samedi 10 octobre 2015

A desobediência civil

A DESOBEDIÊNCIA CIVIL
Henry David Thoreau


Aceito com entusiasmo o lema "O melhor governo é o que menos governa"; e gostaria que ele fosse aplicado mais rápida e sistematicamente. Levado às últimas consequências, este lema significa o seguinte, no que também creio: "O melhor governo é o que não governa de modo algum"; e, quando os homens estiverem preparados, será esse o tipo de governo que terão. O governo, no melhor dos casos, nada mais é do que um artifício conveniente; mas a maioria dos governos é por vezes uma inconveniência, e todo o governo algum dia acaba por ser inconveniente. As objecções que têm sido levantadas contra a existência de um exército permanente, numerosas e substantivas, e que merecem prevalecer, podem também, no fim das contas, servir para protestar contra um governo permanente. O exército permanente é apenas um braço do governo permanente. O próprio governo, que é simplesmente uma forma que o povo escolheu para executar a sua vontade, está igualmente sujeito a abusos e perversões antes mesmo que o povo possa agir através dele. Prova disso é a actual guerra contra o México, obra de um número relativamente pequeno de indivíduos que usam o governo permanente como um instrumento particular; isso porque o povo não teria consentido, de início, uma iniciativa dessas.

Esse governo norte-americano - que vem a ser ele senão uma tradição, ainda que recente, tentando-se transmitir inteira à posteridade, mas que a cada instante vai perdendo porções da sua integridade? Ele não tem a força nem a vitalidade de um único homem vivo, pois um único homem pode fazê-lo dobrar-se à sua vontade. O governo é uma espécie de revólver brinquedo para o próprio povo; e ele certamente vai quebrar se por acaso os norte-americanos o usarem seriamente uns contra os outros, como uma arma de verdade. Mas nem por isso ele é menos necessário; pois o povo precisa dispor de uma ou outra máquina complicada e barulhenta para preencher a sua concepção de governo. Desta forma, os governos são a prova de como os homens podem ter sucesso no acto de oprimir em proveito próprio, não importando se a opressão se volta também contra eles. Devemos admitir que ele é excelente; no entanto, este governo em si mesmo nunca estimulou qualquer iniciativa a não ser pela rapidez com que se dispôs a não atrapalhar. Ele não mantém o país livre. Ele não povoa as terras do oeste. Ele não educa. O carácter inerente do povo norte-americano é o responsável por tudo o que temos conseguido fazer; e ele teria conseguido fazer consideravelmente mais se o governo não tivesse sido por vezes um obstáculo. Pois o governo é um artifício através do qual os homens conseguiriam de bom grado deixar em paz uns aos outros; e, como já foi dito, a sua conveniência máxima só ocorre quando os governados são minimamente molestados pelos seus governantes. Se não fossem feitos de borracha da Índia, os negócios e o comércio nunca conseguiriam ultrapassar os obstáculos que os legisladores teimam em plantar no seu caminho; e se fôssemos julgar estes senhores levando em conta exclusivamente os efeitos dos seus actos - esquecendo as suas intenções -, eles mereceriam a classificação dada e as punições impostas a essas pessoas nocivas que gostam de obstruir as ferrovias.

No entanto, quero me pronunciar em termos práticos como cidadão, distintamente daqueles que se chamam antigovernistas: o que desejo imediatamente é um governo melhor, e não o fim do governo. Se cada homem expressar o tipo de governo capaz de ganhar o seu respeito, estaremos mais próximos de conseguir formá-lo.

No final das contas, o motivo prático pelo qual se permite o governo da maioria e a sua continuidade - uma vez passado o poder para as mãos do povo - não é a sua maior tendência a emitir bons juízos, nem porque possa parecer o mais justo aos olhos da minoria, mas sim porque ela (a maioria) é fisicamente a mais forte. Mas um governo no qual prevalece o mando da maioria em todas as questões não pode ser baseado na justiça, mesmo nos limites da avaliação dos homens. Não será possível um governo em que a maioria não decida virtualmente o que é certo ou errado? No qual a maioria decida apenas aquelas questões às quais seja aplicável a norma da conveniência? Deve o cidadão desistir da sua consciência, mesmo por um único instante ou em última instância, e se dobrar ao legislador? Por que então estará cada homem dotado de uma consciência? Na minha opinião devemos ser em primeiro lugar homens, e só então súditos. Não é desejável cultivar o respeito às leis no mesmo nível do respeito aos direitos. A única obrigação que tenho direito de assumir é fazer a qualquer momento aquilo que julgo certo. Costuma-se dizer, e com toda a razão, que uma corporação não tem consciência; mas uma corporação de homens conscienciosos é uma corporação com consciência. A lei nunca fez os homens sequer um pouco mais justos; e o respeito reverente pela lei tem levado até mesmo os bem-intencionados a agir quotidianamente como mensageiros da injustiça. Um resultado comum e natural de um respeito indevido pela lei é a visão de uma coluna de soldados - coronel, capitão, cabos, combatentes e outros - marchando para a guerra numa ordem impecável, cruzando morros e vales, contra a sua vontade, e como sempre contra o seu senso comum e a sua consciência; por isso essa marcha é muito pesada e faz o coração bater forte. Eles sabem perfeitamente que estão envolvidos numa iniciativa maldita; eles têm tendências pacíficas. O que são eles, então? Chegarão a ser homens? Ou pequenos fortes e paióis móveis, a serviço de algum inescrupuloso detentor do poder? É só visitar o Estaleiro Naval e contemplar um fuzileiro: eis aí o tipo de homem que um governo norte-americano é capaz de fabricar - ou transformar com a sua magia negra -, uma sombra pálida, uma vaga recordação da condição humana, um cadáver de pé e vivo que, no entanto, se poderia considerar enterrado sob armas com acompanhamento fúnebre, embora possa acontecer que

"Não se ouviu um rufar nem sequer um toque de silêncio enquanto à muralha o seu corpo levamos nenhum soldado disparou uma salva de adeus sobre o túmulo onde jaze o herói que enterramos".

Desta forma, a massa de homens serve ao Estado não na sua qualidade de homens, mas sim como máquinas, entregando os seus corpos. Eles são o exército permanente, a milícia, os carcereiros, os polícias, posse comitatus, e assim por diante. Na maior parte dos casos não há qualquer livre exercício de escolha ou de avaliação moral; ao contrário, estes homens nivelam-se à madeira, à terra e às pedras; e é bem possível que se consigam fabricar bonecos de madeira com o mesmo valor de homens desse tipo. Não são mais respeitáveis do que um espantalho ou um monte de terra. Valem tanto quanto cavalos e cachorros. No entanto, é comum que homens assim sejam apreciados como bons cidadãos. Há outros, como a maioria dos legisladores, políticos, advogados, funcionários e dirigentes, que servem ao Estado principalmente com a cabeça, e é bem provável que eles sirvam tanto ao Diabo quanto a Deus - sem intenção -, pois raramente se dispõem a fazer distinções morais. Há um número bastante reduzido que serve ao Estado também com a sua consciência; são os heróis, patriotas, mártires, reformadores e homens, que acabam por isso necessariamente resistindo, mais do que servindo; e o Estado trata-os geralmente como inimigos. Um homem sábio só será de facto útil como homem, e não se sujeitará à condição de "barro" a ser moldado para "tapar um buraco e cortar o vento”; ele preferirá deixar esse papel, na pior das hipóteses, para as suas cinzas:

"A minha origem é nobre demais para que eu seja propriedade de alguém. Para que eu seja o segundo no comando  ou um útil serviçal ou instrumento de qualquer Estado soberano deste mundo"

Os que se entregam completamente aos seus semelhantes são por eles considerados inúteis e egoístas; mas aqueles que se dão parcialmente são entronizados como benfeitores e filantropos.

Que comportamento digno deve ter um homem perante o actual governo vigente nos Estados Unidos? A minha resposta é que ele inevitavelmente se degrada pelo facto de estar associado a ele. Nem por um minuto posso considerar o meu governo uma organização política que é também o governo do escravo. 

Todos reconhecem o direito à revolução, ou seja, o direito de negar lealdade e de oferecer resistência ao governo sempre que se tornem grandes e insuportáveis a sua tirania e ineficiência. No entanto, quase todos dizem que tal não acontece agora. Consideram, porém, que isso aconteceu em 1775. Se alguém me dissesse que o nosso governo é mão porque estabeleceu certas taxas sobre bens estrangeiros que chegam aos seus portos, o mais provável é que eu não criasse qualquer caso, pois posso muito bem passar sem eles: todas as máquinas têm atrito e talvez isso faça com que o bom e o mau se compensem. De qualquer forma, fazer um rebuliço por causa disso é um grande mal. Mas quando o próprio atrito chega a construir a máquina e vemos a organização da tirania e do roubo, afirmo que devemos repudiar essa máquina. Em outras palavras, quando um sexto da população de um país que se elegeu como o refúgio da liberdade é composto de escravos, e quando todo um país é injustamente assaltado e conquistado por um exército estrangeiro e submetido à lei marcial, devo dizer que não é cedo demais para a rebelião e a revolução dos homens honestos. E esse dever é tão mais urgente pelo facto de que o país assaltado não é o nosso, e pior ainda, que o exército invasor é o nosso.

William Paley, uma autoridade em assuntos morais, tem um capítulo intitulado Duty of submission to civil government (O dever de submissão ao governo civil), no qual soluciona toda a questão das obrigações políticas pela fórmula da conveniência; e diz: "Enquanto o exigir o interesse de toda a sociedade, ou seja, enquanto não se possa resistir ao governo estabelecido ou mudá-lo sem inconveniência pública, é a vontade de Deus que tal governo seja obedecido - e nem um dia além disso. Admitindo-se este princípio, a justiça de cada acto particular de resistência reduz-se à computação do volume de perigo e protestos, de um lado, e da probabilidade e custos da reparação, de outro". Diz ele que cada um julgará esta questão por si mesmo. Mas parece que Paley nunca levou em conta os casos em que a regra da conveniência não se aplica, nos quais um povo ou um indivíduo tem que fazer justiça a qualquer custo. Se arranquei injustamente a tábua que é a salvação de um homem que se afoga, sou obrigado a devolvê-la, ainda que eu mesmo me afogue. De acordo com Paley, esta é uma circunstância inconveniente. Mas quem quiser se salvar desta forma acabará perdendo a vida. O povo norte-americano tem que pôr fim à escravidão e tem que parar de guerrear com o México, mesmo que isso lhe custe a existência enquanto povo.

