jeudi 13 septembre 2012

Um mergulho na humanidade do texto

Por Jorge Pinheiro, de São Paulo 


Se é regra não sabemos. Somos informados, porém, que o desejo é um estandarte. E assim o amante entra na casa do vinho. Visões do desejo no mundo hebreu.


As visões de mundo do camponês hebreu e mesmo do judeu do início da era comum eram diferentes das cosmovisões cristãs modernas. Talvez, o que de maior temos a aprender com hebreus e judeus é que a profundidade do texto é a sua humanidade.

Ao mergulhar nessa humanidade temos, então, a possibilidade de encontrar sua transcendentalidade. E isso pode ser alcançado de duas maneiras: a acadêmica, que nos interessa aqui, e aquela da própria vida, quando chegamos lá através da maceração de nossa pessoalidade, da crise, da dor e do risco.

Quando o intelectual judeu Samuel Cahen fez a primeira tradução das Escrituras judaicas para o francês, entre 1831 e 1851, em dezoito volumes – A Bíblia, novas traduções – procurou ir além das traduções anteriores, cristãs. Sua tradução, em edição bilíngue, trouxe para o leitor não-judeu a estrutura hebraica, as construções literárias e os hebraísmos.

No século passado, seguindo a tradição de Cahen, André Chouraqui construiu uma tradução enciclopédica (1974-1977): a partir de exegetas como Rashi e Ibn Ezra fez a leitura oriental dos textos do testamento judaico.

Ao compreender com os antigos exegetas judeus que a humanidade do texto é o caminho para o encontro possível com o transcendente, vamos, como exercício exegético, analisar dois versos de histórias e momentos diferentes das Escrituras judaicas. Não podemos esquecer, porém, que a escolástica teorizou modos de ler – o quadrivium, conceito derivado da junção de duas palavras latinas: quattuor, que significa quatro, e via, que quer dizer caminho. Temos assim na leitura de um texto quatro vias: literária, pedagógica, teológica e escatológica. Quadrivium é encruzilhada e foi utilizado como hermenêutica por Hugo São Vitor e Tomás de Aquino. Mas, hoje, nas nossas leituras estamos interessados no sentido literário dos textos. As traduções dos versos são deste cronista.

Golpe baixo

“Na luta, o homem, ao ver que não podia vencer, bateu no vazio da coxa e enforcou a força de criar de Jacó”. (Gênesis 32.25). (1)

O primeiro verso escolhido, que se situa no primeiro livro, o das origens, fala da luta do patriarca Jacó com um homem – a palavra hebraica no texto é îxe, homem, macho, e não anjo. Na luta com esse que poderia ser seu próprio irmão Esaú ou um dos capangas dele, o homem não conseguiu vencer Jacó. Então, já cansado, o homem recorre ao golpe mais antigo, que acaba com qualquer luta, dá uma joelhada no vazio da coxa de Jacó e estrangula sua força.

Terminações nervosas, sensibilidades. Escroto, testículos. O chute produz sangramento interno, inchaço, dor. O músculo se retrai, nervos e artérias se enroscam e impedem o fluxo de sangue. O coice foi bravo, a cápsula se rompe e vaza.

Visto assim, na sua humanidade, o texto fala de dois homens que lutam madrugada adentro, e que um deles, o trapaceiro, é golpeado na força de sua virilidade, sendo derrubado por um golpe em baixo e por baixo. Caído, resfolegando, entre gemidos, pede ao seu oponente um favor: liberdade para seguir adiante. E o homem – Esaú ou um capanga – diz para ele: segue seu caminho, hoje você não trapaceou, você venceu. Arrastando-se, aquele que se agarrou ao tornozelo do irmão, se levanta: foi alforriado, está livre para seguir em frente.

Gozo em rosa

As escrituras judaicas contêm uma jóia da literatura oriental: o Cântico dos cânticos. O superlativo não existia no hebraico, daí a idéia do mais bonito dos cânticos. O poema conta uma história de amor entre uma moça negra, a Sulamita, e um pastor.

Para os cristãos, não estamos diante do erotismo oriental, mas de uma alegoria sobre o amor transcendente de Deus. Agora, porém, neste artigo, nos interessa o caminho que o poema faz na materialidade do erótico humano. Por isso, vamos trabalhar apenas um verso do Cântico dos cânticos, procurando manter viva a expressão e seu conteúdo aparentemente não-religioso.

“Entra na casa do vinho, o seu estandarte é desejo”. (Cântico dos cânticos 2.4). (2)

Até o final do século XIX, a moral estabelecia que arte e literatura eram ofensivas aos costumes quando recorressem à sexualidade ou a linguagem incluísse termos licenciosos. Em tais casos, arte e literatura eram consideradas eróticas ou pornográficas, já que não se discerniam os termos. Hoje, entendemos erótico como relativo ao desejo sexual ou que aborda o amor sexual, e pornográfico como aquilo que descreve ou evoca luxúria.

Como muito desses sentimentos dos oitocentos ainda têm raízes profundas na cultura, o verso acima é canto que choca a mentalidade ocidental, pois a Sulamita, a jovem do Cântico dos cânticos, diz que seu amante a penetra quando ela está menstruada. É o tempo do durante, da casa do vinho, do gozo em rosa. E, assim, a regra da menstruação enquanto tempo de impureza, presente no livro de Levítico (15.19), é derrubada pela relação do casal. Não há nenhuma crítica ao ato, que ela apresenta como uma opção que nasce do desejo.

E falar de desejo nos remete a um pequeno trecho de outro texto clássico da literatura oriental, as Mil e uma noites – Alf Lailah Oua Lailah – uma coletânea de textos árabes, persas, hindus, siríacos e judaicos. Os contos mais antigos remontam ao século XII no Egito. Mas agora nos interessa a relação do filho do mercador Ghânim e a favorita do sultão, Qût al-Qulûb.

“Quando o gracioso filho do mercador Ghânim e a bela favorita do sultão foram para o leito, ele queria, mas ela não. Sobre a cintura da amante se podia ler: difícil. A resistência da mulher aumentava o desejo do homem. Os meses passaram e as coisas se inverteram. Quando mais tarde ela lhe dava beijos de incentivo, ele recuava e cada um ia dormir na sua esteira.” 

O filho do mercador e a favorita do sultão enfrentam a intermitência do desejo, mas no verso 2.4 do Cântico dos cânticos a Sulamita e seu amante estão em modulação unissonante: é pra ser, prazer, parônimo.

Entendemos melhor a presença do erótico nos textos orientais antigos quando lemos Michel Foucault na História da Sexualidade, A Vontade de Saber. Para ele, no Ocidente, existem dois procedimentos diante do bem e do mal do sexo. Um procedimento desconfiado diante das culturas romana antiga, chinesa, hindu, japonesa e árabe, que desenvolveram uma ars erotica. Tal arte tira sua verdade do próprio prazer, entendido como experiência onde não há lugar para proibições, mas também do prazer que pode ser medido pela tesura do corpo e do espírito. Essa arte erótica é experiência e seu conhecimento não tem como ser transmitido pelo discurso. Sua força está no símbolo.

A cultura ocidental não construiu uma ars erotica, por isso o outro procedimento nasceu de uma scientia sexualis, que gera regras para definir o bem e o mal do sexo. Assim, a sexualidade ocidental é, predominantemente, resultante de um discurso constituído em scientia sexualis, que a religião sacralizou para produzir a verdade sobre o sexo.

O erotismo está presente nos textos antigos, no Cântico dos cânticos e nas Mil e umas noites, porque é dimensão da sexualidade lida através da ars erotica. Mas é olhado com desconfiança pela moral que repousa sobre a scientia sexualis. Eros é expressão humana e assim deveria ser visto pelos exegetas que se debruçam sobre textos orientais da ars erotica.

Ou seja: o verso 2.4, analisado na profundidade do humano, nos fala de desejo, atributo da espécie, que nasce da capacidade de pensar o prazer. A jovem do Cântico dos cânticos não nos diz que durante a menstruação tem mais vontade de transar, mas também não nos diz o contrário. Se é regra, se não é regra, não sabemos. Somos informados, porém, que o desejo é um estandarte. E assim o amante entra na casa do vinho.

9/1/2010

Fonte: ViaPolítica/O autor

Notas

(1) A tradução SEV (versão de 1569) diz: “Y cuando el varón vio que no podía con él, tocó la palma de su muslo, la palma del muslo de Jacob se descoyuntó luchando con él”. É uma boa tradução, porque a expressão palma “kaph” se refere à cavidade ou parte do corpo que é dobrável ou curva, e “yarek” que foi traduzido por “muslo”, se refere a lombo, ou lugar do poder de procriação.

(2) Temos no verso em hebraico o verbo “bow” ir para dentro, entrar, que está no grau hifil, causativo, no modo perfeito; a expressão metafórica “bayith yayin”, casa do vinho; “degel”bandeira, estandarte; e “ahabah” que expressa prazer, desejo sexual. A Vulgata de São Jerônimo traduz assim: “introduxit me in cellam vinariam ordinavit in me caritatem”. A tradução italiana de Diodati (versão de 1649) diz: “Egli mi ha condotta nella casa del convito, E l’insegna ch’egli mi alza è: Amoré”. E a tradução SEV de 1569, diz: “Me llevó a la cámara del vino, y puso su estandarte de amor sobre mí” . Estamos diante de um poema oriental. A expressão “casa do vinho”, em seu sentido literário, não deve ser tomada literalmente, mas seguindo tradições orientais antigas – e também portuguesas – é uma metáfora, ao modo de “adega do vinho” ou “casa rosada”, entre outras. 

