samedi 28 août 2010

Ouve Israel, o Senhor nosso Deus é único!


É preciso indagar de nós mesmos: qual é o alvo final e a razão de eu estar ocupando minha mente com essas coisas? O que eu pretendo fazer com o conhecimento de Deus que vou adquirir? Pois o fato que teremos de enfrentar é este: Se procurarmos obter conhecimentos teológicos como um fim em si mesmo, isso provavelmente nos irá prejudicar, tornando-nos orgulhosos e convencidos. A própria magnitude do assunto nos embriagará e chegaremos a pensar que somos bem melhores e superiores aos demais cristãos pelo nosso interesse no assunto e compreensão do mesmo, e olharemos com superioridade para aqueles cujas idéias teológicas nos parecem rudes e inadequadas, pondo-as de lado com desprezo. Isso se conforma às palavras de Paulo aos presunçosos cristãos de Corinto: ‘o saber ensoberbece... Se alguém julga saber alguma coisa, com efeito não aprendeu ainda como convém saber’ (1Co 8.1 e 2)”. J . I . Packer, O Conhecimento de Deus, São Paulo, Mundo Cristão, 1992, pp. 13 e 14.

Desde o tempo de Platão, filósofos têm oferecido argumentos racionais a favor da realidade de Deus. Tradicionalmente, estes argumentos dividem-se em cinco categorias:

1. Cosmológicos – de cosmos, mundo em grego – todo acontecimento ou fato possui uma causa e tudo que existe é resultado de uma causa principal e suficiente para criar o universo: Deus. John Locke ( 1632-1704) afirmou: “Eu existo, mas eu nem sempre tinha existência. Qualquer coisa que começa a existir deve ter uma causa. A causa deve ser suficiente, esta causa suficiente existe sem limitações: ela deve ser Deus”. Leia Hebreus 3.4; Platão, Leis, X; Aristóteles, Metafísica, VIII; Tomás de Aquino, Suma Teológica, Q2, Art. 3.

2. Teleológicos – de propósito, fim em grego – A organização do universo aponta para um planejador (Rm 1.18-20), pois há coisas na natureza que mostram propósito. W. Paley (1743-1805) disse: “Se alguém achasse um relógio no campo concluiria que o mesmo teria sido feito por um relojoeiro”. Até Kant e Voltaire se interessaram por este argumento. Leia Salmos 19.1-6; 139.14.

3. Antropológicos – de homem em grego – Porque o ser humano é um ser moral; e intelectual, ele deve Ter um Criador que também é moral e inteligente (Atos 19.29). Este argumento tem variáveis: personalidade, sentimentos morais, consciência, tropismo religioso, raciocínio, dignidade, etc. Comparar com Gênesis 1.26 e Romanos 1.18-20. Alguns teólogos vêem o argumento moral como um argumento à parte.

4. Ontológicos – de ser, existência em grego – Deus é perfeito. O argumento ontológico é dedutivo (a priori) em vez de indutivo (a posteriori). O ser humano busca a perfeição. Anselmo afirmou que cada ser humano possui o conceito do Ser Perfeito. Esta idéia inclui a necessidade da existência de Deus, pois caso contrário não seria perfeita a busca que o ser humano faz. Ainda hoje esse argumento atrai filósofos cristãos, como A. Platininga, por exemplo.

5. Unidade-Diversidade – Há outros argumentos menos tradicionais. Um deles é o argumento baseada na unidade e diversidade do Universo (Dooyeweerd e Van Til). Segundo tal argumento, a Trindade é a única perspectiva adequada para explicar o lugar do ser humano no Universo, sem cair no mecanismo ou determinismo, no caos ou incoerência completa.

Os autores bíblicos consideraram a existência divina uma realidade. Leia Gn 1.1 e Hb 11.3, 6. E muitos entenderam que seus nomes eram a chave para conhecê-lo melhor. Mas o que significa um nome para esses autores? Jz 13.18; Ex 20.7; Sl 8.1,9.
Os principais nomes: Elohim, o poderoso, literalmente “os poderosos”, aparece cerca de 2.500 vezes. Em Gênesis 1.1-2.3 é usado 35 vezes. Elohim descreve Deus como criador, sustentador do mundo e do universo. Qeo é a palavra mais comum para Deus no NT e traduz na Septuaginta e no NT Elohim.
Iaveh, YHWH, conhecido como o tetragrama, possivelmente da raiz de “ser, tornar-se”. Seu significado literal é obscuro, mas normalmente é traduzido por Senhor. Aparece 5.321 vezes no AT, e Iah, sozinho, aparece 50 vezes. Na LXX e no NT é geralmente traduzido porSenhor.
Adonai, de Adon, meu Senhor, meu Mestre. Ex. 21.1-6; Js 5.15; Is 6.8-11; Sl 110.1. Freqüentemente é usado com Iaveh, o Senhor Deus, conforme em Is 61.1.
Outros nomes de Deus – El, o poderoso Deus, Deus, deus. É uma palavra básica em várias línguas semíticas. No AT aparece junto a outros títulos de Deus. Baali, meu Senhor, meu Marido (Os 2.16). O Juiz de toda a terra (Gn 18.25). O meu Pastor (Gn 48.15; 49.24). A Pedra, Rocha de Israel (Gn 49.24). O Santo, o Santíssimo (Is 1.4; 6.3; 43.3; 57.15. No NT, 1Tm 2.8, Ap. 16.5; At 2.27; 1Jo 2.20. O Rei (Ex 15.18; Dt 33.5; Sl 5.2; 44.4. No NT, 1Tm 2.8; Ap 15.3; 19.16. O Ancião de Dias (Dn 7.9). Abba, Pai (Rm 8.9; Gl 4.6). Mestre, Senhor,(Lc 2.29; At 4.14, soberano Senhor, cf. Tt 2.9. Todo-poderoso, pantokravtor (Ap 1.8; 4.8; 11.17; 16.7).

Há ainda os nomes compostos. El Elyon, o Altíssimo (Gn 14.18, Dt 32.8; Is 22.14). El Ro’i (literalmente, O poderoso que se vê (Gn 16.13). El Shadai, O Deus todo-poderoso (Gn 17.1-20). El Olam, o Eterno Deus (Gn 21.33; Is 40.28) El Betel, o Deus de Betel (Gn 31.13; 35.7) El Elohe Israel, Deus, o Deus de Israel (Gn 33.20). Iaveh Jireh, o Senhor proverá (Gn 22.14). Iaveh Nissi, o Senhor é minha bandeira (Ex 17.15). Iaveh Shalom, o Senhor é paz (Jz 6.24). Iaveh Tzabaot, o Senhor dos Exércitos (1Sm 1.3). Iaveh Macadeshem, o Senhor vos santifica (Ex 31.13); Iaveh Raah, o Senhor é meu Pastor (Sl 23.1); Iaveh Elohim Israel (Jz 5.3; Is 17.6).

Definição Filosófica, a partir de Platão
Deus é o começo, o meio e o fim de todas as coisas. Ele é a mente ou razão suprema; a causa eficiente de todas as coisas; eterno, imutável, onisciente, onipotente; tudo permeia e tudo controla; é justo, santo, sábio e bom; o absolutamente perfeito, o começo de toda a verdade, a fonte de toda a lei e justiça, a origem de toda a ordem e beleza e, especialmente, a causa de todo o bem.

Definição do Catecismo Breve de Westminster
Deus é um Espírito, infinito, eterno e imutável em Seu Ser, sabedoria, poder, santidade, justiça, bondade e verdade.

Definição Combinada
Deus é um espírito infinito e perfeito em quem todas as coisas tem sua origem, sustentação e fim (Jo. 4.24; Ne. 9.6; Ap. l.8; Is. 48.12; Ap.1.17).

Definições Bíblicas
As expressões "Deus é Espírito" (Jo.4.24) e "Deus é Luz " (1Jo.1.5), são expressões da natureza essencial de Deus, enquanto que a expressão "Deus é amor" (1Jo.4.7) é expressão de Sua personalidade. (1Tm.6.16)


Quando falamos em essência de Deus, queremos significar tudo o que é substancial ao Seu Ser como Deus, isto é, substância e atributos.

Substância de Deus
Há duas substâncias: espírito e matéria . Deus é uma substância simples, não composta. A substância de Deus é puro Espírito, sem mistura com a matéria (Jo.4:24).

Atributos de Deus
“Um atributo de Deus é uma característica intrínseca à sua Pessoa e através da qual Ele é distinguido e identificado” (Ryrie). Sua substância é Espírito e Seus atributos são as qualidades ou propriedades dessa substância. Atributos é a manifestação do Ser de Deus.



III. CLASSIFICAÇÃO DOS ATRIBUTOS

Naturais e Morais
Também chamados de "intransitivos e transitivos", "incomunicáveis e comunicáveis", "absolutos e relativos", "negativos e positivos" ou "imanentes e emanentes".


Atributos Naturais

Vida
Deus é o fundamento da vida. Ele ouve, vê, sente e age. (Jo.10.10; Sl.94.9,l0; 2Cr.16.9; At.14.15; 1Ts.1.9). Quando a Bíblia fala do olho, do ouvido, da mão de Deus, etc., fala metaforicamente. A isto se dá o nome de antropomorfismo. Deus é vida (Jo.5.26; 14.26) e o princípio de vida (At.17.25,28).

Espiritualidade
Deus, sendo Espírito, é incorpóreo, invisível, sem substância material, sem partes ou paixões físicas e, portanto, é livre de todas as limitações espaço-temporais (Jo.4.24; Dt.4.15-19,23; Hb.12:9; Is.40.25; Lc.24.39; Cl.1.15; 1Tm.1:17; 2Co.3.17)

Personalidade
Existência dotada de autoconsciência e autodeterminação (Ex.3:14; Is.46:11).
a) Volição ou vontade = querer (Is.46:10; Ap.4:11).
b) Razão ou intelecto = pensar (Is.14:24; Sl.92:5; Is.55:8).
c) Emoção ou sensibilidade = sentir (Gn.6:6, 1Rs.11:9, Dt. 6:15; Pv. 6.16; Tg.4:5)

Trindade
a) Unidade de Ser: Há no Ser divino apenas uma essência indivisível. Deus é um em sua natureza constitucional. Não há separação entre suas características. Ele é tudo que Ele é e em tudo que Ele faz (Dt 6.4; Is. 43.40; Tg 2.19; 1Tm 2.5). A unidade da divindade é ensinada nas palavras de Jesus: Eu e o Pai somos um. (Jo.10.30). Jesus está falando da unidade da essência e não de unidade de propósito. (Jo.17.11,21-23, 1Jo.5.7).
b) Trindade de Personalidade: Há três Pessoas no Ser divino: o Pai, o Filho e o Espírito Santo. (Mc 10.9;12.29; 1Co.8.5,6; 1Tm.2.5; Tg.2.19; Jo.17.3; Gl.3.20; Ef.4.6).
c) Há distinção de Pessoas na Divindade: Algumas passagens mostram uma das Pessoas divinas se referindo à outra (Gn.19:24; Os.1:7; Zc.3:1,2; 2Tm.1:18; Sl.110.1; Hb.1:9).
Auto-Existência: Jerônimo disse: “Deus é a origem de Si mesmo e a causa de Sua própria substância”. Jerônimo estava errado, pois Deus não tem causa de existência, pois não criou a Si mesmo e não foi causado por outra coisa ou por Si mesmo. Ele nunca teve início. Ele é o Eterno Eu Sou (Ex.3.14), portanto Deus é absolutamente independente de tudo fora de Si mesmo para a continuidade e perpetuidade de Seu Ser. Deus é a razão de sua própria existência (Jo.5:26; At.17:24-28; 1Tm.6:15,16).

Infinidade ou Perfeição
É o atributo pelo qual Deus é isento de toda e qualquer limitação em seu Ser e em seus atributos (Jó.11:7-10; Mt 5:48). A infinidade de Deus se contrasta com o mundo finito em sua relação tempo-espaço.

Eternidade
A infinidade de Deus em relação ao tempo é denominada eternidade. Deus é Eterno (Sl.90:2; 102.12,24-27; Sl.93.2; Ap.1.8; Dt.33.27; Hb.1.12). A eternidade de Deus não significa apenas duração prolongada, para frente e para traz, mas sim que Deus transcende a todas as limitações temporais (2Pe 3:8) existentes em sucessões de tempo. Deus preenche o tempo. Nossa vida se divide em passado, presente e futuro. mas não há essa divisão na vida de Deus. Ele é o Eterno EU SOU. Deus é elevado acima de todos os limites temporais e de toda a sucessão de momentos, e tem a totalidade de sua existência num único presente indivisível (Is.57:15).

Imensidão
A infinidade de Deus em relação ao espaço é denominada imensidão ou imensidade. Deus é imenso (Grande ou Majestoso; Jó 36.5,26; Jó 37.22,23; Jr 22.18; Sl.145.3). Imensidão é a perfeição de Deus pela qual Ele transcende (ultrapassa) todas as limitações espaciais e, contudo está presente em todos os pontos do espaço com todo o seu Ser PESSOAL (não é panteísmo). A imensidão de Deus é intensiva e não extensiva, isto é, não significa extensão ilimitada no espaço, como no panteísmo. A imensidão de Deus é transcendente no espaço (intramundano ou imanente = dentro do mundo, Sl.139:7-12; Jr.23:23,24) e fora do espaço (supramundano = acima do mundo; extramundano = além do mundo; emanente = fora do mundo - 1Rs.8:27; Is.57:15).

Onipresença
É quase sinônimo de imensidão. A imensidade denota a transcendência no espaço enquanto que a onipresença denota a imanência no espaço. Deus é imanente em todas as Suas criaturas e em toda a criação. A imanência não deve ser confundida com o panteísmo (tudo é Deus) ou com o deísmo que ensina que Deus está presente no mundo apenas com seu poder (per portentiam) e não com a essência e natureza de ser Ser (per essentiam et naturam) e que age sobre o mundo à distância. Deus ocupa o espaço repletivamente porque preenche todo o espaço e não está ausente em nenhuma parte dele, mas tampouco está mais presente numa parte que noutra (Sl.139:11,12). Deus ocupa o espaço variavelmente porque Ele não habita na terra do mesmo modo que habita no céu, nem nos animais como habita nos homens, nem nos ímpios como habita nos piedosos, nem na igreja como habita em Cristo (Is.66.1; At.17.27,28; Compare Ef.1.23 com Cl.2.9).