As nações, na sua prática, concordam com Paley, mas haverá quem considere que Massachusetts esteja agir correctamente na crise actual?

"Uma rameira de alta linhagem, um trapo de pano prateado atirado à lama,
Levanta a cauda do vestido, e arrasta no chão a sua alma"

Em termos práticos, os que se opõem à abolição em Massachusetts não são uns cem mil políticos do sul, mas uns cem mil comerciantes e fazendeiros daqui, que se interessam mais pelos negócios e pela agricultura do que pela humanidade e que não estão dispostos a fazer justiça ao escravo e ao México, custe o que custar. Não discuto com inimigos distantes, mas com aqueles que, bem perto de mim, cooperam com a posição de homens que estão longe daqui e defendem-na; estes últimos homens seriam inofensivos se não fosse por aqueles. Estamos acostumados a afirmar que os homens em geral são despreparados; mas as melhorias são lentas, porque os poucos não são substantivamente mais sábios ou melhores do que os muitos. Não é tão importante que muitos sejam tão bons quanto você, e sim que haja em algum lugar alguma porção absoluta de virtude; isso bastará para fermentar toda a massa. Há milhares de pessoas cuja opinião é contrária à escravidão e à guerra; apesar disso, nada fazem de efectivo para pôr fim a ambas; dizem-se filhos de Washington e Franklin, mas ficam sentados com as mãos nos bolsos, dizendo não saber o que pode ser feito e nada fazendo; chegam a colocar a questão do livre comércio à frente da questão da liberdade, e ficam quietos lendo as cotações do dia junto com os últimos boletins militares sobre a campanha do México; é possível até que acabem por adormecer durante a leitura. Qual é hoje a cotação do dia de um homem honesto e patriota? Eles hesitam, arrependem-se e às vezes assinam petições, mas nada fazem de sério ou de efectivo. Com muito boa disposição, preferem esperar que outros remedeiem o mal, de forma que nada reste para motivar o seu arrependimento. No melhor dos casos, nada mais farão do que depositar na urna um voto insignificante, cumprimentar timidamente a atitude certa e, de passagem, desejar-lhe boa sorte. Há novecentos e noventa e nove patronos da virtude e apenas um homem virtuoso; mas é mais fácil lidar com o verdadeiro dono de algo do que com seu guardião temporário.

Toda a votação é um tipo de jogo, tal como damas ou gamão, com uma leve coloração moral, onde se brinca com o certo e o errado sobre questões morais; e é claro que há apostas neste jogo. O carácter dos eleitores não entra nas avaliações. Proclamo o meu voto - talvez - de acordo com meu critério moral; mas não tenho um interesse vital de que o certo saia vitorioso. Estou disposto a deixar essa decisão para a maioria. O compromisso de votar, desta forma, nunca vai mais longe do que as conveniências. Nem mesmo o acto de votar pelo que é certo implica fazer algo pelo que é certo. É apenas uma forma de expressar publicamente o meu anémico desejo de que o certo venha a prevalecer. Um homem sábio não deixará o que é certo nas mãos incertas do acaso e nem esperará que a sua vitória se dê através da força da maioria. Há escassa virtude nas acções de massa dos homens. Quando finalmente a maioria votar a favor da abolição da escravatura, das duas uma: ou ela será indiferente à escravidão ou então restará muito pouca escravidão a ser abolida pelo o seu voto. A essa altura, os únicos escravos serão eles, os integrantes da maioria. O único voto que pode apressar a abolição da escravatura é o daquele homem que afirma a própria liberdade através do seu voto.

Estou informado de que haverá em Baltimore, ou em outro lugar qualquer, uma convenção para escolher um candidato à presidência; essa convenção é composta principalmente por editores de jornais e políticos profissionais; mas que importância terá a possível decisão desta reunião para um homem independente, inteligente e respeitável? No fim das contas, ainda poderemos contar com as vantagens da sua sabedoria e da sua honestidade, não é mesmo? Será que não poderemos prever alguns votos independentes? Não haverá muitas pessoas neste país que não frequentam convenções? Mas não é isso o que ocorre: percebo que o homem considerado respeitável logo abandona a sua posição e passa a não ter mais esperanças no seu país, quando o mais certo seria que seu país desesperasse dele. A partir disso ele adere a um dos candidatos assim seleccionados por ser o único disponível, apenas para provar que ele mesmo está disponível para todos os planos do demagogo. O voto de um homem desses não vale mais do que o voto eventualmente comprado de um estrangeiro inescrupuloso ou do nativo venal. Oh! É preciso um homem que seja um homem e que tenha, como diz um vizinho meu, uma coluna dorsal que não se dobre aos poderosos! As nossas estatísticas estão erradas: contou-se gente demais. Quantos homens existem em cada mil milhas quadradas deste país? Dificilmente se contará um. A América oferece ou não incentivos para a imigração de homens? Os homens norte-americanos foram rareando até à dimensão de uma irmandade secreta como a dos Odd Fellows, cujo integrante típico pode ser identificado pelo seu descomunal carácter gregário, pela manifesta falta de inteligência e de jovial autoconfiança; a sua preocupação primeira e maior ao dar entrada neste mundo é a de verificar se os asilos estão em boas condições de funcionamento; antes mesmo de ter direito a envergar roupas de adulto ele organiza uma colecta de fundos para as viúvas e órfãos que porventura existam; em poucas palavras, é um homem que só ousa viver com a ajuda da Companhia de Seguros Mútuos, que lhe prometeu um enterro decente.

De facto, nenhum homem tem o dever de se dedicar à erradicação de qualquer mal, mesmo o maior dos males; ele pode muito bem ter outras preocupações que o mobilizem. Mas ele tem no mínimo a obrigação de lavar as mãos frente à questão e, no caso de não mais se ocupar dela, de não dar qualquer apoio prático à injustiça. Se me dedico a outras metas e considerações, preciso ao menos verificar se não estou fazendo isso à custa de alguém em cujos ombros esteja sentado. É preciso que eu saia de cima dele para que ele também possa estar livre para fazer as suas considerações. Vejam como se tolera uma inconsistência das mais grosseiras. Já ouvi alguns dos meus conterrâneos dizerem: "Queria que eles me convocassem para ir combater um levante de escravos ou para atacar o México - pois eu não iria"; no entanto, cada um destes homens possibilitou o envio de um substituto, fazendo isso directamente pela sua fidelidade ao governo, ou pelo menos indirectamente através do seu dinheiro. O soldado que se recusa a participar de uma guerra injusta é aplaudido por aqueles que não recusam apoio ao governo injusto que faz a guerra; é aplaudido por aqueles cuja acção e autoridade ele despreza e desvaloriza; tudo funciona como se o Estado estivesse suficientemente arrependido para contratar um crítico dos seus pecados, mas insuficientemente arrependido para interromper por um instante sequer os seus actos pecaminosos. Estamos todos, desta forma, de conformidade com a ordem e o governo civil, reunidos para homenagear e dar apoio à nossa própria crueldade. Se ruborizamos ante o nosso primeiro pecado, logo depois se instala a indiferença. Passamos do imoral ao não-moral, e isso não é tão desnecessário assim para o tipo de vida que construímos.

O mais amplo e comum dos erros exige a virtude mais generosa para se manter. São os nobres os mais passíveis de proferir os moderados ataques a que comumente está sujeita a virtude do patriotismo. Sem dúvida, os maiores baluartes conscienciosos do governo, e muito frequentemente os maiores opositores das reformas, são aqueles que desaprovam o carácter e as medidas de um governo, sem no entanto lhe retirar a sua lealdade e apoio. Há gente colectando assinaturas para fazer petições ao Estado de Massachusetts no sentido de dissolver a União e de desprezar as recomendações do presidente. Ora, por que eles mesmos não dissolvem essa união entre eles e o Estado e se recusam a pagar a sua cota de impostos? Não estão eles na mesma relação com o Estado que a que este mantém com a União? E não são as mesmas as razões que evitaram a resistência do Estado à União e a resistência deles ao Estado?

Como pode um homem se satisfazer com a mera posse de uma opinião e de facto usufruí-la? Pode haver algum usufruto da opinião quando o dono dela a vê ofendida? Se o seu vizinho o vigariza e lhe subtrai um mero dólar, você não se satisfaz com a descoberta da vigarice, com a proclamação de que foi vigarizado e nem mesmo com as suas gestões no sentido de ser devidamente reembolsado; o que você faz é tomar medidas efectivas e imediatas para ter o seu dinheiro de volta e cuidar de nunca mais ser enganado. Acções baseadas em princípios - a percepção e a execução do que é certo - modificam coisas e relações; a acção deste género é essencialmente revolucionária e não se reduz integralmente a qualquer coisa preexistente. Ela cinde não apenas Estados e Igrejas; divide famílias; e também divide o indivíduo» separando nele o diabólico do divino.

Existem leis injustas; devemos submeter-nos a elas e cumpri-las, ou devemos tentar emendá-las e obedecer a elas até à sua reforma, ou devemos transgredi-las imediatamente? Numa sociedade com um governo como o nosso, os homens em geral pensam que devem esperar até que tenham convencido a maioria a alterar essas leis. A sua opinião é de que a hipótese da resistência pode vir a ser um remédio pior do que o mal a ser combatido. Mas é precisamente o governo o culpado pela circunstância de o remédio ser de facto pior do que o mal. É o governo que faz tudo ficar pior. Por que o governo não é mais capaz e se antecipa para lutar pela reforma? Por que ele não sabe valorizar a sua sábia minoria? Por que ele chora e resiste antes de ser atacado? Por que ele não estimula a participação activa dos cidadãos para que eles lhe mostrem as suas falhas e para conseguir um desempenho melhor do que eles lhe exigem? Por que eles lhe exigem? Por que ele sempre crucifica Jesus Cristo, e excomunga Copérnico e Lutero  e qualifica Washington e Franklin de rebeldes?

