país, ali faltam esgotos, escolas, hospitais, transportes, segurança pessoal (reina o esquadrão da morte). Região de operários, funcionários mal remunerados, comerciários, subempregados, que já não podem esperar soluções senão de si próprios.

Diante da desconfiança de muitos socialistas ao engajamento da igreja na luta pelos direitos dos oprimidos, por causa de sua tradição heteronômica, Versus argumenta que
se os homens são aquilo que fazem, a Igreja está sendo aquilo que seus sacerdotes têm praticado. E essa prática de discussão e organização das bases de nossa sociedade nós precisamos compreender e avaliar.

Assim, qual o espírito que orienta o atual trabalho comunitário da Igreja Católica no Brasil? E dom Adriano Hipólito responde:

A Igreja, na sua essência, é comunidade de fé, de esperança e de amor. Sua maior eficiência, fermentadora e renovadora da comunidade humana, sempre dependeu de seu comportamento e de sua atuação com comunidades. Sem dimensão comunitária a Igreja não é Igreja. Sem abertura para os problemas da comunidade/sociedade, a Igreja não está em condições de realizar sua missão, ser continuação da ação libertadora de Jesus Cristo, ser sinal de esperança para o homem angustiado e sofredor.

Mas, Versus quer saber mais: o que são as CEBs, como funcionam, quem as integra? E Dom Hipólito responde:

Comunidade: as pessoas se aproximam livremente, se sentem responsáveis, descobrem e atuam nos mais diversos elementos de interesse comum. Eclesial: o ponto de partida e de chegada, os elementos formadores e aglutinadores, os métodos de ação, etc, são os mesmos da Igreja. Base: a comunidade de base tem como princípio fundamental o relacionamento primário das pessoas: pessoas que se conhecem, que se estimam, se complementam, se ajudam mutuamente. Todos atuamos em nível de base. A CEB, embora não seja constituída para fazer política, tem de se preocupar com os problemas políticos e tem parte ativa no processo político. Tem a preocupação de integrar as pessoas da base no processo social, como direito/dever da pessoa humana, e de levá-la à participação consciente e crítica.

Como jornal socialista, envolvido com a organização dos trabalhadores ao nível sindical e político, Versus quer conhecer o pensamento de seu aliado cristão. E Dom Hipólito esclarece sua posição.

Para participar do processo social, o Povo precisa de instrumentos válidos e eficientes. Entre esses instrumentos estão, por exemplo, os sindicatos e os partidos políticos. Os sindicatos devem ser órgãos de participação eficiente na defesa dos direitos dos seus sindicalizados. Estão a serviço dos trabalhadores como comunidade de trabalho que constrói a Pátria, e não a serviço de grupos do poder, de demagogos e pelegos. O Estado onipotente conseguiu, também no Brasil, corromper a filosofia dos sindicatos, reduzindo-os a instituições de beneficência e lazer.
Um partido trabalhista que corresponde realmente a uma grande corrente do pensamento popular, na classe dos trabalhadores será, mais cedo, ou mais tarde, uma necessidade imperiosa. (...) Mas um Partido Trabalhista que esteja entregue a liderança dos trabalhadores, e não seja manipulado por uma elite burguesa que deseja apenas conquistar o poder.

E já no final da entrevista, Versus faz uma pergunta que traduz não apenas reflexão sociológica, mas também teológica, com profundas implicações políticas para o momento.

Como o senhor vê o possível relacionamento entre Cristianismo e Socialismo diante das necessidades dos trabalhadores?

Sem disfarçar as divergências em pontos fundamentais, podemos admitir uma luta comum por uma causa comum: a justiça social. Quero crer que sem o Cristianismo como pano de fundo, o Socialismo não se explica suficientemente. Muitos elementos do Socialismo são de fato cristãos.

Para dom Hipólito, assim como para Versus, a história da Igreja é passível de muitas críticas. Muitas vezes, suas opções e alianças com os grupos de poder fizeram com que se afastasse e dificultasse seu relacionamento com parte da população excluída de bens e possibilidades.

Tal situação facilitou e potencializou a pregação do ateísmo e do materialismo. Mas, como explica Tillich, não podemos dizer que o ateísmo materialista seja um fenômeno constitutivo do socialismo. Para ele, é uma herança da cultura burguesa, crítica e cética. Essa herança foi adotada pelo socialismo sob a crença de que ajudaria a extirpar a idéia de opressão e abriria o caminho para a construção de um novo mundo, mais justo e digno.

Assim, embora haja razões históricas para criticar a Igreja, o socialismo erra quando nega a existência da base solidária e comunitária do ideal cristão. Versus evita esse erro, quando esclarece aos seus leitores de que se os homens são aquilo que fazem, a Igreja está sendo aquilo que seus sacerdotes têm praticado. E essa prática de discussão e organização das bases de nossa sociedade nós precisamos compreender e avaliar.

Podemos fazer uma leitura deste cristianismo a partir do pensamento de Emmanuel Lévinas. Lévinas reclama prioridade para a vítima na figura dos excluídos. O não matarás, princípio do humanismo de Lévinas, é uma marca constante nos escritos de Dussel. Lévinas é o judeu embebido no pensamento europeu. Mas a cultura européia não tem lugar para o outro, para o judeu oriental Lévinas. De maneira semelhante, Dussel é o excluído da América latina, que faz a critica teológica do pensamento europeu, que não consegue ver o outro.

Há aqui uma hermenêutica que se fundamenta na razão da libertação enquanto imperativo ético: quando se vive num mundo que não permite a produção e reprodução de nossas vidas latino-americanas, em que sentido nos relacionamos com esse mundo? Torna-se evidente que Dussel pretende uma teologia que parta de um retorno à realidade da América Latina. Para ele, a teologia na América Latina nasce da reflexão sobre a realidade econômica, cultural e política do continente. Dussel mostra a necessidade da ruptura com o pensamento latino-americano que pensava a cultura, economia e política latino-americanas a partir da teologia européia. A situação latino-americana é diferente da situação européia. Os caminhos que devem ser percorridos divergem, segundo Dussel, dos caminhos dos países do centro.

Assim, Dussel constrói uma teologia que parte da situação do excluído, e neste sentido o horizonte dos latino-americanos diverge da problemática européia, onde a centralidade do pensamento repousa sobre a dominação. Para ele, por exemplo, o Discurso do Método de Descartes é o manifesto do homem reduzido a ser um sujeito que pensa, e essa metafísica do sujeito, é a “expressão temática da experiência fática do domínio imperial europeu sobre as colônias”, que se concretiza não somente como vontade universal do domínio, mas historicamente como dialética de dominação versus dominado. Assim, afirma, “se existe vontade de poder, existirá alguém que deve sofrer o seu poderio”.

A teologia de Dussel tem por base uma nova história, pois, as histórias universais são européias, e os latino-americanos não podem se ver nessas histórias européias, porque o outro é invisível para elas. Para Dussel, os que se libertam conduzem a história para o seu futuro e constituem o momento essencial da história. Contraposto ao destino europeu e norte-americano, é reservado aos excluídos um destino que criar caminhos para a realização de uma humanização universal. Por isso, os excluídos encontram-se em posição privilegiada. São os excluídos que têm oportunidade de descobrir a situação de opressão, compreendendo quem é o dominador; aquele que crê tudo compreender e que na realidade nada compreende.

Ora, quando a comissão nacional provisória do Partido dos Trabalhadores fez o lançamento público no 1º de Maio de 1979 de sua Carta de Princípios, afirmou que “os males profundos que se abatem sobre a sociedade brasileira não poderão ser superados senão por uma participação decisiva dos trabalhadores na vida da nação. O instrumento capaz de propiciar essa participação é o Partido dos Trabalhadores”. Podemos entender essa declaração a partir da análise de Dussel, quando diz que os excluídos ao descobrir a situação de opressão cria os caminhos para uma nova humanização.

2.3. O sindicalismo classista

A palavra massa, para Paul Tillich [Masse et Esprit, Études de philosophie de la masse ], transformou-se em slogan político e social. Expressão esta que conota superioridade e idolatria. Por isso, quando se deseja discutir seriamente o conceito massa é necessário definir seus contornos e esfriar um pouco a fervura do slogan .

Segundo Tillich, há dois conceitos de massa, um formal e outro material, o primeiro de ordem psicológica e sociológica e o segundo de ordem histórica e social . Em termos formais, a massa consiste numa associação de pessoas que, na associação, deixam de ser indivíduos. Sua individualidade se perde e ele se submete à coletividade. A pessoa se torna um átomo, desprovido de suas qualidades, seu movimento próprio, e se transforma em pura quantidade subordinada ao movimento da massa. Através da psicologia das massas pode-se ver como a alma perde sua forma individualizada uma vez que toma a forma da massa e como o indivíduo entra em contradição com ele próprio, já que é um átomo da massa ou um ser bem singularizado.

Tillich considera que no movimento psíquico da massa alguns elementos se separam e se isolam, adquirindo eficiências por eles próprios. Isto porque um indivíduo é o resultado de uma longa evolução interior e sua alma está ligada a milhares de liames à vida da alma em sua totalidade, que assim torna-se autônoma . Na massa, as forças de inibição, de reflexão e de matizações caducam. Tudo se transforma. Assim, podemos resumir essas transformações em duas leis. A lei da imediaticidade, segundo a qual a massa não reflete, mas é. Ela tem uma existência objetiva, não subjetiva como afirmou Hegel, ela é em si, não para si .

A massa não sabe porque ela faz aquilo que faz. Quando acede a ela própria é sempre através de certos indivíduos, um orador ou chefe. A massa é imediata, vive inteiramente o presente, sem ligações com o passado ou o futuro, sem lembranças ou reflexões. Suas motivações são irracionais. Mas para Tillich, a lei da imediaticidade explica o desabrochar dos instintos biológicos imediatos, que estavam inibidos. Também mostra a existência de um princípio espiritual imediato que se faz presente, que pode ser traduzido como o abandono ao instinto do momento em direção à disponibilidade da revelação espiritual do presente, revelação de uma espiritualidade subjetiva impura .

Ou seja, a irracionalidade das motivações pode dirigir ao irracional de baixo, à demência, ou ao irracional de cima, à novidade criadora. A outra lei da psicologia das massas, segundo Tillich, é a lei da amplificação. Se a vida espiritual do indivíduo perde suas inibições, se tal fato se repete em cada indivíduo presente, como num alternador, o vivido por um, suscita em outro experiência idêntica, porque a massa vivencia ela própria o ser massa. Essa lei nos leva a dois aspectos da vida da alma, o aspecto emocional e o aspecto intelectual.