A Igreja Batista em Perdizes

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mardi 11 septembre 2012

Pinchas (Números 25.10-30.1)

Publicamos abaixo uma reflexão do rabino Ruben Sternschein, conforme fontes citadas ao final do artigo, sobre a realização da revelação através da riqueza da própria vida humana. E creio que tal reflexão serve para todos nós que nos reportamos às escrituras judaicas. Boa leitura para todos e todas. Jorge Pinheiro.

"e o Senhor disse:
— O que as filhas de Zelofeade estão pedindo é justo. Você deve dar a elas uma propriedade entre os parentes do seu pai. A herança do pai deve passar para elas. Diga ao povo de Israel que, quando um homem morrer sem deixar um filho homem, a filha deverá herdar a propriedade dele". (Números 27:6-8 NTLH)

Sobre as mudanças no judaísmo

O judaísmo aceita mudanças? As mudanças ameaçam o judaísmo com sua própria destruição? Ou ao contrário, são boas e permitem sua perpetuação através dos tempos?

Nos nossos tempos escutamos constantemente estas perguntas dentro e fora da comunidade e às vezes dentro e fora de cada um de nós como indivíduos judeus, comprometidos com a continuidade e com a autenticidade do judaísmo.

Alguns acham que as mudanças nos destruiriam, pois fariam com que cada um fizesse o que bem quisesse e que o judaísmo acabaria sendo mais individual do que nacional. Outros acham o contrário, que justamente quanto mais individualmente possa se interpretar e incorporar o judaísmo mais possibilidades de comprometimento real terá. Alguns são contrários às mudanças no judaísmo porque acham que sua divindade contradiz as mudanças. Se Deus deu o judaísmo, não seria possível que mudasse de ideais e de valores, pois neste caso ou os primeiros não eram suficientemente bons e, portanto, não eram divinos; ou os segundos.

A parashá nos conta sobre uma mudança na lei na época da própria Torá. Uma mudança da lei da Torá feita pelo próprio Deus na própria Torá!

Umas mulheres jovens cujo pai havia morrido no deserto pediram para que Moshé revisasse a lei que as impedia de herdar a terra de seu pai. Segundo a lei antiga, mulheres solteiras não tinham direito a herança e os bens do pai que não tinha filhos homens passavam para o bem público. Moshé não sabe o que fazer com semelhante demanda e acode a Deus. Deus diz para Moshé: “As filhas de Tselofchad tê razão. A lei é incorreta. E vamos mudá-la a partir de agora e para sempre, para todos os casos que sejam como este”.

O próprio Deus recua de uma lei da Torá e manda Moshé mudá-la por causa da demanda de umas simples mulheres!

Será que Deus não conhecia o bem e precisava das mulheres para revelá-lo? Será que Deus errou na primeira lei e aprendeu com os humanos? E teria Ele aprendido justamente com as mais marginais, mulheres simples, e não com o próprio profeta, Moshé?! Por que a Torá nos conta desse modo? Por que será que a lei não foi entregue no começo como ficou no final? E por que justamente através dessas mulheres?

Não temos respostas para essas perguntas no texto da Torá. Mas mesmo assim precisamos nos perguntar. Não estamos diante de um erro de relação, ou linguístico, ou de cópia. Estamos diante de uma mudança da lei de Deus, iniciada por mulheres simples e jovens, sem que o líder e profeta saiba o que fazer a respeito e aceita pelo próprio Deus.

Talvez a Torá queira nos motivar a sermos coeditores da Revelação Divina, junto com Deus através do tempo. Talvez caiba a nós revelar outros casos como esses escondidos na Torá. Talvez a Torá ainda não esteja completamente realizada e mais importante do que mantê-la seja revelá-la, como fizeram as filhas de Tselofchad. Para isso precisaremos de muito estudo, muita profundidade, muita seriedade e muito compromisso.

Que estejamos preparados.

Shabat Shalom
Rabino Ruben Sternschein

Fontes
CIP – Congregação Israelita Paulista, afiliada ao Movimento Masorti
Kehilat Beit Israel -- Comunidade Judaica Masorti de Lisboa



A substância católica e o fator melquisedeque

Resumo

O artigo analisa o conceito substância católica e suas implicações para a construção de uma missiologia que respeite a universalidade da espiritualidade e as manifestações culturais. Parte da compreensão tillichiana de substância católica, enquanto relação entre a manifestação da essência na existência e a afirmação do significado do evento crístico. Nessa releitura de Tillich, o princípio protestante é visto como subconjunto da substância católica, o que leva a dizer que a substância católica apresenta-se sob as dimensões não-históricas e históricas como identidade subjacente. Essa leitura de Tillich permite ver a história e a cultura como a substância que, para além de toda a situação, fornece os símbolos de uma situação última, a unidade universal do reino de Deus. Dentro dessa unidade universal do reino de Deus encontra-se o princípio protestante enquanto evento fundante do cristianismo, que tem uma relação de centralidade com a substância católica. A partir dessa compreensão o artigo afirma a importância do conceito, aqui reformatado como fator Melquisedeque, para a missiologia, que deve reconhecer as manifestações do essencial nas culturas, e denunciar as expressões idolátricas que ameaçam a comunidade humana.

Palavras-chave: Substância católica, fator Melquisedeque, princípio protestante, cultura, espiritualidade, missiologia, universalismo, particularidade.

Abstract

This article analyzes the concept Catholic substance and its implications for the construction of a missiology that respects the universality of spirituality and cultural manifestations. It starts from the Tillichian comprehension of catholic substance, as the relation between the manifestation of essence in existence and the affirmation of the meaning of the Christ event. In this rereading of Tillich, the Protestant principle is seen as a subset of catholic substance that leads us to say that catholic substance presents itself in non-historical and historical dimensions as an underlying identity. This reading of Tillich permits us to see history and culture as a substance that, beyond every situation, provides the symbols of an ultimate situation, the universal unity of the Kingdom of God. Within this universal unity of the Kingdom of God is found the Protestant principle as a founding event of Christianity which has a relation of centrality with catholic substance. Based on this comprehension, this article affirms the importance of the concept, here reformatted as the Melquisedeque factor, for missiology, that should recognize the manifestation of the essential in cultures, and denounce idolatrous expressions that threaten the human community.

Key-words: Catholic substance, Melquisedeque factor, Protestant principle, culture, spirituality, missiology, universalism, particularity.


Uma vez por ano, os artesãos de uma tribo da Indonésia constroem um barco de madeira em miniatura e o levam à beira do rio. O líder religioso da tribo amarra uma galinha num lado do barquinho e coloca uma lanterna acesa no outro lado. Depois, cada membro da tribo passa perto do barquinho e coloca um objeto invisível entre a galinha e a lanterna. Quando se pergunta às pessoas o que deixaram no barquinho, elas respondem: meu pecado. O líder, então, deixa o barquinho ser levado pela correnteza do rio, enquanto as pessoas gritam: Estamos salvos! [1]

Introdução
Em “A Massa e a Religião” [2] , escrito em 1922, Tillich disse que os teólogos do passado exprimiram numa linguagem metafísica dois elementos no conceito Deus: (1) como o ser mais real de todos, ou seja, Deus como substância absoluta, (2) e Deus como personalidade ético-espiritual, ou seja, como a forma mais perfeita.

Na consciência católica é o primeiro elemento que domina, e na consciência protestante é o segundo elemento. Para o católico, a graça é uma comunicação da substância divina, para o protestante, a graça é a comunhão ética com a personalidade divina. A explicação dessa diferença parte do fato de que o catolicismo produziu uma religião de massa e uma mística suprapessoal que não se opõe à religião de massa, ao contrário, é decorrência dela. Já o protestantismo, que foi beneficiado pela emergência de personalidades e comunidades – elementos que não se excluem --, perdeu as massas.

Para Tillich, a história das religiões mostrava que o elemento fundamental da religião é a aspiração não-racional presente nas formas, que vibra interiormente sob o efeito da irradiação do que não pode ser capturado através da lógica e da lei ética. Mais tarde, no correr da vida, vai desenvolver este conceito, chegando à conclusão de que esta substância universal de Deus é uma dimensão intrínseca à fé humana e ao cristianismo, que pode ser, então, compreendida em três elementos:

A intuição da presença do sagrado;
comunidades do amor, que reúnem pessoas antes separadas umas das outras;
a autoridade essencial à vida, que se manifesta através da tradição e dos símbolos.
Embora a igreja protestante, e por extensão evangélica, tenha nascido de um protesto crítico contra a absolutização desses elementos da substância católica na instituição Igreja Católica Romana, tal substância universal pode ser entendida como princípio do cristianismo, que deve também se fazer presente no protestantismo.