Não é absurdo pensar que o único tipo de transgressão que o governo nunca previu foi a negação deliberada e prática de sua autoridade; se não fosse assim, por que então não teria ele estabelecido a penalidade clara, cabível e proporcional? Se um homem sem propriedade se recusa pela primeira vez a recolher nove xelins aos cofres do Estado, é preso por prazo cujo limite não é estabelecido por qualquer lei que eu conheça; esse prazo é determinado exclusivamente pelo arbítrio dos que o enviam à prisão. Mas se ele resolver roubar noventa vezes nove xelins do Estado, em breve estará novamente em liberdade.

Se a injustiça é parte do inevitável atrito no funcionamento da máquina governamental, que seja assim: talvez ela acabe suavizando-se com o desgaste - certamente a máquina ficará desajustada. Se a injustiça for uma peça dotada de uma mola exclusiva - ou roldana, ou corda, ou manivela -, aí então talvez seja válido julgar se o remédio não será pior do que o mal; mas se ela for de tal natureza que exija que você seja o agente de uma injustiça para outros, digo, então, que se transgrida a lei. Faça da sua vida um contra-atrito que pare a máquina. O que preciso fazer é cuidar para que de modo algum eu participe das misérias que condeno.

No que diz respeito às vias pelas quais o Estado espera que os males sejam remediados, devo dizer que não as conheço. Elas são muito demoradas, e a vida de um homem pode chegar ao fim antes que elas produzam algum efeito. Tenho outras coisas para fazer. Não vim a este mundo com o objectivo principal de fazer dele um bom lugar para morar, mas apenas para morar nele, seja bom ou mão. Um homem não carrega a obrigação de fazer tudo, mas apenas alguma coisa; e só porque não pode fazer tudo não é necessário que faça alguma coisa errada. Não está dentro das minhas incumbências apresentar petições ao governador e à Assembleia Legislativa, da mesma forma que eles nada precisam fazer de semelhante em relação a mim. Suponhamos que eles não dêem atenção a um pedido meu; que devo fazer então? Mas nesse caso o Estado não forneceu outra via: o mal está na sua própria Constituição. Isto pode parecer grosseria, teimosia e intransigência, mas só quem merece ou pode apreciar a mais fina bondade e consideração deve receber este tipo de tratamento. Todas as mudanças para melhor são assim, tais como o nascimento e a morte, que produzem convulsões nos corpos.

Não hesito em afirmar que todos os que se intitulam abolicionistas devem imediata e efectivamente retirar o seu apoio - em termos pessoais e de propriedade - ao governo do Estado de Massachusetts, e não ficar esperando até que consigam formar a mais estreita das maiorias para só então alcançar o sofrido direito de vencer através dela. Creio que basta saber que Deus está do seu lado, o que vale mais do que o último votante a fazer majoritárias as suas fileiras. E, além de tudo, qualquer homem mais correcto do que os seus vizinhos já constitui uma maioria apertada.

É apenas uma vez por ano, e não mais do que isso, que me encontro cara a cara com este governo norte-americano, ou com o governo estadual que o representa: é quando sou procurado pelo colector de impostos; essa é a única instância em que um homem na minha situação não pode deixar de se encontrar com esse governo; e ele aproveita a oportunidade e diz claramente: "Reconheça-me". E não há outra forma mais simples, mais efectiva e, na conjuntura actual, mais indispensável de lidar com o governo neste particular, de expressar a sua pouca satisfação ou seu pouco amor em relação a ele: é preciso negá-lo, naquele local e momento. O colector de impostos é meu vizinho e concidadão, e é com ele que tenho de lidar porque afinal de contas estou lutando contra homens, e não contra o pergaminho das leis, e sei que ele voluntariamente optou por ser um agente governamental. Haverá outro modo de ele ficar sabendo claramente o que é e o que fiz enquanto agente do governo, ou enquanto homem, a não ser quando forçado a decidir que tratamento vai dar a mim, o vizinho que ele respeita como tal e como homem de boa índole, ou que ele considera um maníaco e desordeiro? Será ele capaz de superar esse obstáculo à sua sociabilidade sem um pensamento ou uma palavra mais rudes ou mais impetuosos a acompanhar a sua acção? Disso estou certo: se mil, ou cem, se dez homens que conheço - apenas dez homens honestos ou até um único homem honesto do Estado de Massachusetts, não mais sendo dono de escravos, decidisse pôr fim ao seu vínculo com o Estado, para logo em seguida ser trancado na cadeia municipal, estaria ocorrendo nada menos do que a abolição da escravatura nos Estados Unidos da América. Pois não importa que os primeiros passos pareçam pequenos: o que se faz bem feito faz-se para sempre. Mas preferimos debater o assunto: essa é nossa missão, dizemos. Há dezenas de jornais nas fileiras do abolicionismo, mas não há um único homem. O meu querido vizinho, que desempenhou o papel de embaixador de Massachusetts e que sempre se dedica à resolução das questões dos direitos humanos na Câmara do Conselho, esteve ameaçado de amargar uma prisão na Carolina do Sul; no entanto, se tivesse sido prisioneiro do Estado de Massachusetts, esse Estado que ansiosamente lança à Carolina do Sul a acusação de pecar com a escravidão (embora actualmente não encontre nada além de uma atitude pouco hospitaleira como motivo para brigar com ela), o nosso Legislativo não seria capaz de adiar liminarmente o assunto da escravidão até ao próximo inverno.

Sob um governo que prende qualquer homem injustamente, o único lugar digno para um homem justo é também a prisão. Hoje em dia, o lugar próprio, o único lugar que Massachusetts reserva para os seus habitantes mais livres e menos desalentados são as suas prisões, nas quais serão confinados e trancados longe do Estado, por um acto do próprio Estado pois os que vão para a prisão já antes tinham se confinado nos seus princípios. E aí que devem ser encontrados quando forem procurados pelos escravos fugidos, pelo prisioneiro mexicano em liberdade condicional e pelos indígenas, para ouvir as denúncias sobre as humilhações impostas aos seus povos; é aí, nesse chão discriminado, mas tão mais livre e honroso, onde o Estado planta os que não estão com ele mas sim contra ele - a única casa num Estado-senzala na qual um homem livre pode perseverar com honra. Se há alguém que pense ser a prisão um lugar de onde não mais se pode influir, no qual a sua voz deixa de atormentar os ouvidos do Estado, no qual não conseguiria ser tão hostil a ele, esse alguém ignora o quanto a verdade é mais forte que o erro e também não sabe como a injustiça pode ser combatida com muito mais eloquência e efectividade por aqueles que já sofreram na carne um pouco dela. Manifeste integralmente o seu voto e exerça toda a sua influência; não se deixe confinar por um pedaço de papel. Uma minoria é indefesa quando se conforma à maioria; não chega nem a ser uma minoria numa situação dessas; mas ela é irresistível quando intervém com todo o seu peso. Se a alternativa ficar entre manter todos os homens justos na prisão ou desistir da guerra e da escravidão, o Estado não hesitará na escolha. Se no ano corrente mil homens não pagassem os seus impostos, isso não seria uma iniciativa tão violenta e sanguinária quanto o próprio pagamento, pois neste caso o Estado fica capacitado para cometer violências e para derramar o sangue dos inocentes. Esta é, na verdade, a definição de uma revolução pacífica, se é que é possível uma coisa dessas. Se, como já ouvi um deles me perguntar, o colector de impostos ou outro funcionário público qualquer indagar: "Mas o que devo fazer agora?", a minha resposta é: "Se de facto quiser fazer alguma coisa, então renuncie ao seu cargo". Quando o súdito negou a lealdade e o funcionário renunciou ao seu cargo, então a revolução completou-se. Mas vamos supor que há violência. Não poderíamos considerar que uma agressão à consciência também provoca um tipo de ferimento grave? Um ferimento desses provoca a perda da autêntica humanidade e da imortalidade de um homem, e ele sangra até uma morte eterna. Posso ver esse sangue a correr, agora.

Especulei sobre a prisão do infractor, e não sobre o confisco dos seus bens - embora ambas as medidas sirvam ao mesmo fim -, porque os que afirmam o certo e que, por isso, são os seres mais perigosos para um Estado corrupto, em geral não gastam muito do seu tempo na acumulação de propriedades. Para homens assim o Estado presta serviços relativamente pequenos e um imposto bem leve tende a ser considerado exorbitante, particularmente quando são obrigados a realizar um trabalho especial para conseguir a quantia cobrada. Se houvesse quem vivesse inteiramente sem usar o dinheiro, o próprio Estado hesitaria em exigir que ele lhe entregasse uma quantia. O homem rico, no entanto - e não pretendo estabelecer uma comparação invejosa -, é sempre um ser vendido à instituição que o enriquece. Falando em termos absolutos, quanto mais dinheiro, menos virtude; pois o dinheiro interpõe-se entre um homem e os seus objectivos e permite que ele os compre; obter alguma coisa dessa forma não é uma grande virtude. O dinheiro acalma muitas perguntas que de outra forma ele se veria pressionado a fazer; de outro lado, a única pergunta nova que o dinheiro suscita é difícil, embora supérflua: "Como gasta-lo?" Um homem assim fica, portanto, sem base para uma moralidade. As oportunidades de viver diminuem proporcionalmente ao acúmulo daquilo que se chama de "meios". A melhor coisa a ser feita em prol da cultura do seu tempo por um homem rico é realizar os planos que tinha quando ainda era pobre. Cristo respondeu aos seguidores de Herodes de acordo com a situação deles. "Mostrem-me o dinheiro dos tributos", disse ele; e um deles tirou do bolso uma moeda. Disse então Jesus Cristo: "Se vocês usam o dinheiro com a imagem de César, dinheiro que ele colocou em circulação e ao qual ele deu valor, ou seja, se vocês são homens do Estado e estão felizes de se aproveitar das vantagens do governo de César, então paguem-no por isso quando ele o exigir. Portanto, dai a César o que é de César, e a Deus o que é de Deus"; Cristo não lhes disse nada sobre como distinguir um do outro; eles não queriam saber isso.