Em todo movimento da massa podemos observar a força do entusiasmo, a amplificação das paixões, da coragem, que podem levar ao seu sacrifício e destruição. Do lado intelectual, a lei da amplificação age de forma mais discreta, porque o processo de reflexão não convém à massa por causa de sua complexidade . De certo ponto de vista, explica Tillich, o indivíduo está mais alerta que a massa, mas a massa pode se elevar bem acima das consciências subjetivas, com suas intuições mais simples, mas também maiores e também com sua clarividência disso, que prepara o espírito objetivo no momento presente . A amplificação pode levar ao monumental e ao heroísmo, mas também ao demoníaco e à destruição. E as intuições da massa podem se conformar ao espírito ou lhe ser refratário.

As leis da psicologia das massas são leis naturais, afirma Tillich. Elas são sempre válidas e necessárias onde uma pluralidade se encontra reunida. Elas têm valor para todos os estamentos sociais, para um grupo de marginais, assim como para uma assembléia de nobres. Com ironia superior, elas regem uma reunião de convencidos individualistas, assim como explicam o sentimento de superioridade existente na palavra massa, quando usado como slogan . Segundo Paul Tillich, no conceito material de massa, a essência de um grupo de homens determinado é ser essencialmente formado conforme a psicologia das massas .

Por isso, no sentido histórico do termo, a massa, quer sejam classes ou ordens, raças ou círculos, partilha do destino de ser excluído de toda formação espiritual individual. Vemos, então, que para Tillich a imediaticidade da massa faz com que desabroche nela instintos biológicos que estavam inibidos no indivíduo, o que traz à tona um princípio espiritual imediato: a disponibilidade à revelação espiritual do momento presente.

Essa imediaticidade é o que leva a massa ao irracional de baixo, à demência, ou ao irracional de cima, à novidade criadora. Ao lado da imediaticidade, os aspectos emocional e intelectual são amplificados. As forças do entusiasmo e da coragem são amplificadas de tal modo que podem levá-la ao sacrifício e destruição. Assim, a massa se eleva acima das consciências individuais com intuições simples, mas com clarividência disso. Este processo prepara o espírito objetivo no momento presente. Quando objetivamente a massa vive esse processo de espiritualização, nela, religião e cultura se misturam. A esse primeiro momento de evolução da massa Tillich chama de massa mística.

No contexto geral de uma análise do socialismo, não se pode deixar de levar em conta que a evolução histórica dá nascimento a diferentes tipos de massa, conforme o modelo de desenvolvimento das relações entre religião e cultura. O primeiro estado consiste em uma unidade onde os dois ainda não se distinguem. Uma segunda etapa é marcada pela autonomia da cultura: assim, ela se diferencia mais e mais da religião, a ponto de gerar a secularidade moderna. Mas esta ruptura e separação são catastróficas tanto para a cultura como para a religião. E serão então superadas pela etapa final da teonomia, caracterizada pela presença de conteúdo religioso em todas as formas autônomas da cultura .

Podemos facilmente reconhecer os elementos desse esquema na descrição que Tillich faz dos diferentes tipos de massa. A massa mística corresponde à religião de origem: é a fusão dos indivíduos numa única comunidade que engloba tudo. Vem em seguida a etapa da autonomia, onde os indivíduos se diferenciam cada vez mais da comunidade de origem, até tornarem-se completamente independentes e separados. Mas ainda é massa sem forma e cultura, que não se colocou em movimento e caminhou para um estado de individualização. Essa é o estado de massa técnica ou mecânica, característico da moderna sociedade industrializada .

A partir daí surge a perspectiva de uma etapa final onde a massa e a individualidade pessoal formarão uma nova união, uma síntese nova, chamada massa orgânica, que corresponderá ao ideal da teonomia. Logicamente, nem sempre se caminhará em direção a este ideal: mas o tempo histórico que orienta nessa direção é o da massa dinâmica . Dessa maneira, para Tillich, a massa dinâmica é sempre revolucionária, não unicamente no sentido político do termo – inclusive este é o sentido menos freqüente --, mas sempre em um sentido de fé espiritual e social. É necessário que ela seja revolucionária, porque o sentido de seu movimento é precisamente ir além do estado de massa e todas as formas que são responsáveis por este regulamento .

Assim, para Tillich o movimento da massa dinâmica parte da massa mecânica e é essencialmente um movimento de libertação: o movimento da massa dinâmica parte da massa mecânica, já existente ou em perigo de aparecer, e visa a supressão da massa, visa à massa orgânica, não importando que esse começo seja ou não atendido.

Vemos aqui que Tillich tem uma compreensão diferente daquela de Gramsci, que entende a vanguarda enquanto intelectualidade orgânica, mas não vê a massa em processo dinâmico que pode levar ao surgimento de uma massa orgânica. Sem desejar fazer um confronto entre os dois pensadores, tocamos apenas no ponto que metodologicamente nos interessa: a vanguarda não se limita ao militante ou intelectual, é um processo maior que tem na massa orgânica uma dupla ação, de liderança da sociedade e de transformação da situação-limite.

Uma tal visão abre perspectivas interessantes na análise e compreensão de diferentes situações históricas, em especial do momento vivido pelo Brasil no final dos anos 70. A questão da transformação da sociedade, a luta pela democratização e a formação do Partido dos Trabalhadores são compreendidos melhor através do caminho metodológico construído por Paul Tillich em seus escritos socialista. E como ele afirmou, todas as questões convergem para uma mesma resposta: a humanidade deve ter origem nas profundezas de um novo conteúdo, onde será superada a oposição entre massa e personalidade. Onde um novo conteúdo será produto da graça e do destino.

3. O SOCIALISMO ENQUANTO UTOPIA FUNDANTE

3.1. Um sonho em construção

As abordagens teóricas Paul Tillich e de Enrique Dussel abrem perspectivas para a compreensão do socialismo e da análise de diferentes situações históricas, em especial do momento vivido no final dos anos 70 no Brasil. A questão da transformação da sociedade, a luta pela democratização e a formação do Partido dos Trabalhadores podem ser compreendidos através do caminho metodológico construído por Paul Tillich. A análise dos processos de evolução da massa, enquanto massa mística, dinâmica e, por fim, orgânica, nos ajuda a entender o processo que levou à convocação feita em 24 de janeiro de 1979, no IX Congresso dos Trabalhadores Metalúrgicos de São Paulo, na cidade de Lins, quando sindicalistas aprovam a tese apresentada pelos metalúrgicos de Santo André, chamando todos os trabalhadores brasileiros a se unificarem na construção de seu partido, o Partido dos Trabalhadores. Esse documento ficará conhecido como a Tese de Santo André-Lins.

Em 16 de junho de 1979, o jornal Versus, formado por intelectuais socialistas, perguntou: Que fenômeno é este, o do tal Partido dos Trabalhadores? E o próprio jornal apresentou aos seus leitores uma análise daquele partido que começava a surgir.

Antes que nada ele parte de um elemento, o desenvolvimento econômico e social dos últimos vinte anos, que geraram duas novas classes, uma classe operária industrial, altamente concentrada nos grandes centros urbanos e uma classe média assalariada moderna. Desde 1978, tanto os operários como esta classe média estão num processo de mobilização.

Essa combinação de fatores, o surgimento de estratos novos na sociedade e o conjuntural – um ano de mobilização – levam ao surgimento (ou condicionam o surgimento) de fenômenos novos na sociedade.

(...) A idéia do PT surge então de quatro fatores: (1) de uma nova realidade social; (2) das mobilizações e lutas que estão se dando há mais de um ano e que geram uma nova experiência, não somente sindical, mas democráticas e política; (3) a não existência de alternativas para esta nova vanguarda, que necessita expressar-se politicamente; e (4) de que esta necessidade se expressou através de algumas direções sindicais (...), que cumpriu um papel mais ideológico.

De toda a maneira, o Partido dos Trabalhadores não estava nos planos do governo. Sua intenção é de que todos os dirigentes sindicais classistas e autênticos, assim com o ativismo, estejam controlados pelo PTB ou o MDB. Esta é a única garantia para a burguesia, enquadrá-los e vencer o movimento de massas através de uma saída democrática controlada, entrilhando seu descontentamento para a luta estritamente parlamentar.

Na verdade a construção do PT passa por grandes dificuldades. Como os dirigentes sindicais chegaram à questão do PT através do classismo, como mediação entre a questão democrática e política, por uma necessidade, e não exatamente por um salto de consciência, o Partido dos Trabalhadores passa a ser de difícil concretização. Os dirigentes sindicais estão procurando um partido, algo que possa cumprir uma necessidade que têm. Como antes o projeto do PTB estava distante, eles começaram a baralhar a hipótese do PT, mas na medida em que o PTB venha a concretizar-se, aumenta a possibilidade de que os classistas aceitem esta alternativa. Já que á mais fácil entrar numa partido do que construir um.

Todo o processo novo que se dá a partir de mais de 1978 é muito rico porque combina e interliga muitas coisas, como o fato de que setores do movimento de massas se mobilizem a partir do sindical, mas também combinam o democrático e o político e geram uma importante vanguarda, mas se dá de forma desigual e combinada, mais ainda, não é um fenômeno ideológico, mas concreto.

Assim, diríamos que se dão, misturados, três níveis de consciência. Um primeiro mais amplo, que é o sindical-classista e que se traduz no surgimento de uma nova vanguarda classista, em sindicatos autênticos, chapas classistas de oposição, vencedoras, etc.

O segundo nível de consciência é o classista-político, o mais heterogêneo, que se traduz na compreensão empírica, vacilante e não claramente definida ainda, da necessidade de um partido sem patrões, que expresse as necessidades mais gerais da classe trabalhadora. Isto é laborismo.

E o terceiro nível de consciência seria o da consciência revolucionária, daqueles que entendem a necessidade de um partido socialista para a transformação da sociedade.

Sem entender que existem níveis diferentes de consciência e desigualdades não entenderemos o processo vivido pelo PT. A construção do Partido dos Trabalhadores depende dos próprios trabalhadores. A participação dos socialistas nesta construção pode ser fundamental, mas ainda assim é secundária. De todas as maneiras, caso se concretize o PT será talvez o maior salto que a classe operária brasileira já deu no processo de consolidação de sua consciência-para-si. E, um rombo efetivo nos planos de Figueiredo. Dezesseis de junho de mil novecentos e setenta e nove. Anno domini.

Estamos em março de 1979. O regime militar esta chegando ao fim semeando prisões, fome e morte. O autoritarismo se realiza como fetiche, já que a ditadura se ergue como critério de verdade, destruindo vidas humanas e a dignidade de milhões de brasileiros. Militantes, socialistas e sindicalistas levantam um princípio universal: o dever da construção de alternativas políticas próprias aos excluídos. Princípio este que é objetiva e subjetivamente negado pelo regime militar e pelo arbítrio. No ABC paulista a abertura lenta e gradual proposta pelo governo militar faz água.