A substância católica e suas implicações para a missiologia

O princípio protestante é subconjunto e centralidade da substância católica, enquanto relação entre a manifestação da essência na existência e a afirmação do significado do evento crístico. Fazendo uma releitura contemporânea de Tillich, ao afirmamos que o princípio protestante é subconjunto da substância católica, estamos dizendo que a substância católica apresenta-se sob as dimensões não-históricas e históricas como identidade subjacente. Ou seja, quando nos referimos à história e à cultura é a substância que, para além de toda a situação, nos fornece os símbolos de uma situação última, a unidade universal do reino de Deus [3] . Dentro dessa unidade universal do reino de Deus encontra-se o princípio protestante enquanto evento fundante do cristianismo, que tem uma relação de centralidade com a substância católica. É o princípio protestante que retira da figura humana de Jesus tudo que nela poderia ser materializado como idolatria, por sua facticidade histórica. É por meio do símbolo da cruz que desaparecem as particularidades e o finito do evento Jesus, dando lugar ao significado presente do Cristo.

O paradoxo do aparecimento do Cristo na existência sem a deformação da existência é uma interpretação radical do símbolo da cruz que, segundo Dourley [4] , salva o significado da crucifixão da idolatria de se permanecer na adoração de um objeto histórico e por isso limitado, finito, enclausurado num tempo e espaço passados. O princípio protestante, lido sob tal perspectiva, apresenta, a cruz como presente e fim, como revelação e escathon que remetem ao kairós.

Mas, o protestantismo reformado caiu numa armadilha ao abandonar a unidade universal da substância, que mantém e possibilita o resgate do sentido de Deus nas profundezas do humano. Devido a esse deísmo bíblico, em sua aridez do “deo dixit”, da palavra que se resume na ética do texto, as profundezas da interioridade humana foram esquecidas e perderam seu vigor teológico. Por isso, Tillich propõs a manutenção da relevância do kerigma cristão, tão a gosto de Barth, em aliança com o reconhecimento da presença do sagrado expresso na cultura e nas dobraduras da secularidade.

É a partir daí que Tillich se lança ao conceito de comunidade espiritual, como definição de um processo de salvação, de essencialização, já que para ele o significado da vida, existencial e pessoal consiste na recuperação do ser essencial em Deus. Ou como diz, “a comunidade espiritual é latente antes do encontro com a revelação central, e é manifesta depois desse encontro” [5] . E nesse processo de essencialização, Cristo é o elemento final que possibilita o kairós, pelo qual a história humana sempre esperou. A partir daí entende que há um processo de essencialização das pessoas e das comunidades, que vivem processos de essencialização sob o poder crístico, enquanto membros de uma igreja latente.

E mais, considera que esta igreja latente está teologicamente ligada à igreja manifesta e por isso é levada a Cristo, cuja fé, amor e cruz estabelecem o fenômeno da conversão, enquanto mudança de sentido de uma participação latente para uma participação manifesta na comunidade espiritual [6] . Dessa maneira, é a fé e o amor de Cristo que levam à autocrítica radical capaz de estabelecer distinção entre o essencial e as formas através das quais o essencial se manifesta. A afirmação de que a igreja latente se complementa na igreja manifesta justifica a missiologia cristã. Ou como Tillich afirmou: “a comunidade espiritual está relacionada tanto com a cultura e a moralidade quanto com a religião, e a presença espititual torna necessária uma mudança radical na atitude para com o que é incondicional” [7] . Convém lembrar, porém, que Tillich combateu toda expressão de arrogância na relação entre igreja manifesta e igreja latente, ao reconhecer a presença da espiritualidade nas religiões e na cultura. Por isso, sugere que a missiologia combine ofensiva e mediação. Ofensiva no sentido barthiano e mediação no sentido de correlacionar o kerigma com a questão cultural. [8]

Assim, o conceito de substância católica é valioso para a compreensão da missiologia, principalmente no protestantismo de missões, em especial para os batistas brasileiros. A missão cristã, partindo desta leitura admite que a realidade manifesta no kairos de Cristo está em ação na cultura. Dessa maneira, a tarefa missionária consistiria em procurar identificar as maneiras por meio das quais o essencial, manifesto no evento Cristo, se faz presente na cultura. Tal procura possibilita a apropriação missionária da experiência cristã ao considerá-la enquanto manifestações do essencial, além de sinalizar caminhos nos quais a auto-compreensão cristã pode ampliar contatos com culturas e povos.

A missiologia batista e o fator Melquisedeque

O movimento batista em suas origens, e aqui nos remetemos aos movimentos religiosos separatistas da Inglaterra no século XVII, apresentou-se com duas grandes vertentes, uma cognominada “batistas gerais” e outra “batistas particulares”. Os primeiros desenvolveram posições que os aproximaram do pensamento teológico arminiano e os segundos do pensamento calvinista. Assim, não é de estranhar que os primeiros sempre tenham tido uma compreensão de aspectos da substância católica na forma de universalismo, inclusivismo e luta pela plena liberdade de expressão religiosa de todo e qualquer comunidade.

Essa era a visão de John Smyth, primeiro pastor (1610-1612) batista na Inglaterra, que coerente com sua compreensão teológica levantou a bandeira da “liberdade de consciência absoluta” [9] , dando início à trajetória batista de ação política engajada na luta pela liberdade religiosa. Outro pensador batista geral, Guilherme Dell, conhecido por suas fortes convicções teológicas a respeito da livre expressão do ser, em 1646, destacou-se pela luta a favor da liberdade religiosa na Inglaterra. Escreveu o livro intitulado Uniformidade Examinada [10] , que postulava a tese de que a unidade deve existir sem uniformidade, uma vez que a última era má e intolerável, excluindo toda a liberdade concedida por Deus. Essa era uma nova argumentação favorável a liberdade religiosa.

Mas, talvez o livro mais revolucionário da teologia batista, que apresenta uma visão da substância católica entendida em um de seus aspectos, o do universalismo, seja o de Hosea Ballou (1771-1852), Tratado sobre a Expiação, escrito em 1805. Ballou considerou que o sacrifício de Cristo ao invés de ser uma posição jurídica ou vicária tem base moral. Assim, Cristo sofreu pela humanidade, mas não em seu lugar. Com base neste argumento, afirmou a salvação universal de todos os seres humanos, porque a morte leva a alma não regenerada ao arrependimento.

Logicamente, por ser uma confissão protestante de forte cunho missionário, as reflexões teológicas sobre o universalismo influenciaram em muito a ação missiológica batista. E o pai das missões modernas, o batista inglês William Carey (1761 – 1834), apesar de ter iniciado seu trabalho a partir dos batistas particulares, no correr de sua obra missionária na Índia, construiu uma visão de missões até então inédita: dela participariam todas as igrejas e comunidades, todas as classes sociais, e sua ação, considerada civilizatória na época, passou a ser calcada num entendimento não paternalista de ação social. Depois de sua morte, esta visão missiológica, que tinha por base uma compreensão instintiva da substância católica, cedeu lugar a novas propostas.

Mas a partir do final do século XX, a experiência de Carey e as leituras de outros pensadores batistas gerais voltaram à baila, trazendo para a missiologia batista uma compreensão da importancia da substância católica. Assim, Don Richardson, professor de Missiologia, vê a história relatada na abertura desse trabalho como exemplo de uma ponte entre o que ele chama de revelação geral e o kerigma, a revelação crística. Ou seja, Deus se mostra na espiritualidade de pessoas e comunidades, que leva ao reconhecimento do evento crístico. Ele chama esta presença do essencial na existência humana de “fator Melquisedeque”, recorrendo ao nome do sacerdote a quem Abraão prestou homenagem.

Em seu livro O Fator Melquisedeque, best-seller entre os protestantes de missões do Brasil, Richardson enumera casos de comunidades aos quais Deus falou mesmo antes da presença cristã, citando com bom humor alguns casos relatados nas Escrituras, como o de Nínive, capital da Assíria, que ouviu as imprecações mal-humoradas de um judeu, aceitou a exortação e foi salva. E pergunta quem reconheceu que o Messias havia nascido em Belém, além dos pastores? Claro, nós sabemos, os astrólogos do Oriente, considerados pagãos pelos judeus. Ou ainda o caso do funcionário etíope que foi a Jerusalém e só encontrou o preconceito. Mas ouviu da revelação crística através de Filipe.

Richardson fala ainda de comunidades que possuem relatos semelhantes aos da criação e do dilúvio descritos na Bíblia e mesmo de comunidades que contam que, em seu caminhar nômade, perderam o livro que falava sobre o Deus que criou o mundo.