Imutabilidade
É o atributo pelo qual não encontramos nenhuma mudança em Deus, em sua natureza, em seus atributos e em seu conselho.
a) A base para a imutabilidade de Deus: É Sua simplicidade, eternidade, auto-existência e perfeição. Simplicidade porque sendo Deus uma substância simples, indivisível, sem mistura, não está sujeito a variação (Tg.1.17). Eternidade porque Deus não está sujeito às variações e circunstâncias do tempo, por isso Ele não muda (Sl.102.26,27; Hb.1:12 e 13:8). Auto-existência porque uma vez que Deus não é causado, mas existe em Si mesmo, então Ele tem que existir da forma como existe, portanto sempre o mesmo (Ex.3.14). E perfeição porque toda mudança tem que ser para melhor ou pior e sendo Deus absolutamente perfeito jamais poderá ser mais sábio, mais santo, mais justo, mais misericordioso, e nem menos. Por isso Deus é imutável como a rocha (Dt.32.4).
b) Imutabilidade não significa imobilidade: Nosso Deus é um Deus de ação (Is.43.13).
c) Imutabilidade implica em não arrependimento: Alguns versículos falam de Deus como se Ele se arrependesse (Ex.32.14, 2Sm.24.16, Jr.18.8; Jl 2.13). Trata-se de antropomorfismo (Nm 23:19; Rm.11.29; 1Sm.15.29; Sl.110.4).
d) Imutabilidade de Deus em Sua natureza: Deus é perfeito em sua natureza por isso não muda nem para melhor nem para pior (Ml.3.6).
e) Imutabilidade de Deus em Seus atributos: Deus é imutável em suas promessas (1Rs.8:56; 2Co.1.20); em sua misericórdia (Sl.103.17; Is.54.10); em sua justiça (Ez 8.18); em seu amor (Gn.18:25,26).

f) Imutabilidade de Deus em Seu conselho: Deus planejou os fatos conforme a sua vontade e decretou que este plano seja concretizado. Nada poderá se opor à sua vontade. O próprio Deus jamais mudará de opinião, mas fará conforme seu plano predeterminado (Is.46.9,10; Sl.33.11; Hb.6.17).

Onisciência
Atributo pelo qual Deus, de maneira inteiramente única, conhece-se a Si próprio e a todas as coisas possíveis e reais num só ato eterno e simples. O conhecimento de Deus tem suas características:
a) É arquétipo: Deus conhece o universo como ele existe em Sua própria idéia anterior à sua existência como realidade finita no tempo e no espaço; e este conhecimento não é obtido de fora, como o nosso (Rm.11:33,34).
b) É inato e imediato: Não resulta de observação ou de processo de raciocínio (Jó.37:16)
c) É simultâneo: Não é sucessivo, pois Deus conhece as coisas de uma vez em sua totalidade, e não de forma fragmentada uma após outra (Is.40:28).
d) É completo: Deus não conhece apenas parcialmente, mas plenamente consciente (Sl.147:5).
e) Conhecimento necessário: Conhecimento que Deus tem de Si mesmo e de todas as coisas possíveis, um conhecimento que repousa na consciência de sua onipotência. É chamado necessário porque não é determinado por uma ação da vontade divina. (Por exemplo: O conhecimento do mal é um conhecimento necessário porque não é da vontade de Deus que o mal lhe seja conhecido (Hc.1:13) Deus não pode nem quer ver o mal, mas o conhece, não por experiência, que envolve uma ação de Sua vontade, mas sim por simples inteligência, por ser ato do intelecto divino (veja IICo.5:21 onde o termo grego  é usado).
f) Conhecimento livre: É aquele que Deus tem de todas as coisas reais, isto é, das coisas que existiram no passado, que existem no presente e existirão no futuro. É também chamado visionis, isto é, conhecimento de vista.
g) Presciência: Significa conhecimento prévio; conhecimento de antemão. Como Deus pode conhecer previamente as ações livres dos homens? Deus decretou todas as coisas, e as decretou com suas causas e condições na exata ordem em que ocorrem, portanto sua presciência de coisas contingentes (ISm.23:12; IIRs.13:19; Jr.38:17-20; Ez.3:6 e Mt.11:21) apoia-se em seu decreto. Deus não originou o mal mas o conheceu nas ações livres do homem (conhecimento necessário), o decretou e preconheceu os homens. Portanto a ordem é: conhecimento necessário, decreto, presciência. A presciência de Deus é muito mais do que saber o que vai acontecer no futuro, e seu uso no N.T. é empregado como na LXX que inclui Sua escolha efetiva (Nm.16:5; Jz.9:6; Am.3:2). Veja Rm.8:29; IPe.1:2; Gl.4:9. Como se processou o conhecimento necessário de Deus nas livres ações dos homens antes mesmo que Ele as decretasse? A liberdade humana não é uma coisa inteiramente indeterminada, solta no ar, que pende numa ou noutra direção, mas é determinada por nossas próprias considerações intelectuais e caráter (lubentia rationalis = autodeterminação racional). Liberdade não é arbitrariedade e em toda ação racional há um porquê, uma razão que decide a ação. Portanto o homem verdadeiramente livre não é o homem incerto e imprevisível, mas o homem seguro. A liberdade tem suas leis - leis espirituais - e a Mente Onisciente sabe quais são (Jo.2:24,25). Em resumo, a presciência é um conhecimento livre (scientia libera) e, logicamente procede do decreto, "segundo o decreto sua vontade" (Ef.1:11).
h) Sabedoria: A sabedoria de Deus é a Sua inteligência como manifestada na adaptação de meios e fins. Deus sempre busca os melhores fins e os melhores meios possíveis para a consecução dos seus propósitos. H.B. Smith define a sabedoria de Deus como o Seu atributo através do qual Ele produz os melhores resultados possíveis com os melhores meios possíveis. Uma definição ainda melhor há de incluir a glorificação de Deus: Sabedoria é a perfeição de Deus pela qual Ele aplica o seu conhecimento à consecução dos seus fins de um modo que o glorifica o máximo (Rm.ll:33-36; Ef.1:11,12; Cl.1:16). Encontramos a sabedoria de Deus na criação (Sl.19:1-7; Sl.104), na redenção (ICo.2:7; Ef.3:10) . A sabedoria é personificada na Pessoa do Senhor Jesus (Pv.8 e ICo.1:30; Jó.9:4; veja também Jó 12:13,16).

Onipotência
É o atributo pelo qual encontramos em Deus o poder ilimitado para fazer qualquer coisa que Ele queira. A onipotência de Deus não significa o exercício para fazer aquilo que é incoerente com a natureza das coisas, como, por exemplo, fazer que um fato do passado não tenha acontecido, ou traçar entre dois pontos uma linha mais curta do que uma reta. Deus possui todo o poder que é coerente com Sua perfeição infinita, todo o poder para fazer tudo aquilo que é digno dEle. O poder de Deus é distinguido de duas maneiras: Potentia Dei absoluta = absoluto poder de Deus e potentia Dei ordinata = poder ordenado de Deus. Hodge e Shedd definem o poder absoluto de Deus como a eficiência divina, exercida sem a intervenção de causas secundárias, e o poder ordenado como a eficiência de Deus, exercida pela ordenada operação de causas secundárias. Charnock [Discurso sobre a Existência e Atributos de Deus, 1682] define o poder absoluto como aquele pelo qual Deus é capaz de fazer o que Ele não fará, mas que tem possibilidade de ser feito, e o poder ordenado como o poder pelo qual Deus faz o que decretou fazer, isto é, o que Ele ordenou ou marcou para ser posto em exercício; os quais não são poderes distintos, mas um e o mesmo poder. O seu poder ordenado é parte do seu poder absoluto, pois se Ele não tivesse poder para fazer tudo que pudesse desejar, não teria poder para fazer tudo o que Ele deseja. Podemos, portanto, definir o poder ordenado de Deus como a perfeição pela qual Ele, mediante o simples exercício de Sua vontade, pode realizar tudo quanto está presente em Sua vontade ou conselho. E' óbvio, porém, que Deus pode realizar coisas que a Sua vontade não desejou realizar (Gn.18:14; Jr.32:27; Zc.8:6; Mt.3:9; Mt.26:53). Entretanto há muitas coisas que Deus não pode realizar. Ele não pode mentir, pecar, mudar ou negar-se a Si mesmo (Nm.23:19; ISm.15:29; IITm.2:13; Hb.6:18; Tg.1:13,17; Hb.1:13; Tt.1:3), isto porque não há poder absoluto em Deus, divorciado de Suas perfeições, e em virtude do qual Ele pudesse fazer todo tipo de coisas contraditórias entre Si (Jó.11:7). Deus faz somente aquilo que quer fazer (Sl.115:3; Sl.135:6).
a) El-Shaddai: A onipotência de Deus se expressa no nome hebraico El-Shaddai traduzido por Todo-Poderoso (Gn.17:1; Ex.6:3; Jó.37:23 etc.).
b) Em todas as coisas: A onipotência de Deus abrange todas as coisas (ICr.29:12), o domínio sobre a natureza (Sl.107:25-29; Na.1:5,6; Sl.33:6-9; Is.40:26; Mt.8:27; Jr.32:17; Rm.1:20), o domínio sobre a experiência humana (Sl.91:1; Dn.4:19-37; Ex.7:1-5; Tg.4:12-15; Pv.21:1; Jó.9:12; Mt.19:26; Lc.1:37), o domínio sobre as regiões celestiais (Dn.4:35; Hb.1:13,14; Jó.1:12; Jó 2:6).
c) Na criação, na providência e na redenção: Deus manifestou o seu poder na criação (Rm.4:17; Is.44:24), nas obras da providência (ICr.29:11,12) e na redenção (Rm.1:16; ICo.1:24).

Soberania ou Supremacia
Atributo pelo qual Deus possui completa autoridade sobre todas as coisas criadas, determinando-lhe o fim que desejar (Gn.14:19; Ne.9:6; Ex.18:11; Dt.10:14,17; ICr.29:11; IICr.20:6; Jr.27:5; At.17:24-26; Jd.4; Sl.22:28; 47:2,3,8; 50:10-12; 95:3-5; 135:5; 145:11-13; Ap.19:6).
a) Vontade ou autodeterminação: A perfeição de Deus pela qual Ele, num ato sumamente simples, dirige-se à Si mesmo como o Sumo Bem (deleita-se em Si mesmo como tal) e às Suas criaturas por amor do Seu nome (Is.48:9,11,14; Ez.20:9,14,22,44; Ez.36:21-23).
Vontade Preceptiva: Na qual Deus estabeleceu preceitos morais para reger a vida de Suas criaturas racionais. Esta vontade pode ser desobedecida com freqüência (At.13:22; IJo.2:17; Dt.8:20).
Vontade decretória: Pela qual Deus projeta ou decreta tudo o que virá a acontecer, quer pretenda realizá-lo causativamente, quer permita que venha a ocorrer por meio da livre ação de suas criaturas (At.2:23; Is.46:9-11). A vontade decretória é sempre obedecida.
A vontade decretória e a vontade preceptiva relacionam-se ao propósito em realizar algo.
Vontade de eudokia: Na qual Deus deleita-se com prazer em realizar um fato e com desejo de ver alguma coisa feita. Esta vontade, embora não se relacione com o propósito de fazer algo, mas sim com o prazer de fazer algo, contudo corresponde àquilo que será realizado com certeza, tal como acontece com a vontade decretória (Sl.115:3; Is.44:28; Is.55:11).
Vontade de eurestia: Na qual Deus deleita-se com prazer ao vê-la cumprida por Suas criaturas. Esta vontade abrange aquilo que a Deus apraz que Suas criaturas façam, mas que pode ser desobedecido, tal como acontece com a vontade preceptiva (Is.65:12).
A vontade de eudokia não se refere somente ao bem, e nela não está sempre presente o elemento de deleite (Mt.11:26). A vontade de eudokia e a vontade de eurestia relacionam-se ao prazer em realizar algo.
Vontade de beneplacitum: Também chamada Vontade Secreta. Abrange todo o conselho secreto e oculto de Deus. Quando esta vontade nos é revelada, ela torna-se na Vontade do Signum ou Vontade Revelada.
A distinção entre a vontade de beneplacitum e a vontade de signum encontra-se em Deuteronomio.29:29.
A vontade secreta é mencionada em Sl.115:3; Dn.4:17,25,32,35; Rm.9:18,19; Rm.11:33,34; Ef.1:5,9,11, enquanto que a vontade revelada é mencionada em Mt.7:21; Mt.12:50; Jo.4:34; Jo.7:17; Rm.12:2). Esta vontade está mui perto de nós (Dt.30:14; Rm.10:8).
A vontade secreta de Deus pertence a todas as coisas que Ele quer efetuar ou permitir, tal como acontece na vontade decretória, sendo portanto, absolutamente fixa e irrevogável.
b) Liberdade: A perfeição de Deus no exercício de Sua vontade. Deus age necessária e livremente. Assim como há conhecimento necessário e conhecimento livre, há também uma voluntas necessária = vontade necessária e uma voluntas libera = vontade livre. Na vontade necessária Deus não está sob nenhuma compulsão, mas age de acordo com a lei do Seu Ser, pois Ele necessariamente quer a Si próprio e quer a Sua natureza santa. Deus necessariamente se ama a Si próprio e Suas perfeições.
As Suas criaturas são objetos de Sua vontade livre, pois Deus determina voluntariamente o que e quem Ele criará; e os tempos, lugares e circunstâncias de suas vidas. Ele traça as veredas de todas as Suas criaturas, determina o seu destino e as utiliza para Seus propósitos (Jó.ll:10; Jó.23:13,14; Jó.33:13. Pv.16:4; Pv.21:1; Is.10:15; Is.29:16; Is.45:9; Mt.20:15; Ap.4:11;Rm.9:15-22; ICo.12:11).