Neste mês de março, 180 mil metalúrgicos entram em greve quando mal tinha chegado à presidência o general Figueiredo. O governo decreta a intervenção nos sindicatos e destitui seus dirigentes. Algumas semanas depois, volta atrás e revoga a intervenção. Sete meses depois, No dia 13 de outubro de 1979, 130 sindicalistas e militantes que representam seis estados da Federação, lançam o Movimento pelo Partido dos Trabalhadores, no salão de festas do restaurante São Judas Tadeu, em São Bernardo do Campo. Aprovam uma Declaração Política e uma Plataforma Política, que definem as reivindicações que o Movimento levantaria de imediato. Aprovam ainda as Normas transitórias de funcionamento e lançam uma Nota contra a reforma partidária proposta pelo governo. Elegem também uma Comissão Nacional Provisória, composta por 17 pessoas, para dirigir o Movimento até a fundação do PT.

No correr do ano seguinte, os sindicalistas, socialistas e cristãos de esquerda fundam o Partido dos Trabalhadores, Assim, no dia 10 de fevereiro de 1980, com a presença de 1200 pessoas, entre os quais intelectuais como Mário Pedroso, Sérgio Buarque de Holanda e Lélia Abramo, o Partido dos Trabalhadores realiza no Colégio Sion, em São Paulo, seu ato de fundação. Por aclamação é aprovado o Manifesto do partido, que é publicado no Diário Oficial da União de 21 de outubro do mesmo ano.

Meses depois, em reunião nacional de fundação do PT, que acontece no dia 1º de junho de 1980, no Instituto Sedes Sapientiae, em São Paulo, são aprovados o Programa de Ação e o Estatuto do Partido. Além de defender a liberdade de organização partidária e sindical, e pronunciar-se a favor de melhores condições de vida, o Plano de Ação defendeu também a reforma agrária, a independência nacional e deu seu apoio às lutas das mulheres, negros e índios.

No encontro realizado na Assembléia Legislativa de São Paulo, nos dias 8 e 9 de agosto de 1981, o PT “assume como bandeira central a luta contra o desemprego” e define que realizará “na segunda quinzena de setembro um Dia Nacional de Luta contra o Desemprego, apoiando todas as iniciativas do movimento popular no mesmo sentido”. Relacionando os problemas nacionais com a questão eleitoral, o PT declara que “luta por eleições livres e diretas em 1982 e 1984 e combate a fixação de regras que desvirtuem o caráter democrático do voto”.

3.2. Carta de Brasília

É dentro desse contexto que devemos entender as propostas de socialismo que se fazem presentes na formação do Partido dos Trabalhadores. Assim, no dia 27 de setembro de 1981, em Brasília, o PT realiza sua primeira Convenção oficial. Ele já estava legalizado em 16 estados. Em seu discurso, Lula, define o PT como partido socialista, é tal declaração é aprovada como documento básico do Partido dos Trabalhadores. “Há muita gente que pergunta: qual é a ideologia do PT. O que pensa o Pt sobre a sociedade futura? (...) Nós do PT sabemos que o mundo caminha para o socialismo. Os trabalhadores que tomaram a iniciativa histórica de propor a criação do PT já sabiam disto muito antes de terem sequer a idéia da necessidade do Partido. (...) O socialismo que nós queremos irá se definindo nas lutas do dia-a-dia, do mesmo modo como estamos construindo o PT. O socialismo que nós queremos terá que ser a emancipação dos trabalhadores. E a libertação dos trabalhadores será obra dos próprios trabalhadores”. Numa definição o bastante ampla para não entrar em choque com stalinistas, trotskistas e marxistas dos mais diferentes matizes, Lula prefere optar pela fórmula “o socialismo que nós queremos irá se definido nas lutas do dia-a-dia...”.

É interessante ver que, em 1980, Paul Singer afirmava que o socialismo que decorre das lutas atuais dos trabalhadores dos setores economicamente mais avançados constitui uma reformulação profunda do que se concebia como socialismo há apenas algumas décadas. A reformulação mais drástica é provavelmente a rejeição da idéia de que o socialismo deve ser implementado a partir da conquista do poder político, o que implicava a noção de que o socialismo seria, em essência, realizado por um poder político que a tanto se propusesse. A lógica do raciocínio se baseava no pressuposto de que o socialismo resultaria da socialização dos meios de produção, entendida como abolição da propriedade privada dos mesmos.

Ora, hoje, após diversas tentativas fracassadas de chegar ao socialismo desta maneira, sabemos que socializar só pode significar submeter os meios de produção ao controle coletivo do conjunto dos trabalhadores. Como vimos, porém, a natureza das forças produtivas atualmente disponíveis faz com que o controle imediato da produção social seja exercida por uma camada de técnicos e administradores – e enquanto isso tiver de ser assim a essência da socialização não consiste em subordinar formalmente esta camada a um poder dito proletário ou socialista, mas em submetê-las de fato à hegemonia da classe trabalhadora. Mas isso significa que, em lugar de conquistar o poder político, o que os socialistas têm de fazer é dividi-lo de tal modo que as decisões finais sejam tomadas, direta ou indiretamente, pela classe trabalhadora. Em outras palavras, a burguesia dividiu o poder político em três ramos – executivo, legislativo e judiciário – para impor sua hegemonia, o proletariado não pode reunifica-lo, a pretexto de conquista, sem acabar por ser dominado pelos que de fato o exercem.

(...)

Isso significa também que o âmbito da luta pelo socialismo é muito maior que o plano político convencional. Não é só o poder do Estado que tem de ser transformado, mas todo9 poder exercido autoritariamente: o do patrão na empresa, do professor na escola, do oficial no Exército, do padre na igreja, do dirigente no sindicato ou no partido e, por fim mas não por último, do pai na família. De todos estes, provavelmente a soberania do Estado e a autocracia patronal ou gerencial na empresa são as formas fundamentais do poder, cuja transformação condicional as demais. Mas nem por isso há qualquer razão para restringir a prática de libertação a estas duas instituições. A luta pelo socialismo requer a mobilização de toda a população e, portanto, as lutas antiautoritárias têm de ser suscitadas em todas as instituições no pressuposto, confirmado pela experiência, que as práticas de libertação tendem, em geral, a se reforçar mutuamente, na medida em que a legitimidade de todas é reconhecida, ao passo que a tentativa de se considerar uma luta específica como prioritária e contendo em si a solução das demais – “uma vez conquistado o poder e eliminada a propriedade privada dos meios de produção, tudo o mais se resolver sem atrito nem demora” -- só tende a dividir os movimentos de libertação e sectarizá-los.

O socialismo só será alcançado após uma extensa e vitoriosa prática de libertação, que abra caminho, ao mesmo tempo, ao desenvolvimento de novas forças produtivas e à socialização completa do trabalho intelectual.

3.3. Terra, trabalho e liberdade

Em seu 2º Encontro Nacional, realizado no Instituto Sedes Sapientiae, em São Paulo, nos dias 27 e 28 de março de 1982, o PT aprova Plataforma Eleitoral Nacional e afirma:

A campanha eleitoral do PT é muito diferente de todas as que nós, trabalhadores, participamos até hoje. É diferente porque temos o nosso Partido e escolhemos os nossos próprios candidatos; porque o PT combate a compra do voto, o cabo eleitoral e as promessas demagógicas. A campanha eleitoral do PT é diferente porque é, antes de tudo, uma grande campanha de mobilização e organização dos trabalhadores, a partir das principais reivindicações do movimento popular. A campanha eleitoral do PT é uma campanha de luta, quer dizer, uma campanha que se compromete com todas as lutas dos trabalhadores. Assumindo as principais reivindicações dos trabalhadores da cidade e do campo, lutamos para acabar com a fome e o desemprego, por melhores salários e terra para plantar e para morar, para que nossos direitos sejam respeitados no campo e na cidade, para sair de baixo da operação dos tubarões.

Numa linguagem direta e popular, o PT nesta plataforma para as eleições de 1982 mostra a triste realidade daqueles que se equilibram sobre baixos salários ou vivem a experiência desesperadora do desemprego.

Cada vez que você sai de casa para fazer compras, você se assusta com a alta dos preços. Qualquer dia, o seu salário não vai dar nem para um mísero quilo de feijão. Não é para menos, porque os salários não aumentam a cada dia, como aumentam os preços.

E se você é um camponês, a dureza é a mesma. Você se mata na plantação e, quando vai vender o que produziu, não dá nem para pagar o que gastou. Isso, se o grileiro já não lhe tomou a terra e você, sem achar trabalho no campo, não está agora aos trancos e barrancos, chegando à cidade para começar tudo de novo.

Pior ainda se você é um dos tantos desempregados deste país. Você deixou muito do seu suor produzindo para o patrão e, um belo dia, ele mandou você embora. Agora, sem salário, você não tem como garantir a comida na sua casa.

Para enfrentar esta situação, o PT faz algumas propostas: um salário mínimo unificado, que dê para garantir ao trabalhador e à trabalhadora uma vida decente, e que seja reajustado a cada três meses, na mesma medida da inflação; estabilidade no emprego; salário-desemprego; criação de uma cesta básica de alimentos a preço fixo, que o Estado – e não os grandes atacadistas – se encarregaria de comprar no campo e vender na cidade; redução de jornada de trabalho para 40 hora semanais, sem redução de salário.

3.4. Somos todos iguais

O Brasil que queremos não é apenas o povo comendo, morando, tendo saúde, vestindo e se educando. A vida que desejamos tem que ser baseada, sobretudo numa relação profundamente humana e fraterna, igualitária, entre as pessoas, sem nenhum tipo de discriminação.

E nesta questão a situação no Brasil é grave. A mulher é tratada como ser de segunda categoria. A ela cabem os piores empregos e os menores salários, além de estar submetida a dupla jornada de trabalho, pois acumula as tarefas de casa. A todo momento, é subjugada e humilhada, oprimida, não só como trabalhadora, mas também como mulher.

O preconceito de cor é real. Os negros não têm os mesmos direitos que os brancos e, antes de mais nada, são tidos como suspeitos e marginais. Os índios são tratados como débeis mentais, massacrados física e culturalmente, não sendo respeitadas nem mesmo as suas reservas de terras. Os homossexuais são humilhados e discriminados, tratados como doentes ou caso de polícia.