John Sanders, pensador arminiano, seguindo o caminho aberto por Hosea Ballou, considera que o amor de Deus pelos seres humanos nunca ficou suspenso esperando que missionários levem o Evangelho àqueles que não conhecem o evento crístico, embora deseje que todos ouçam acerca das coisas que seu Filho tem feito. Assim, afirma, “o Espírito age ativamente quando, onde e como ele quer, trazendo pessoas para um relacionamento com Deus, antes mesmo que o Evangelho as alcance”. [11]

E o escritor C. S. Lewis, tão querido e estudado pelos batistas, considerava que os que se entregam em fé Àquele que está por detrás de toda verdade e bondade serão salvos, mesmo que nada saibam sobre o evento crístico. Diz Lewis: “Há, pessoas em outras religiões que estão sendo guiadas pela influência secreta de Deus para se concentrarem naqueles pontos de sua religião que estão de acordo com o cristianismo e que assim pertencem a Cristo sem o saber.” [12]

Em outro lugar ele escreve: “Eu acho que toda oração que é feita sinceramente, mesmo a um falso deus (...) é aceita pelo Deus verdadeiro e que Cristo salva muitos que não acham que o conhecem.” [13]

E nas Crônicas de Nárnia, Lewis conta a história de um homem chamado Emeth, verdade em hebraico, que fora criado num país onde o principal deus chamava-se Tash. Emeth lutou contra o país de Nárnia, cujo Deus era Aslan, uma figura crística. Através de uma série de circunstâncias, nosso herói Emeth tem uma visão do deus Tash e percebe que Tash é o maligno. Impelido pela visão, ele vagueia pelos bosques. Lá Aslan o encontra, e acontece o seguinte diálogo:

-- Ai de mim, Senhor! Não sou filho teu, mas, sim, um servo de Tash. -- Criança, todo o serviço que tens prestado a Tash, eu o considero como serviço prestado a mim... por sermos o oposto um do outro é que tomo para mim os serviços que tens prestado a ele. Pois eu e ele somos tão diferentes, que nenhum serviço que seja vil pode ser prestado a mim e nada que não seja vil pode ser feito para ele. Portanto se qualquer pessoa jurar em nome de Tash, e guardar o juramento por amor a sua palavra, na verdade jurou em meu nome, mesmo sem saber, e eu é que o recompensarei. E, se um ser humano cometer alguma crueldade em meu nome, então, embora tenha pronunciado o nome de Aslan, é a Tash que está servindo e é Tash quem aceita suas obras...”

E constrangido, Emeth acrescenta:

-- Mesmo assim tenho aspirado por Tash todos os dias da minha vida.

-- Amado, não fora o teu anseio por mim, não terias aspirado tão intensamente, nem por tanto tempo. Pois todos encontram o que realmente procuram. [14]

Para Lewis, Deus salva pessoas e comunidades de acordo com o princípio da fé descrito por Paulo em Romanos (2.7), “Deus dará a vida eterna às pessoas que perseveram em fazer o bem e buscam a glória, a honra e a vida imortal”.

Assim, podemos ver que o protestantismo de missões e os batistas, não enquanto instituição, mas em sua ação missiológica têm vivido uma prática que em muito se aproxima da leitura tillichiana da substância católica. Assim, podemos dizer que essa leitura apresenta as bases para uma esperança maior no modo específico no qual o desejo de Deus de essencializar todos os seres humanos pode ser realizado. O ponto de vista defendido é que Deus ama todos os seres humanos e deseja que sejam salvos. Todos são essencializados em razão do evento crístico, quer sejam conscientes ou não desse evento que projeta o kairós. Dessa maneira, o universalismo dos batistas gerais apresenta a igreja latente como comunidade que caminha, pela obra expiatória que desconhecem, em direção à essencialização. Ou em linguagem batista, Deus aceita todos os que exercem fé nele, sem levar em consideração até que ponto vai o conhecimento dessas pessoas.

É importante dizer que Tillich, sem dúvida, enriqueceu o conceito de substância católica ao vê-lo em processo de correlação com o princípio protestante, e que mesmo nas mais diferentes confissões protestantes, como é o caso dos batistas, encontramos defensores da substância católica como fundamental para a vida teológica. É o caso de A. H. Strong, um dos teólogos mais respeitados no meio batista, que entende o processo de essencialização como exposto por Tillich, embora não utilize a mesma terminologia.

Tais considerações, nos permitem dizer que, provavelmente, o conceito substância católica represente a abordagem mais próxima de um consenso entre os pensadores cristãos na atualidade.

Considerações finais

Na teologia de Tillich, conforme expõe Dourley, é provável que sua contribuição à antropologia seja mais importante do que sua cristologia [15] . Essa antropologia baseava-se na compreensão de que a humanidade é imago Dei e se encontra em choque com a alienação do tempo presente. Mas a memória humana persiste como impulso na direção da recuperação desse mau encontro exposto por La Boétie. Esta dialética traduz e explicita a presença da espiritualidade do espírito humano.

Quando Tillich afirma que a humanidade é universalmente espiritual, partindo da tensão entre universal e particular, localiza o particular no contexto do universal. Em vez de considerar a realização plena do universal na revelação cristã, relativiza a particularidade no contexto dessa humanidade universalmente espiritual. Tal ênfase exige que o teólogo cristão aprecie as manifestações do essencial nas culturas. Mas nem por isso o compromisso com a fé cristã é diminuído. Ao contrário, a fé é aprofundada por meio do reconhecimento das variações daquilo que os cristãos percebem no evento Cristo, tanto nas religiosidades como nas dobraduras da secularidade.

Assim, a radicalidade do princípio protestante pode ser aplicada às materializações da substância católica na direção da essencialização do humano, denunciando as expressões idolátricas que ameaçam a comunidade humana.

Referência bibliográfica

[1] Don Richardson, O Fator Melquisedeque, São Paulo, Edições Vida Nova, 1986, p. 93.
[2] Paul Tillich, « La Masse et la Religion », in Christianisme et socialisme, Écrits socialistes allemands, 1919-1931, Paris, Genebra e Quebec ; Cerf, Labor et Fides, Presses de l´Université Laval, 1992, pp. 92-93.
[3] Paul Tillich, Teologia Sistemática, São Leopoldo, Sinodal, 2005, pp. 757, 761-762.
[4] John Dourley, São Bernardo do Campo, Correlatio, no. 1. Site: www.metodista.br/correlatio.
[5] Paul Tillich, idem, op. cit. , p. 605.
[6] Paul Tillich, idem, op. cit., p. 665.
[7] Paul Tillich, idem, op. cit, p. 665-666.
[8] Paul Tillich, The Irrelevance and Relevance of the Christian Message, ed. D. Foster, Cleveland: The Pilgrim Press, 1996, pp. 5-9.
[9] Zaqueu Moreira de Oliveira, Liberdade e Exclusivismo: Ensaios sobre os Batistas Ingleses, Rio de Janeiro: Horizonal; Recife: STBNB Edições, 1997. p. 83.
[10] Zaqueu Moreira de Oliveira, idem, pp. 104-106.
[11] John Sanders, “Inclusivismo”. Site: http://arminianismo.vilabol.uol.com.br
[12] C. S. Lewis, Mere Christianity, New York: Macmillan, 1960, pp. 65 e 176. Trad. português: Mero Cristianismo, São Paulo, Quadrante, 1997.
[13] Evan Gibson, C. S. Lewis: Spinner of Tales, Grand Rapids, Mich.: Eerdmans, 1980, p. 216.
[14] C. S. Lewis, The Last Battle, New York: Collier Books, 1970, pp. 164-165; e God in the Dock, Grand Rapids, Mich.: Eerdmans, 1970, p. 111. Trads. portuguesas: A Última Batalha e As Crônicas de Nárnia, São Paulo, Martins Fontes.
[15] John Dourley, “The Problem of Essentialism: Tillich’s Anthropology versus his Christology" in Theological Legacy: Spirit and Community, International Paul Tillich Conference, New Harmony, Indiana, 17-20 de junho de 1993 (Berlin: Walter deGruyter, 1995), p. 125-141.

Fonte

Jorge Pinheiro/ Correlatio/ Portal Metodista

dimanche 9 septembre 2012

De cárabos e velas latinas


É com Camões que a gente se entende 

no princípio era a palavra... 

Jorge Pinheiro, de Lisboa -- No cabo da Roca venta. É o ponto mais ocidental da Europa. À frente, o mar besta-fera guarda leviatãs para tragar os que avançam pelas águas. Meter-se por elas era coisa de louco, por isso admiro a coragem daqueles lusos dos Quinhentos, que assim o fizeram. O cabo forma o extremo da serra de Sintra, que se precipita sobre o oceano, não muito longe da casa onde morava o físico AC Rodrigues, padrinho da união de Di Giuseppe & Pinheiro. 

Camões, mestre dos que pensamos em português, disse que aqui é “onde a terra se acaba e o mar começa”, e um padrão em pedra lembra tal particularidade. Mas fico a pensar na ciência dos lusos, quando recriaram o cárabo, o barco ligeiro usado no Mediterrâneo. Assim, com tecnologia árabe e o velame latino surgiram as caravelas, que Darcy Ribeiro disse terem sido tão importantes quanto as naves espaciais. 

O uso documentado data de 1255, mas sabe-se que foram aperfeiçoadas nos séculos XV e XVI. Recebiam poucos tripulantes, cerca de vinte, e eram rápidas e boas de manobra, e as velas latinas, triangulares, permitiam bolinar, quer dizer, navegar em ziguezague contra o vento. Tinham cerca de vinte e cinco metros de comprimento, sete de boca e três de calado -- dois ou três mastros, convés único e popa sobrelevada. Deslocavam cinquenta toneladas, 

No alto dos mastros levavam uma pequena cesta, de onde os vigias prescrutavam o horizonte. Cesta instável, que oscilava junto com o rolamento do barco, transformou-se no lugar de castigo para os marujos infratores. O punido era enviado a cumprir horas ou até dias no caralho, este era o nome dado à cesta, e quando descia vinha verde de mareação. Daí surgiu a expressão tão a gosto dos lusos, mandar “pró caralho”. Mas, ao contrário dos que pensam os brasis, é também expressão de admiração, espanto e surpresa. 