Atributos Morais
Santidade
É a perfeição de Deus, em virtude da qual Ele eternamente quer manter e mantém a Sua excelência moral, aborrece o pecado, e exige pureza moral em suas criaturas. Ser Santo vem do hebraico kadosh que significa cortar ou separar. A santidade de Deus possui dois diferentes aspectos, podendo ser positiva ou negativa (Hb.1:9;Am.5:15; Rm.12:9).
a) Santidade Positiva: Expressa excelência moral de Deus na qual Ele é absolutamente perfeito, puro e íntegro em Sua natureza e Seu caráter (IJo.1:5; Is.57:15; IPe.1:15,16; Hc.1:13). A santidade positiva é amor ao bem.
b) Santidade Negativa: Significa que Deus é inteiramente separado de tudo quanto é mal e de tudo quanto o aborrece (Lv.11:43-45; Dt.23:14; Jó.34:10; Pv.15:9,26; Is.59:1,2; Lc.20:26; Hc. 1:13; Pv.6:16-19; Dt.25:16; Sl.5:4-6). A santidade negativa é ódio ao mal.
Além de possuir dois aspectos a santidade de Deus possui também duas maneiras diferentes de manifestar-se:
c) Retidão: Também chamada justiça absoluta, é a retidão da natureza divina, em virtude da qual Ele é infinitamente Reto em Si mesmo (santidade legislativa). Sl.145:17; Jr.12:1; Jo.17:25; Sl.116:5; Ed.9:15.
d) Justiça: Também chamada justiça relativa, é a execução da retidão ou a expressão da justiça absoluta (santidade judicial). Strong a chama de santidade transitiva. A retidão é a fonte da Santidade de Deus, a justiça é a demonstração de Sua santidade.
A justiça de Deus pode ser retributiva e remunerativa. A justiça retributiva se divide em punitiva e corretiva. A justiça punitiva é aquela pela qual Deus pune os pecadores pela transgressão de Suas leis. Esta justiça de Deus exige a execução das penalidades impostas por Suas leis (Sl.3:5;11:4-7 Dt.32:4; Dn.9:12,14; Ex.9:23-27;34:7). A justiça corretiva é aquela pela qual Deus "pune" Seus filhos para corrigi-los (Hb.12:6,7). Aqueles que não são Seus filhos, Deus pune como um Juiz Severo (Rm.11:22; Hb.10:31), mas aos Seus filhos, Deus "pune" (corrige) como um Pai Amoroso (Jr.10:24;30:11;46:28; Sl.89:30-33; ICr.21:13) A justiça remunerativa é aquela pela qual Deus recompensa, com Suas bênçãos, aos homens pela obediência de Suas leis (Hb.6:10; IITm.4:8; ICo.4:5;3:11-15; Rm.2:6-10; IIJo.8).
e) Ira: Esta deve ser considerada como um aspecto negativo da santidade de Deus, pois em Sua ira Deus aborrece o pecado e odeia tudo quanto contraria Sua santidade (Dt.32:39-41; Rm.11:22; Sl.95:11; Dt.1:34-37; Sl.95:11). Podemos, então, dizer que a ira é a manifestação da santidade negativa de Deus (Rm.1:18; IITs.1:5-10; Rm.5:9 etc.). A ira é também designada de severidade (Rm.11:22).

Bondade
É uma concepção genérica incluindo diversas variedades que se distinguem de acordo com os seus objetos. Bondade é perfeição absoluta e felicidade perfeita em Si mesmo (Mc.10:18; Lc.18:18,19; Sl.33:5; Sl.119:68; Sl.107:8; Na.1:7). A bondade implica na disposição de transmitir felicidade.
a) Benevolência: É a bondade de Deus para com Suas criaturas em geral. E' a perfeição de Deus que O leva a tratar benévola e generosamente todas as Suas criaturas (Sl.145:9,15,16; Sl.36:6;104:21; Mt.5:45;6:26; Lc.6:35; At.14:17). Thiessen define benevolência como “a afeição que Deus sente e manifesta para com Suas criaturas sensíveis e racionais”. Ela resulta do fato de que a criatura é obra Sua; Ele não pode odiar qualquer coisa que tenha feito (Jó.14:15) mas apenas àquilo que foi acrescentado à Sua obra, que é o pecado (Ec.7:29).
b) Beneficência: Enquanto que a benevolência é a bondade de Deus considerada em sua intenção ou disposição, a beneficência é a bondade em ação, quando seus atributos são conferidos.
c) Complacência: É a aprovação às boas ações ou disposições. É aquilo em Deus que aprova todas as Suas próprias perfeições como também aquilo que se conforma com Ele (Sl.35:27; Sl.51:6; Is.42:1; Mt.3:17; Hb.13:16).
d) Longanimidade ou Paciência: No hebraico erek'aph significa grande de rosto e daí também lento para a ira. No grego makrothymia significa longe da ira. Portanto longanimidade é o aspecto da bondade de Deus em virtude do qual Ele tolera os pecadores, a despeito de sua prolongada desobediência. A longanimidade revela-se no adiamento do merecido julgamento (Ex.34:6; Sl.86:15; Rm.2:4; Rm.9:22; IPe.3:20; IIPe.3:15)
e) Misericórdia: Também expressada pelos sinônimos compaixão, compassividade, piedade, benignidade, clemência e generosidade. É a bondade de Deus demonstrada para com os que se acham na miséria ou na desgraça, independentemente dos seus méritos (Dt.5:10; Sl.57:10; Sl.86:5; ICr.16:34; IICr.7:6; Sl.116:5; Sl.136; Ed.3:11; Sl.145:9; Ez.18:23,32; Ex.33:11; Lc.6:35; Sl.143:12; Jó 6:14).
A paciência difere da misericórdia apenas na consideração formal do objeto, pois a misericórdia considera a criatura como infeliz, a paciência considera a criatura como criminosa; a misericórdia tem pena do ser humano em sua infelicidade, a paciência tolera o pecado que gerou a infelicidade. A infelicidade e sofrimento deriva-se de um justo desagrado divino, portanto exercer misericórdia é o ato divino de livrar o pecador do sofrimento pelo qual ele justamente e merecidamente deveria passar, como conseqüência do desagrado divino.
f) Graça: É a bondade de Deus exercida em prol da pessoa indigna. Portanto graça é o ato divino de conceder ao pecador toda a bondade de Deus a qual ele não merece receber (Ex.33:19).
Na misericórdia Deus suspende o sofrimento merecido, na graça Deus concede bênçãos não merecidas. Todo pecador merece ir para o inferno; assim Deus exerce Sua misericórdia livrando o pecador da condenação. Nenhum pecador merece ir para o paraíso; assim Deus exerce a Sua graça doando ao pecador o privilégio de ir gratuitamente para o paraíso.
Essa diferença entre misericórdia e graça é notada em relação aos anjos que não caíram. Deus nunca exerceu misericórdia para com eles, posto que jamais tiveram necessidade dela, pois não pecaram, nem ficaram debaixo dos efeitos da maldição. Todavia eles são objetos da livre e soberana graça de Deus pela qual foram eleitos (ITm.5:21) e preservados eternamente de pecado e colocados em posição de honra (Dn.7:10; IPe.3:22).
g) Amor: A perfeição da natureza divina pela qual Ele é continuamente impelido a se comunicar. É, entretanto, não apenas um impulso emocional, mas uma afeição racional e voluntária, sendo fundamentada na verdade e santidade e no exercício da livre escolha. Este amor encontra seus objetos primários nas Pessoas da Trindade. Assim, o universo e o homem são desnecessários para o exercício do amor de Deus. Amor é, portanto, a perfeição de Deus pela qual Ele é movido eternamente à Sua própria comunicação. Ele ama a Si mesmo, Suas virtudes, Sua obra e Seus dons. E demonstra graça e misericórdia por Sua criação (Ef 2.4,5; 1Jo4.7-10).

Verdade
É a consonância daquilo que é asseverado com o que pensa a Pessoa que fez a asseveração. Neste sentido a verdade é um atributo exclusivamente divino, pois com freqüência os homens erram nos testemunhos que prestam, simplesmente por estarem equivocados a respeito dos fatos, ou então por pura incapacidade fracassam em promessas que fizeram com honestas intenções. Mas a onisciência de Deus impede que Ele chegue a cometer qualquer equívoco, e a Sua onipotência e imutabilidade asseguram o cumprimento de Suas intenções (Dt.32:4; Sl.119:142; Jo.8:26; Rm.3:4; Tt.1:2; Nm.23:19; Hb.6:18; Ap.3:7; Jo.17:3; IJo.5:20; Jr.10:10; Jo.3:33; ITs.1:9; Ap.6:10; Sl.31:5; Jr.5:3; Is.25:1). Ao exercê-la para com a criatura, a verdade de Deus é conhecida como sua veracidade e fidelidade.
a) Veracidade: Consiste nas declarações que Deus faz a respeito das coisas, conforme elas são, e se relaciona com o que Ele revelou sobre Si mesmo. A veracidade fundamenta-se na onisciência de Deus.
b) Fidelidade: Consiste no exato cumprimento de Suas promessas ou ameaças. A fidelidade fundamenta-se na Sua onipotência e imutabilidade (Dt.7:9; Sl.36:5; ICo.1:9; Hb.10:23; Dt.4:24; IITm.2:13; Sl.89:8; Lm.3:23; Sl.119:138; Sl.119:75; Sl.89:32,33; ITs.5:24; IPe.4:19; Hb.10:23).

São Paulo, 5 de Agosto de 2005.

jeudi 26 août 2010

História da tradição ou história da salvação


Para meus alunos de História e Religião de Israel e outr@s.

Se partirmos de Von Rad, historiador e teólogo do Antigo Testamento, há um aparente confronto entre a pesquisa histórica moderna, histórico-crítica, e a definida pela fé de Israel, a história da salvação. Ele considera que o quadro da história de Israel a partir do método histórico-crítico busca um mínimo irrefutável que é a preocupação com a história. Já a perspectiva querigmática, moldada pela fé, pende para um maximum teológico: se debruça sobre o mundo de testemunhos originado na fé para compreender o quadro querigmático.

O ponto crucial desse confronto entre a pesquisa histórica moderna e a história da salvação é a ausência de premissas de fé ou de revelação no programa histórico-crítico da história de Israel, uma vez a historiografia moderna não considera a hipótese do elemento Deus.

Mas Von Rad rejeita a ideia de não considerar histórico o quadro querigmático, ou de considerar apenas histórico o quadro histórico-crítico, pois sustenta que a apreciação querigmática também está fundamentada numa história acontecida e narrada, não tendo sido obra de imaginação, pois foi percorrida por uma estrada que o próprio Iavé fez. Assim, a história traduz-se na revelação de Iavé através de atos e palavras. Para ele, não é que o cerne histórico esteja envolto em ficção, mas que a experiência de fé do narrador, presente na saga, é histórica e resulta de um conteúdo teológico.

Dessa maneira, Von Rad considerou que as duas perspectivas da história de Israel podiam imbricar-se na construção da teologia do Antigo Testamento, alertando para o fato de que o quadro querigmático, na maioria das vezes, é ignorado pela corrente histórico-crítica.

Ao adotar a tese de Von Rad de que o Antigo Testamento é um livro de história ou testemunhos, Franz Hesse fez uma nova leitura dela. Considerou que se deve dar uma ênfase teológica a história de Israel, mesmo quando esta é reconstituída pelo método histórico-crítico. Isto é relevante, pois para Hesse a fé precisa basear-se no que aconteceu e não no que se declara ter acontecido.

Hesse parte assim da duplicidade de Von Rad, ou seja, de que a história secular deve tratar da história de Israel, e que a versão querigmática tem relevância teológica. Mas propõe que se trabalhe alguns termos para entendermos a diferença entre as duas perspectivas da história de Israel: real ou irreal, isto é, o que é história e o que é fé, ou tradição; correta ou incorreta, querigma não é formador da fé, mas a realidade histórica, sim.

Hesse procura, assim, derrubar as duas versões da história de Israel ao identificar a apreciação histórico-crítica da história de Israel com a história da salvação. Afirma que a história da salvação está presente em tudo que o povo de Israel experimentou no decorrer dos séculos, em tudo que realizou e em tudo que sofreu. Esta compreensão não anda de mãos dadas com a história de Israel, não pertence a uma esfera superior, não é idêntica à história de Israel, mas é real e correta.

Diz, dessa forma, que é impossível uma separação entre a história de Israel e a história da salvação no Antigo Testamento, que a história da salvação oculta-se na história de Israel, por meio dela e por trás dela. E conclui que toda história do povo de Israel e seus aspectos são os objetos da pesquisa teológica. Hesse fundamenta, assim, a história da salvação na versão histórico-crítica da história de Israel.

Já Walter Eichrodt objeta o dualismo de Von Rad, de dois quadros da história de Israel. Faz uma distinção entre os fatos extrínsecos da história da salvação do Antigo Testamento e a experiência decisiva. Isto é, entre o domínio de Deus sobre o espírito humano através de sua presença no íntimo. É neste ponto, na criação e expansão do povo de Deus, na consciência do relacionamento da aliança, que ocorre a experiência decisiva, sem a qual todos os fatos extrínsecos tornam-se mitos. Eichrodt acha necessária uma reconciliação das duas versões da história de Israel.

Também Friedrich Baumgarten critica a tentativa de Von Rad de solucionar a questão teológica da interpretação da história e da tradição. E o faz com uma afirmação taxativa: diz que nenhuma das duas versões tem relevância teológica para a fé cristã, porque o Antigo Testamento é o testemunho de uma religião não-cristã. Respondendo a Baumgarten, Claus Westermann coloca a questão que qualquer estudante de teologia colocaria: então, a Igreja poderia passar sem o Antigo Testamento?

Vejamos de uma forma rápida, só para ajudar o estudante de teologia do Antigo Testamento, as posições de alguns estudiosos matriciais: Weiser e Hempel reconhecem, a partir de Von Rad, que a realidade histórica e a expressão querigmática, isto é, fato e interpretação formam uma unidade no Antigo Testamento.

Já Georg Fohrer defende que, se existe uma unidade fundamental entre fato e interpretação, entre evento e palavra, não devemos contrapor uma compreensão contra outra, porque os autores do Antigo Testamento se utilizaram de tradições que consideravam históricas.

A história, afirma Wolfhart Pannenberg, constitui o mais amplo horizonte da teologia cristã. Ela é realidade em seu todo desde o nascente Israel até o presente. A revelação de Deus é, portanto, o significado inerente da história e não algo que lhe foi acrescentado. Assim, Pannenberg enquadra a história da salvação na história universal.

Já Rendtorff propôs que se estabelecesse uma relação entre a história da salvação e a apreciação histórico-critica da história de Israel, combinando a divisão, história de Israel, história da tradição e teologia do Antigo Testamento em um novo gênero de pesquisa. O método histórico-crítico deveria, então, ser transformado e ampliado de forma a incluir também a revelação de Deus na história.

O ponto de partida da teologia de Von Rad, diz H. J. Kraus, tem um cunho nitidamente histórico-crítico, já que sua teologia do Antigo Testamento é uma teologia das tradições. Parafraseando Kraus, e fazendo a nossa crítica pontual a Von Rad, podemos dizer que a teologia do Antigo Testamento só é teologia pelo fato de “aceitar o contexto textual do cânon como verdade histórica, que carece de explicação e interpretação sumárias”. Ora, se esta é a situação da teologia do Antigo Testamento, então, não deve ser considerada história da revelação.