Exigimos igualdade nas leis que regem a família, o trabalho e a sociedade; o direito ao trabalho, à profissionalização e extensão dos direitos trabalhistas a todas as trabalhadoras, a exemplo das empregadas domésticas, e respeito ao direito de salário igual para trabalho igual.
3.5. O socialismo é a solução

Desde sua fundação, o PT afirmou o compromisso com a construção de uma sociedade sem explorados. Isto é, o seu compromisso com a construção de um Brasil socialista. E isto porque, tendo nascido das lutas dos trabalhadores, o PT desde o início percebeu que os meios de produção deveriam ser de propriedade social, servindo não aos interesses individuais de um ou de outro proprietário. Queremos uma sociedade em que os homens sejam valorizados e onde nenhum homem possa ter o direito de explorar o trabalho de outro. Uma sociedade em que cada um e todos possam ter iguais oportunidades para realizar suas potencialidades e aspirações.

Essas são as bases matriciais da formação do Partido dos Trabalhadores, onde o socialismo se colocou como utopia fundante. Até aqui chegamos. O que nos reserva o futuro e onde se situará a mito socialista na era Lula, esta já é outra questão.
Jorge Pinheiro, Toulouse, 2003.

jeudi 30 avril 2009

O cristianismo e a filosofia ocidental -- Filosofia II

Para análise e discussão em sala de aula.

O cristianismo e a filosofia ocidental, por Maria Leonor Xavier
I Colóquio sobre Filosofia da Religião
WEB: http://religioes.no.sapo.pt/leonor2.html

O cristianismo e a filosofia são duas construções da civilização ocidental. Pensar a relação entre as duas é um desafio necessário, porque há um desejo de compreender os fatores estruturantes do desenvolvimento da filosofia no Ocidente, entre os quais se encontra inelutavelmente o cristianismo, e, por outro lado, há o desejo de compreender porque cristianismo continua a exercer um fascínio crescente, apesar das múltiplas contradições da sua história. Ambos são motivos da vontade filosófica de compreensão, mas esta vontade é dimensão indissociável da experiência religiosa na sua integralidade.

Compreender a influência estruturante do cristianismo no desenvolvimento da filosofia ocidental exige a consideração da interação histórica entre cristianismo e filosofia. Compreender a força que o cristianismo continua a suscitar exige uma permamente reflexão da presença filosófica nesta construção religiosa. Donde o esforço por encontrar o essencial do cristianismo. Mas haverá uma essência do cristianismo, separável da sua história? Muitas têm sido as interpretações do cristianismo que valorizam ou desvalorizam a relação com a sua história. Não cabe eliminar interpretações, mas elaborar uma compreensão que responda aos questionamentos colocados pela alta Modernidade. Partimos do fato de que existiu uma correlação de aspectos da história do cristianismo com a tradição filosófica ocidental. Deste modo, a filosofia, enquanto fator de apreensão do essencial do cristianismo, pode ajudar na busca de sua essencialidade.

Por isso, começamos com a questão do cristianismo enquanto filosofia para chegar à questão do essencial do cristianismo. Entre as duas questões cabe, então, a reflexão sobre a interação histórica entre cristianismo e filosofia. Não se trata de retrospectiva histórica dessa interação, mas de realçar dados e analisar referências, como os testemunhos da influência do cristianismo na história da filosofia e, também, da filosofia na história do cristianismo.


1. O cristianismo como filosofia em questão
Ao pensar a relação entre cristianismo e filosofia ocidental nos colocamos diante de uma questão: é de fato o cristianismo uma filosofia? Esta é uma questão que ressurgiu nos anos 1930 e envolveu dois historiadores da filosofia, Émile Bréhier e Étienne Gilson. Bréhier negava a marca filosófica do cristianismo, Gilson, ao contrário, defender o caráter filosófico do cristianismo. A controvérsia repercutiu entre pensadores cristãos, que acrescentaram versões do que se poderia ser entendido como filosofia cristã. Essa agregou duas linhas de interpretação: uma de que a filosofia cristã é uma concepção do universo elaborada com base nos textos bíblicos; a outra identificou a filosofia cristã com uma filosofia que parte dos seus próprios recursos e atinge resultados afins ao cristianismo. Na primeira linha de interpretação, uma filosofia é cristã por ter nas Escrituras o seu fundamento, enquanto, na segunda linha de interpretação, uma filosofia é cristã no fim do processo de construção de suas teses. No entanto, estas duas linhas de compreensão do conceito de filosofia cristã não são novas. Ambas encontram correspondentes em referências dos primeiros séculos do cristianismo. A admissão de que o cristianismo comporta uma filosofia foi partilhada por autores como Justino de Roma, Clemente de Alexandria, Orígenes e Agostinho de Hipona. Ao lado dessa admissão, outra corrente dizia que a tradição filosófica oferecia filosofias, umas mais próximas do cristianismo, outras menos, tendo sido as filosofias de origem platônica, aquelas que foram escolhidas pelos primeiros filósofos cristãos como as mais compatíveis com o cristianismo.

Haverá, então, alguma diferença entre a contemporaneidade e o passado quanto à defesa da noção de filosofia cristã? Os autores contemporâneos defendem a noção de filosofia cristã num contexto de separação crítica entre filosofia e religião, Já os autores do passado defenderam uma noção afim de filosofia cristã num contexto de proximidade entre filosofia e religião. Este contraste de ordem contextual não é, porém, exterior à concepção da natureza da filosofia e da religião, antes comporta uma alteração susbstancial relativamente à índole de ambas, pelo que não é possível abstrair dele. Alteração essa, que se repercute significativamente, em especial, na relação entre filosofia e cristianismo. Se filosofia e religião são incomunicáveis entre si por natureza, qualquer determinação da filosofia pela religião, ou da religião pela filosofia, tornar‑se‑á forçada e abusiva. Se, em contrapartida, filosofia e religião são de natureza semelhante, ou partilham aspectos respectivamente essenciais, resulta natural e plausível a interação de ambas.

Na civilização helenística, que se estendia pelas regiões da bacia do Mediterrâneo, nos primeiros séculos da nossa era, filosofia e religião não eram domínios entre si incomunicáveis. Daí que a conversão de filósofos ao cristianismo não implicasse ruptura com a filosofia, antes proporcionasse a elaboração de um sentido de continuidade entre filosofia e cristianismo. É esse o caso de Justino, uma das mais antigas e ilustrativas referências da história cruzada do cristianismo e da filosofia. Na tradição do cristianismo, Justino é mencionado como um dos primeiros apologistas. Mas, ao fazer apologia do cristianismo, Justino fez também apologia do cristianismo como filosofia. No início do seu Diálogo com Trifão, Justino narra simbolicamente a sua conversão ao cristianismo, como resultante do encontro com um ancião, que lhe dá a conhecer uma nova filosofia. Antes desse encontro, Justino tinha já um percurso de busca em filosofia, visto que tentara freqüentar diversas escolas filosóficas. A filosofia de que Justino parece ter conhecimento mais desenvolvido e assumido, por ocasião do seu encontro com o ancião, é uma filosofia de linhagem platônica. São lugares comuns dessa filosofia, como a natureza divina e transmigratória da alma ou a contemplação puramente inteligível do divino, que o ancião contesta, no seu diálogo com Justino platônico. Essa contestação, que conduz Justino a questionar o seu platonismo, faz parte do seu processo de conversão ao cristianismo. Outra parte desse processo é a contraposição de novas teses, em alternativa às teses rejeitadas do platonismo: à natureza divina e transmigratória da alma, o ancião contrapõe a natureza mortal da alma criada; à contemplação inteligível do divino, o ancião contrapõe a possibilidade de um conhecimento apenas mediato e indireto de Deus. Estas teses, que o ancião contrapõe ao platonismo de Justino, são teses de uma nova filosofia: o cristianismo. O ponto de vista crítico do cristianismo sobre o platonismo, no texto de Justino, mostra que não foi sem reservas que a tradição do cristianismo veio a adotar a tese platônica da imortalidade da alma, bem como a possibilidade de uma visão direta de Deus. Nestas matérias, o cristianismo surge filosoficamente mais céptico do que o platonismo. De qualquer modo, é na relação com o platonismo que, segundo Justino, o cristianismo afirma a sua diferença, como filosofia.

Terá sido, então, o encontro entre Justino platónico e o ancião cristão que originou a adesão de Justino a uma nova filosofia. Através desse simbólico encontro, Justino sugere‑nos que ele próprio assumia a sua adesão ao cristianismo como uma conversão filosófica, o que não afectava de superficialidade, o sentido da conversão religiosa, uma vez que filosofia e religião não eram de natureza díspar. Os dois domínios cruzavam‑se em áreas de interesse comum, como as da reflexão teológica e ética. Questões pertinentes da filosofia sobre a divindade eram, segundo Justino, a questão da unicidade ou da multiplicidade divina, bem como a questão da extensão da providência divina ao particular. Justino considera, porém, que a tradição da filosofia grega não foi muito longe no aprofundamento destas questões, e não é sem argumentação que ele indica as suas decisões no âmbito das mesmas questões. Com respeito à primeira, a filosofia do cristianismo pronuncia‑se, pela voz do ancião, a favor da unicidade divina, argumentando por redução ao absurdo, ou seja, denunciando as dificuldades racionais de uma investigação das causas para as diferenças a supor entre múltiplos hipotéticos incriados. Este procedimento ilustra bem que, a propósito de uma das questões basilares de teologia filosófica, o cristianismo de Justino está ainda longe de se assemelhar a uma teologia dogmática, comportando‑se de facto como uma filosofia que assume o ónus da prova. Com respeito à segunda questão teológica mencionada, a questão relativa à extensão da providência divina, Justino preconiza a extensão da providência divina ao indivíduo, e fá‑lo, não por razões de ordem teológica, mas em razão da ética: se Deus não se interessasse pelos indivíduos, de forma a premiá‑los pelos actos bons e a puni‑los pelos maus actos, tornar‑se‑ia indiferente, para o destino humano, agir bem ou mal, e, por conseguinte, perderia sentido e eficácia qualquer exigência de ordem ética. Nós podemos decerto contra‑argumentar, advertindo de que a extensão individual da providência divina, assim preconizada por Justino, condicionaria a ética pelo interesse nos seus frutos, tornando‑a interesseira. Justino não dá resposta explícita a esta objecção, mas talvez nos respondesse que a ética não é auto‑sustentável para o ser humano, requerendo, por isso, uma ordem de sustentação teológica. De qualquer modo, teologia e ética são domínios próprios e essenciais da filosofia, para Justino. A rectidão de vida não é uma preocupação opcional do filósofo, mas é a sua indeclinável prioridade. Ao afirmar que santos são os filósofos, Justino faz coincidir a noção de santidade com a exigência filosófica de rectidão. De acordo com essa afirmação, o estatuto de filosofia não diminuía, ao olhar de Justino, a grandeza do cristianismo. Caso contrário, ele não teria tentado criar uma escola de filosofia cristã em Roma, conforme reza a tradição.