E como estou a escrever de manhã, agora à beira do Mondego, em Coimbra, numa festa das confrarias gastronômicas portuguesas, antes do almoço, lembro-me da caralhota, pão caseiro de Almeirim, que pretendo comer com chanfana e beber com um delicioso espumante, o Quinta das Bágeiras, branco, bruto. Só um detalhe, chanfana é um prato que surgiu quando das guerras napoleônicas os franceses invadiram Portugal. Era feita de carne de cabra velha, que os portugueses abandonavam pelo caminho, já que levavam o melhor do rebanho para os montes. E assim surgiu a chanfana: carne de cabra cozida com vinho e cebola. 


A criatividade e a fé do povo luso contaminam. Quando este país cá de baixo ainda não era, eles diziam que “este Brasil é já outro Portugal”. Sonharam e construíram a utopia. O encontro de lusos e brasis foi além do possível, marcou a todos que pisaram a terra depois dos Quinhentos. Mas, agora, a caminho da terra basca de Hendaye, lembro-me da frase de uma sinhorinha na gare B de Coimbra: “É com Camões que a gente se entende”. Ela disse e eu assino. 

... a palavra fez-se homem e veio habitar no meio de nós.



vendredi 7 septembre 2012

Convite


Pessoal, os textos que estão aí projetam a igreja do tempo imediato, a partir do passado próximo. Temas que devem ser debatidos! Apareça!

O Sermão de Santo António aos Peixes

Para meus alunos de Homilética Prática.

O Sermão de Santo António aos Peixes foi proferido na cidade de São Luís do Maranhão em 1654, na sequência de um confronto com os colonos portugueses no Brasil. O sermão é uma peça de oratória criativa, habilidade e poder satírico, que toma alguns peixes (o roncador, o pegador, o voador e o polvo) como símbolos dos pecados daqueles colonos. Com uma construção literária, o sermão louva algumas virtudes humanas e censura os vícios dos colonos. O sermão foi pregado três dias antes do Padre António Vieira embarcar ocultamente para Portugal, a fim de obter uma legislação justa para os índios.



Padre António Vieira
Sermão de Santo António aos Peixes,
pronunciado em São Luís do Maranhão, a 13 de Junho de 1654


Excerto, capítulo 1



Vós, diz Cristo, Senhor nosso, falando com os pregadores, sois o sal da terra: e chama sal da terra, porque quer que façam na terra o que faz o sal. O efeito do sal é impedir a corrupção; mas quando a terra se vê tão corrupta como está a nossa, havendo tantos nela que têm oficio de sal, qual será, ou qual pode ser a causa desta corrupção? Ou é porque o sal não salga, ou que a terra se não deixa salgar. Ou é porque o sal não salga, e os pregadores não pregam a verdadeira doutrina; ou porque a terra se não deixa salgar, e os ouvintes, sendo verdadeira a doutrina que lhes dão, a não querem receber. Ou é porque o sal não salga, e os regadores dizem uma cousa e fazem outra; ou porque a terra se não deixa salgar, e os ouvintes querem antes imitar o que eles fazem, que fazer o que dizem. Ou é porque o sal não salga, e os pregadores se pregam a si e não a Cristo; ou porque a terra se não deixa salgar, e os ouvintes, em vez de servir a Cristo, servem a seus apetites. Não é tudo isto verdade? Ainda mal!


Suposto, pois, que ou o sal não salgue ou a terra se não deixe salgar; que se há--de fazer a este sal e que se há-de fazer a esta terra? O que se há-de fazer ao sal que não salga, Cristo o disse logo: Quod si sal evanuerit, in quo salietur? Ad nihilum valet ultra, nisi ut mittatur foras et conculcetur ab hominibus. «Se o sal perder a substância e a virtude, e o pregador faltar a doutrina e ao exemplo, o que se lhe há-de fazer, é lançá-lo fora como inútil, para que seja pisado de todos. Quem se atrevera a dizer tal cousa, se o mesmo Cristo a não pronunciara? Assim como não há quem seja mais digno de reverência e de ser posto sobre a cabeça que o pregador que ensina e faz o que deve, assim é merecedor de todo o desprezo e de ser metido debaixo dos pés, o que com a palavra ou com a vida prega o contrário.

Isto é o que se deve fazer ao sal que não salga. E à terra que se não deixa salgar, que se lhe há-de fazer? Este ponto não resolveu Cristo, Senhor nosso, no Evangelho; mas temos sobre ele a resolução do nosso grande português Santo António, que hoje celebramos, e a mais galharda e gloriosa resolução que nenhum santo tomou. Pregava Santo António em Itália na cidade de Arimino, contra os hereges, que nela eram muitos; e como erros de entendimento são dificultosos de arrancar, não só não fazia fruto o santo, mas chegou o povo a se levantar contra ele e faltou pouco para que lhe não tirassem a vida. Que faria neste caso o ânimo generoso do grande António? Sacudiria o pó dos sapatos, como Cristo aconselha em outro lugar? Mas António com os pés descalços não podia fazer esta protestação; e uns pés a que se não pegou nada da terra, não tinham que sacudir. Que faria logo? Retirar-se-ia? Calar-se-ia? Dissimularia? Daria tempo ao tempo? Isso ensinaria porventura a prudência ou a covardia humana; mas o zelo da glória divina, que ardia naquele peito, não se rendeu a semelhantes partidos. Pois que fez? Mudou somente o púlpito e o auditório, mas não desistiu da doutrina. Deixa as praças, vai-se às praias; deixa a terra, vai-se ao mar, e começa a dizer a altas vozes: Já que me não querem ouvir os homens, ouçam-me os peixes. Oh maravilhas do Altíssimo! Oh poderes do que criou o mar e a terra! Começam a ferver as ondas, começam a concorrer os peixes, os grandes, os maiores, os pequenos, e postos todos por sua ordem com as cabeças de fora da água, António pregava e eles ouviam.

Se a Igreja quer que preguemos de Santo António sobre o Evangelho, dê-nos outro. Vos estis sal terrae: É muito bom texto para os outros santos doutores; mas para Santo António vem-lhe muito curto. Os outros santos doutores da Igreja foram sal da terra; Santo António foi sal da terra e foi sal do mar. Este é o assunto que eu tinha para tomar hoje. Mas há muitos dias que tenho metido no pensamento que, nas festas dos santos, é melhor pregar como eles, que pregar deles. Quanto mais que o são da minha doutrina, qualquer que ele seja, tem tido nesta terra uma fortuna tão parecida à de Santo António em Arimino, que é força segui-la em tudo. Muitas vezes vos tenho pregado nesta igreja, e noutras, de manhã e de tarde, de dia e de noite, sempre com doutrina muito clara, muito sólida, muito verdadeira, e a que mais necessária e importante é a esta terra, para emenda e reforma dos vícios que a corrompem. O fruto que tenho colhido desta doutrina, e se a terra tem tomado o sal ou se tem tomado dele, vós o sabeis e eu por vós o sinto. 

Isto suposto, quero hoje, à imitação de Santo António, voltar-me da terra ao mar, e já que os homens se não aproveitam, pregar aos peixes. O mar está tão perto que bem me ouvirão. Os demais podem deixar o sermão, pois não é para eles. Maria, quer dizer, Domina maris: «Senhora do mar» e posto que o assunto seja tão desusado, espero que me não falte com a costumada graça. Ave Maria.


Análise literária -- Lithis e Wikipedia

Capítulo I

Introdução: exposição do plano a desenvolver e das ideias a defender (ll.1-59).

Conceito Predicável: texto bíblico que serve de tema e que irá ser desenvolvido de acordo com a intenção e o objetivo do autor "Vos estis sal terrae".

Invocação: pedido de auxílio divino (ll.60-61).

As simetrias evidenciam a estruturação do sermão enquando exercício lógico, que permitem aos ouvintes atingirem mais facilmente o objetivo da mensagem nas respostas à justificação do fato de a terra estar corrompida e na resposta ao que se há-de fazer ao sal que não salga e à terra que se não deixa salgar.

Para atingir a inteligência dos ouvintes, o padre usa argumentos lógicos, sucessivas interrogações retóricas e a autoridade dos exemplos de Cristo, Santo António e da Bíblia. Para atingir o coração dos ouvintes, usa interjeições e exclamações. Ao relatar o que fez Santo António quando foi perseguido em Arimino usa frases curtas (Deixa as praças, vai-se às praias…), ritmo binário, anáforas, enumeração. Os tipos de frase têm relação direta com a entoação. A frase interrogativa termina num tom mais alto, a declarativa num tom mais baixo, etc.

O titulo do Sermão foi retirado da história que se contava a respeito de Santo António. Este teria sido mal recebido numa pregação em Arimino, porém, mesmo perseguido, teria se  dirigido à praia e pregado o sermão aos peixes que o teriam escutado atentamente.

O pregador invocou Nossa Senhora porque era habitual fazê-lo e ainda porque o nome Maria quer dizer "senhora do mar"; os ouvintes do sermão eram pescadores que invocavam a santa na faina da pesca.

Capítulo II

O sermão é uma alegoria porque os peixes são metáfora dos homens, as suas virtudes são por contraste metáfora dos defeitos dos homens e os seus vícios são diretamente metáfora dos vícios dos homens. O pregador fala aos peixes, mas quem escuta são os homens.

Os peixes ouvem e não falam. Os homens falam muito e ouvem pouco.