Quando converso com os mais livres dentre os meus vizinhos, percebo que, independentemente do que digam a respeito da grandeza e da seriedade do problema e de sua preocupação com a tranquilidade pública, no fim das contas tudo se reduz ao seguinte: eles não podem abrir mão da protecção do governo actual e temem as consequências que a sua rebeldia provocaria nas suas propriedades e famílias. Da minha parte, não gosto de imaginar que possa vir algum dia a depender da protecção do Estado. Mas se eu negar a autoridade do Estado quando ele apresenta a minha conta de impostos, ele logo confiscará e dissipará a minha propriedade e tratará de me hostilizar e à minha família para sempre. Essa é uma perspectiva muito dura. Isso torna impossível uma vida que seja simultaneamente honesta e confortável em aspectos exteriores. Não valeria a pena acumular propriedade; ela certamente se perderia de novo. O que se tem a fazer é arrendar alguns alqueires ou ocupar uma terra devoluta, cultivar em pequena escala e consumir logo toda a sua produção. Você tem que viver dentro de si mesmo e depender de si mesmo, sempre de mala feita e pronto para recomeçar; você não deve desenvolver muitos vínculos. Até mesmo na Turquia você pode ficar rico, se em tudo for um bom súdito do governo turco. Confúcio disse: «Se um Estado é governado pelos princípios da razão, a pobreza e a miséria são factos acabrunhantes; se um Estado não é governado pelos princípios da razão, a riqueza e as honrarias são os factos acabrunhantes". Não! Até que eu solicite um remoto porto sulino, que a protecção do Estado de Massachusetts me seja estendida com o fim de preservar a minha liberdade, ou até que eu me dedique apenas a construir pacificamente um património aqui no meu Estado, posso negar a minha lealdade ao governo local e negar o seu direito à minha propriedade e à minha vida. Sai mais barato, em todos os sentidos, sofrer a penalidade pela desobediência do que obedecer. Obedecer faria com que eu me sentisse diminuído.

Há alguns anos o Estado procurou-me em nome de uma organização religiosa e intimou-me a pagar uma certa quantia destinada a sustentar um pregador que o meu pai costumava frequentar; eu nunca o tinha visto. "Pague ou será trancado na cadeia", disse o Estado. Eu recusei-me a pagar. Infelizmente, no entanto, outro homem achou melhor fazer o pagamento em meu nome. Não consegui descobrir por que o mestre-escola deveria pagar imposto para sustentar o clérigo e não o clérigo contribuir para o sustento do mestre-escola; pois eu não era mestre-escola do Estado, e sustentava-me com subscrições voluntárias. Não vi o motivo pelo qual o liceu não devesse apresentar a sua conta de impostos e fazer com que o Estado apoiasse, junto com a organização religiosa, essa sua pretensão. No entanto, os conselheiros municipais pediram-me e eu concordei em fazer uma declaração por escrito cuja redacção ficou mais ou menos assim: "Saibam todos quantos esta declaração lerem que eu, Henry Thoreau, não desejo ser considerado integrante de qualquer sociedade organizada à qual não tenha aderido". Entreguei o texto ao secretário da municipalidade. Deve estar com ele até hoje. Sabendo portanto que eu não queria ser considerado membro daquela organização religiosa, o Estado nunca mais me fez uma exigência parecida; ele considerava, no entanto, que estava certo e que deveria continuar a operar a partir dos pressupostos originais com que me abordou. Se fosse possível saber os seus nomes, eu teria desligado-me minuciosamente, na mesma ocasião, de todas as organizações das quais não era membro; mas não soube onde encontrar uma lista completa delas.

Há seis anos que não pago o imposto per capita. Fui encarcerado certa vez por causa disso, e passei uma noite preso; enquanto o tempo passava, fui observando as paredes de pedra sólida com dois ou três pés de espessura, a porta de madeira e ferro com um pé de espessura e as grades de ferro que dificultam a entrada da luz, e não pude deixar de perceber a idiotice de uma instituição que me tratava como se eu fosse apenas carne e sangue e ossos a serem trancafiados. Fiquei especulando que ela devia ter concluído, finalmente, que aquela era a melhor forma de me usar e, também, que ela jamais cogitara de se aproveitar dos meus serviços de alguma outra maneira. Vi que apesar da grossa parede de pedra entre mim e os meus concidadãos, eles tinham uma muralha muito mais difícil de vencer antes de conseguirem ser tão livres quanto eu. Nem por um momento me senti confinado, e as paredes pareceram-me um desperdício descomunal de pedras e argamassa. O meu sentimento era de que eu tinha sido o único dos meus concidadãos a pagar o imposto. Estava claro que eles não sabiam como lidar comigo e que se comportavam como pessoas pouco educadas. Havia um erro crasso em cada ameaça e em cada saudação, pois eles pensavam que o meu maior desejo era o de estar do outro lado daquela parede de pedra. Não pude deixar de sorrir perante os cuidados com que fecharam a porta e trancaram as minhas reflexões - que os acompanhavam porta afora sem delongas ou dificuldade; e o perigo estava de facto contido nelas. Como eu estava fora do seu alcance, resolveram punir o meu corpo; agiram como meninos incapazes de enfrentar uma pessoa de quem sentem raiva e que então dão um chuto no cachorro do seu desafecto. Percebi que o Estado era um idiota, tímido como uma solteirona às voltas com a sua prataria, incapaz de distinguir os seus amigos dos inimigos; perdi todo o respeito que ainda tinha por ele e passei a considerá-lo apenas lamentável.

Portanto, o Estado nunca confronta intencionalmente o sentimento intelectual ou moral de um homem, mas apenas o seu corpo, os seus sentidos. Ele não é dotado de génio superior ou de honestidade, apenas de mais força física. Eu não nasci para ser coagido. Quero respirar da forma que eu mesmo escolher. Veremos quem é mais forte. Que força tem uma multidão? Os únicos que podem me coagir são os que obedecem a uma lei mais alta do que a minha. Eles obrigam-me a ser como eles. Nunca ouvi falar de homens que tenham sido obrigados por multidões a viver desta ou daquela forma. Que tipo de vida seria essa? Quando defronto um governo que me diz "A bolsa ou a vida!", por que deveria apressar-me em lhe entregar o meu dinheiro? Ele talvez esteja passando por um grande aperto, sem saber o que fazer. Não posso ajudá-lo. Ele deve cuidar de si mesmo; deve agir como eu ajo. Não vale a pena choramingar sobre o assunto. Não sou individualmente responsável pelo bom funcionamento da máquina da sociedade. Não sou o filho do maquinista. No meu modo de ver quando sementes de carvalho e de castanheira caem lado a lado, uma delas não se retrai para dar vez à outra; pelo contrário, cada uma segue as suas próprias leis, e brotam, crescem e florescem da melhor maneira possível, até que uma por acaso acaba superando e destruindo a outra. Se uma planta não pode viver de acordo com a sua natureza, então ela morre; o mesmo acontece com um homem.

A noite que passei na prisão, além de uma novidade, foi também bem interessante. Os prisioneiros, em mangas de camisa, distraíam-se conversando na entrada, aproveitando o vento fresco da noite; assim estavam quando me viram chegar. Mas o carcereiro disse-lhes: "Venham, rapazes, já é hora de trancar as portas"; ouvi o barulho dos seus passos enquanto caminhavam para os seus compartimentos vazios. O carcereiro apresentou-me o meu companheiro de cela, qualificando-o como "um sujeito de primeira e um homem esperto”. Trancada a porta, ele mostrou-me o cabide onde deveria pendurar o meu chapéu e explicou-me como administrava as coisas por ali. As celas eram caiadas uma vez por mês; a nossa cela, pelo menos, era o apartamento mais branco, de mobiliário mais simples e provavelmente o mais limpo de toda a cidade. Naturalmente ele quis saber de onde eu vinha e por que eu tinha ido parar ali; quando lhe contei a minha história, foi minha a vez de lhe perguntar a sua, na suposição evidente de que ele era um homem honesto; e, da maneira que as coisas estão, acredito que ele de facto era um homem honesto. Ele disse: «Ora, acusam-me de ter incendiado um celeiro; mas não fui eu". Pelo que pude perceber, ele provavelmente fora deitar-se, bêbado, para dormir num celeiro, não sem antes fumar o seu cachimbo; e assim perdeu-se no fogo um celeiro. Ele tinha a fama de ser um homem esperto, e ali aguardava havia três meses o seu julgamento; tinha outros três meses a esperar ainda; mas estava bem cordato e contente, já que não pagava pela casa e comida e se considerava bem tratado.

Ele ficava ao lado de uma janela, e eu junto à outra; percebi que se alguém ficasse por ali por muito tempo acabaria tendo por actividade principal olhar pela janela. Em pouco tempo eu tinha lido os folhetos que encontrara, e fiquei observando os locais por onde antigos prisioneiros tinham fugido, vi onde uma grade tinha sido serrada e ouvi a história de vários hóspedes anteriores daquele aposento; pois acabei descobrindo que até mesmo ali circulavam histórias e tagarelices que não conseguem atravessar as paredes da cadeia. Essa é provavelmente a única casa na cidade onde se escrevem poesias que são publicadas em forma de circular, mas que não chegam a virar livros. Mostraram-me uma grande quantidade de poesias feitas por alguns jovens cuja tentativa de fuga tinha sido frustrada; eles vingavam-se declamando os seus versos.