Mas o que é que permitia essa tão estreita comunicação, senão mesmo coincidência, entre filosofia e religião, que se verifica na concepção justiniana do cristianismo como filosofia? A consideração de uma fonte comum de sabedoria. Mas era possível que a filosofia e o cristianismo partilhassem a mesma fonte de sabedoria? Os primeiros filósofos do cristianismo admitiram que sim: o cristianismo não veio senão manifestar plenamente a mesma fonte que havia alimentado a tradição da filosofia grega. Nesta tradição, a fonte de sabedoria, que era princípio de inteligibilidade do universo, recebera por vezes o nome de «Logos», como no caso do estoicismo. A tradição do cristianismo podia adoptar esse mesmo nome, no seguimento de um dos textos mais célebres e, filosoficamente, mais interpelativos do Novo Testamento: o Prólogo do Evangelho de João. Este texto começa dizendo: «No princípio era o Logos, e o Logos estava com Deus e o Logos era Deus. Ele estava no princípio com Deus. Tudo foi feito por ele, e sem ele nada foi feito» (Jo. 1, 1‑3). Este enigmático início do Evangelho joanino permite conceber um Logos primordial e divino, que está na origem de todas as coisas. Assim concebido, o Logos divino podia agir, desde o princípio, em todas as coisas, no ser humano inclusive. O Prólogo joanino elege, aliás, o ser humano como destinatário privilegiado da actividade do Logos. Por um lado, «o Logos era a luz verdadeira, que ilumina todo o ser humano» (Jo. 1, 9). Em virtude desta acção iluminadora, o Logos podia ser identificado com a fonte universal de sabedoria no ser humano. Assim o entenderam os primeiros filósofos cristãos, como Justino, através da sua noção de Logos seminal; como Clemente, através das múltiplas revelações do Logos, na filosofia, na profecia e na poesia; ou como em Agostinho, através da sua noção de Mestre interior ou de Verdade iluminadora. Por outro lado, «o Logos fez‑se carne e habitou entre nós» (Jo. 1, 14). Em virtude desta incarnação do Logos, ele deu‑se a conhecer em pessoa, e, desse modo, manifestou‑se totalmente. Daí a noção de Logos total, em Justino, para quem a religião de Cristo era a filosofia do Logos total, e, por isso, a mais verdadeira filosofia.
Os antigos defensores do cristianismo como filosofia, ou em estreita conexão com a filosofia, entenderam‑no com uma vocação comunicante e inclusiva, capaz de assumir a confluência de, pelo menos, duas tradições distintas, a filosofia grega e a profecia judaica, a partir de uma fonte comum de sabedoria. Quanto aos recentes defensores da noção de filosofia cristã, poderiam eles conceber essa noção à luz de uma fonte de sabedoria, comum à filosofia e ao cristianismo? Não, eles não ousariam já reclamar um laço tão profundo.

Aqueles que admitiram que a filosofia pode apurar conteúdos compatíveis com o cristianismo, procuraram decerto restabelecer alguma continuidade entre a filosofia e o cristianismo, mas a noção de filosofia cristã daí resultante não constitui senão uma semelhança acidental entre filosofia e cristianismo. Aqueles que, por seu turno, admitiram que o cristianismo inclui uma mundividência própria, capaz de constituir uma filosofia diferente, procuraram decerto restabelecer relações entre o cristianismo e outras mundividências, mas a noção de filosofia cristã, assim concebida, não é senão uma diferença acidentalmente resultante da análise comparativa de conteúdos.

Neste âmbito, é apreciável o contributo de C. Tresmontant, que, nos anos 60 do séc. XX, elaborou uma noção de metafísica do cristianismo, cuja parte fundamental é a metafísica judaico‑cristã da criação, que ele demonstrou ser irredutivelmente diferente do sentido da génese da realidade quer na filosofia neoplatónica quer na gnose quer nos Upanishades. É certo que este género de análise comparativa corre sempre o risco de sacrificar a compreensão em profundidade de cada uma das tradições em confronto, justapondo e nivelando o que nem sempre deve ser reduzido ao mesmo nível, como bem o fez notar Carlos Silva. Todavia, a análise de Tresmontant tem, para nós, o grande mérito de recolocar a questão do que seja mais próprio do cristianismo, após quase dois milénios de história, sem recusar o diálogo com outras tradições antigas de sabedoria, susceptíveis não só de fazer sobressair como de diluir o sentido desse próprio.

Outrora, também Orígenes partilhou a busca da filosofia própria do cristianismo. Ele considerou com justeza que a Bíblia não demitia a filosofia, antes a solicitava, porque, para além do que ela diz explicitamente, há também o que ela diz implicitamente e aquilo que ela permite dizer; à filosofia, cabia tornar explícito o implícito e discernir os possíveis que a letra dos textos bíblicos autoriza. A filosofia do cristianismo era, para Orígenes, um desenvolvimento natural da exegese bíblica. E que filosofia do cristianismo veio ele a apurar? Uma mundividência que incluía uma criação eterna, em virtude da eternidade do atributo divino de criador, e os seres humanos, como seres espirituais criados, que, por negligência na contemplação do eterno, caíram em corpos do mundo material, destinado a acolhê‑los. Estes indícios convêm mais a uma filosofia própria do cristianismo ou a uma forma derivada de platonismo? A análise comparativa de conteúdos permite discernir melhor em questões como esta.

A consideração dos conteúdos tornou‑se a mediação possível no restabelecimento da relação entre filosofia e cristianismo, para os defensores da noção de filosofia cristã, no passado recente. Eles já não podiam fazer apelo a uma fonte comum de sabedoria; eles tornaram‑se inelutavelmente reféns de uma separação extremada entre filosofia e religião. A relação crítica entre filosofia e cristianismo, em particular, tendeu a confinar‑se habitualmente à dualidade entre razão e fé, como se a razão fosse isenta de crenças e a fé fosse desprovida de razões. A dualidade de razão e fé procede da distinção escolástica entre ambas, que promovia a aplicação da razão à fé; na medida em que essa aplicação se foi transformando numa instrumentalização, ela desencadeou um processo de emancipação da razão, que parece ter conduzido a dissociá‑la irremediavelmente da fé. Essa dualidade tornou‑se de certo modo intransponível: se nos perguntarem pela fé, não nos pedem razões; se nos perguntarem pela razão, não nos pedem crenças ou convicções. Essa dualidade tornou‑se de certo modo opaca: se não nos perguntarem o que é a fé, nós julgamos saber do que se trata, mas, se nos perguntarem, nós teremos grande dificuldade em explicar; e a razão, saberemos nós explicar melhor o que seja? Numa fase pós‑kantiana da filosofia, já não podemos, através da razão, nem participar numa fonte superior de sabedoria nem intuir inteligíveis, resta‑nos analisar conceitos. Neste contexto, dificilmente poderia vingar alguma noção de filosofia determinada pela religião. De facto, a controvérsia recente em torno da noção de filosofia cristã passou à história e os esforços de implementar essa noção não tiveram continuidade. A noção de filosofia do cristianismo tornou‑se demasiado híbrida, para poder ser consistente.

2. O cristianismo e a tradição filosófica: influências recíprocas
Importa, no entanto, reconhecer que a controvérsia recente, sobre a questão do cristianismo como filosofia, não foi totalmente inconsequente. Se ela não chegou a causar o renascimento do cristianismo como filosofia, ela foi responsável pelo relançar de renovado olhar e interesse sobre a história interactiva da filosofia e do cristianismo no Ocidente. Como parte relevante desta história se dá ao longo da Idade Média, aquela controvérsia acabou por dar um enorme incremento aos estudos medievalistas, no âmbito dos quais, Gilson se tornou mestre incontestado. Um dos principais motivos da sua obra, tanto em estudos de síntese como de especialidade, foi defender que o cristianismo exerceu uma influência decisiva na história da filosofia da Idade Média e que essa influência foi um fator de diferenciação específica da filosofia medieval. Também por obra do ilustre medievalista, tornou‑se impossível contornar a filosofia da Idade Média, como se de uma excrescência obscura e inconsequente se tratasse, sem repercussão na história posterior da filosofia. O reconhecimento de linhas de continuidade entre o pensamento medieval e o moderno, na tradição da filosofia ocidental, é hoje um dado adquirido e incontroverso nos meios informados.

Não é, pois, nosso intuito aqui reavivar uma controvérsia, que julgamos ultrapassada. Pretendemos, sim, evidenciar que o cristianismo exerceu, de diversos modos, uma influência de fundo e de longa duração no desenvolvimento da filosofia ocidental, isto é, uma influência que não se esgotou nas épocas em que se fez sentir mais explicitamente, como na Patrística e na Idade Média. A fim de fazer sobressair essa influência de longo curso, convocaremos esporadicamente uma ou outra referência patrística ou medieval, a título meramente exemplificativo acerca de possibilidades que se expandem muito para além delas.

Dado, porém, que a filosofia era já uma tradição multissecular, quando do advento do cristianismo, não é de estranhar que o legado da filosofia clássica tenha exercido, por sua vez, uma apreciável influência na história ocidental do cristianismo, sobretudo, ao nível da elaboração teológica. Tal não é de estranhar, atendendo ao próprio facto de muitos dos primeiros teólogos cristãos terem sido filósofos convertidos ao cristianismo. Eles são, pois, capazes de dar testumunho de influências recíprocas, não só do cristianismo na filosofia como da filosofia no cristianismo. Não descuraremos esta reciprocidade de influências.

2.1. O teoantropocentrismo
Um dos aspectos mais relevantes da influência do cristianismo na filosofia parece‑nos ser a determinação de certas dominâncias temáticas, como sejam as dominâncias correlativas do tema de Deus e do tema do Ser humano. A filosofia, sob influência do cristianismo, tendeu a centrar‑se quer em Deus quer no Ser humano, oscilando pendularmente entre o teocentrismo e o antropocentrismo. Se quisermos sintetizar, numa só palavra, esta dupla preferência temática, diremos que a filosofia de influência cristã é teoantropocêntrica, e não poderia deixar de o ser. Objectar‑nos‑ão, porventura, que isso não é uma novidade ou uma diferença significativa, porquanto a tradição da filosofia grega não era alheia nem ao divino nem ao humano. Sem dúvida que não, mas, na antiga filosofia grega, o divino era necessário, sobretudo, à explicação da ordem do universo, não correspondia directamente às solicitações humanas. Daí a crítica dos primeiros filósofos do cristianismo aos limites, senão mesmo à ausência do sentido de providência na antiga teologia filosófica grega, crítica especialmente dirigida a Aristóteles e a Epicuro. A relação entre o humano e o divino só poderia dar‑se por via das mediações necessárias do processo de conhecimento. Em contrapartida, o cristianismo transmite o sentido de uma solicitude directa do divino para com o humano. É verdade que, por um lado, o cristianismo não poderia deixar de estimular o teocentrismo, pois no princípio era Deus. Mas Deus não ficou apenas no princípio, ele continuou velando providentemente por toda a realidade decorrente, em especial, pelo ser humano, cujas dimensões interior e histórica elegeu como domínios privilegiados de intervenção e manifestação. Por essa razão, o cristianismo não poderia deixar de estimular, por outro lado, o antropocentrismo.