E eis aqui um resumo que pode ajudar: qual é o centro da teologia do Antigo Testamento?

Para Eichrodt é a aliança; para E. Sellin é a santidade de Deus; para Ludwig Kohler é o fato de que Deus é o Senhor; para Hans Nildberger é a eleição de Israel como povo de Deus; para Günther Klein é o reino de Deus; para Georg Fohrer é o governo de Deus e a comunhão Deus/humano; para Horst Seebass é o governo de Deus; para Uriezem é o fato de que Deus é o foco de todos os escritos; e para Von Rad é o fato de que Iavé é o centro. Ele, porém, parte de um centro secreto: Deus atua na história, e é na história que Deus revela o segredo de sua Pessoa.

A partir de Von Rad e de seus críticos e seguidores podemos dizer que o Antigo Testamento é um livro de história, história de Deus e de Israel, história de Deus e das nações, história de Deus e do mundo.

Fonte
HASEL, Gerhard F., Teologia do Antigo Testamento, Questões Fundamentais no Debate Atual, Juerp, São Paulo. Capítulos 3 e 4.

lundi 23 août 2010

A paridade entre o cristianismo e a consciência social crítica e militante


A práxis socialista só pode ser compreendida a partir do desenvolvimento econômico e espiritual e sua permanência está ligada diretamente ao cristianismo. Foi do interior do cristianismo que brotou a consciência e a militância social e, por isso, um socialismo sem pressupostos cristãos se mostra capenga. Ou seja, aqueles que defendem o socialismo devem defender também os princípios sobre os quais ele repousa.

Conforme explica Paul Tillich em artigo publicado em “Das neue Deutschland”, de 1919, a consciência e a militância social são produtos do desenvolvimento econômico e espiritual, que surgiu lentamente e que se impôs com a Renascença, a Reforma e o o capitalismo. A consciência e a militância social brotaram em oposição à cultura autoritária e unitária da Idade Média e sedimentaram suas bases nas criações culturais dos últimos séculos.

A organização econômica e espiritual da Idade Média estava fundada sobre um sistema de centralização da autoridade que, ancorado no sobrenatural, associava a natureza e a sobrenatureza numa unidade poderosa, à qual os povos se encontravam sujeitos.

A Reforma, sustentada pela visão humanista que surge com a Renascença, golpeou o sistema de autoridade, trouxe a fé para o plano formal ao recorrer à autoridade dos textos escriturísticos judaico-cristãos e no plano material valorizou a subjetividade da consciência pessoal.

Apoiada formalmente sobre os textos escriturísticos judaico-cristãos, o protestantismo eclesiástico engendrou novas contradições. Mas o sistema centralizado de autoridade já estava em frangalhos: as autoridades anularam a autoridade. Agora cabia ao indivíduo decidir a que grupo ele queria ligar-se.

Por causa das guerras religiosas, essa realidade viveu um processo lento transmitindo a cada lado a esperança de que poderia chegar a uma vitória exclusiva. Mas com o fim dos combates o que se viu é que as oposições às confissões se tornaram permanentes. Dessa maneira, brotou o espírito autônomo e crítico nos mais variados campos. A consciência européia ocidental se tornou adulta, atacou as muralhas autoritárias das confissões e não deixou subsistir sob o solo protestante nada mais que destroços do constrangimento autoritário.

René Descartes deu seu golpe decisivo. A certeza que eu tenho de mim mesmo é o princípio de toda certeza objetiva. Embora a autoridade não possa me livrar da dúvida, é em mim mesmo, somente, que se enraíza a certeza. E o Iluminismo tirou suas conclusões: toda tradição deve ser submetida à crítica.

No domínio econômico, espiritual e político nada ficou de positivo que não fosse pensado, confrontado com a consciência, medido e negado. Os sistemas de fé, as formas de Estado, as definições econômicas sofreram o assalto da autonomia, que não livraram nada, que não tiveram nenhum respeito pelas autoridades humanas e divinas.

Lamentou-se a perda do sistema de autoridade ou festejou-se tal acontecimento como um passo em direção à maturidade cultural. De todas as maneiras, houve o reconhecimento de que a vida cultural não podia ser pensada sem autonomia e que a consciência e a práxis social estão presente em todos os lugares. Líderes e camponeses tiveram o mesmo sentimento, conquistaram a liberdade das mãos do autoritarismo irracional, fosse ele imanente ou transcendente. Este foi o primeiro fato que o cristianismo teve de levar em conta.

Do lado positivo, a autonomia significou o reinado da razão. Pela primeira vez, depois de um milênio e meio, a razão humana não via limites para seu poder. Através da análise ela penetrou as profundezas da vida cultural e social, simultaneamente, e através da síntese dos elementos descobertos apresentou um sistema novo, racional. Depois de séculos de arbítrio, as pessoas foram possuídas por uma vontade de dar forma ao mundo de maneira racional.

E a vida econômica também foi formulada racionalmente. Não era o prazer de certos indivíduos ou povos que deveriam fazer a lei, mas era a humanidade inteira, que é sujeito e objeto dos processos econômicos, quem deveria fazê-lo a partir de critérios racionais. A mesma autonomia que substituiu a autoridade, a partir da razão precisava construir um mundo sem arbítrio. Eis o segundo fato que o cristianismo teve de levar em conta.

Sem dúvida, foi Karl Marx quem introduziu o pensamento histórico objetivo a partir do idealismo alemão no socialismo, ao dizer que a razão precisa ser separada da subjetividade e colocada ao nível das necessidades objetivas. O processo dialético é racional e a fé nele é uma fé na razão: uma fé que adquire uma força enorme graças à sua amarração metafísica objetiva e que se tornaria o dogma fundamental de milhões de pessoas.

Foi o processo da própria história que fez o mundo conformar-se à razão e levou este combate a tornar-se vitorioso. E foi essa vitória que deu cara ao mundo que conhecemos como moderno.

A fé na razão está fundamentada sobre os resultados conquistados pela ciência da natureza. Mas atrás da ciência da natureza veio a cultura moderna. Preparada de várias maneiras a partir do fim da Idade Média, ela surgiu com uma força irresistível na Renascença e conduziu a uma afirmação alegre deste mundo, que durante muito tempo foi negado, desdenhado e rebaixado por outro onírico e místico.

Os outros mundos empalideceram diante da nova astronomia, diante da validade universal das leis da natureza, diante da redescoberta da beleza do real na arte, diante da consciência de unidade do finito e do infinito na filosofia da natureza. Foi assim que a imanência ressoou no humanismo e na filosofia das Luzes, com Goethe e no idealismo alemão, da mesma maneira que o socialismo se uniu à consciência da autonomia e à fé do poder formador da razão na construção de um sentimento unitário da vida e do mundo. Este foi o terceiro fato que o cristianismo teve de levar em conta.

Se o socialismo é, nesse sentido, uma herança da cultura universal, ele teve, no entanto, uma originalidade que não se restringiu aos conceitos, mas à experiência vivida. O conceito de humanidade, que manifesta a vitória da idéia de tolerância, não teve no desenvolvimento da práxis burguesa mais que uma realização acidental. A consciência da humanidade foi neutralizada pela consciência de classe, educação e de dependência nacional.

A humanidade se colocou antes de tudo no campo das confissões, sob formas absolutamente contrárias a idéia de uma transformação racional do mundo. E foi pela pressão econômica e política sobre os trabalhadores, nos primeiros decênios do capitalismo, que nasceu uma consciência solidária, no coração do qual está presente o sentimento universal de humanidade, que se opõe àquele que vê as pessoas como meios e não como fim.

O combate contra o feudalismo, o capitalismo, o nacionalismo e o confessionalismo constituiu a expressão negativa da consciência incondicional de humanidade, que derruba barreiras e reconhece a pessoa em cada ser humano. Este foi o quarto fato que o cristianismo teve de levar em conta.

Esses elementos formadores da consciência social crítica e militante são fundamentais para a compreensão das relações entre cristianismo e socialismo. Eles possibilitam entender até que ponto o cristianismo pode ter uma atitude positiva em relação à essa consciência social crítica e militante.

Um sistema como o catolicismo pré-Vaticano II, que foi erigido sobre o princípio da autoridade centralizada, só pode se opor a um movimento autônomo como o socialismo. Esse tipo de catolicismo e o socialismo são opostos na medida em que o catolicismo se afirma enquanto sistema de autoridade.

Eles se colocam como opostos mesmo quando o catolicismo aceita as exigências do socialismo em matéria de economia política. Entre os católicos continua a ser determinante a ética social do tomismo, estabelecida de maneira autoritária, em estreita relação com a dogmática. Ela permite uma ampla margem de manobra, mas a unidade do sistema católico impõe limites bem definidos, que uma doutrina econômica autônoma não pode jamais reconhecer.

O protestantismo quebrou o sistema de autoridade em seu princípio-base e deu voz à autonomia. É um erro considerar de forma heterônoma as palavras de Jesus ou dizer que o comportamento da comunidade de Jerusalém em Atos dos Apóstolos conduz a uma política econômica socialista.

Do ponto de vista histórico, os fatos não são assim tão simples, porque Jesus não levantou um programa de reforma social radical, embora convencido da irrupção iminente do reino de Deus tenha apresentado aos seus discípulos as conseqüências éticas do mandato do amor.

Fazendo uma abstração histórica, deve-se reconhecer que no terreno da autonomia, a justiça de uma ética social ou a verdade de uma doutrina não depende de sua conformidade às escrituras judaico-cristãs. Por isso, a consciência social crítica e militante pode ter por base, num determinado contexto, um sólido apoio psicológico a seu favor, enquanto convicção pessoal, que não nasce da autoridade imposta.

Quando os laços do cristianismo com a consciência social crítica e militante estão fundamentados de maneira heterônoma sobre as escrituras judaico-cristãs, não há um protestantismo autêntico, mas uma legalidade sectária. Isto porque o protestantismo como essência é autônomo. Mas, sem dúvida, as fórmulas “pela graça somente” e “pela fé somente” transportaram vida ao domínio do conhecimento, ao rejeitarem o legalismo, o farisaísmo da posse da verdade e o desejo de querer impor a verdade aos outros.

A religião e o espírito autônomo podem ser entendidos como paritários quando se chega a essa união através da autonomia, que livra do arbítrio. Diante da decomposição da cultura burguesa, o socialismo propôs a criação uma nova vida cultural e social unidas sobre a base de uma economia unificada. Mas tal proposta só é possível quando a autonomia caminha em direção à teonomia. Ou seja, é necessário uma práxis que permita à incondicionalidade apoderar-se de todas as realidades. Este é um ponto sobre o qual cristianismo e socialismo precisam se colocar de acordo.

A idéia de dar forma racional do mundo fez oposição à concepção do cristianismo que via o mundo como contra-divino e a razão como caída, e que via a redenção não como ação que dá feitio ao mundo, e o conhecimento não como razão, mas como revelação. Por isso, nesses últimos séculos, a teologia protestante propôs-se a superar a oposição entre razão e revelação, através da idéia de uma história universal da revelação, humana e imanente ao espírito, que nada mais é que a história do espírito em geral e do cristianismo em particular.

Essa concepção ética elaborada pela cultura protestante considerou que a pessoalidade livre é impossível sem o fundamento natural de sua individualidade psíquica e corporal, com suas inevitáveis particularidades lógicas, fisiológicas e biológicas e que o valor da pessoalidade consiste em ir além, elevar-se acima dessa naturalidade.

Tal concepção de mundo, que repousa sobre o absoluto, que aprofunda esta contradição entre o ser e o mérito, fundamento de toda liberdade moral, não é um estado ideal, pois seria onírico, desprovido de liberdade e de mérito inferior. Assim, o protestantismo traduziu uma vontade de dar forma ao mundo de maneira imanente: o reino de Deus vem ao mundo. Mas, ao mesmo tempo, tal concepção apresentou limitações: o dar feitio está situado no âmbito da técnica, não no da ética, no âmbito da categoria de meio e de fim e não dos juízos e do mérito.

Fazer é técnica, mas a técnica não é o fim em si, não é um fim último. Mesmo que toda economia fosse uma produção racional, a organização jurídica englobasse todos os povos, a vida material estivesse livre do imprevisível, restaria ainda o mérito da pessoalidade, a revelação do espírito e a idéia criativa que traduzem graça e brotam das profundezas do fazer.

Por isso, e essa será uma das sacadas de Tillich, é importante que o olhar lançado nas profundezas da existência não seja turvado, que a fé enquanto experiência da incondicionalidade apóie a vontade de dar forma ao mundo e a livre do vazio e do nada de uma simples tecnificação do mundo. Esta é outra questão sobre a qual cristianismo e socialismo devem se colocar em acordo, pois é com a experiência do imanente que surge claramente a oposição entre o socialismo e o cristianismo, já que o cristianismo está comprometido, enquanto fé, com o lá em cima, e o socialismo voltado para o aqui embaixo. Mas esta oposição não é correta.

Lá onde se vive a profundidade última da experiência humana, onde a experiência da incondicionalidade é pronunciada sobre todas as coisas e sobre todos os méritos, é onde acontece a supressão da oposição entre o em cima absoluto, perfeito, e o embaixo relativo. Sim e não são pronunciados sobre o aqui embaixo, que afinal é a única realidade conhecida. É no coração das pessoas que acontece a separação entre céu e terra, o julgamento paradoxal que confronta absoluto e relativo, perfeito e vão, eterno e terrestre. É assim que devemos entender a teologia do “somente pela fé”, que não admite nem perfeição, nem conhecimento, nem estado absolutos, mas que vê brotar o absoluto em todo relativo.

Temos aqui o fundamento da compreensão positiva que cristianismo nos dá sobre a questão da imanência. Mas aqui também o cristianismo deve oferecer ao socialismo alguma coisa sem a qual ele não pode existir: a experiência vitoriosa da incondicionalidade em tudo que está condicionado, imanente, na totalidade do real.

Existe uma atitude profana e uma atitude religiosa no olhar o mundo: essas atitudes se tornam nulas num estado puro, exclusivo. Num, a primeira predomina fortemente, noutra, a segunda. Pode-se conceber a arte, a ciência, a moralidade, a vida econômica e jurídica, a política exterior e nacional como fazeres profanos e se pode concebê-las de maneira religiosa.

Pode-se vê-las como atividades úteis e agradáveis, necessárias e desagradáveis, mas pode-se ver o espírito agir nelas e ver a vida nelas se revelar e, por isso, aproximar-se de tais coisas com respeito.