Tirei tudo o que pude do meu companheiro de cela, pois temia nunca mais tornar a encontrá-lo; mas finalmente ele indicou-me a minha cama e deixou para mim a tarefa de apagar a lamparina. Ficar ali deitado por uma única noite foi como viajar a um país distante, um país que eu nunca teria imaginado visitar. Pareceu-me que nunca antes ouvira o relógio da cidade dar as horas ou os ruídos nocturnos da aldeia; isso porque dormíamos com as janelas abertas, janelas estas instaladas por dentro das grades. Era como contemplar a minha aldeia natal à luz da Idade Média, e o nosso familiar rio Concord transformou-se na torrente de um Reno; à minha frente desfilaram visões de cavaleiros e castelos. As vozes que ouvia nas ruas eram dos antigos burgueses. Fui espectador e testemunha involuntária de tudo o que se fazia e dizia na cozinha da vizinha hospedaria local - uma experiência inteiramente nova e rara para mim. Tive uma visão bem mais íntima da minha cidade natal. Eu estava razoavelmente perto da sua alma. Nunca antes vira as suas instituições. Essa cadeia é uma das suas instituições peculiares, pois Concord é a sede do condado. Comecei a compreender o que preocupa os seus habitantes.

Quando chegou a manhã, o nosso desjejum foi empurrado para dentro da cela através de um buraco na porta; era servido numa vasilha de estanho ajustada ao tamanho do buraco e consistia numa porção de chocolate com pão preto; junto vinha uma colher de ferro. Quando do lado de fora pediram a devolução das vasilhas, a minha inexperiência foi tanta que coloquei de volta o pão que não comera; mas o meu companheiro pegou o pão e aconselhou-me a guardá-lo para o almoço ou para o jantar. Pouco depois, deixaram que ele saísse para trabalhar num campo de feno das vizinhanças, para onde se deslocava todos os dias; não voltaria antes do meio-dia; ele então deu-me bom-dia e disse que duvidava que nos víssemos de novo.

Quando saí da prisão - pois alguém interferiu e pagou o meu imposto -, percebi diferenças, não as grandes mudanças no dia-a-dia notadas por aqueles aprisionados ainda jovens e devolvidos já trôpegos e grisalhos. Ainda assim uma nova perspectiva tinha-se instalado no meu modo de ver a cidade, o Estado e o país, representando uma mudança maior do que se fosse causada pela mera passagem do tempo. Vi com clareza ainda maior o Estado que habitava. Vi até que ponto podia confiar nos meus conterrâneos como bons vizinhos e amigos; e percebi que a sua amizade era apenas para os momentos de tranquilidade; senti que eles não têm grandes intenções de proceder correctamente; descobri que, tal como os chineses e malaios, eles formam uma raça diferente da minha, por causa dos seus preconceitos e superstições; constatei que eles não arriscam a si mesmos ou a sua propriedade nos seus actos de sacrifício pela humanidade; vi que, no fim das contas, eles não são tão nobres a ponto de conseguir tratar o ladrão de forma diferente do que este os trata; e que só querem salvar as suas almas, através de acções de efeito, de algumas orações e da eventual observação dos limites particularmente estreitos e inúteis de um caminho de rectidão. É possível que esteja proferindo um julgamento duro sobre os meus vizinhos, pois acredito que a maioria deles não sabe que existe na sua cidade uma instituição tal como a cadeia.

Antigamente, na nossa aldeia, havia o costume de saudar os pobres endividados que saíam da cadeia olhando-os através dos dedos dispostos em forma das barras de uma janela de prisão; e perguntava-se ao recém-liberto: “Como vai?" Não recebi essa saudação dos meus conhecidos, que primeiro me encaravam e depois entreolhavam-se, como se eu acabasse de voltar de uma longa viagem. Eu tinha sido preso quando me dirigia ao sapateiro para buscar uma bota consertada. Quando fui solto na manhã seguinte, resolvi retomar o que estava fazendo e, depois de calçar a tal bota, juntei-me a um grupo que pretendia colher frutas silvestres e me queria como guia. E em pouco mais de meia hora - pois logo recebi um cavalo arreado - chegamos ao topo de um dos nossos mais altos morros, onde abundavam frutas silvestres, a três quilómetros da cidade; e dali não se podia ver o Estado em lugar nenhum.

Esta é a história completa das “Minhas prisões''.

Nunca me recusei a pagar o imposto referente às estradas, pois a minha vontade de ser um bom vizinho é tão grande quanto a de ser um péssimo súdito; no que toca à sustentação das escolas, actualmente faço a minha parte na tarefa de educar os meus conterrâneos. Não é um item particular dos impostos que me faz recusar o pagamento. Quero apenas negar lealdade ao Estado, quero me retirar e me manter efectivamente indiferente a ele. Não me importo em seguir a trajectória do dólar que paguei - mesmo se isso fosse possível -, até o ponto em que ele contrata um homem ou compra uma arma para matar um homem; o dólar é inocente. O que me importa é seguir os efeitos da minha lealdade. Na verdade, eu silenciosamente declaro guerra ao Estado, à minha moda, embora continue a usá-lo e a tirar vantagem dele enquanto puder, como costuma acontecer nestas situações.

Se outros resolvem pagar o imposto que o Estado me exige, nada mais fazem além do que já fizeram quando pagaram o seu imposto, ou melhor, estimulam a injustiça além do limite que o Estado lhes pediu. Se eles pagam o imposto alheio a partir de um equivocado interesse pela sorte daquele que não paga, para salvar a sua propriedade ou para evitar o seu encarceramento, isso só ocorre porque não meditaram seriamente no quanto estão permitindo que os seus sentimentos particulares interfiram no bem geral.

Esta, portanto, é minha posição actual. Mas não se pode ficar exageradamente de sobreaviso numa circunstância dessas, pelo risco de que tal atitude seja desviada pela obstinação ou pela preocupação indevida para com a opinião do próximo. Que cada um cuide de fazer apenas o que lhe cabe, e só no momento certo.

Por vezes penso assim: ora, esse povo tem boas intenções, mas é ignorante; ele faria melhor se soubesse como agir; por que incomodar os meus vizinhos e forçá-los a tratar-me de uma forma contrária às suas inclinações? Mas depois penso: não há motivo para proceder como eles ou para permitir que mais pessoas sofram outros tipos de dor. E digo ainda a mim mesmo: quando muitos milhões de homens, sem paixão, sem hostilidade, sem sentimentos pessoais de qualquer tipo, lhe pedem apenas uns poucos xelins, sem que a sua natureza lhes possibilite retirar ou alterar a sua exigência actual e sem a possibilidade de você, por seu lado, fazer um apelo a outros milhões de homens, por que você deveria se expor a tal força bruta avassaladora? Você não resistirá ao frio e à fome, aos ventos e às ondas com tanta obstinação; você submete-se pacificamente a mil imposições similares. Você não coloca a cabeça na fogueira. Mas exactamente na medida em que não considero esta força inteiramente bruta - e sim uma força parcialmente humana - e em que avalio que mantenho relações com esses milhões e com outros muitos milhões de homens - que não são apenas coisas brutas ou sem vida -, vejo também que é possível a apelação: em primeira instância e de pronto, eles podem apelar ao Criador; em segunda instância, podem apelar uns aos outros. Mas se ponho a minha cabeça no fogo de propósito não há apelo possível a ser feito ao fogo ou ao Criador do fogo, e sou o único culpado pelas consequências. Se eu conseguisse convencer-me de que tenho algum direito a me sentir satisfeito com os homens tal como eles são, e a tratá-los de acordo com isso e não parcialmente de acordo com as minhas exigências e expectativas de como eles e eu mesmo deveríamos ser, então, como bom muçulmano e fatalista, eu teria que me esforçar para ser feliz com as coisas como elas são e proclamar que tudo se passa segundo a vontade de Deus. E, acima de tudo, há uma diferença entre resistir a essa força e a uma outra puramente bruta ou natural: a diferença é que posso resistir a ela com alguma efectividade. Não posso esperar mudar a natureza das pedras, das árvores e dos animais, tal como Orfeu.

Não quero polemizar com qualquer homem ou nação. Não quero fazer filigranas, estabelecer distinções elaboradas ou colocar-me numa situação superior à dos meus vizinhos. Estou a buscar, posso admitir, até mesmo uma desculpa para aceitar as leis do país. Estou preparado até demais para obedecer a elas. Neste particular tenho motivos para suspeitar de mim mesmo; e a cada ano, quando se aproxima a época da visita do colector de impostos, surpreendo-me disposto a revisar os actos e as posições do governo central e do governo estadual, a rever o espírito do povo, para descobrir um pretexto para a obediência. Acredito que logo o Estado será capaz de aliviar-me de todos os encargos deste tipo e então não serei mais patriota do que o resto dos meus conterrâneos. Encarada de um ponto de vista menos elevado, a Constituição, com todos os seus defeitos, é muito boa; a lei e os tribunais são muito respeitáveis; mesmo o Estado de Massachusetts e o governo dos Estados Unidos da América são, em muitos aspectos, coisas admiráveis e bastante raras, pelas quais devemos ser gratos, tal como nos disseram muitos estudiosos das nossas instituições. Mas se elevarmos um pouco o nosso ponto de vista, elas mostram-se tais como as descrevi; e indo mais além, até chegarmos ao mais alto, quem será capaz de dizer o que são elas, ou quem poderá dizer que sequer vale a pena observá-las ou reflectir sobre elas?