O pregador argumenta de forma lógica. Partindo de duas propriedades do sal, divide o sermão em duas partes: o sal conserva o são, o pregador louva as virtudes dos peixes; o sal preserva da corrupção, o pregador repreende os vícios dos peixes. Para que fique claro que todo o sermão é uma alegoria, o pregador refere-se frequentemente aos homens. Utiliza articuladores do discurso (assim, pois…), interrogações retóricas, anáforas, gradações crescentes, antíteses, etc. Demonstra as afirmações que faz tirando partido do contraste entre o bem e o mal, referindo palavras de S. Basílio, de Cristo, de Moisés, de Aristóteles e de St. Ambrósio, todas referidas aos louvores dos peixes. Confirma-as com vários exemplos: o dilúvio, o de Santo António, o de Jonas e o dos animais que se domesticam.

Os peixes não foram castigados por Deus no dilúvio, sendo, por isso, exemplo para os homens que pouco ouvem e falam muito, pouco respeito têm pela palavra de Deus. Evidencia-se que os animais que convivem com os homens foram castigados, estão domados e domesticados, sem liberdade.

O discurso é pregado; por isso, envolve toda a pessoa do orador. Os gestos, a mímica, a posição do corpo - a linguagem não verbal - têm um lugar importante porque completam a mensagem transmitida.

Recursos de estilo 

A antítese Céu/lnferno, que repete semanticamente a antítese bem/mal, está ligada quer à divisão do Sermão em duas partes, quer às duas finalidades globais do mesmo. 

A apóstrofe refere diretamente ao destinatário da mensagem e do pregador, aproximando os dois pólos da comunicação: emissor e receptor. A interrogação retórica como meio de convencer os ouvintes. A personificação dos peixes associada à apóstrofe e às atitudes dos mesmos. A gradação crescente na enumeração dos animais que vivem próximos dos homens mas presos. A comparação, "como peixes na água", tem o carácter de um provérbio que significa viver livremente. 

Santo António foi humilde, aceitando sem revolta o abandono a que foi votado por todos, ele que conhecia a sabedoria. O pregador pretende condenar os homens que possuem vícios opostos às virtudes dos peixes.

Capítulo III


O pregador usa o imperativo verbal, a repetição anafórica, a exclamação, a apóstrofe, a leve ironia ("Mas ah sim, que me não lembrava! Eu não prego a vós, prego aos peixes!").



A língua de Santo António teve a força de dominar as paixões humanas, guiando a razão pelos caminhos do bem; foi o freio do cavalo porque impediu tantas pessoas de caírem nas mais variadas desgraças. A língua de Santo António foi a rémora -- um peixe pequeno mas de muita força, representa a força da palavra de Santo Antonio -- dos ouvintes quando estes ouviram; quando o não ouvem, são atingidos por muitos naufrágios (desgraças morais).

Recursos de estilo 

Anáforas: Ah homens… Ah moradores… Quantos, correndo… Quantos, embarcados… Quantos, navegando… Quantos na nau… A interjeição visa atingir o coração dos ouvintes; a repetição do pronome indefinido realiza uma enumeração. Gradações: Nau Soberba, Nau Vingança, Nau Cobiça, Nau Sensualidade; "passa a virtude do peixezinho, da boca ao anzol, do anzol à linha, da linha à cana e da cana ao braço do pescador." O sentido é sempre uma intensificação para mais ou para menos. Antíteses: mar/terra, para cima/para baixo, Céu/Inferno. Palavras de sentido oposto indicam as duas direções do sermão: peixes - homens, bem - mal. Comparações: "… parecia um retrato maritimo de Santo António"; o peixe de Tobias, com um burel e uma corda, era uma espécie de Santo António do mar: as suas virtudes eram como as de Santo António. "… unidos como os dois vidros de um relógio de areia,": o peixe Quatro-Olhos possuía grande visão e precisão. Metáforas: "… águias, que são os linces do ar; os linces, que são as águias da terra": sentido de rapidez e de visão excepcional. 


Considerações

Primeira: Os homens pescam muito e tremem pouco. Segunda: "Se eu pregara aos homens e tivera a língua de Santo António, eu os fizera tremer." O verbo pescar é também metáfora de guerra; uma crítica à presença holandesa. Terceira: "… se tenho fé e uso da razão, só devo olhar direitamente para cima, e só direitamente para baixo". Os peixes são o sustento dos membros de várias ordens religiosas. Há peixes para os ricos e peixes para os pobres. Esta distinção tem por finalidade criticar a exploração dos ricos sobre os pobres.

Capítulo IV


Para comprovar a tese de que os homens se comem uns aos outros, o orador usa uma lógica implacável, apelando para os conhecimentos dos ouvintes e dando exemplos concretos. Os seus ouvintes sabiam a verdade do que ele afirmava, pois conheciam que os peixes se comem uns aos outros, os maiores comem os mais pequenos. Além disso, cita frequentemente a Sagrada Escritura, em que se apoia. Lendo hoje este capitulo, assim como todo o Sermão, não se pode ficar indiferente à lógica da argumentação. As conclusões são implacáveis, pois são fruto claríssimo dos argumentos usados.


O ritmo é variado: lento, rápido e muito rápido. Quando as frases são longas, o ritmo é repousado; quando as frases são curtas, quando se usam sucessivas anáforas nessas frases, o ritmo torna-se vivo, como acontece no exemplo do defunto e do réu. O discurso deste sermão, como doutros, é semelhante ao ondular das águas do mar: revoltas e vivas, espraiam-se depois pela areia como que espreguiçando-se. Uma das características maravilhosas do discurso de Vieira é a mudança de ritmo, que prende facilmente os ouvintes.

A repetição da forma verbal "vedes", que deverá ser acompanhada de um gesto expressivo, serve para criar na mente dos ouvintes (e dos leitores) um forte visualismo do espetáculo descrito.

O uso dos dêiticos -- recurso que tem por objetivo localizar o fato no tempo e espaço sem definí-lom sendo que alguns pronomes demonstrativos podem ser expressões dêiticas bem como certos advérbios -- tem por objectivo localizar os atos referidos, levando os ouvintes a revê-los nos espaços onde acontecem. A substantivação do infinitivo verbal está também ao serviço do visualismo. O verbo deixa de indicar acção limitada para se transformar numa situação alargada. 

Há uma passagem semelhante no momento em que o padre se refere à necessidade de o bem comum prevalecer sobre o apetite particular: "Não vedes que contra vós se emalham…".

Importante

O orador expõe a repreensão e depois comprova-a como fez com a primeira repreensão: dá o exemplo dos peixes que caem no engodo da isca, passa em seguida para o exemplo dos homens que enganam os indígenas e para a facilidade com que estes se deixam enganar. A crítica à exploração dos negros é cerrada e implacável. 

Conclui, respondendo à interrogação que fez, afirmando que os peixes são muito cegos e ignorantes e apresenta, em contraste, o exemplo de Santo António, que nunca se deixou enganar pela vaidade do mundo, fazendo-se pobre e simples, e assim pescou muitos para salvação.

Capítulo V


Episódio do Polvo -- Divisão em partes: Introdução: a aparência do polvo "O polvo… mansidão" (ll.177-179). Desenvolvimento: a realidade "E debaixo… pedra" (ll.179-187).  Conclusão: a consequência "E daqui… fá-lo prisioneiro" (ll.187-189). Comparação: "Fizera… traidor" (ll.190-196). 



A expressão "aparência tão modesta" traduz a aparente simplicidade e inocência do polvo, que encobre uma terrível realidade. O orador usa a ironia. A expressão "hipocrisia tão santa" contém em si um paradoxo: a hipocrisia nunca é santa; de novo, o orador usa uma fina e penetrante ironia: o polvo apresenta um ar de santo, mas encobre uma cruel realidade. Tem a máscara (que é o que quer dizer em grego hipócrita), o fingimento de inofensivo.

O mimetismo é o que o polvo usa para enganar: faz-se da cor do local ou dos objectos onde se instala. No camaleão, o mimetismo é um artifício de defesa contra os agressores, no polvo é um artifício para atacar os peixes desacautelados. O orador refere a lenda de Proteu para contrapor o mito à realidade: Proteu metamorfoseava-se para se defender de quem o perseguia; o polvo, ao contrário, usa essa qualidade para atacar.

Os dêiticos demonstrativos implicam a linguagem gestual e têm por intenção criar o visualismo na mente dos ouvintes. A anáfora, repetição da mesma palavra em início de frase, insiste no mesmo visualismo.

Os verbos que se referem ao polvo estão no presente do indicativo, traduzindo uma realidade permanente e imutável; a forma "vai passando" gerúndio perifrástico, acentua a forma despreocupada dos outros peixes que lentamente passam pelo local onde se encontra o traidor; os verbos que se referem a Judas estão no pretérito perfeito do indicativo porque referem ações do passado. Há ainda o imperativo "Vê", que traduz uma interpelação direta ao polvo, tornando o discurso mais vivo.

O polvo nunca ataca frontalmente, mas sempre à traição: primeiro, cria um engano, que consiste em fazer-se das cores onde se encontra; depois, ataca os inocentes. O texto deste capítulo segue a variedade de ritmos dos outros capítulos e apresenta os mesmos recursos para conseguir tal objetivo. Basta atentar no parágrafo que começa por "Rodeia a nau o tubarão… " e no texto referente ao polvo.