O espírito religioso está vivo no movimento socialista: é uma vibração religiosa que circula através das massas. Mas há também presenças profanas no movimento, mesmo entre seus ‘padres’ e ‘bispos’. A santificação da vida cultural no geral e no socialismo em particular é a marca deixada pelo cristianismo no socialismo. Este é a terceira questão sobre a qual cristianismo e socialismo devem entrar em acordo.

A santificação da vida cultural não será possível sem uma concentração dos elementos religiosos mais expressivos da cultura e da sociedade, sem a constituição de comunidades que estejam imbuídas em aprofundar e transmitir a experiência religiosa às gerações futuras. É para isso que servem idéias expressivas e as instituições, que existem com toda a sua riqueza e sua vitalidade no seio das confissões, e que a partir da força de uma tradição provada apresentam um vigor popular em oposição a uma interconfessionalidade racionalista e artificial.

Sem desejar apresentar uma nova forma de confessionalismo, com verdades e formas absolutas, devemos insistir na necessidade de falar sobre um quarto ponto: a experiência humana universal.

Esta experiência tem seu fundamento nada menos que no próprio cristianismo. Nós podemos ver na cruz de Cristo não somente a negação do judaísmo, mas também do cristianismo, no sentido de que se absolutiza enquanto confissão.

As comunidades cristãs não podem deixar essa consciência tomar-se efetiva, pois é sobre este terreno que se deram as condições para as guerras religiosas. Em relação a isso o espírito deve ser autônomo. O caminho da cultura cristã é entender esta consciência como elemento agregador de todas as culturas e todas as confissões, sem aboli-las, inspirando um sentimento de comunhão mais profundo que todas as barreiras concebíveis.

O cristianismo confere assim conteúdo à experiência humana. A solidariedade nascida da pressão exterior deixa de existir quando a pressão cessa. Os fatos confirmam isso. O socialismo falha em relação ao sentimento de comunidade que suscita a unidade a partir das profundezas últimas do humano, lá onde o incondicionado desperta a alma.

Não devemos entender o cristianismo como confissão exclusiva, mas como brotar da fé, incondicionalidade que vê uma só humanidade, sem as barreiras internas e externas que caracterizam as comunidades. Esta fé não se mostra hostil a não ser com os domínios econômicos, políticos e religiosos, que se colocam eles próprios contra os outros.

Estes são os fundamentos da paridade entre o cristianismo e a consciência social crítica e militante que deve ser mais que uma associação, que traduz um desenvolvimento de ambos através de uma nova forma de fé e vida. E qual é o papel dos cristãos e dos militantes da consciência social crítica neste desenvolvimento? Essa questão deverá ser respondida no futuro próximo, já que exige uma postura diferente daquela que cristãos e socialistas tiveram até agora.

Fonte
Paul Tillich, Christianisme et Socialisme, Écrits socialistes allemands (1919-1931), Les Éditions du Cerf, Éditions Labor et Fides, Les Presses de l’Université Laval, 1992, Christianisme et Socialisme I, pp.24-30.

vendredi 20 août 2010

Protestantismo de missão comemora 155 anos


Sergio Prates Lima

Exatamente há 155 anos, em Petrópolis, era dado o pontapé inicial da Escola Dominical em caráter permanente no Brasil, numa classe com cinco crianças estrangeiras, numa classe dirigida pela missionária inglesa Sarah Poulton Kalley, esposa do pastor, médico e missionário escocês Robert Reid Kalley. Kalley, após um período em Portugal, na Ilha da Madeira, onde implementara diversas escolas de primeiras letras, aliando às prédicas atendimento médico e farmacêutico à população, tendo sido condecorado pelas autoridades funchalenses com o título de O Bom Doutor Inglês, viu a situação mudar e sofreu perseguições, junto com seus seguidores, fato denominado por pesquisadores locais como a Diáspora Portuguesa, fato que levou cerca de dois mil madeirenses a procurar o exílio, dirigindo-se para os Estados Unidos, Trinidad e Tobago, Havaí e mesmo Brasil.

Já viúvo e casado em segundas núpcias, Kalley aportou no Rio de Janeiro em 10 de maio de 1855. Mudou-se para Petrópolis em busca de melhores ares e sossego, tornando-se vizinho do palácio de verão do imperador, D. Pedro II, de quem viria a se tornar amigo. A primeira igreja foi organizada na Corte, no Rio de Janeiro, em julho de 1858, a Igreja Evangélica Fluminense, no centro da cidade hoje, Rua Camerino.

Era uma igreja de pobres, de escravos forros e de mascates, mas que prestou relevantes serviços à comunidade acatólica do país, ao inserir-se na luta pelos direitos dos acatólicos, especialmente na questão dos direitos civis e o respectivo registro civil, já que nascimento, casamento e óbitos, com seus respectivos registros eram prerrogativas católicas e aos seus seguidores, sendo o catolicismo a religião oficial do Império Brasileiro.

Kalley foi um grande batalhador em prol dessa e de outras causas, escrevendo artigos na imprensa secular, publicando folhetos e livretos, distribuídos junto às Bíblias pelos colportores que arregimentou. É dele também a denominada Pastoral da Liberdade (sugiro sua leitura em artigo escrito por Douglas Nassif Cardoso, publicado em revista da UMESP), em que condena veementemente a escravidão então vigente em nosso país.

Dois membros da igreja tinham escravos e foi-lhes dado, pela igreja, um prazo para alforriá-los. O que o fez, continuou como membro da igreja e o que se recusou a fazê-lo foi excluído pela igreja. Essa posição progressista da Igreja Evangélica Fluminense certamente é desconhecida pela maioria dos protestantes/evangélicos do país, tendo em vista a especificidade do ministério de Kalley; embora de origem presbiteriana, era desvinculado de sua igreja de origem e era independente, mantendo-se às suas expensas, contando também com a ajuda de amigos e familiares da esposa, ricos industriais ingleses.

Após um período de 21 anos, Kalley retornou à Escócia, deixando um importante legado. Organizou a Igreja Evangélica Fluminense, a Igreja Evangélica e Congregacional de Niterói e a Igreja Evangélica Pernambucana, que com outras dez igrejas, reunidas em 1913, deram origem ao que hoje é a União das Igrejas Evangélicas Congregacionais do Brasil, que conta com cerca de 400 igrejas em todo o país.

Que Deus continue a abençoar os evangélicos brasileiros, que têm uma importante data a comemorar.

Sergio Prates Lima -- “A História é a versão dos eventos passados sobre os quais as pessoas decidiram concordar." (Napoleão Bonaparte)

jeudi 5 août 2010

Dez falsos motivos para não votar na Dilma

Por Jorge Furtado em 25 de julho de 2010

Tenho alguns amigos que não pretendem votar na Dilma, um ou outro até diz que vai votar no Serra. Espero que sigam sendo meus amigos. Política, como ensina André Comte-Sponville, supõe conflitos: “A política nos reúne nos opondo: ela nos opõe sobre a melhor maneira de nos reunir”.

Leio diariamente o noticiário político e ainda não encontrei bons argumentos para votar no Serra, uma candidatura que cada vez mais assume seu caráter conservador. Serra representa o grupo político que governou o Brasil antes do Lula, com desempenho, sob qualquer critério, muito inferior ao do governo petista, a comparação chega a ser enfadonha, vai lá para o pé da página, quem quiser que leia. (1)

Ouvi alguns argumentos razoáveis para votar em Marina, como incluir a sustentabilidade na agenda do desenvolvimento. Marina foi ministra do Lula por sete anos e parece ser uma boa pessoa, uma batalhadora das causas ambientalistas. Tem, no entanto (na minha opinião) o
inconveniente de fazer parte de uma igreja bastante rígida, o que me faz temer sobre a capacidade que teria um eventual governo comandado por ela de avançar em questões fundamentais como os direitos dos homossexuais, a descriminalização do aborto ou as pesquisas envolvendo as células tronco.

Ouço e leio alguns argumentos para não votar em Dilma, argumentos que me parecem inconsistentes, distorcidos, precários ou simplesmente falsos. Passo a analisar os dez mais freqüentes.

1. “Alternância no poder é bom”. Falso. O sentido da democracia não é a alternância no poder e sim a escolha, pela maioria, da melhor proposta de governo, levando-se em conta o conhecimento que o eleitor tem dos candidatos e seus grupo políticos, o que dizem pretender fazer e, principalmente, o que fizeram quando exerceram o poder. Ninguém pode defender seriamente a idéia de que seria boa a alternância entre a recessão e o desenvolvimento, entre o desemprego e a geração de empregos, entre o arrocho salarial e o aumento do poder aquisitivo da população, entre a distribuição e a concentração da riqueza. Se a alternância no poder fosse um valor em si não precisaria haver eleição e muito menos deveria haver a possibilidade de reeleição.

2. “Não há mais diferença entre direita e esquerda”. Falso. Esquerda e direita são posições relativas, não absolutas. A esquerda é, desde a sua origem, a posição política que tem por objetivo a diminuição das desigualdades sociais, a distribuição da riqueza, a inserção social dos desfavorecidos. As conquistas necessárias para se atingir estes objetivos mudam com o tempo. Hoje, ser de esquerda significa defender o fortalecimento do estado como garantidor do bem-estar social, regulador do mercado, promotor do desenvolvimento e da distribuição de riqueza, tudo isso numa sociedade democrática com plena liberdade de expressão e ampla defesa das minorias. O complexo (e confuso) sistema político brasileiro exige que os vários partidos se reúnam em coligações que lhes garantam maioria parlamentar, sem a qual o país se torna ingovernável. A candidatura de Dilma tem o apoio de políticos que jamais poderiam ser chamados de “esquerdistas”, como Sarney, Collor ou Renan Calheiros, lideranças regionais que se abrigam principalmente no PMDB, partido de espectro ideológico muito amplo. José Serra tem o apoio majoritário da direita e da extrema-direita reunida no DEM (2), da “direita” do PMDB, além d PTB, PPS e outros pequenos partidos de direita: Roberto Jefferson, Jorge Borhausen, ACM Netto, Orestes Quércia, Heráclito Fortes, Roberto Freire, Demóstenes Torres, Álvaro Dias, Arthur Virgílio, Agripino Maia, Joaquim Roriz, Marconi Pirilo, Ronaldo Caiado, Katia Abreu, André Pucinelli, são todos de direita e todos serristas, isso para não falar no folclórico Índio da Costa, vice de Serra. Comparado com Agripino Maia ou Jorge Borhausen, José Sarney é Che Guevara.

3. “Dilma não é simpática". Argumento precário e totalmente subjetivo. Precário porque a simpatia não é, ou não deveria ser, um atributo fundamental para o bom governante. Subjetivo, porque o quesito “simpatia” depende totalmente do gosto do freguês. Na minha opinião, por exemplo, é difícil encontrar alguém na vida pública que seja mais antipático que José Serra, embora ele talvez tenha sido um bom governante de seu estado. Sua arrogância com quem lhe faz críticas, seu destempero e prepotência com jornalistas, especialmente com as mulheres, chega a ser revoltante.

4. “Dilma não tem experiência”. Argumento inconsistente. Dilma foi secretária de estado, foi ministra de Minas e Energia e da Casa Civil, fez parte do conselho da Petrobras, gerenciou com eficiência os gigantescos investimentos do PAC, dos programas de habitação popular e eletrificação rural. Dilma tem muito mais experiência administrativa, por exemplo, do que tinha o Lula, que só tinha sido parlamentar, nunca tinha administrado um orçamento, e está fazendo um bom governo.

5. “Dilma foi terrorista”. Argumento em parte falso, em parte distorcido. Falso, porque não há qualquer prova de que Dilma tenha tomado parte de ações “terroristas”. Distorcido, porque é fato que Dilma fez parte de grupos de resistência à ditadura militar, do que deve se orgulhar, e que este grupo praticou ações armadas, o que pode (ou não) ser condenável. José Serra também fez parte de um grupo de resistência à ditadura, a AP (Ação Popular), que também praticou ações armadas, das quais Serra não tomou parte. Muitos jovens que participaram de grupos de resistência à ditadura hoje participam da vida democrática como candidatos. Alguns, como Fernando Gabeira, participaram ativamente de seqüestros, assaltos a banco e ações armadas. A luta daqueles jovens, mesmo que por meios discutíveis, ajudou a restabelecer a democracia no país e deveria ser motivo de orgulho, não de vergonha.

6. “As coisas boas do governo petista começaram no governo tucano”. Falso. Todo governo herda políticas e programas do governo anterior, políticas que pode manter, transformar, ampliar, reduzir ou encerrar. O governo FHC herdou do governo Itamar o real, o programa dos genéricos, o FAT, o programa de combate a AIDS. Teve o mérito de manter e aperfeiçoá-los, desenvolvê-los, ampliá-los. O governo Lula herdou do governo FHC, por exemplo, vários programas de assistência social. Teve o mérito de unificá-los e ampliá-los, criando o Bolsa Família. De qualquer maneira, os resultados do governo Lula são tão superiores aos do governo FHC que o debate “quem começou o quê” torna-se irrelevante.

7. “Serra vai moralizar a política”. Argumento inconsistente. Nos oito anos de governo tucano-pefelista - no qual José Serra ocupou papel de destaque, sendo escolhido para suceder FHC - foram inúmeros os casos de corrupção, um deles no próprio Ministério da Saúde, comandado por Serra, o superfaturamento de ambulâncias investigado pela “Operação Sanguessuga”. Se considerarmos o volume de dinheiro público desviado para destinos nebulosos e paraísos fiscais nas privatizações e o auxílio luxuoso aos banqueiros falidos, o governo tucano talvez tenha sido o mais corrupto da história do país. Ao contrário do que aconteceu no governo Lula, a corrupção no governo FHC não foi investigada por nenhuma CPI, toda sepultadas pela maioria parlamentar da coligação PSDB-PFL. O procurador da república ficou conhecido com “engavetador da república”, tal a quantidade de investigações criminais que morreram em suas mãos. O esquema de financiamento eleitoral batizado de “mensalão” foi criado pelo presidente nacional do PSDB, senador Eduardo Azeredo, hoje réu em processo criminal. O governador José Roberto Arruda, do DEM, era o principal candidato ao posto de vice-presidente na chapa de Serra, até ser preso por corrupção no “mensalão do DEM”. Roberto Jefferson, réu confesso do mensalão petista, hoje apóia José Serra. Todos estes fatos, incontestáveis, não indicam que um eventual governo Serra poderia ser mais eficiente no combate à corrupção do que seria um governo Dilma, ao contrário.