Entretanto, não me preocupo muito com o governo, e quero dedicar a ele o menor número possível de reflexões. Mesmo no mundo tal como é agora, não passo muitos momentos sujeito a um governo. Se um homem é livre de pensamento, livre para fantasiar, livre de imaginação, de modo que aquilo que nunca é lhe parece ser na maior parte do tempo, governantes ou reformadores insensatos não são capazes de lhe criar impedimentos fatais. Sei que a maioria dos homens pensa de maneira diferente de mim; mas não estou nem um pouco mais satisfeito com os homens que se dedicam profissionalmente a estudar estas questões e outras parecidas. Pelo facto de se colocarem tão integralmente dentro da instituição, os homens de Estado e os legisladores nunca conseguem encará-la nua e cruamente. Eles gostam de falar sobre mudanças na sociedade, mas não têm um ponto de apoio situado fora dela. Pode ser que haja entre eles homens de certa experiência e critério e evidentemente capazes de criar sistemas engenhosos e até úteis, pelos quais lhes devemos gratidão; mas todo o seu génio e toda a sua utilidade não ultrapassam certos limites relativamente estreitos. Eles tendem a esquecer que o mundo não é governado através de decisões e conveniências. Webster nunca chega aos bastidores do governo e, por isso, não pode ser uma autoridade no assunto. As suas palavras são sábias apenas para os legisladores que não cogitam de qualquer reforma essencial no governo existente; para as exigências dos pensadores e dos que fazem leis duradouras, ele nem chega a visualizar o assunto. Conheço algumas pessoas cujas especulações serenas e sábias logo revelariam os limites do alcance e da hospitalidade da imaginação de Webster. Mesmo assim, quando comparadas com as paupérrimas declarações da maioria dos reformadores e com a mentalidade e a eloquência ainda piores dos políticos em geral, as suas palavras são praticamente as únicas que têm valor e revelam sensibilidade; devemos por isso agradecer ao céu por contarmos com Webster. Em termos comparativos, ele é sempre impetuoso, original e, acima de tudo, prático. Mas a sua virtude não é a sabedoria, e sim a prudência. A verdade de um jurista não é a Verdade, mas a consistência, ou uma conveniência consistente. A verdade está sempre em harmonia consigo mesma, e a sua importância principal não é a de revelar a justiça que porventura possa conviver com o mal. Webster bem merece o título pelo qual é conhecido: "Defensor da Constituição". De facto, ele não precisa atacar, mas apenas armar a defesa contra os golpes alheios. Ele não é um líder, e sim um seguidor. Os seus líderes são os constitucionalistas de 1787. Eis as suas próprias palavras: "Nunca tomei e nunca pretendo tomar uma iniciativa; nunca apoiei ou pretendo apoiar uma iniciativa - que vise desmanchar o acordo original pelo qual os diversos Estados formaram a União". Ao comentar a cobertura que a Constituição dá à escravidão, diz ele: "Já que é parte do pacto original, que continue a escravidão". Apesar da sua agudeza e habilidade especiais, ele não consegue isolar um facto das suas relações meramente políticas para contemplá-lo nos termos absolutos exigidos para o seu aproveitamento pelo intelecto - por exemplo, o que se impõe moralmente hoje em dia nos Estados Unidos no tocante a agir frente à escravidão; no entanto, ele arrisca-se ou é levado a formular uma resposta desesperada tal como a que se segue, e insiste que fala em termos absolutos, como um homem particular: "A forma pela qual os governos dos Estados onde existe escravidão decidem regulamentá-la é matéria da sua própria deliberação, pela qual são responsáveis perante os seus cidadãos, perante as leis gerais da propriedade, da humanidade e da justiça, e perante Deus. Quaisquer associações formadas em outro lugar, mesmo oriundas de um sentimento de compaixão humana, ou com qualquer outra origem, nada têm a ver com o assunto. Nunca lhes dei qualquer apoio, e nunca darei". Que novo e original código de obrigações sociais pode ser inferido de palavras como estas? (1) 

Para os que não conhecem as fontes mais puras da verdade, que não querem subir mais pela sua correnteza, a opção - sábia - é interromper a sua busca na Bíblia e na Constituição; será aí que eles a sorverão, com reverência e humildade; mas para aqueles que conseguem perceber que a verdade vem mais de cima e alimenta esse lago ou aquele remanso, é preciso preparar de novo o corpo para continuar a peregrinação, até chegar à nascente.

Ainda não surgiu um homem dotado de génio para legislar no nosso país. Homens assim são raros na história mundial. Oradores, políticos e homens eloquentes existem aos milhares; mas ainda estamos por ouvir a voz do orador capaz de solucionar as complexas questões do dia-a-dia. Amamos a eloquência pelos seus méritos próprios, e não pela sua capacidade de pronunciar uma verdade qualquer, nem pela possibilidade de inspirar algum heroísmo. Os nossos legisladores ainda não aprenderam a distinguir o valor relativo do livre-comércio frente à liberdade, à união e à rectidão. Eles não têm génio ou talento nem para as questões relativamente simplórias dos impostos, das finanças, do comércio e da indústria, da agricultura. A América do Norte não conseguiria manter por muito tempo a sua posição entre as nações se fôssemos abandonados à esperteza palavrosa dos congressistas; felizmente contamos com a experiência madura e com os protestos efectivos do nosso povo. Talvez não tenha o direito de afirmar isto, mas o Novo Testamento foi escrito há mil e oitocentos anos; no entanto onde encontrar o legislador suficientemente sábio e prático para se aproveitar de tudo o que esse texto ensina sobre a ciência da legislação?

A autoridade do governo, mesmo do governo ao qual estou disposto a me submeter - pois obedecerei com satisfação aos que saibam e façam melhor do que eu e, sob certos aspectos, obedecerei até aos que não saibam nem façam as coisas tão bem -, é ainda impura; para ser inteiramente justa, ela precisa contar com a sanção e com o consentimento dos governados. Ele não pode ter sobre a minha pessoa e meus bens qualquer direito puro além do que eu lhe concedo. O progresso de uma monarquia absoluta para uma monarquia constitucional, e desta para uma democracia, é um progresso no sentido do verdadeiro respeito pelo indivíduo. Será que a democracia tal como a conhecemos é o último aperfeiçoamento possível em termos de construir governos? Não será possível dar um passo a mais no sentido de reconhecer e organizar os direitos do homem? Nunca haverá um Estado realmente livre e esclarecido até que ele venha a reconhecer no indivíduo um poder maior e independente - do qual a organização política deriva o seu próprio poder e a sua própria autoridade - e até que o indivíduo venha a receber um tratamento correspondente. Fico imaginando, e com prazer, um Estado que possa enfim se dar ao luxo de ser justo com todos os homens e de tratar o indivíduo respeitosamente, como um vizinho; imagino um Estado que sequer consideraria um perigo à sua tranquilidade a existência de alguns poucos homens que vivessem à parte dele, sem nele se intrometerem nem serem por ele abrangidos, e que desempenhassem todos os deveres de vizinhos e de seres humanos. Um Estado que produzisse esta espécie de fruto, e que estivesse disposto a deixá-lo cair logo que amadurecesse, abriria caminho para um Estado ainda mais perfeito e glorioso; já fiquei a imaginar um Estado desses, mas nunca o encontrei em qualquer lugar.

Nota

(1) Inseri estes trechos do discurso de Webster depois de ter proferido a conferência. Nota do autor. 

Fonte


Civil Disobedience, originally published as "Resistance to Civil Government" by Henry David Thoreau (1849) with annotated text. Thoreau Reader: http://thoreau.eserver.org/spanishcivil.html Desobediencia Civil - Spanish translation by Hernando Jiménez

samedi 26 septembre 2015

O espectro do vermelho

O ESPECTRO DO VERMELHO, Uma leitura teológica do socialismo no Partido dos Trabalhadores, a partir de Paul Tillich e Enrique Dussel é uma tese sobre os componentes teológicos encontrados no pensamento socialista no Partido dos Trabalhadores.

Defesa de tese apresentada – Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião, Universidade Metodista de São Paulo, São Bernardo do Campo, 22 de dezembro de 2011.
Professor Dr. Jorge Pinheiro

HIPÓTESES

Nossa hipótese central a ser demonstrada é que a religião e mais precisamente o cristianismo foram componentes fundamentais na formação do pensamento socialista do Partido dos Trabalhadores. Essa hipótese tem dois desdobramentos necessários: em primeiro lugar, qual é o sentido teológico de um partido socialista que se forma desta maneira? E, na seqüência, somos obrigados a nos perguntar: é possível, teologicamente, demonstrar a importância disso? 

A partir da hipótese central, e de seus dois desdobramentos teológicos, trabalhamos com duas outras hipóteses, de caráter mais factual e histórico, de que um tipo de socialismo religioso predominou no conjunto do pensamento petista, fazendo com que as propostas marxistas e leninistas de organização partidária e de transformação radical da sociedade, fundamentadas na teoria da luta de classes e da tomada violenta do poder, fossem deslocadas no correr dos primeiros vinte anos de construção do PT.

Assim, tal socialismo deixou de defender o partido único, o centralismo democrático, a ditadura do proletariado e a tomada violenta do poder. E passou a levantar a bandeira da expansão da democracia e da solução de problemas brasileiros historicamente pendentes, como a questão da terra, do trabalho e da liberdade cidadã, porque a visão cristã de justiça social foi a que prevaleceu no ideário socialista do pensamento petista.

Acreditamos explicitar tais hipóteses ao responder o que o socialismo do Partido dos Trabalhadores tem a ver com a religião. Ou seja, em que medida o desenvolvimento do pensamento socialista dentro do Partido dos Trabalhadores pode ter uma releitura teológica?

As hipóteses apresentadas aqui partem da constatação já amplamente estudada, de que a Teologia, enquanto hermenêutica dos universos simbólicos, permite uma abordagem do problema do poder. Duas perspectivas são fundamentais nessa leitura teológica: a antropológica política, que percebe o simbólico como fundante da vida social, e a ética que, ao dar ênfase às instituições, pensa a relação entre instituições e estruturas políticas.

Acreditamos que os estudos desenvolvidos por Paul Tillich, assim como por Enrique Dussel, nos dão instrumentos para uma compreensão teológica da realidade política, quer a partir de uma leitura das raízes antropológicas, no caso de Paul Tillich, quer ética, no caso de Enrique Dussel.