Entretanto, como se verifica, na filosofia marcada por assumida influência do cristianismo, esse duplo centrismo que damos pelo nome de teoantropocentrismo? Verifica‑se na correlação entre a compreensibilidade de Deus e a do Ser humano: Deus é pensável através da compreensão do Ser humano e o Ser humano é compreensível através do que sobre Deus é possível pensar. Esta correlação era autorizada pela afirmação bíblica de que o Ser humano fora feito à imagem e semelhança de Deus (Gn. 1,26‑27), embora a afirmação da semelhança entre o humano e o divino não seja um legado exclusivo da tradição judaico‑cristã. Sob influência desta tradição, aquela afirmação obteve, porém, relevância especial e apreciável elaboração filosófica.

Agostinho de Hipona foi um dos filósofos que melhor soube explorar filosoficamente o sentido da relação de imagem e semelhança entre Deus e Ser humano. Num extenso tratado, intitulado De Trinitate, Agostinho tenta compreender como é possível pensar a unitrindade divina, ou seja, como é possível pensar que Deus, sendo uno e único, seja concomitantemente a Trindade constituída pelo Pai, o Filho e o Espírito Santo, postulada a partir da menção destes três nomes divinos nos textos do Novo Testamento. Pensar a unitrindade divina desde cedo revelou ser um dos maiores desafios teológicos do cristianismo. Agostinho procurou responder a esse desafio, recorrendo à compreensão do Ser humano, posto que fora feito à imagem e semelhança de Deus. Apreendendo no ser humano uma ordem de trindades com distintos graus de semelhança à Trindade divina, Agostinho construíu um processo de mediações para pensá‑la; discernindo diversos níveis de vida trinitária no ser humano exterior e, sobretudo, na unidade essencial do ser humano interior, Agostinho tornou analogicamente pensável a unitrindade divina. Deste modo, Deus tornava‑se pensável através da compreensão do ser humano.

Pensar Deus interessava, por sua vez, também ao aprofundamento da compreensão do ser humano. A reflexão sobre o sentido da liberdade humana, por Anselmo de Cantuária, é ilustrativa a esse propósito. Insatisfeito com a acepção de uma liberdade igualmente disponível para o bem e para o mal, Anselmo empenhou‑se em elaborar o sentido de uma liberdade reclamada como capacidade de resistir ao mal. Esta liberdade define‑se, em De libertate arbitrii, como o poder de guardar a rectitude da vontade pela própria rectitude. Assim definida, a liberdade confina com a fidelidade desinteressada à rectitude. Todavia, esta liberdade, ou esta fidelidade, é apenas um poder, por si só, insuficiente para realizar a sua finalidade; para se exercer, esse poder supõe a satisfação de algumas condições, como seja uma orientação prévia da vontade para a própria rectitude. Quer isso dizer que o poder de resistir ao mal não se exerce sem uma vontade previamente orientada para o bem. Insatisfeito com a sua própria acepção de liberdade, como capacidade condicionada de resistir ao mal, Anselmo prossegue a sua reflexão, tentando pensar, no anjo, uma liberdade mais eficaz: a perseverança. Todavia, nem a liberdade humana, reunidas todas as condições para o seu exercício, nem a perseverança angélica provaram ser infalíveis. O grande desafio de compreensão da liberdade, para Anselmo, era perceber como é que tanto a liberdade humana quanto a perseverança angélica experimentaram a falibilidade. Ambas tinham condições para serem infalíveis como Deus. Anselmo não encontra razão ou explicação para a queda quer humana quer angélica. A incompreensibilidade do mal pela liberdade acusa que a medida da liberdade, para Anselmo, não era humana, mas divina. Deste modo, a compreensão da liberdade humana aprofunda‑se através daquela que é pensável em Deus.
A liberdade era, aliás, um atributo cuja extensão divina, o cristianismo não poderia deixar de favorecer. Uma das teses maiores da filosofia da criação, elaborada por influência da tradição judaico‑cristã, é a afirmação de um criador livre: Deus não criou por necessidade, mas por livre vontade. Deus torna‑se, então, pensável independentemente do mundo da criação. A concepção de uma criação livre permite pensar Deus absolutamente, isto é, abstraindo da relação com a criação. Esta foi uma possibilidade desenvolvida pela teologia negativa, que preconiza serem mais adequadas a Deus as negações do que as afirmações dos atributos construídos por analogia com o mundo da criação, com o ser humano inclusiva e privilegiadamente. É certo que esta linha teológica não se alimenta apenas na tradição judaico‑cristã, mas também na filosofia neoplatónica, como se faz notar em Dionísio, o Pseudo‑Areopagita, um dos seus mais influentes representantes. Contudo, os teólogos de confissão cristã, que elaboraram abundantemente teologia afirmativa, sentiram por vezes a necessidade de relativizá‑la através das negações. Porquê? Porventura, porque pensar Deus, sobretudo, pela sua solicitude para com o Ser humano e por via de analogias com o ser humano, conduzia a conceber um Deus para o Ser humano e à medida do Ser humano. Pensar Deus, sobretudo, em relação com o Ser humano, conduzia a instrumentalizar Deus ao serviço dessa relação, e, desse modo, a diminuí‑lo. Daí a necessidade de abstrair da relação privilegiada com o Ser humano, para pensar Deus absolutamente, de modo conforme com a sua originária liberdade criadora. Esta necessidade de aprofundamento do pensar teológico não deixou de ter, a nosso ver, significativas repercussões filosóficas de longo prazo. A possibilidade de pensar Deus fora da relação com o Ser humano, a fim de libertá‑lo de uma concepção excessivamente condicionada por essa relação, terá dado lugar, de forma mediata, à possibilidade simétrica: a de pensar o Ser humano fora da relação com Deus, a fim de libertá‑lo de uma concepção excessivamente condicionada por essa relação. Se não é necessário pensar Deus em relação com o Ser humano, também se pode tornar desnecessário pensar o Ser humano em relação com Deus. Deste modo, o cristianismo terá proporcionado, através da influência que exerceu na filosofia por via da teologia, a experiência da morte de Deus na história recente da filosofia ocidental. As modernas negações de Deus seriam, para nós, incompreensíveis sem a influência directa e indirectamente exercida pelo cristianismo na filosofia.

2.2. O lugar do mundo
Oportuno se torna perguntar, neste momento, que lugar pode ocupar o mundo, no âmbito do duplo centrismo divino e humano, que caracteriza a filosofia marcada pela influência do cristianismo? Uma vez que a tradição da filosofia de influência cristã dá prioridade a uma teovidência, ou a uma antropovidência, relativamente a uma mundividência propriamente dita, que lugar fica reservado a esta última? Esta é uma questão inevitavelmente decorrente do teoantropocentrismo, tal como acabámos de caracterizá‑lo. A questão do lugar do mundo é, assim, uma questão pendente e em aberto, no âmbito da dupla tendência teoantropocêntrica, que o cristianismo estimulou no pensamento filosófico. Não estando o mundo no centro, ele dispõe‑se a ser tomado, quer em função da relação com Deus, quer em função da relação com o Ser humano, quer em função da relação entre o Ser humano e Deus.

Considerado em função da relação com Deus, o mundo surge como criação divina, que o próprio criador se comprazeu em contemplar, ao concluí‑la (Gn. 1, 31). À imagem e semelhança da contemplação divina da obra da criação, torna‑se plausível também uma contemplação humana do mundo criado, através do conhecimento. Deste modo, o cristianismo é capaz de estimular o conhecimento do mundo, e da sua ordem própria, como obra inteligível da vontade de um criador inteligente. Mas, não obstante assumir uma narrativa cosmogónica, como a do Génesis, o cristianismo não é uma teoria sobre o mundo, pelo que a sua a influência dificilmente poderia bastar‑se na determinação de uma mundiviência filosófica. Em matéria de cosmologia, a influência do cristianismo solicitava uma relação de complementaridade com outras heranças de saber. Essa relação, todavia, nem sempre se processou sem dificuldades, como ilustram a suspeição e as reacções suscitadas, nos sécs. XII e XIII, pelo renascimento filosófico de Aristóteles, a cuja mundividência eram estranhas as relações directas de criação e de providência entre Deus e o mundo. O desenvolvimento da cosmologia científica veio, posteriormente, a ocasionar novas dificuldades, senão mesmo uma história de relacionamento conflituoso entre a religião e a ciência. O conflito eclode sempre que a ciência ou prescinde de Deus ou descentra o Ser humano ou prepara a superação deste, isto é, sempre que a ciência contraria o teoantropocentrismo que o cristianismo comporta. Com efeito, num mundo sem Deus e depois do Ser humano, que sentido poderá ainda ter o cristianismo?

A consideração do mundo em função, especialmente, da relação com o Ser humano, não é, por seu turno, difícil de pensar no horizonte de influência do cristianismo. Tanto a concepção bíblica da criação quanto o entendimento do cristianismo como religião salvífica concorrem para uma mundividência antropocêntrica.

É célebre, por um lado, o passo da narrativa do Génesis, que coloca sob o domínio do Ser humano, todo o reino animal e vegetal da criação (Gn. 1, 26‑30). Assim submetido ao domínio do Ser humano, o mundo natural é um mundo para o Ser humano. O domínio do Ser humano sobre o mundo natural pode, no entanto, receber duas interpretações díspares entre si: pode ser um poder arbitrário, mas pode ser também um cuidado responsável. O mundo terá sido sujeito ao arbítrio do Ser humano ou entregue à sua responsabilidade? A constituição e o desenvolvimento da ciência tecnológica, na civilização ocidental, têm‑se feito acompanhar de um exercício nem sempre responsável do poder humano sobre a natureza, o que acusa alguma preponderância da primeira sobre a segunda interpretação. Esse género de ciência, porém, com todos os benefícios e malefícios, que traz consigo, com todos os anseios e receios, que desperta, dificilmente teria cabimento fora de uma mundivência antropocêntrica. Esta continua, aliás, presente em grande parte do pensamento ecologicamente empenhado da actualidade, na medida em que aposta na salvação do mundo para o Ser humano. Será, sem dúvida, excessivo imputar exclusivamente à influência do cristianismo a visão antropcêntrica do mundo, que acalenta a dimensão tecnológica da civilização ocidental, embora não nos pareça possível compreender a génese desta dimensão abstraindo totalmente daquela influência.