8. “O PT apóia as FARC”. Argumento falso. É fato que, no passado, as FARC ensaiaram uma tentativa de institucionalização e buscaram aproximação com o PT, então na oposição, e também com o governo brasileiro, através de contatos com o líder do governo tucano, Arthur Virgílio. Estes contatos foram rompidos com a radicalização da guerrilha na Colômbia e nunca foram retomados, a não ser nos delírios da imprensa de extrema-direita. A relação entre o governo brasileiro e os governos estabelecidos de vários países deve estar acima de divergências ideológicas, num princípio básico da diplomacia, o da auto-determinação dos povos. Não há notícias, por exemplo, de capitalistas brasileiros que defendam o rompimento das relações com a China, um dos nossos maiores parceiros comerciais, por se tratar de uma ditadura. Ou alguém acha que a China é um país democrático?

9. “O PT censura a imprensa”. Argumento falso. Em seus oito anos de governo o presidente Lula enfrentou a oposição feroz e constante dos principais veículos da antiga imprensa. Esta oposição foi explicitada pela presidente da Associação Nacional de Jornais (ANJ) que declarou que seus filiados assumiram “a posição oposicionista (sic) deste país”. Não há registro de um único caso de censura à imprensa por parte do governo Lula. O que há, frequentemente, é a queixa dos órgãos de imprensa sobre tentativas da sociedade e do governo, a exemplo do que acontece em todos os países democráticos do mundo, de regulamentar a atividade da mídia.

10. “Os jornais, a televisão e as revistas falam muito mal da Dilma e muito bem do Serra”.
Isso é verdade. E mais um bom motivo para votar nela e não nele.

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Notas
(1) Alguns dados comparativos dos governos FHC e Lula.

1. Geração de empregos: FHC/Serra = 780 mil x Lula/Dilma = 12 milhões.
2. Salário mínimo: FHC/Serra = 64 dólares x Lula/Dilma = 290 dólares.
3. Mobilidade social (brasileiros que deixaram a linha da pobreza): FHC/Serra = 2 milhões x Lula/Dilma = 27 milhões.
4. Risco Brasil: FHC/Serra = 2.700 pontos x Lula/Dilma = 200 pontos.
5. Dólar: FHC/Serra = R$ 3,00 x Lula/Dilma = R$ 1,78.
6. Reservas cambiais: FHC/Serra = menos 185 bilhões de dólares x Lula/Dilma = mais 239 bilhões de dólares.
7. Relação crédito/PIB: FHC/Serra = 14% x Lula/Dilma = 34%.
8. Inflação: FHC/Serra =12,5% (2002) x Lula/Dilma = 4,7% (2009).
9. Produção de automóveis: FHC/Serra = queda de 20% x Lula/Dilma = aumento de 30%.
10. Taxa de juros: FHC/Serra = 27% x Lula/Dilma = 10,75%.

(2) Elio Gaspari, na Folha de S.Paulo de 25.07.10: José Serra começou sua campanha dizendo: "Não aceito o raciocínio do nós contra eles", e em apenas dois meses viu-se lançado pelo seu colega de chapa numa discussão em torno das ligações do PT com as Farc e o narcotráfico. Caso típico de rabo que abanou o cachorro. O destempero de Indio da Costa tem método. Se Tupã ajudar Serra a vencer a eleição, o DEM volta ao poder. Se prejudicar, ajudando Dilma Rousseff, o PSDB sairá da campanha com a identidade estilhaçada. Já o DEM, que entrou na disputa com o cocar do seu mensalão, sairá brandindo o tacape do conservadorismo feroz que renasceu em diversos países, sobretudo nos Estados Unidos.

dimanche 1 août 2010

A bomba atômica brasileira: é assim que começa...

Texto de Tomás Rosa Bueno, publicado no blog do Luís Nassif, Brasilianas.Org

[De Bariloche, Argentina] -- Como já foi dito, o uso de balões de ensaio para “testar hipóteses” para possíveis futuros cursos de ação segue uma sequência lógica: o que hoje é delírio da imprensa de extrema-direira torna-se amanhã uma “ponderação” da imprensa “séria” e, na semana que vem, conforme as reações, surge como “preocupação” dos governos do clube atômico.

Nos poucos anos que se seguiram à adesão do Brasil ao Tratado de Não Proliferação, a acusação de que o Brasil mantinha um programa nuclear militar secreto era coisa de malucos babantes, mas foi aos poucos adquirindo respeitabilidade até instalar-se confortavelmente, pouco depois da posse do Lula, nas páginas da imprensa especializada, onde ficou dormitando por uns tempos até ser chamada a tarefas mais elevadas. Recentemente, surgiu nas manchetes da imprensa “respeitável” e vem percorrendo os circuitos habituais que essas coisas frequentam, dos blogues alarmistas às revistas especializadas. E jornais venerandos de países idem contam que a Agência Internacional de Energia Atômica, preocupada com as “zonas de sombra" do programa nuclear brasileiro, montou em maio deste ano uma “estrutura especial” de inspeção para fuçar as nossas instalações nucleares.

Agora, enquanto a AIEA e o governo dos Estados Unidos expressam a sua “preocupação” por um livro de um físico brasileiro que desvenda os segredos da ogiva nuclear W87 dos EUA, “A física dos explosivos nucleares”, a imprensa de extrema-direita dos EUA parte para a próxima etapa e eleva o tom das acusações. Já não se trata de suspeitas e especulações, mas de “informações”: o jornal The Washington Times, propriedade do nefando reverendo Moon, publicou hoje uma reportagem, na qual o Brasil é citado explicitamente, sobre a reativação da fajutíssima rede paquistanesa de contrabando de tecnologia nuclear – que levou entre outras coisas ao reinício do programa nuclear iraniano e à bomba norte-coreana, e cujo responsável, o físico Abdul Qadeer Khan, “pai da bomba atômica paquistanesa”, foi “perdoado” e circula livremente pelo mundo, em vez de estar na cadeia.

Segundo o jornal, fontes anônimas de agências de inteligência americanas relatam que, “nestes últimos meses”, agentes de diversos países, entre eles o Brasil, têm contatado pessoas ligadas a essa rede de contrabando na tentativa de a reativar – o que só pode estar sendo feito por razões inconfessáveis. O fato de o Paquistão não ter nada a ensinar ao Brasil em tecnologia nuclear – ao contrário – não parece preocupar nem as autoridades americanas anônimas nem o jornal que lhes dá voz. O importante é vincular “agentes” brasileiros à mais escandalosa e perigosa trama clandestina de proliferação nuclear de que se tem notícia – depois, é claro, da que os americanos montaram em benefício de Israel e de sabe-se lá quais outros “países amigos”; mas esta não conta, por que é “do bem”. Não falta muito para que a AIEA emita um relatório confirmando que o material físsil brasileiro não é desviado para fins clandestinos, mas que, como no Irã, a agência não pode certificar que o Brasil não tem um programa secreto.

Numa estranha “coincidência”, a tal estrutura especial de inspeção da AIEA foi montada na mesma época em que o Brasil negociou com o Irã e a Turquia o acordo de troca de combustível nuclear, num triunfo diplomático que expôs a falta de honestidade das relações do clube atômico com o Irã (e também com o Brasil e a Turquia); e a acusação de contatos excusos de brasileiros com a rede paquistanesa saiu dois dias depois que, com cautela e meio a contragosto, o Brasil interveio de novo na questão iraniana para forçar a abertura de negociações entre as partes. Talvez essa “estrutura especial” e as suas implicações funestas tenham sido um dos elementos de pressão que levaram o chanceler Celso Amorim a lamuriar-se publicamente pelos “dedos queimados” com a nossa participação nas negociações com o Irã. Outros possíveis pontos de pressão poderão vir sendo revelados aos poucos, se o governo brasileiro não cumprir a sua obrigação de revelar as chantagens de que vem sendo alvo, e quem as faz.

Há setores do Itamaraty que parecem acreditar que a nossa atuação em defesa do direito do Irã ao desenvolvimento de uma tecnologia nuclear para fins pacíficos é a causa dessa escalada das “suspeitas” sobre o nosso próprio programa nuclear, mas é obvio que elas vem se desenrolando há anos segundo um padrão comum a muitas outras situações semelhantes, entre elas a do próprio Irã. Como também é óbvio que seremos a bola da vez se, dentro das nossas ainda limitadas capacidades de intervir decisivamente no cenário internacional, não fizermos tudo o que estiver ao nosso alcance para denunciar a trama de mentiras e de razões ocultas que está por trás da tentativa de liquidar o Tratado de Não Proliferação e impor um bloqueio às transferências internacionais de tecnologia nuclear.

mercredi 21 juillet 2010

A Confissão de Fé de Guanabara

Jean de Bourdel, Matthieu Verneuil, Pierre Bourdon e André la Fon

No dia 7 de março de 1557 chegou a Guanabara um grupo de huguenotes (calvinistas franceses) com o propósito de ajudar a estabelecer um refúgio para os calvinistas perseguidos na França. Perseguidos também na Guanabara em virtude de sua fé reformada, alguns conseguiram escapar; outros, foram condenados à morte por Villegaignon, foram enforcados e seus corpos atirados de um despenhadeiro, em 1558. Antes de morrer, entretanto, foram obrigados a professar por escrito sua fé, no prazo de doze horas, respondendo uma série de perguntas que lhes foram entregues. Eles assim o fizeram, e escreveram a primeira confissão de fé na América (ver Apêndice 2), sabendo que com ela estavam assinando a própria sentença de morte. [1]

TEXTO DA CONFISSÃO [2]

Segundo a doutrina de S. Pedro Apóstolo, em sua primeira epístola, todos os cristãos devem estar sempre prontos para dar razão da esperança que neles há, e isso com toda a doçura e benignidade, nós abaixo assinados, Senhor de Villegaignon, unanimemente (segundo a medida de graça que o Senhor nos tem concedido) damos razão, a cada ponto, como nos haveis apontado e ordenado, e começando no primeiro artigo:

I. Cremos em um só Deus, imortal, invisível, criador do céu e da terra, e de todas as coisas, tanto visíveis como invisíveis, o qual é distinto em três pessoas: o Pai, o Filho e o Santo Espírito, que não constituem senão uma mesma substância em essência eterna e uma mesma vontade; o Pai, fonte e começo de todo o bem; o Filho, eternamente gerado do Pai, o qual, cumprida a plenitude do tempo, se manifestou em carne ao mundo, sendo concebido do Santo Espírito, nasceu da virgem Maria, feito sob a lei para resgatar os que sob ela estavam, a fim de que recebêssemos a adoção de próprios filhos; o Santo Espírito, procedente do Pai e do Filho, mestre de toda a verdade, falando pela boca dos profetas, sugerindo as coisas que foram ditas por nosso Senhor Jesus Cristo aos apóstolos. Este é o único Consolador em aflição, dando constância e perseverança em todo bem.
Cremos que é mister somente adorar e perfeitamente amar, rogar e invocar a majestade de Deus em fé ou particularmente.

II. Adorando nosso Senhor Jesus Cristo, não separamos uma natureza da outra, confessando as duas naturezas, a saber, divina e humana nele inseparáveis.

III. Cremos, quanto ao Filho de Deus e ao Santo Espírito, o que a Palavra de Deus e a doutrina apostólica, e o símbolo,[3] nos ensinam.

IV. Cremos que nosso Senhor Jesus Cristo virá julgar os vivos e os mortos, em forma visível e humana como subiu ao céu, executando tal juízo na forma em que nos predisse no capítulo vinte e cinco de Mateus, tendo todo o poder de julgar, a Ele dado pelo Pai, sendo homem. E, quanto ao que dizemos em nossas orações, que o Pai aparecerá enfim na pessoa do Filho, entendemos por isso que o poder do Pai, dado ao Filho, será manifestado no dito juízo, não todavia que queiramos confundir as pessoas, sabendo que elas são realmente distintas uma da outra.

V. Cremos que no santíssimo sacramento da ceia, com as figuras corporais do pão e do vinho, as almas fiéis são realmente e de fato alimentadas com a própria substância do nosso Senhor Jesus, como nossos corpos são alimentados de alimentos, e assim não entendemos dizer que o pão e o vinho sejam transformados ou transubstanciados no seu corpo, porque o pão continua em sua natureza e substância, semelhantemente ao vinho, e não há mudança ou alteração. Distinguimos todavia este pão e vinho do outro pão que é dedicado ao uso comum, sendo que este nos é um sinal sacramental, sob o qual a verdade é infalivelmente recebida. Ora, esta recepção não se faz senão por meio da fé e nela não convém imaginar nada de carnal, nem preparar os dentes para comer, como santo Agostinho nos ensina, dizendo: "Porque preparas tu os dentes e o ventre? Crê, e tu o comeste." O sinal, pois, nem nos dá a verdade, nem a coisa significada; mas Nosso Senhor Jesus Cristo, por seu poder, virtude e bondade, alimenta e preserva nossas almas, e as faz participantes da sua carne, e de seu sangue, e de todos os seus benefícios. Vejamos a interpretação das palavras de Jesus Cristo: "Este pão é meu corpo." Tertuliano, no livro quarto contra Marcião, explica estas palavras assim: "este é o sinal e a figura do meu corpo". S. Agostinho diz: "O Senhor não evitou dizer: — Este é o meu corpo, quando dava apenas o sinal de seu corpo". Portanto (como é ordenado no primeiro cânon do Concílio de Nicéia), neste santo sacramento não devemos imaginar nada de carnal e nem nos distrair no pão e no vinho, que nos são neles propostos por sinais, mas levantar nossos espíritos ao céu para contemplar pela fé o Filho de Deus, nosso Senhor Jesus, sentado à destra de Deus, seu Pai. Neste sentido podíamos jurar o artigo da Ascensão, com muitas outras sentenças de Santo Agostinho, que omitimos, temendo ser longas.

VI. Cremos que, se fosse necessário pôr água no vinho, os evangelistas e São Paulo não teriam omitido uma coisa de tão grande conseqüência. E quanto ao que os doutores antigos têm observado (fundamen¬tando-se sobre o sangue misturado com água que saiu do lado de Jesus Cristo, desde que tal observância não tem fundamento na Palavra de Deus, visto mesmo que depois da instituição da Santa Ceia isso aconteceu), nós não podemos hoje admitir necessariamente.

VII. Cremos que não há outra consagração senão a que se faz pelo ministro, quando se celebra a ceia, recitando o ministro ao povo, em linguagem conhecida, a instituição desta ceia literalmente, segundo a forma que nosso Senhor Jesus Cristo nos prescreveu, admoestando o povo quanto à morte e paixão do nosso Senhor. E mesmo, como diz santo Agostinho, a consagração é a palavra de fé que é pregada e recebida em fé. Pelo que, segue-se que as palavras secretamente pronunciadas sobre os sinais não podem ser a consagração como aparece da instituição que nosso Senhor Jesus Cristo deixou aos seus apóstolos, dirigindo suas palavras aos seus discípulos presentes, aos quais ordenou tomar e comer.