Definido o campo motivacional dos autores, temos razões, instrumental e referências em que nos basear para desenvolver o trabalho ora proposto. E mais do que isso, levando em conta a riqueza do momento histórico vivido por nosso país, tanto em relação à consolidação da democracia, quanto em relação às perspectivas de construção de futuro, acreditamos ser este um momento especial e favorável para o desenvolvimento da tese proposta.

Dessa maneira, a análise teológica proposta parte do universo simbólico cristão e socialista como fundante do pensamento político e da vida militante dentro do Partido dos Trabalhadores como abordagens do problema do poder em suas relações com estes universos simbólicos.

REFERENCIAL TEÓRICO

Este trabalho toma como ponto de partida para o balizamento da tese dois pensadores: o teólogo e filósofo da cultura Paul Tillich e o teólogo e filósofo da libertação Enrique Dussel. O primeiro desenvolveu uma extensa produção sobre socialismo e religião nos anos que antecederam a II Guerra Mundial.

A teologia para Paul Tillich relaciona pólos, a mensagem cristã e a interpretação dessa mensagem, que deve levar em conta a situação daqueles a quem ela se destina. Situação, aqui, são “as formas científicas e artísticas, econômicas, políticas e éticas, nas quais [os indivíduos e grupos] exprimem as suas interpretações da existência”.[1]

Nesse sentido, a teologia deve dar respostas às perguntas implícitas na situação, não enquanto soluções definitivas, mas no sentido de procurar sínteses. Para isso, utiliza o método da correlação, ou seja, a análise da situação humana, de forma que venham à tona perguntas; e a individuação das respostas nos fatos reveladores, possibilitando respostas correlatas às perguntas colocadas pela própria existência.

A partir daí nos vemos diante da pergunta: que sentido tem a história? Tillich nega o negativismo fundamentalista que não vê sentido na história, mas também vai além do progresso intra-histórico, quer iluminista, quer marxiano. Para ele, o cristianismo propõe um símbolo religioso, o do reino de Deus, que deve ser interpretado como dimensão histórica e dimensão trans-histórica. Dessa maneira, o sentido da história está na manifestação do reino de Deus, quer enquanto reino da salvação em contraposição à história do mundo, quer enquanto diretrizes e movimento em direção à plenitude da história, que em sua dimensão transcendente e trans-histórica é a vida eterna[2].

Perguntas acerca das situações e respostas teológicas estão ligadas à existência. Por isso, ao analisar a questão do socialismo, Tillich faz uma teologia política onde seu referencial primeiro é o ser. Nesse sentido, podemos dizer que faz uma fenomenologia política quando analisa questões como o ser, a origem do pensamento político enquanto mito, e a partir daí procura trazer à tona os elementos não reflexivos do pensamento político. E é a partir da análise do pensamento político que Tillich vai explicar o surgimento da democracia e do socialismo.

Para Tillich, a distância que separa o ser e a consciência é necessária para que o ser se eleve à consciência. A consciência supõe não somente uma ligação ao ser, mas também um distanciamento que permita reflexão.

Normalmente, esta tarefa se cumpre com ajuda do conceito de essência. Desde Platão, a relação entre essência e fenômeno domina no Ocidente a teoria do conhecimento. Porém a lógica da essência não é suficiente para explicar as realidades históricas. A essência de um fenômeno histórico é uma abstração vazia, de onde se expulsou a força viva de história.

Assim, Tillich vai buscar a essência do socialismo na própria história e nos mitos que lhe deram origem. Em A Decisão Socialista[3], afirmará que o socialismo é um movimento de oposição, um movimento de oposição à sociedade burguesa, mas enquanto mediação, uniu-se à sociedade burguesa na oposição às formas feudais e patriarcais de sociedade. Entender esta raiz do socialismo ajudaria a entender as raízes do pensamento político que lhe deram origem. Tillich parte de uma teologia política onde seu referencial primeiro é o ser.

Mas para Tillich, não se pode entender o socialismo caso não se experimente a exigência de sua justiça como uma exigência do incondicionado. Quem não é confrontado pelo socialismo não pode falar do socialismo, a não ser enquanto expressão que vem do exterior[4]. Não pode falar dele em verdade, porque é contrário às tendências políticas que defende. Aí está o nó da origem.

Um dos conceitos trabalhados por Tillich é especialmente importante para a construção de nosso referencial teórico: o de socialismo religioso. O socialismo religioso, teorizado por Paul Tillich, parte da consideração de que as forças demoníacas da injustiça, do orgulho e da vontade de poder jamais serão completamente erradicadas da história. Como conseqüência, o socialismo religioso acredita que a corrupção da situação humana[5] tem raízes mais profundas do que as meras estruturas históricas e sociológicas. Estão encravadas nas profundezas do coração humano.[6]

Para o socialismo religioso, por isso, o momento decisivo da história não foi o surgimento do proletariado, mas o aparecimento do novo sentido da vida na automanifestação de Deus. Essa é uma diferença central com o pensamento de Karl Marx e do marxismo posterior. Para Tillich, é tarefa do socialismo religioso fazer a crítica, trazer à tona as questões últimas e decisivas da sociedade. Assim, o socialismo religioso se faz radical e revolucionário, porque vê a crise social do ponto de vista do incondicionado e a partir do espírito do profetismo e com os métodos do marxismo é capaz de entender e transcender o mundo atual.[7]

Assim, o caminho percorrido por Tillich nos fornece elementos para a construção de parte do instrumental teórico proposto neste trabalho.

Mas, por olhar a realidade a partir de um momento específico da história, que se dá na Europa, entre as duas guerras mundiais, faltaria nesta abordagem teológica de Paul Tillich o olhar latino-americano que, mesmo reconhecendo as estruturas comuns à história do pensamento político, indicassem novos aspectos e movimentos, entre os quais a presença cristã, institucional e invisível, na sociedade brasileira. Tal desafio nos levou a Enrique Dussel.

Na teologia de Enrique Dussel há uma questão de fundo que é a exploração dos povos periféricos. Exploração e dominação, para Dussel, acontecem quando o mesmo fecha-se em si, torna-se auto-suficiente, etnocêntrico, e não aceita o outro, a alteridade. Para o teólogo e filósofo da libertação, o outro não é percebido, já que na ontologia da totalidade não há espaço para o outro, que significa não-ser, negatividade.

Contra a lógica que não aceita a exterioridade, Dussel propõe a organização do discurso a partir da liberdade do outro.[8] Por isso, para ele, o discurso deve partir da analética: aqui o outro se apresenta como alteridade, pois irrompe como estranho, diferente, excluído, que está fora do sistema e grita por justiça.

Para Dussel, analético é o fato real pelo qual o ser humano, grupo ou povo se situa sempre além do horizonte da totalidade. O momento analético é o ponto de apoio de novos desdobramentos. Entretanto, o ponto de partida de seu discurso metódico é a exterioridade do outro. Como uma alternativa à dialética que trabalha com a contradição, a identidade e a diferença, o seu princípio não é o de identidade, mas da separação, distinção.

O momento analético do método dialético metafísico segue uma seqüência: a totalidade é posta em questão pela interpelação provocativa do outro. Escutar sua palavra é ter consciência ética, é aceitar a palavra interpelante por respeito à pessoa que fala; por não poder interpretá-la adequadamente. É lançar-se à práxis do excluído.[9]

Assim, a analética tem origem não na ordem estabelecida da totalidade, mas no outro.

Para Dussel, a ontologia, a partir do Iluminismo, não se baseou na relação pessoa-pessoa, mas na relação sujeito-objeto. Essa ontologia de uma só pessoa levou ao discurso solipsista. O olhar europeu colocou-se como superioridade em relação ao outro, externo, primitivo e subalterno, o que conduziu à colonização das vidas nas Américas.

A América Latina, afirma Dussel, foi e é marcada pela exploração. Desde a colonização seus habitantes, nativos ou não, foram desrespeitados como povos e culturas. Tal situação tem justificação teórica: o outro é revestido da impessoalidade do inimigo, do estranho, do inferior. Donde, não há problema se for exterminado, já que este outro está fora da totalidade. Nada acrescenta ou diminuiu à totalidade.

Este mal é transmitido de geração em geração. A prática histórica ganha característica de lei. Por isso, apesar de injusta, a exploração se torna legal. Para Dussel, a legalidade não pode ser o fundamento da moralidade[10]. Toda prática justa deve ir além do pré-estabelecido, da ontologia da totalidade, além da ordem legal vigente. A origem de uma moralidade justa não está no mesmo, mas no outro. A prática originada no mesmo é uma prática alienante, opressora e dominadora.

Dussel afirma em América Latina Dependência e Libertação que na passagem diacrônica, desde o ouvir a palavra do outro até a adequada interpretação, pode-se ver que o momento ético é essencial ao método. Somente pelo compromisso existencial, pela práxis libertadora no risco, por um fazer próprio, o mundo do outro, pode-se ter acesso à interpretação, conceituação e verificação de sua revelação.[11]

Dessa maneira, só aparentemente o pensamento europeu antepôs a teoria à práxis, pois o eu colonizo, o eu conquisto precedem o ego cogito, afirma Dussel. A exploração e a opressão criaram as condições históricas das quais nasceu uma filosofia da justificação e do ocultamento, uma falsa consciência da realidade. A práxis da dominação formou a subjetividade do conquistador: o eu moderno é livre, violento e imperial.

O pensamento eurocêntrico e sua extensão estadunidense ocultam o conceito emancipador de modernidade como saída do estado de menoridade. O que traduz a justificação da práxis de violência por parte de culturas que se autocompreendem como desenvolvidas. Esta superioridade impôs o desenvolvimento monolinear, proposto pela modernidade e agora pela globalização, aos povos “primitivos e grosseiros”. [12]

Podemos dizer que em Tillich, enquanto herdeiro de Hegel e do jovem Marx, a práxis é a mediação entre a ontologia e a efetivação do real. Esta correlação, que em Tillich vai virar método, é a procura da superação das dialéticas anteriores, que tratavam do conhecimento do ser e de suas manifestações fora da práxis histórica. Dussel também faz este trânsito, quando constrói uma dialética que não será hegeliana, nem marxista no sentido clássico, mas procurará correlacionar lógica, ontologia e metodologia na dinâmica da práxis.