Importa reconhecer, entretanto, que uma tendência dominante não elimina os contra‑exemplos. Se o cristianismo favorece uma visão antropocêntrica da criação, ele não exclui perspectivas de moderação desse antropocentrismo. Uma delas é‑nos legada por uma das figuras mais apelativas da história do cristianismo, Francisco de Assis. À semelhança de Jesus Cristo, cuja condição divina não o impede de chamar irmãos aos homens, a condição humana de Francisco não o impede de considerar irmãos os outros animais e demais elementos do mundo natural.

É certo, por outro lado, que o entendimento do cristianismo como religião salvífica veio reforçar o antropocentrismo da criação. Jesus Cristo veio ao mundo por causa do Ser humano, e, conforme tem vindo a ser dominantemente entendido ao longo dos tempos, ele veio para redimir e salvar o Ser humano, através do sacrifício da sua paixão e morte na cruz. Nessa medida, o fim da salvação do Ser humano tende a absorver o próprio sentido da criação. Diante do fim da salvação do Ser humano, o da conservação do mundo torna‑se um fim menor, passível de ser neglicenciado ou, então, instrumentalizado ao serviço daquele.

Contudo, também a interpretação dominantemente soteriológica do cristianismo, contribuindo para uma mundividência antropocêntrica, não exclui perspectivas de correcção do antropocentrismo. Uma dessas perspectivas é a de Anselmo de Cantuária, um dos grandes teólogos do cristianismo, como religião salvífica e, concomitantemente, um vigilante crítico do antropocentrismo na sua própria teologia. Essa vigilância crítica favorece antes de mais o teocentrismo: não é a necessidade humana de salvação que obriga Deus a salvar o Ser humano, mas, sim, a própria finalidade divina de conduzir a obra da criação à sua perfeição máxima e última. Nessa perfeição final, há lugar para o mundo natural. Apesar dos homens estarem destinados a co‑habitar com os anjos na cidade celeste, o mundo natural não fica por isso condenado a perecer; está, também ele, destinado a renovar‑se e a persistir nesse estado renovado. Anselmo não especula muito sobre esse estado final e renovado da natureza sensível, mas, ao admiti‑lo, sugere que o mundo merece existir, mesmo que o Ser humano já não necessite dele para existir. Deste modo, o cristianismo é também capaz de integrar o sentido da existência do mundo por si.

Esta perspectiva é, todavia, muito mais um contra‑exemplo do que um exemplo típico da influência do cristianismo na visão do mundo. Essa influência fomenta, sobretudo, mundividências ou mais teocêntricas ou mais antropocêntricas. Tendo em conta este duplo centrismo, resta considerar ainda o sentido do mundo em função da relação entre o Ser humano e Deus. Esta relação também pode inspirar atitudes distintas relativamente ao mundo: este pode ser tomado quer por uma mediação, na relação entre o Ser humano e Deus, quer por oposição a esta relação. O cristianismo foi capaz de propiciar estas duas atitudes contrárias.

Por um lado, é verdade que se desenvolveu, sob a influência do cristianismo, certo desprezo do mundo, atitude que encarava o mundo como obstáculo à relação entre o Ser humano e Deus. Mas o que é que pode significar esse desprezo do mundo? Ou que mundo era esse, hostil à aproximação humana de Deus? É conhecido um episódio da vida de Cristo, que contribui para esclarecer o sentido dessa atitude e desse mundo. Trata‑se do encontro de Jesus com um jovem rico, que lhe pergunta o que fazer para obter a vida eterna. Depois de propor‑lhe algumas condições principais, como sejam alguns dos mandamentos, que o jovem assumia ter satisfeito, Jesus fez‑lhe uma proposta de mais radical exigência, que era a de abandonar a sua fortuna material e segui‑lo. Incapaz de o fazer, o jovem afasta‑se entristecido. Jesus, então, comenta dizendo que é mais fácil a um camelo passar pelo buraco de uma agulha do que a um rico entrar no reino dos céus (Mt. 19, 16‑24). Entrar neste reino exige, pois, certo abandono do mundo, não do mundo natural, mas do mundo secular, onde abundam os motivos de todos os apegos e paixões humanas desordenadas. Desprezo do mundo será, então, desprendimento ou desapego de todos os motivos menores da paixão humana, susceptíveis de escravizar o Ser humano. Ao cultivar o desprendimento dos motivos menores de paixão, o cristianismo não está só, antes se aproxima de múltiplas outras tradições religiosas e sapienciais.

Na própria história do cristianismo, as interpretações gnósticas terão sido aquelas que mais dilataram o sentido do desprezo do mundo, sublinhando correlativamente a dimensão soteriológica do cristianismo. Com efeito, de acordo com uma orientação comum a diversas correntes de cristianismo gnóstico, a necessidade de salvação não decorre de uma queda humana avulsa, mas da própria natureza da criação, que não é obra de um deus bom. As cosmogonias gnósticas negam a bondade da criação e do deus criador, que pode ser um deus menor, não o Deus supremo e bom. A este cabe intervir para a salvação, não para a criação. A salvação impõe‑se porque há criação, a qual inclui uma malignidade constitutiva. O desprezo do mundo da criação torna‑se, assim, um imperativo de salvação. Toda a matéria e natureza sensível caem debaixo do âmbito do mesmo desprezo. É verdade que a tradição católica do cristianismo sempre combateu com veemência os movimentos gnósticos, defendendo a bondade da criação e acentuando a responsabilidade humana pelo aparecimento do mal no mundo. A divergência entre a tradição católica e os movimentos gnósticos é uma das divisões mais profundas e irredutíveis que a história do cristianismo conheceu no Ocidente.

Por outro lado, o cristianismo foi também capaz de propiciar uma atitude de valorização do mundo criado em função da relação entre o Ser humano e Deus. Nesta relação, o mundo pode desempenhar um papel mediador. É certo que Jesus Cristo é o mediador por excelência entre Deus e o cristão (Jo. 14, 6), mas, assim como Deus acedeu vir ao mundo por causa do Ser humano, assim também por via do mundo, não contra o mundo, poderá o Ser humano aceder a Deus. E por via de que mundo? Antes de mais, o mundo das relações humanas, dado que Jesus não só privilegiou os mandamentos do amor como colocou o amor ao próximo no caminho do amor a Deus. Mas também o mundo das perfeições naturais, entre as quais sobressai a própria natureza humana. Como? A mediação de Jesus Cristo, na relação entre Deus e o Ser humano, provê a um conhecimento de Deus pela fé, não a uma visão directa de Deus (2 Cor. 5, 6‑7). Não obstante as perspectivas ontologistas que emergiram no âmbito da tradição do cristianismo, este promoveu mais o cepticismo do que o optimismo a respeito da visão de Deus.

O tema da visão de Deus obtém especial pertinência ao nível quer da mística quer da escatologia. Todavia, a união mística do Ser humano com Deus supõe a cessação de todas as mediações e relações diferenciadas de conhecimento, mesmo que se trate de uma mística que exige percorrê‑las todas ordenadamente e exauri‑las, como a de Dionísio, o Pseudo‑Areopagita, um dos modelos mais influentes da história da mística ocidental. É, aliás, questionável que uma mística de inspiração cristã vise conduzir a uma união indiferenciada do Ser humano com Deus. Com efeito, ao revelar Deus com a máxima solicitude para com o Ser humano, o cristianismo não favorece a anulação do Ser humano na sua relação com Deus, mesmo que seja no fim do caminho ascendente do Ser humano para Deus. O cristianismo é muito mais fortemente motivador de uma relação diferenciada entre Deus e o Ser humano do que de uma união indiferenciada, que implique a anulação de um dos termos da relação. Tal é o que nos sugerem, particularmente, as palavras do apóstolo Paulo, que fazem esperar uma visão directa de Deus, como uma visão face a face (1 Cor. 13, 12), isto é, sem anulação de uma das faces, portanto, no âmbito de uma relação diferenciada, que não exclui a componente do conhecimento. Como no mundo que conhecemos, nós não podemos ver senão indirectamente a Deus, como num espelho e em enigma, segundo as palavras do mesmo apóstolo (ibid.), a possibilidade de uma visão face a face de Deus tende a ficar diferida para o destino último do Ser humano. A escatologia é o domínio onde se torna mais pertinente o tema da visão face a face de Deus, sobretudo, na medida em que se desenvolve também escatologicamente o tema da cidade celeste, que não é concebível sem relações diferenciadas.

Entretanto, o cristianismo provê, como dissemos, a um conhecimento de Deus pela fé. Ora, o que é que pode constituir um conhecimento pela fé? Um conhecimento por testemunho: pelo testemunho da vida de Cristo, e dos escritos que a narram; e também pelo testemunho de toda a obra divina da criação, na qual sobressai a perfeição da natureza humana. A influência do cristianismo na filosofia assim nos permite pensar, conduzindo a valorizar o mundo como testemunho da sua origem divina, e a natureza humana, como testemunho de maior perfeição da obra divina. Deste modo, o conhecimento do mundo e do Ser humano é mediação plausível do conhecimento indirecto de Deus. Retomando as palavras do apóstolo, o mundo pode ser o enigma e o Ser humano pode ser o espelho, nos quais Deus se adivinha. Daí que a filosofia ocidental se tenha empenhado, sob influência do cristianismo, em construir argumentos a favor da existência de Deus a partir da ordem causal do mundo, e em inferir os atributos divinos por analogia com as melhores faculdades humanas. Propiciando a consideração do mundo e do Ser humano em função do conhecimento indirecto da existência e da essência de Deus, o cristianismo não só influenciou como estimulou o desenvolvimento da filosofia. De facto, os mais elaborados exercícios especulativos da filosofia ocidental têm sido motivados por esse propósito, entre os quais destacamos os múltiplos argumentos de vária índole a favor da existência de Deus. Mesmo que outro alcance não tenham, esses argumentos têm pelo menos o mérito de nos fazer pensar ao ponto de experimentarmos os limites do próprio pensar. Deste modo, tais argumentos constituem momentos altos da especulação filosófica, que não podem deixar de influir de forma ponderosa numa avaliação de qualidade e de grau relativamente ao desenvolvimento da filosofia no Ocidente.