Elemento comum entre Judas e o polvo: a traição. Ambos foram vítimas deste defeito. Elementos diferentes entre Judas e o polvo: Judas apenas abraçou Cristo, outros o prenderam; o polvo abraça e prende. Judas atraiçoou Cristo à luz das lanternas; o polvo escurece-se, roubando a luz para que os outros peixes não vejam as suas cores. A traição de Judas é de grau inferior à do polvo.

Capítulo VI


Peroração: conclusão com a utilização de um desfecho forte para impactar o auditório e levá-lo a pôr em prática os ensinamentos do pregador. O padre quer que os homens imitem os peixes, isto é, guardem respeito e obediência a Deus. Numa palavra, pretende que os homens se convertam (metanóia).


As interrogações têm por objectivo atingirem preferencialmente a inteligência, enquanto as exclamações visam mais o sentimento dos ouvintes. As repetições põem em realce o paralelismo entre o orador e os peixes; as gradações intensificam um sentido.

Graça e conversão

A repetição do som /ai/ (11 vezes) cria uma atmosfera sonora cada vez mais intensa e otimista; a repetição das palavras "Louvai" e "Deus" apontam para a finalidade global do sermão: o louvor de Deus, que todos devem prestar. O verbo no imperativo realiza a função apelativa da linguagem: depois de ter inventariado os louvores e os defeitos dos peixes/ homens, não poderia deixar de apelar aos ouvintes para que louvem a Deus.

A escolha do hino Benedicite cumpre esse objetivo, encerrando o sermão com um tom festivo, adequado à comemoração de Santo António, cuja festa se celebrava. A palavra Amém significa "Assim seja", "que todos louvem a Deus". O quiasmo realizado na colocação em ordem inversa das palavras glória e graça sugere a transposição dos peixes para os homens: já que os peixes não são capazes de nenhuma dessas virtudes, mas os homens sim. Sugere também uma mudança: a conversão (metanóia), porque só em graça os homens podem dar glória a Deus.


Fontes

Lithis -- Análise de texto (www.lithis.net/19)
Wikipedia, a enciclopédia livre

jeudi 6 septembre 2012

Igreja Batista em Perdizes, 70 anos


Segunda-feira, dia 10, venha celebrar conosco os 70 anos da Igreja Batista em Perdizes. Teremos uma sessão solene na Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo, a partir das 10 horas da manhã. Chegue às 9 horas para tomar seu café da manhã conosco.

E para não se perder, localize-se
Avenida Pedro Álvares Cabral, 201
Ibirapuera

Sobre o não-ser para viver o ser

Compreendi que não há nada melhor do que a gente ter prazer naquilo que faz. Esta é a recompensa. Pois como é que podemos saber sobre o não-ser? – perguntou Qohélet.

Qoh procurou a felicidade e a paz. Foi objetivo e prático na avaliação de seu tempo e constatou que o evento humano está sujeito à lei da alternância, que vai além da explicação imediata: o humano não tem domínio sobre as dinâmicas que governam a morte e a vida. E procurou refúgio na sofia grega. O texto hebraico de Qohélet, com a presença de palavras aramaicas e persas, sugere autoria anônima, situada entre 450 e 200 antes de Cristo, e se apresentou com a apodadura de Salomão.

Qoh procurou entender o ser e o não-ser – aquilo que está fora, além da existência – no jogo de seus movimentos. Percebeu que não tinha controle sobre o movimento dos fenômenos do universo e viu que era preciso respeitar o espaço e o tempo para poder existir dentro do ritmo dos eventos.

Mas ele não foi o único a pensar nessas coisas. A pergunta pelo não-ser, presente na história do humano desde que ele é sapiens, levou à pergunta pelo sentido do ser. Qohélet – em português Eclesiastes e, segundo Haroldo de Campos, O-que-sabe – de forma magnífica, quase à maneira de Nietzsche, trabalhou o tema da morte e da vida e nos levou a pensar sobre a única realidade a que de fato temos acesso: a existência – terreno afetivo e emocional que produz e repousa sobre a riqueza material das humanidades. Qoh numa abordagem existencial discute o ser, sua integralidade e potencialidades.

Mas ele não foi o único a pensar a não-existência e a existência. Górgias (480-375 a.C.) traduziu no pensamento pré-socrático a dúvida sobre o não-ser e, por extensão, sobre o ser. Disse que se existisse alguma coisa, seria ser ou não-ser, ou ser e não-ser juntos. E se o não-ser existe, ele é e não-é ao mesmo tempo. Mas é absurdo dizer que alguma coisa existe e não-existe ao mesmo tempo. Para Górgias, em formulação matemática (pv¬p)v(p^¬p), a proposição “pv-p” é verdadeira. Mas “v” é verdadeiro se e somente se “p” for verdadeiro. Na lógica proposicional do filósofo pré-socrático temos, então, a negação de “p”. Donde, o não-ser não existe. Górgias disse mais do que isso, mas essa constatação, o não-ser não existe, é o que nos interessa nesse momento.

É interessante que Qoh apresentou o não-ser, aquilo que está fora, além da existência, de uma maneira que nos lembra Górgias. Disse que ninguém se lembra do que aconteceu no passado e que até as coisas que acontecerão no futuro também vão ser esquecidas. Que ninguém se lembra dos sábios, assim como ninguém se lembra dos imbecis, pois no futuro todos seremos esquecidos. Há tempo para nascer e tempo de morrer, mas todos caminham para um mesmo lugar, pois tudo vem do pó e tudo volta ao pó.

Disse, ainda, que felicitava os que já morreram mais do que os que estavam vivos. E considerou que mais vale o dia da morte do que o dia do nascimento. Ou, mais vale ir a uma casa em luto do que ir a uma casa em festa. Que ninguém é senhor do dia da própria morte e que nessa guerra não há trégua. Por isso, um cão vivo vale mais que um leão morto, já que os vivos sabem que irão morrer; mas os mortos não sabem de nada e não tem recompensa nenhuma: sua memória já está no esquecimento. O amor, ódio e ciúmes pereceram com eles. E nunca mais participarão de qualquer coisa que se faz debaixo do sol.

A consciência do não-ser remete ao sentido do ser. E aqui há uma diferença básica com Górgias, porque para ele a negação do não-ser é também a negação do ser e, por isso, fez três afirmações que marcaram o pensamento lógico-matemático e balizaram o ceticismo: não dá para dizer que algo existe; se alguma coisa existe não temos como conhecer sua existência; e se o ser existe não temos como explicar sua existência aos outros.

Já o argumento de Qoh, a partir do não-ser, afirma o sentido do ser, único conhecido. A negação do não-ser de Qoh expressa o desejo de ser em abundância, enquanto está, porque tem por limites as bordas do tempo de ser. O ser existe, mas tem espaço e tempo – hoje diríamos é existencial e histórico. Por isso, é melhor o sentido do ser, a intensidade das ações do ser do que ficar na espera do não-ser. Assim, quando o não-ser sinalizar que está chegando e se aproximar, teremos o prazer de ter sido plenamente, com intensidade, de forma abundante.

E, por isso, Qoh nos aconselha a aproveitar a vida, a ir em frente. A comer com prazer e beber alegremente o nosso vinho, pois o Eterno já aceitou deliciado o nosso bem-fazer. Sejamos felizes, diz O-que-sabe. Enquanto vivermos na fumaça desse mundo, curtamos a vida com a pessoa amada, pois essa é a recompensa pelo nosso fazer debaixo do sol. E o que tivermos para fazer, façamos ótimo, porque o não-ser é nada e no nada nada se faz, e no não-ser não existe conhecimento, nem pensamento, nem sabedoria. E depois do ser, vamos repousar no nada.

O fazer da existência vale a pena. O Eterno aprecia esse bem-fazer humano, que tem seu próprio tempo, que integra a existência de cada ser na história dos fazeres humanos. É por isso que Bereshit, o primeiro texto na Torah, apresenta um ponto zero. O tempo zero vai do entardecer à meia-noite. É quando o sol desilumina o nosso espaço de forma gradual. O tempo do não-ser não é uma fratura do tempo, é tempo da história. Qoh não contempla a passagem do tempo, mas a vinda do tempo. O tempo significa nada ou pouco para o Eterno, mas há um sentido de tempo para o humano. A conclusão de Qoh é que temos de ser no tempo para dar valor à eternidade que brota do nada do não-ser.

25/4/2009

Fonte: ViaPolítica/Jorge Pinheiro


 
 

O sonho e a oração

De manhã bem cedo em Paris, cinco horas a menos de fuso horário, cerca de meia-noite no Brasil, eu dormia e sonhei muito claramente com uma senhora que passaria por uma cirurgia. No sonho reuni jovens e começamos a orar.

Ao acordar, em seguida ao sonho, comecei a orar. Pensei em algumas amadas senhoras da Feliz Idade e em outras que não são da Feliz Idade, mas são tão amadas quanto. E minha oração foi: “Senhor, pelo amor a Jesus, seu Filho e nosso Salvador, dê vida a essa irmã, se for uma irmã em Cristo; a essa pessoa, que o Senhor ama, mas pode ainda não ser uma serva sua”.

Os detalhes de um sonho podem ou não ser importantes, mas nosso Deus sempre deixa claro o que Ele deseja de nós. E aqui o centro do meu sonho era: “Jorge, meu filho, ore por esta senhora, ela vai passar por uma cirurgia”.