VIII. O santo sacramento da ceia não é alimento para o corpo como para as almas (porque nós não imaginamos nada de carnal, como declaramos no artigo quinto) recebendo-o por fé, a qual não é carnal. IX. Cremos que o batismo é sacramento de penitência, e como uma entrada na igreja de Deus, para sermos incorporados em Jesus Cristo. Representa-nos a remissão de nossos pecados passados e futuros, a qual é adquirida plenamente, só pela morte de nosso Senhor Jesus. De mais, a mortificação de nossa carne aí nos é representada, e a lavagem, representada pela água lançada sobre a criança, é sinal e selo do sangue de nosso Senhor Jesus, que é a verdadeira purificação de nossas almas. A sua instituição nos é ensinada na Palavra de Deus, a qual os santos apóstolos observaram, usando de água em nome do Pai, do Filho e do Santo Espírito. Quanto aos exorcismos, abjurações de Satanás, crisma, saliva e sal, nós os registramos como tradições dos homens, contentando-nos só com a forma e instituição deixada por nosso Senhor Jesus.

X. Quanto ao livre arbítrio, cremos que, se o primeiro homem, criado à imagem de Deus, teve liberdade e vontade, tanto para bem como para mal, só ele conheceu o que era livre arbítrio, estando em sua integridade. Ora, ele nem apenas guardou este dom de Deus, assim como dele foi privado por seu pecado, e todos os que descendem dele, de sorte que nenhum da semente de Adão tem uma centelha do bem. Por esta causa, diz São Paulo, o homem natural não entende as coisas que são de Deus. E Oséias clama aos filho de Israel: "Tua perdição é de ti, ó Israel." Ora isto entendemos do homem que não é regenerado pelo Santo Espírito. Quanto ao homem cristão, batizado no sangue de Jesus Cristo, o qual caminha em novidade de vida, nosso Senhor Jesus Cristo restitui nele o livre arbítrio, e reforma a vontade para todas as boas obras, não todavia em perfeição, porque a execução de boa vontade não está em seu poder, mas vem de Deus, como amplamente este santo apóstolo declara, no sétimo capítulo aos Romanos, dizendo: "Tenho o querer, mas em mim não acho o realizar". O homem predestinado para a vida eterna, embora peque por fragilidade humana, todavia não pode cair em impenitência. A este propósito, S. João diz que ele não peca, porque a eleição permanece nele.

XI. Cremos que pertence só à Palavra de Deus perdoar os pecados, da qual, como diz santo Ambrósio, o homem é apenas o ministro; portanto, se ele condena ou absolve, não é ele, mas a Palavra de Deus que ele anuncia. Santo Agostinho, neste lugar diz que não é pelo mérito dos homens que os pecados são perdoados, mas pela virtude do Santo Espírito. Porque o Senhor dissera aos seus apóstolos: "recebei o Santo Espírito;" depois acrescenta: "Se perdoardes a alguém os seus pecados," etc. Cipriano diz que o servo não pode perdoar a ofensa contra o Senhor.

XII. Quanto à imposição das mãos, essa serviu em seu tempo, e não há necessidade de conservá-la agora, porque pela imposição das mãos não se pode dar o Santo Espírito, porquanto isto só a Deus pertence. No tocante à ordem eclesiástica, cremos no que S. Paulo dela escreveu na primeira epístola a Timóteo, e em outros lugares.

XIII. A separação entre o homem e a mulher legitimamente unidos por casamento não se pode fazer senão por causa de adultério, como nosso Senhor ensina (Mateus 19:5). E não somente se pode fazer a separação por essa causa, mas também, bem examinada a causa perante o magistrado, a parte não culpada, se não podendo conter-se, deve casar-se, como São Ambrósio diz sobre o capítulo sete da Primeira Epístola aos Coríntios. O magistrado, todavia, deve nisso proceder com madureza de conselho.

XIV. São Paulo, ensinando que o bispo deve ser marido de uma só mulher, não diz que não lhe seja lícito tornar a casar, mas o santo apóstolo condena a bigamia a que os homens daqueles tempos eram muito afeitos; todavia, nisso deixamos o julgamento aos mais versados nas Santas Escrituras, não se fundando a nossa fé sobre esse ponto.

XV. Não é lícito votar a Deus, senão o que ele aprova. Ora, é assim que os votos monásticos só tendem à corrupção do verdadeiro serviço de Deus. É também grande temeridade e presunção do homem fazer votos além da medida de sua vocação, visto que a santa Escritura nos ensina que a continência é um dom especial (Mateus 15 e 1 Coríntios 7). Portanto, segue-se que os que se impõem esta necessidade, renunciando ao matrimônio toda a sua vida, não podem ser desculpados de extrema temeridade e confiança excessiva e insolente em si mesmos. E por este meio tentam a Deus, visto que o dom da continência é em alguns apenas temporal, e o que o teve por algum tempo não o terá pelo resto da vida. Por isso, pois, os monges, padres e outros tais que se obrigam e prometem viver em castidade, tentam contra Deus, por isso que não está neles o cumprir o que prometem. São Cipriano, no capítulo onze, diz assim: "Se as virgens se dedicam de boa vontade a Cristo, perseverem em castidade sem defeito; sendo assim fortes e constantes, esperem o galardão preparado para a sua virgindade; se não querem ou não podem perseverar nos votos, é melhor que se casem do que serem precipitadas no fogo da lascívia por seus prazeres e delícias." Quanto à passagem do apóstolo S. Paulo, é verdade que as viúvas tomadas para servir à igreja, se submetiam a não mais casar, enquanto estivessem sujeitas ao dito cargo, não que por isso se lhes reputasse ou atribuísse alguma santidade, mas porque não podiam bem desempenhar os deveres, sendo casadas; e, querendo casar, renunciassem à vocação para a qual Deus as tinha chamado, contudo que cumprissem as promessas feitas na igreja, sem violar a promessa feita no batismo, na qual está contido este ponto: "Que cada um deve servir a Deus na vocação em que foi chamado." As viúvas, pois, não faziam voto de continência, senão porque o casamento não convinha ao ofício para que se apresentavam, e não tinha outra consideração que cumpri-lo. Não eram tão constrangidas que não lhes fosse antes permitido casar que se abrasar e cair em alguma infâmia ou desonestidade. Mas, para evitar tal inconveniência, o apóstolo São Paulo, no capítulo citado, proíbe que sejam recebidas para fazer tais votos sem que tenham a idade de sessenta anos, que é uma idade normalmente fora da incontinência. Acrescenta que os eleitos só devem ter sido casados uma vez, a fim de que por essa forma, tenham já uma aprovação de continência.

XVI. Cremos que Jesus Cristo é o nosso único Mediador, intercessor e advogado, pelo qual temos acesso ao Pai, e que, justificados no seu sangue, seremos livres da morte, e por ele já reconciliados teremos plena vitória contra a morte. Quanto aos santos mortos, dizemos que desejam a nossa salvação e o cumprimento do Reino de Deus, e que o número dos eleitos se complete; todavia, não nos devemos dirigir a eles como intercessores para obterem alguma coisa, porque desobedeceríamos o mandamento de Deus. Quanto a nós, ainda vivos, enquanto estamos unidos como membros de um corpo, devemos orar uns pelos outros, como nos ensinam muitas passagens das Santas Escrituras.

XVII. Quanto aos mortos, São Paulo, na Primeira Epístola aos Tessalonicenses, no capítulo quatro, nos proíbe entristecer-nos por eles, porque isto convém aos pagãos, que não têm esperança alguma de ressuscitar. O apóstolo não manda e nem ensina orar por eles, o que não teria esquecido se fosse conveniente. S. Agostinho, sobre o Salmo 48, diz que os espíritos dos mortos recebem conforme o que tiverem feito durante a vida; que se nada fizeram, estando vivos, nada recebem, estando mortos. Esta é a resposta que damos aos artigos por vós enviados, segundo a medida e porção da fé, que Deus nos deu, suplicando que lhe praza fazer que em nós não seja morta, antes produza frutos dignos de seus filhos, e assim, fazendo-nos crescer e perseverar nela, lhe rendamos graças e louvores para sempre.

Assim seja.
Jean du Bourdel, Matthieu Verneuil, Pierre Bourdon, André la Fon.

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* Extraído de Paulo R. B. Anglada, Sola Scriptura: A Doutrina Reformada das Escrituras (São Paulo: Editora Os Puritanos, 1998), 190-197.
[1] O relato da história dos mártires huguenotes no Brasil, bem como a Confissão de Fé que escreveram, encontra-se no livro A Tragédia da Guanabara: História dos Protomartyres do Christianismo no Brasil, traduzido por Domingos Ribeiro; de um capítulo intitulado On the Church of the Believers in the Country of Brazil, part of Austral America: Its Affliction and Dispersion, do livro de Jean Crespin: l' Histoire des Martyres, originalmente publicado em 1564. Este livro, por sua vez, é uma tradução de um pequeno livro: Histoire des choses mémorables survenues en le terre de Brésil, partie de l' Amérique australe, sous le governement de N. de Villegaignon, depuis l' an 1558, publicado em 1561, cuja autoria é atribuída a Jean Lery, um dos huguenotes que vieram para o Brasil em 1557, o qual também publicou outro livro sobre sua viagem ao Brasil: Histoire d'an voyage fait en la terre du Brésil.
[2] O texto foi transcrito de Jean Crespin, A Tragédia da Guanabara; História dos Protomartyres do Christianismo no Brasil, 65-71. O português antigo de Domingos Ribeiro (o tradutor) foi atualizado.
[3] Uma referência ao Credo Apostólico.

Recomendação de leitura
LÉRY, Jean de. Histoire d'un voyage faict en la terre du Bresil: autrement dite Amerique. Avec les figures, reveve, corrigee & bien augmentee de discours notables, em ceste troisieme edition. [Geneve, Suiça]: Pour Antoine Chuppin, 1585.
Em l555, sob a liderança do Vice-Almirante Nicolau Durand de Villegaignon, os franceses fortificaram-se nas ilhas de Laje e Sirigipe, na baía de Guanabara, com a finalidade de criar uma colônia - a França Antártica. Daquela experiência colonizadora, assinalada pelas lutas entre católicos e huguenotes (calvinistas franceses) e pelas relações entre os franceses e os tupinambás, deixou-nos o calvinista Jean de Léry um interessante relato em Histoire d'un voyage fait en la terre du Brésil, publicado em 1578.
O texto de Jean de Léry é, em primeiro lugar, uma resposta ao franciscano André Thevet que atribuía às dissensões fomentadas pelos calvinistas o fracasso daquela experiência colonizadora. Mas é também o modo que Léry encontra para exaltar o Senhor, cujo poder se confirmava nas belezas naturais e na variedade que compunham o Novo Mundo, além de se apresentar como uma espécie de relato de um "percurso iniciático", no qual a descoberta do outro desperta a própria estranheza.
Ao "dar voz" ao nativo, por meio de uma figura de retórica, Léry põe em relevo não apenas as características do modo de vida daqueles que eram identificados como "selvagens", mas sobretudo os traços distintivos de sua própria sociedade, profundamente dividida pelas "Guerras de Religião".

vendredi 9 juillet 2010

História e Teologia na pós-modernidade

Paul Tillich é considerado um dos pensadores mais influentes do século XX. Ensinou teologia e filosofia em várias universidades alemãs e foi para os Estados Unidos em 1933. Por muitos anos, foi professor de Teologia e Filosofia no Union Theological Seminary em Nova Iorque e, mais tarde, na Universidade de Harvard. Entre as obras mais conhecidas podemos citar A Coragem para Ser, Dinâmica da Fé, Amor, Poder e Justiça, Teologia da Cultura e sua Teologia Sistemática.

Aqui analisaremos textos de Paul Tillich para reflexão sobre quatro temas: a dimensão religiosa; tempo e universalidade; heteronomia à teonomia; luteranismo e socialismo religioso.

A dimensão religiosa na vida espiritual do homem
Desprovida de um lar, de um lugar onde estabelecer sua morada, a religião descobre que não é necessária tal morada, que não necessita procurar um lar. Seu lar está em todas partes, quer dizer, na profundeza de todas as funções da vida espiritual do ser humano.

A religião é a dimensão da profundidade em todas elas, é o espectro da profundidade na totalidade do espírito humano.

Mas, o que significa a metáfora profundidade? Significa que o aspecto religioso aponta em direção àquilo que, na vida espiritual do ser humano, é último, infinito e incondicional. No sentido mais amplo e fundamental do termo, religião é preocupação última. E a preocupação última se manifesta em absolutamente todas as funções criativas do espírito humano.

Manifesta-se na esfera moral com a seriedade incondicional do imperativo moral; donde, quando alguém rechaça a religião em nome da função moral do espírito humano, rechaça a religião em nome da própria religião.

Manifesta-se no reino do conhecimento como a busca apaixonada de uma realidade última; por isso, quando alguém rechaça a religião em nome da função cognitiva do espírito humano, rechaça a religião em nome da própria religião.

Manifesta-se na função estética do espírito humano como o anelo infinito de expressar um significado último; donde, quando alguém rechaça a religião em nome da função estética do espírito humano, rechaça a religião em nome da própria religião.

A religião constitui a substância, o fundamento e a profundidade da vida espiritual do humano. Eis o aspecto religioso do espírito humano.

[Paul Tillich, Teologia de la cultura y otros ensayos, A dimensão religiosa na vida espiritual do homem, Buenos Aires, Amorrortu Editores, 1974, pp. 16-17. Texto publicado originalmente em Man’s right to knowledge, Columbia University Press, 1954].

A luta entre o tempo e o espaço
O Deus do tempo é o Deus da história. Isso significa em primeiro lugar, que é o Deus que atua na história com destino a uma meta final. A história segue uma direção, algo novo há de criar-se nela e por intermédio dela.

Essa meta designa-se de várias maneiras: bem-aventurança universal, vitória sobre os poderes demoníacos representados pelas nações imperialistas, chegada do Reino de Deus na história e, mais além da história, transformação da forma do mundo, etc.

Os símbolos são muitos – alguns mais imanentes, como no profetismo antigo e no moderno protestantismo, outros mais transcendentes, como nas doutrinas apocalípticas posteriores e no cristianismo tradicional --, mas em todos os casos o tempo dirige, cria algo novo, uma “nova criatura”, como chama Paulo.