2.3. Novos modelos de inteligibilidade
Mas, não só através do aprofundamento da reflexão sobre Deus e do reconhecimento do ser humano como mediação privilegiada da relação com Deus, o cristianismo exerceu influência na filosofia. Essa influência fez‑se sentir também de outro modo, a saber, através do provimento de novos modelos de inteligibilidade, constituídos pelo esforço de elaboração teológica, que a evolução cultural do próprio cristianismo suscitou. Esses modelos são, na realidade, temas teológicos que se projectam como formas de organização de outras matérias temáticas. Esses modelos são, por isso, formas de origem teológica para a inteligibilidade de conteúdos não teológicos. Ora, há dois temas nucleares da teologia tradicional do cristianismo que se constituíram como modelos para a inteligibilidade de outros temas da compreensão filosófica: a Trindade e a Incarnação. A conversão destes dois temas teológicos em modelos de inteligibilidade de outros temas filosóficos deixa‑se verificar muito expressivamente no pensamento de Agostinho de Hipona. Com este filósofo, o tema da Trindade tornou‑se modelo de inteligibilidade de um dos temas clássicos da filosofia grega: a alma. Concomitantemente, o tema da Incarnação tornou‑se modelo de inteligibilidade de um tema incontornável para o antigo retórico: a linguagem. Pertinente se torna, para nós, apreciar o alcance dessa aplicação dos modelos teológicos da Trindade e da Incarnação à compreensão, respectivamente, dos temas filosóficos da alma e da linguagem.

De acordo com a teologia augustiniana da Trindade, elaborada ao longo dos primeiros sete livros da obra De Trinitate, cerca de três quartos de século volvidos sobre o Concílio de Niceia (325), a unitrindade divina deixa‑se traduzir conceptualmente do seguinte modo: a unidade divina pode ser tomada por uma unidade de substância, ou de essência; a trindade pessoal corresponde, por sua vez, a uma pluralidade de relações no interior de uma só substância ou essência. Esta tradução conceptual da unitrindade divina, longe de esclarecer o mistério da Trindade, conduziu Agostinho a procurar nas naturezas criadas analogias possíveis com a unitrindade divina, a fim de aprofundar o grau de compreensão da sua fé em Deus uno e trino. Entre as naturezas criadas, Agostinho elegeu a alma humana, como lugar das melhores analogias com a unitrindade divina. Ao fazê‑lo, Agostinho converteu a formulação conceptual da unitrindade divina em modelo de inteligibilidade da alma humana: à luz do modelo divino, constituído por uma substância e três relações, a alma humana individual é substancialmente una e relacionalmente trina, ou seja, é uma só substância, composta por três partes funcionalmente inter‑relativas e interactivas. Trata‑se da trindade de faculdades comum aos níveis superiores de conhecimento, a memória, a inteligência e vontade, que é a trindade da mente ou do ser humano interior.

Todavia, esta trindade não significa tanto uma redução simplificadora do número de faculdades da alma quanto uma afirmação da necessidade de inter‑relação de, pelo menos, três faculdades, na constituição dos nossos actos mentais. É isso mesmo que se pode comprovar através da análise augustiniana dos diversos níveis de experiência trinitária da alma. E que níveis de experiência são esses? São os níveis da experiência cognitiva, como a percepção sensitiva, a lembrança, a consciência de si, a crença, o conhecimento racional e intelectivo. Em qualquer destes níveis de conhecimento, há uma experiência trinitária: na percepção sensitiva, há a forma da realidade sensível, a apreensão sensitiva, e a vontade, que une o sentido àquela forma; na lembrança, há a imagem guardada na memória, a visão interior, e a vontade, que une esta visão àquela imagem; na consciência de si, há a presença imediata da mente a si mesma, o olhar interior da mente, e a vontade, que une o olhar da mente à sua própria presença; na crença, há a memória e o pensamento acerca do credível, unidos pela vontade; no conhecimento racional, há a memória e a razão acerca do mutável, unidas pela mesma vontade; no conhecimento intelectivo, há a memória e a inteligência do imutável, unidas de novo pela vontade. A intervenção da vontade em todos os níveis da experiência cognitiva assegura, por um lado, a intencionalidade de todo o acto de conhecimento, sem a qual não pode a haver apreensão a nível algum, bem como a presença do mesmo suporte anímico em todos eles, e, desse modo, a unidade da alma, que constitui o sujeito de conhecimento. A constância de uma trindade funcional em todos os níveis analisados da experiência cognitiva impede, por outro lado, a simplificação, ou a redução do processo de conhecimento a uma relação bipolar, como a relação entre sujeito e objecto. A teoria augustiniana da alma trinitária vislumbra assim a complexidade dos processos mentais do conhecimento. Acrescente‑se que, apesar de Agostinho aplicar o modelo trinitário, especialmente, à experiência cognitiva, a sua teoria revela‑se versátil, não se esgotando na explicação do conhecimento e adivinhando‑se aplicável a múltiplos outros processos mentais, como as emoções e os sentimentos, que não dispensam conhecimento, mas que têm outras tónicas. Virtualidades e vantagens, como estas não têm sido suficientemente reconhecidas à teoria augustiniana da alma trinitária, porventura devido à assumida dependência do modelo teológico.

O mesmo modelo trinitário estende‑se à filosofia augustiniana da linguagem, no que concerne à noção de verbo mental, elaborada também em De Trinitate. Tal noção de verbo é ainda uma parte componente da teoria da alma trinitária. De que modo? Como expressão directa de conhecimento adquirido, que é, conforme acabámos de descrever, um processo trinitário. Não é, entretanto, arbtrariamente que a noção de verbo mental vem sancionar tão estreita relação entre linguagem e conhecimento. No diálogo De Magistro, anterior àquele tratado teológico, o autor efectua algumas finas análises da nossa experiência de comunicação verbal, e, com base nelas, defende que o conhecimento é um fator constituinte e condicionante da linguagem. Ora, o modelo trinitário da alma permite dar conta deste estreito vínculo da linguagem ao conhecimento: tal como, na Trindade modelar, é gerado o Verbo, que exprime constitutivamente a sabedoria divina, assim também, na alma trinitária, é gerado um verbo, que exprime inerentemente o conhecimento adquirido, seja a que nível for. Tal é o verbo mental, que se define, antes de mais, pelo seu conteúdo cognitivo. Sendo um verbo cognitivo, quanto ao conteúdo, o verbo mental é também um verbo cogitativo, quanto à sua índole ou natureza. Quer isso dizer que o verbo mental é feito de cogitação, ou pensamento. Exprimir mentalmente dado conhecimento é, então, o mesmo que pensá‑lo. Assim entendida, a noção augustiniana de verbo mental permite conceber o pensamento como uma linguagem interior da mente, mas não a torna comunicante, isto é, sensivelmente perceptível aos outros.

Para esse efeito, Agostinho convoca outro modelo teológico, intimamente conexo com o da Trindade, que é o da Incarnação: tal como o Verbo se fez carne (Jo. 1, 14), e nela se manifestou sensivelmente ao Ser humano, assim também o verbo mental se fez voz, para que nela se manifestasse aos sentidos humanos. A fala é, portanto, a incarnação do verbo mental. Cabe, então, perguntar: que vantagens e virtualidades deste modelo incarnacional, para a filosofia da linguagem? Por um lado, este modelo realça o papel do conhecimento na origem da fala e, desse modo, permite aprofundar a questão clássica da origem da linguagem verbal. Esta questão era tradicionalmente debatida entre duas possibilidades opostas: a hipótese naturalista, segundo a qual as palavras são constituídas por semelhança com a natureza das coisas; e a hipótese convencionalista, segundo a qual as palavras não procedem senão de convenções humanas. Agostinho dá indícios de não prescindir, pelo menos em parte, de qualquer destas duas hipóteses extremas. Todavia, a aplicação do modelo incarnacional à fala obriga a considerar a mediação do conhecimento na mente, quer entre as palavras e as coisas quer entre as palavras e as convenções: as palavras não são sinais imediatos das coisas, mas sinais mediatos das coisas que são conhecidas; as palavras não resultam de convenções arbitrárias, mas de convenções fundamentadas no conhecimento da realidade. Por outro lado, o modelo incarnacional da fala sublinha um aspecto da linguagem, que é porventura uma das principais razões do seu valor: a capacidade de mediar entre o ser humano interior e o mundo exterior, entre a mente invisível e a realidade sensível. Sem esta capacidade, a linguagem verbal não poderia desempenhar a função de meio de comunicação entre os homens. Por conseguinte, o modelo teológico da Incarnação contribui significativamente para discernir as componentes do processo de constituição da linguagem verbal. A proposta augustiniana de aplicação do modelo incarnacional à fala não é, pois, desprovida de razões de pertinência filosófica.

Bem mais próximo de nós do que Agostinho de Hipona, mas de assumida influência augustiniana, Joaquim Cerqueira Gonçalves reabilita, hoje, os modelos trinitário e incarnacional em filosofia, especialmente, em filosofia da cultura, área privilegiada pela sua reflexão. Partindo de uma acepção larga e funda de cultura, não adstrita à produção intelectual do saber, mas incluindo todos os fatores da construção civilizacional, Cerqueira Gonçalves questiona‑se sobre o sentido profundo da vida da cultura. A sua interpretação das principais linhas orientadoras da cultura ocidental, no seu percurso histórico, oferece uma hipótese de resposta no debate desta questão: a hipótese soteriológica, segundo a qual toda a vida da cultura obedece a um propósito de salvação. Cerqueira Gonçalves não se conforma com esta hipótese, que ele atribui a uma inspiração gnóstica prevalecente sobre a influência cristã na história da cultura ocidental. Não obstante a irrupção de movimentos gnósticos na história ocidental do cristianismo, as fontes da gnose excedem o horizonte da influência cristã. A fim de encontrar e propor alternativa à resposta gnóstica no âmbito da questão do sentido da vida da cultura, Cerqueira Gonçalves retoma, ora explícita ora implicitamente, os modelos teológicos da Incarnação e da Trindade. O modelo incarnacional para a vida da cultura permite, antes de mais, descentrar o propósito de salvação, pois, a Incarnação é manifestação de Deus independentemente de assumir ou não uma missão salvífica. O modelo trinitário, por seu turno, permite antepor à necessidade de salvação o desejo de comunhão, posto que, na Trindade, haverá comunhão, fora de toda e qualquer necessidade de salvação. A própria concepção cerqueiriana da vida da cultura, como um duplo processo de unificação e de diferenciação, deixa adivinhar o seu modelo trinitário, pois não é fácil encontrar outro modelo que melhor compossibilite aqueles dois processos.
Considerando as várias aplicações exemplificativas dos modelos trinitário e incarnacional, podemos observar que esses modelos são particularmente eficazes na superação de dualismos redutores em qualquer das áreas visadas, seja em filosofia da mente, da linguagem, ou da cultura. Admitindo que a compreensão filosófica aspira a essa eficácia, a adopção de modelos teológicos, que a optimizem, pode ser um dos benefícios da interdisciplinaridade, com a qual a filosofia nada tem a perder.