E como no dia anterior estava estudando o salmo 80, o versículo 15 me veio à cabeça, como oração: “Vem e salva essa parreira que tu plantaste, esse ramo novo que fizeste crescer tão forte”.

O salmo 80 é um pedido a Deus que pode ser resumido no refrão dos versículos 3, 7 e 19: “Restaura-nos, ó Deus; faze resplandecer o teu rosto e seremos salvos”.

O salmo 80 é uma oração dirigida a Deus, o pastor de Israel, que está entronizado acima dos querubins. Nela o salmista clama: “até quando?” Pergunta sobre a duração da ira de Deus contra a nação desobediente. O salmo é um resumo da história do povo de Israel: a fuga do Egito, a conquista da terra prometida, a prosperidade na terra, o castigo pela mão de opressores. Mas aqui o salmista trabalha com a figura de uma videira plantada por Deus. E encerra o salmo pedindo que Deus olhe do céu e veja a circunstância triste do povo e intervenha para salvar a sua videira, o povo querido que está na sua mão direita. E o povo promete fidelidade a Deus.

Querida irmã, querido irmão, eu não sei por quem orei, mas Deus sabe. Nossa história é como aquela do povo de Israel no salmo 80: fugimos do mundo do pecado e isso não foi fácil. Conquistamos as promessas de uma vida nova através de Cristo e isso é muito gostoso e gratificante. Crescemos e prosperamos. Mas, às vezes, sofremos nas mãos adversas das circunstâncias, que podem ser enfermidades ou não.

Diante das circunstâncias adversas nossa arma é a oração. Vou continuar a orar pelas senhoras da minha igreja, pelas pessoas enfermas. Vamos fazer isso juntos, essa semana? Vamos juntos dizer para o pastor de Israel, que está entronizado acima dos querubins: “Restaura-nos, ó Deus; faze resplandecer o teu rosto e seremos salvos”.

E que todas e todos possamos clamar por restauração e prometer fidelidade Àquele que é Fiel. Amém!

Do pastor e amigo, Jorge Pinheiro.

Oremos

lundi 3 septembre 2012

JORGE PINHEIRO: Para ler Baruch

JORGE PINHEIRO: Para ler Baruch: Duas ou três palavras sobre BARUCH O rolo de Baruch é um deuterocanônico da Bíblia. Apesar de não estar na Bíblia hebraica é encontra...

Para ler Baruch


Duas ou três palavras sobre BARUCH

O rolo de Baruch é um deuterocanônico da Bíblia. Apesar de não estar na Bíblia hebraica é encontrado na Septuaginta e na Vulgata. Está ligado aos livros proféticos, Isaías, Jeremias e Lamentações, Ezequiel, Daniel e os doze profetas menores. O texto é apresentado como de autoria de Baruch ben Nerias, escriba de Jeremias. É possível, porém, que tenha sido escrito durante ou logo depois do período dos Macabeus. Na Vulgata, na Bíblia King James e outras versões, a Carta de Jeremias é anexada no fim do livro de Baruch como um sexto capítulo. Na Septuaginta aparece como um livro separado.

Baruch se apresenta

Baruch 1:1-7
Eis o texto do livro escrito por Baruch, filho de Nérias, filho de Maasias, filho de Sedecias, filho de Sedei, filho de Helcias, em Babilônia, no quinto ano, sétimo dia do (quinto) mês. Decorria o tempo em que os caldeus tomaram Jerusalém e a haviam incendiado. Leu Baruch este livro em presença de Jeconias, filho de Joaquim, rei de Judá, e de todo o povo, que para tal fim se reunira, dos nobres, príncipes reais, anciãos e de quantos residiam em Babilônia, às margens do rio Sodi, desde os mais simples até os mais elevados. Ao ouvi-lo, puseram-se todos a chorar e a jejuar, orando ao Senhor. Fizeram, em seguida, uma coleta de dinheiro, de acordo com as posses de cada um, e o produto enviaram a Jerusalém, ao sacerdote Joaquim, filho de Helcias, filho de Salom, assim como aos outros sacerdotes e a quantos ainda com ele se encontravam na cidade.

A mensagem de Baruch

Baruch 1.15-22
Eis o que direis: O Senhor, nosso Deus, é justo. Nós, porém, devemos, hoje, corar de vergonha, nós, homens de Judá e habitantes de Jerusalém, nossos reis e príncipes, sacerdotes, profetas e nossos pais, porque pecamos contra o Senhor. Nós lhe desobedecemos; recusamo-nos a ouvir a voz do Senhor, nosso Deus, e a seguir os mandamentos que nos deu. Desde o dia em que o Senhor tirou nossos pais do Egito até agora, persistimos em nos mostrar recalcitrantes contra o Senhor, nosso Deus, e, em nossa leviandade, recusamos escutar-lhe a voz. Por isso, como agora o vemos, persegue-nos a calamidade assim como a maldição que o Senhor pronunciara pela boca de Moisés, seu servo, quando este fez com que saíssem do Egito nossos pais, a fim de nos proporcionar uma terra que mana leite e mel. Contudo, a despeito dos avisos dos profetas que nos enviou, não escutamos a voz do Senhor, nosso Deus. Seguindo cada um de nós as inclinações perversas do coração, servimos a deuses estranhos e praticamos o mal ante os olhos do Senhor, nosso Deus.



Leituras de Baruch

Clemente de Alexandria cita Baruch 3.16-19, referindo-se à passagem: "Onde estão os chefes das nações que domavam os animais da terra, e brincavam com as aves do céu, que entesouravam prata e ouro, em quem os homens confiavam, e cujos bens são inesgotáveis? Onde estão aqueles que trabalham a prata com dificuldade? Nada resta de suas obras. Desapareceram, desceram à habitação dos mortos, e outros subiram ao lugar deles”.

Agostinho recorre ao texto de Baruch para falar da oração, ao dizer que quando recorremos a ela encontramos paz que excede o entendimento, mesmo quando não sabemos como orar, e a partir daí diz que o Santo Espírito intercede pelos santos.

Na Suma Teológica (III 4 4), Tomás de Aquino cita Baruch 3.38 ao dizer que "o Filho de Deus assumiu a natureza humana, a fim de mostrar-se à vista dos homens”. Esse trecho entra em sua discussão sobre a forma como se dá a união do divino com a natureza humana (III 4). Aquino cita a mesma passagem de Baruch em (III 40 1) para a responder à questão: Cristo se associou aos seres homens ou levou uma vida solitária? (III 40).

O livro de Baruch é utilizado pelos anglicanos e a perícope 4.21-29 é lida na véspera e 4.30-5.9 no dia de Natal, entendidos como profecia messiânica.

Os ortodoxos também utilizam seleções de Baruch, vistos como extensão do livro de Jeremias, e são lidos na véspera de Natal.

Algumas considerações

Podemos ler Baruch como parte da tradição profética de Israel. E compreender que ele nos fala sobre a vida, ao mostrar, numa sequência que tem origem em Moisés, que a vida implica em geração e regeneração, relação dialética que é ato inicial em que a eternidade faz crescer o humano. É obra do infinito. Mas geração e regeneração implicam em arrependimento e fé. Arrependimento é mudança na raiz da vida humana. E fé é a confiança e aceitação da vida como comissionamento. Nessa experiência de vida radical o humano pisa na terra, mas se eleva em direção ao céu. E o céu se derrama em direção à terra através do humano.

Assim, em Baruch, como nos demais profetas vétero-testamentários, a partir da consistência ontológica do humano, podemos compreender a vida. Quando descartamos a reflexão sobre o ser humano a quem a eternidade fala, temos um discurso meramente ideológico, distanciado do homem e da mulher verdadeiros e da realidade em que vivem e transformam. Temos, então, um ser humano-mito, onde naturalidade e historicidade transformam-se em alegoria.

O pressuposto fundamental dessa reflexão baruchiana sobe o sentido da vida traduz a verdade de que a compreensão da eternidade leva à compreensão do humano e de sua existência. Não se trata de conhecer o humano para conhecer o Eterno, porque o finito relativo não é infinito absoluto. Nesse sentido, a vida parte da infinitude absoluta.

Baruch diz no capítulo 5

Tira, Jerusalém, a veste de luto e de miséria; reveste, para sempre, os adornos da glória divina. Cobre-te com o manto da justiça que vem de Deus, e coloca sobre a cabeça o diadema da glória do Eterno. Deus vai mostrar à terra, e sob todos os céus, teu esplendor. Eis o nome que te é dado por Deus, para todo o sempre: Paz da Justiça e Esplendor do temor a Deus! Ergue-te, Jerusalém, galga os cumes e olha para o oriente! Olha: ao chamado do Altíssimo, reúnem-se teus filhos, desde o poente ao levante, felizes por se haver Deus lembrado deles. Quando de ti partiram, caminhavam a pé, arrastados pelos inimigos. Deus, porém, tos devolve, conduzidos com honras, quais príncipes reais, porque Deus dispôs que sejam abaixados os montes e as colinas, e enchidos os vales para que se una o solo, para que Israel caminhe com segurança sob a glória divina. As florestas e as árvores de suave fragrância darão sombra a Israel, por ordem do Senhor. Em verdade, é o próprio Deus quem conduz Israel, pleno de júbilo no esplendor de sua majestade, pela sua justiça, pela sua misericórdia!