O trágico círculo do espaço foi superado. A história tem um princípio e um fim definidos.

No profetismo, a história é história universal. Negam-se as limitações espaciais, as fronteiras entre as nações. Para Abraão todas as nações serão benditas, todas poderão adorar a Deus no monte Sião, o sofrimento da nação escolhida tem o poder de salvar todas as demais. O milagre do Pentecostes supera as diferenças do idioma.

Em Cristo salva-se e une-se o cosmo, o universo. Em sua tentativa de criar uma consciência humana indivisa, as missões têm um caráter universal. O tempo alcança plenitude na história e a história a alcança no reino universal de Deus, o reinado da justiça e da paz.

Isso nos leva ao ponto decisivo da luta entre o tempo e o espaço. O monoteísmo profético é o monoteísmo da justiça. Os deuses do espaço suprimem, necessariamente, a justiça. O direito ilimitado de todo deus espacial choca inevitavelmente com o direito ilimitado de outro deus espacial. A vontade de poder de um dos grupos não pode fazer justiça ao outro. Isso é válido para os grupos poderosos que operam dentro da nação e para as próprias nações.

O politeísmo, a religião do espaço, é forçosamente injusto. O direito ilimitado de todo deus do espaço anula o universalismo implícito na idéia de justiça.

Este é o único significado do monoteísmo profético. Deus é um porque a justiça é uma. A ameaça profética que pende sobre o povo eleito, de ser rechaçado por Deus, por causa da injustiça, é a verdadeira vitória sobre os deuses do espaço.

A interpretação da história que nos dá o dêutero-Isaías, segundo o qual Deus chama os demais povos para castigar o povo por Ele escolhido, devido à sua injustiça, confere a Deus um caráter universal.

A tragédia e a injustiça são próprias dos deuses do espaço; a realização histórica e a justiça o são de Deus que atua no tempo, e por seu intermédio, unindo no amor o vasto espaço de seu universo.

[Paul Tillich, Teologia de la cultura y otros ensayos, A luta entre o tempo e o espaço, Buenos Aires, Amorrortu Editores, 1974, pp. 40-42].

Entre a heteronomia e a autonomia
Todo sistema político requer autoridade, não só no sentido de possuir instrumentos de força, mais também em termos de consentimento mudo ou manifesto das pessoas. Tal consentimento só é possível se o grupo que está no poder representa uma idéia poderosa, que goze de significado para todos. Existe, pois, na esfera política uma relação entre a autoridade e a autonomia.

Relação que Tillich no ensaio "O Estado como promessa e como tarefa" caracteriza como segue:

Toda estrutura política pressupõe poder e, conseqüentemente, um grupo que o assume. Posto que um grupo de poder é também um conglomerado de interesses opostos a outras unidades de interesses, sempre necessita uma correção. A democracia está justificada e é necessária na medida em que é um sistema que incorpora correções contra o uso errôneo da autoridade política. Os sistemas ditatoriais carecem de correções contra o abuso da autoridade por parte do grupo de poder. O resultado é a escravidão da nação inteira e a corrupção da classe dirigente”.

[Paul Tillich, Teologia de la cultura y otros ensayos, Entre a heteronomia e a autonomia, Buenos Aires, Amorrortu Editores, 1974, pp. 239-240].

Entre o luteranismo e o socialismo
É relativamente simples chegar ao socialismo quando se parte do calvinismo, em especial em suas formas mais secularizadas da última época; o caminho está muito mais cheio de obstáculos quando passa pelo luteranismo.

Sou luterano de berço, educação, experiência religiosa e reflexão teológica. Nunca me situei no limite entre o luteranismo e o calvinismo, nem sequer depois de experimentar as desastrosas conseqüências da ética social luterana e de reconhecer o inestimável valor da idéia calvinista do Reino de Deus para a solução dos problemas sociais.

A essência de minha religião continua sendo luterana. Ela abarca uma consciência de corrupção do existir, o repúdio de todo tipo de Utopia social (incluindo a metafísica do progressismo), a compreensão da natureza irracional e demoníaca da existência, o reconhecimento do elemento místico na religião, e o rechaço do legalismo puritano na vida privada e corporal.

Também meu pensamento filosófico expressa esse conteúdo singular. Até agora, só Jacob Bohéme, porta-voz filosófico do misticismo alemão, tentou uma elaboração especificamente filosófica do luteranismo. Através dele o misticismo luterano influenciou Schelling e o idealismo alemão, e através de Schelling, por sua vez, os filósofos irracionalistas e vitalistas que emergiram nos séculos XIX e XX.

Na medida em que grande parte da ideologia anti-socialista se baseou sobre estes últimos, o luteranismo atuou indiretamente através da filosofia e também diretamente como forma de controle sobre o socialismo.

[Paul Tillich, Teologia de la cultura y otros ensayos, Entre o luteranismo e o socialismo, Buenos Aires, Amorrortu Editores, 1974, pp. 259-263.

Além do Socialismo Religioso
Pareceu-nos interessante como forma de apresentar Paul Tillich, deixar que ele próprio nos falasse de sua experiência norte-americana. Para isto, estamos partindo das idéias que apresentou em artigo publicado no Christian Century, em 15 de junho de 1949, e cujos direitos pertencem a Christian Century Foundation. Este artigo, em inglês, pode ser encontrado no site www.christiancentury.org e foi preparado por Ted & Winnie Brock para Religion Online. Aqui não nos interessa transcrever o artigo do Christian Century, mas discutir as idéias expostas pelo teólogo alemão.

Tillich conta que não viveu uma mudança dramática de vida e experiência intelectual nos anos 40, mas uma lenta transformação, praticamente inconsciente, fruto de uma contínua adaptação aos modos e pensamento norte-americanos.

Ele conta que no verão de 1948, quando voltou pela primeira vez à Alemanha, desde 1933, viveu um claro teste da enorme mudança que sofreu. Houve uma mudança em seu modo de se expressar. O idioma inglês trabalhou nele, produzindo algo que seus amigos alemães consideraram um milagre: o fez compreensível. Nenhum anglicismo apareceu nas palestras que fez, mas o espírito do idioma inglês dominou seu coração, dando-lhe clareza, sobriedade e concretude.

Isto aconteceu indo contra suas inclinações naturais. Aprendeu a evitar o acúmulo de adjetivos, coisa freqüente no idioma alemão. Passou a evitar as ambigüidades, que é um vício freqüente do linguajar filosófico alemão. Além disso, o fez baixar à terra, rompendo com suas longas abstrações. “Tudo isso foi muito bem recebido por meus auditórios alemães, sendo visto como uma impressionante mudança de mente”.

Falando na Alemanha sobre a situação da teologia no EUA, Tillich disse aos seus conterrâneos que a América estava adiante da Europa em teologia histórica e sistemática e mais ainda em relação à ética. Podia dizer isso porque tinha se dado conta de que as éticas são um elemento integrante de teologia sistemática, e teve muito tempo para aprender sobre as éticas individuais no pensamento americano.

No que se refere às éticas sociais, Tillich havia partido de sua experiência militante e teórica como socialista religioso na Alemanha. Mas foi nos Estados Unidos que percebeu a importância central que as éticas sociais têm para a teologia norte-americana. Por isso, considerava que ganhou teologicamente com sua experiência estadunidense.

Nos meus primeiros anos nos Estados Unidos fiquei surpreso e preocupado com a tremenda ênfase dada à questão do pacifismo, algo que me parecia de importância secundária e de resultado confuso. Mais tarde, descobri que todos os problemas teológicos giravam ao redor desta questão. Quando nos anos anteriores, durante e depois da Segunda Guerra Mundial, a ideologia pacifista foi quebrada, vi que esta era uma indicação de que surgia uma atitude nova em relação à doutrina do humano e em relação ao Cristianismo. Esta mudança de mentalidade tornou tudo mais fácil para mim e me fez sentir em casa em meu trabalho teológico”.

Quando vim para América, em 1933, fui rotulado de neo-ortodoxo ou neo-supernaturalista. O que era incorreto, mas tenho de admitir que algumas das expressões que utilizava diante das audiências americanas levaram a tal uma impressão. Minha tarefa nos anos trinta era dar a meus alunos e aos outros ouvintes conta de minhas idéias teológicas, filosóficas e políticas, como tinham se desenvolvido durante os anos críticos de 1914 a 1933.

Trouxe comigo da Alemanha a teologia de crise, a filosofia de existência e o socialismo religioso. Tentei traduzir essas expressões para meus alunos e leitores. Em todos os três destes campos -- o teológico, o filosófico e o político -- meu pensamento sofreu mudanças, em parte por causa de experiências pessoais, em parte por causa das transformações sociais e culturais que estes anos testemunhou.

A maior das mudanças a nível mundial foi o político -- das incertezas dos anos trinta ao estabelecimento, nos anos quarenta, de um mundo de intenso dualismo -- assim como o ideológico. Antes da Segunda Guerra Mundial havia espaço para a esperança de que o espírito religioso-socialista penetrasse no Leste e no Ocidente, mesmo que de forma diferente, diminuindo os contraste e prevenindo os conflitos entre eles. Hoje não há base para nenhuma esperança. A expectativa que tínhamos depois da Primeira Guerra Mundial era de um kairós, de plenitude do tempo, mas tal esperança foi duas vezes abalada, primeiro pela vitória do fascismo e depois por sua derrota militar.

Não duvido que as concepções básicas do socialismo religioso sejam válidas, que apontem ao modo político e cultural de vida pela qual a Europa pode ser construída. Mas não estou seguro de que a adoção dos princípios do socialismo religioso seja uma possibilidade num futuro previsível. Em vez de um kairós criativo, vejo um vazio que só pode ser feito criativo se aceitar e suportar, rejeitando todos os tipos de soluções prematuras. Esta visão significa uma diminuição de minha participação naturalmente em atividades políticas. Minha mudança de mente também foi influenciada pelo desarranjo completo de uma tentativa política séria que fiz durante a guerra para atravessar a abertura entre Leste e Oeste com respeito à organização de Alemanha pós-guerra.

Tillich diz que fala-se muito do repúdio das liberdades civis e dos direitos do ser humano nos países comunistas, que significou uma desilusão para os liberais no mundo inteiro. Mas não pode ser negado que este repúdio dos direitos humanos teve também um efeito devastador naqueles que defendiam o socialismo religioso, como ele, que sem ser utópico, acreditava no amanhecer de uma era criativa, mas viu o mundo mergulhar num momento de profunda escuridão.

"Existencialismo" era bem familiar para mim, antes mesmo da palavra entrar em uso geral. A leitura de Kierkegaard em meus anos de estudante, o estudo completo dos trabalhos posteriores de Schelling, a devoção apaixonada por Nietzsche durante a Primeira Guerra Mundial, o encontro com Marx (especialmente com os escritos filosóficos dele), e finalmente minhas próprias tentativas religioso-socialistas me levaram a uma interpretação existencial da história. Assim, eu estava preparado para a filosofia existencial desenvolvida por Heidegger, Jaspers e Sartre.

Apesar do existencialismo virar moda, confirmei minha convicção de que sua verdade básica para a condição presente é a percepção da liberdade finita do homem e, por conseguinte, da situação perigosa, ambígua e trágica que o ser humano enfrenta. Existencialismo ganha significação especial para nosso tempo no imenso aumento da ansiedade, perigo e conflito na vida pessoal e social devido à estrutura destrutiva presente dos negócios humanos.

A filosofia existencial se aliou com a psicologia profunda. Só pela recente guerra e seu resultado se tornou manifesto que a doença psíquica -- a inabilidade para usar criativamente a liberdade finita da pessoa -- é mais difundida neste país que qualquer outra doença. Ao mesmo tempo a psicologia da profundidade removeu sobras do pensamento do século XIX - ao nível do sociológico, ontológico e até mesmo implicações teológicas de fenômenos como ansiedade, culpa e neurose de compulsão. Fora desta nova cooperação da ontologia e da psicologia (inclusive psicologia social) uma doutrina do ser humano exerceu influência considerável em todos os reinos culturais, especialmente na teologia.

Segundo Tillich foi sob esta influência que elaborou seu sistema teológico: da possibilidade de unir o poder religioso da teologia neo-ortodoxa com a necessidade de levar a mente contemporânea à reflexão existencial, o que resultou na concepção do "método de correlação", quer dizer, perguntas existenciais e respostas teológicas. A situação humana, como interpretado pela filosofia existencial, a psicologia e sociologia posicionam a pergunta; a revelação, interpretada a partir dos símbolos da teologia clássica, dá a resposta. A resposta, claro, deve ser reinterpretada à luz da pergunta, como a pergunta deve ser formulada à luz da resposta.

É possível evitar dois erros contraditórios em teologia, o supernaturalista e o naturalista. O primeiro faz da revelação uma pedra que cai em acima da história, aceita obedientemente, eliminando qualquer suficiência da natureza humana. O segundo substitui a revelação por uma estrutura de pensamento racional derivada que julga através da natureza humana. O método da correlação supera o conflito entre supernaturalismo e naturalismo, eliminando a contradição permanente entre fundamentalismo ou neo-ortodoxia por um lado e humanismo teológico ou liberalismo por outro.

No curso desta tentativa ficou claro para mim que a denominada teologia liberal tem que ser defendida com paixão ética e científica. Isto é, permanece o direito e dever da crítica filológico-histórica da literatura bíblica sem qualquer condição, a não ser a integridade de pesquisa e honestidade científica. Qualquer interferência dogmática com este trabalho nos dirigiria a superstições novas ou velhas -- mitos e símbolos -- o que não pode ser feito sem a supressão de conhecimento. O poder deste neobiblicismo é óbvio na Europa continental, mas já pode ser sentido também aqui, e até mesmo entre liberais antiquados.

Olhando para a última década de minha vida eu não vejo nenhuma mudança dramática de mente, mas um desenvolvimento lento de minhas convicções na direção de maior claridade e certeza. Acima de tudo percebi que algumas grandes e duradouras coisas são decisivas para a mente humana, e que agarrá-las é mais importante que procurar mudanças dramáticas.


Bibliografia

Paul Tillich, Die sozialistische Entscheidung. In: Christentum und soziale Gestaltung. Frühe Schriften zum religiösen Sozialismus. Gesammelte Werke II, Stuttgart, Evangelisches Verlagswerk, 1962, 219-265. Trad. fr. in: Écrits contre les nazis (1932-1935). Paris/Genève, Le Cerf/Labor et Fides, 1994. Trad. ing. in: Against the Third Reich, Paul Tillich’s Wartime Radio Broadcasts into Nazi Germany, editado por Ronald H. Stone, Mathew Lon Weaver.