Assim, Dussel busca uma ontologia que será refundada no sentido da metodologia e da lógica. Essa correlação com a exterioridade vai caracterizar a mobilidade da filosofia dusseliana da libertação, que por isso será uma filosofia da práxis.

Desenvolve, pois, o estudo da correlação entre exterioridade e ontologia face à dinâmica da práxis, tratando das formulações de método que acompanham a superação dos horizontes ontológicos. Dessa maneira, coloca a afirmação da exterioridade como fonte anterior às exigências da ontologia, fazendo o caminho inverso ao de Tillich, mas chegando a um cruzamento comum: a ética.

Por isso consideramos oportuno utilizar os dois pensadores, não apenas como complementares, mas enquanto referenciais que nos permitem analisar a articulação das categorias que possibilitam compreender os diversos momentos de elaboração do pensamento socialista no Partido dos Trabalhadores.

RESUMO DOS CAPÍTULOS

O primeiro capítulo da tese começa com a redemocratização do Brasil em 1945, o surgimento de novos partidos e a legalização do Partido Comunista Brasileiro, PCB. Analisa a polarização do campo socialista, com o PCB por um lado e o Partido Socialista Brasileiro, PSB, por outro, já que os dois partidos traduziam visões diferentes de socialismo.

Mostra como esses vinte anos da história do Brasil, conhecidos como a era dos partidos, desembocaram no golpe militar de 1964, abrindo uma outra era em que as liberdades democráticas e cidadãs passaram a estar sob a tutela de uma doutrina de segurança nacional fruto da divisão do mundo em dois blocos e da guerra fria.

Os capítulos dois e três nos fornecem as bases teóricas para analisar o pensamento político e a relação socialismo e cristianismo no Partido dos Trabalhadores. Nesse sentido, nosso primeiro referencial teórico é Paul Tillich, que nos apresenta elementos para analisar as raízes do pensamento político, do socialismo e de suas relações com o cristianismo.

Da mesma forma, no terceiro capítulo, trabalhamos com Enrique Dussel, cuja teologia parte da exploração da América Latina, considerada continente de terceira classe pelo primeiro mundo, nos dá elementos para uma análise da luta dos excluídos e do socialismo a partir do conceito de Outro. Essa leitura teológica do Mesmo -- aquele que se fecha em si, torna-se auto-suficiente, etnocêntrico e não aceita o Outro, a alteridade --, contextualiza e traz para o momento presente a antropologia política de Paul Tillich, elaborada entre duas grandes guerras do século XX na Europa. Assim, ao fazer a crítica da ontologia da totalidade, onde não há espaço para o Outro, pois é não-ser e negatividade, Dussel propõe uma ética da vida que nos remete a Tillich.

Os capítulos quatro e cinco analisam o longo período militar e a atuação dos vários segmentos cristãos à época, mostrando que se por um lado a esquerda clandestina procurava desestabilizar o governo militar, por outro setores expressivos da Igreja católica apoiavam e aderiam cada vez mais abertamente à luta contra o regime. 

Essa resistência levará, no final dos anos 70, às mobilizações sociais e políticas que possibilitaram a que setores da sociedade – entre os quais sindicalistas, cristãos e militantes da esquerda clandestina – viabilizassem a fundação de um Partido dos Trabalhadores. Tal novidade, que traduzia um velho sonho de trabalhadores e socialistas, polarizou a discussão acadêmica: que partido é esse, afinal? Que socialismo é esse do PT? Que relação existe entre socialismo e cristianismo no PT?

Parte das duas primeiras questões foram respondidas, a terceira continua em aberto. Por isso, uma das preocupações da tese está centrada na terceira questão.

No capítulo seis, discute-se, então, o papel da democracia no projeto socialista do PT, constatando como a contribuição da teologia para a compreensão da crise social e política de uma época, no caso de Tillich em relação à crise alemã e à ascensão do nazismo, nos permite analisar as origens do pensamento político no PT.

E da mesma maneira, como a teologia de Dussel, que procurou responder ao desafio de definir os problemas e os caminhos para o diálogo entre as populações excluídas na América Latina, agora nos fornece elementos para compreender o papel e a importância do cristianismo na construção do pensamento socialista no Partido dos Trabalhadores.

JUSTIFICATIVAS

Nos últimos anos, a academia brasileira produziu excelentes estudos sobre o Partido dos Trabalhadores e suas relações com a esquerda brasileira e o socialismo, entre os quais devemos citar os de Clóvis Bueno de Azevedo, Márcia Regina Berbel e Marco Antonio Mondaini de Souza[13]. Estes trabalhos efetuaram análise qualitativa do papel desempenhado pelos diferentes agrupamentos políticos da esquerda na formação do Partido dos Trabalhadores, abrindo caminho para a compreensão do socialismo e da formação do PT para a história das idéias socialistas no Brasil.

Mas no conjunto dos estudos acadêmicos pesquisados não encontramos dissertações ou teses que trabalhem a análise do Partido dos trabalhadores a partir da teologia. Tal ausência na pesquisa acadêmica chama a atenção, pois é fato notório de que a Teologia da Libertação e as Comunidades Eclesiais de Base estiveram presentes na formação do PT, quer fornecendo reflexão teórica, quer participando com militantes e ativistas. É de se perguntar, então, porque tal silêncio. E por extensão se é possível compreender o pensamento e a história do PT sem correlacionar suas propostas sociais com a religião e o cristianismo.

Assim, a partir das fontes primárias de pesquisa, que são a documentação dos encontros e congressos do Partido dos Trabalhadores, e das fontes secundárias de pesquisa, que são a documentação jornalística, o trabalho vai procurar preencher a lacuna existente atualmente na pesquisa acadêmica referente à construção do pensamento democrático e socialista no Partido dos Trabalhadores.

Ao nosso ver, a justificativa da pesquisa fica mais clara quando falamos das Resoluções de Encontros e Congressos de 1979-1998, uma documentação que inclui as resoluções de onze encontros nacionais, dois encontros nacionais extraordinários, assim como as de seu congresso nacional. Como declararam Jorge Almeida, secretário-nacional de Formação Política do PT, e Luiz Soares Dulci, presidente da Fundação Perseu Abramo, em agosto de 1998, “são documentos fundamentais para a história do PT e para qualquer balanço político do Partido, bem como para estudos acadêmicos sobre o PT e a vida partidária brasileira nas décadas recentes”.[14] 

Assim, olhando para a documentação oficial do PT, em especial, Resoluções de Encontros e Congressos, e para a revista trimestral Teoria e Debate, que cobrem vinte anos da história do partido, temos um farto material para a compreensão da história do ideário do PT como um todo e do pensamento socialista em particular. Toda uma geração de militantes leu e tomou as revistas Teoria e Debate como fonte de inspiração.

Isto porque aqueles que se colocaram na brecha das lutas sociais, que se posicionaram ao lado dos excluídos e do movimento dos trabalhadores que começava a se organizar, viam essas revistas teóricas do PT não como leitura de lazer, mas como instrumento para suas ações. Essa literatura faz parte da história do socialismo e da imprensa brasileira. O desvelamento teológico do ideário do Partido dos Trabalhadores através da releitura dessa literatura pode permitir uma nova visão acerca do passado, calçando compromissos e envolvimentos num presente melhor compreendido.

Mas além da justificativa científica, não podemos esquecer a crescente importância do Partido dos Trabalhadores para a sociedade brasileira, assim como para a política nacional. Em termos sociais, o PT surgiu enquanto organização ligada às classes trabalhadoras da cidade e do campo, polarizando, inevitavelmente, a política nacional. A importância social da tese mostra sua relevância, ao analisar o papel da religião no próprio crescimento eleitoral do PT. Um exemplo disso, que na tese será analisado mais detidamente, é o fato de que o PT atua sobre o conjunto da sociedade brasileira modificando padrões sociais anteriormente estabelecidos. Assim, sua inserção nos grotões, através da presença cristã, modificou o perfil do voto conservador e de direita dessas áreas.

Ora, essa importância social nos leva à questão política. Sem mistificar os limites da presença do PT no cenário nacional, podemos dizer que construiu lideranças e desenvolveu uma maneira de fazer política – de diálogo com os setores excluídos e marginalizados da sociedade – senão inédita, ao menos resgatada, já que estava esquecida desde os governos de Vargas e João Goulart.

Dessa maneira, a proposta da tese O ESPECTRO DO VERMELHO, Uma leitura teológica do socialismo no Partido dos Trabalhadores, a partir de Paul Tillich e Enrique Dussel cobra importância política ao analisar a relação do cristianismo com a política brasileira: não mais de maneira periférica, mas através dos conteúdos simbólicos que falam ao conjunto da brasilidade.



[1] Paul Tillich, Systematic Theology I (1951), pp. 3-4.
[2] Esse processo, que parte do eterno e desemboca no eterno, Tillich vai chamar de pan-enteísmo escatológico. In Systematic Theology I (1951), p. 421.
[3] Paul Tillich, A Decisão Socialista, Introdução: As duas raízes do pensamento político, Potsdam 1933, Gesammelte Werke, II, pp. 219-365.
[4] Paul Tillich, La décision socialiste, Potsdam 1933, Gesammelte Werke, II, p.31.
[5] “Como Kierkegaard, Marx fala da situação alienada do homem na estrutura social da sociedade burguesa. Empregava a palavra alienação (entfremdung) não do ponto de vista individual, mas social. Segundo Hegel essa alienação significa a incursão do Espírito absoluto na natureza, distanciando-se de si mesmo. Para Kierkegaard era a queda do homem, a transição, por meio de um salto, da inocência para o conhecimento e para a tragédia. Para Marx era a estrutura da sociedade capitalista”. Paul Tillich, Perspectivas da Teologia Protestante nos séculos XIX e XX, São Paulo, ASTE, 1999, p. 193.
[6] A Era Protestante, op. cit., p. 271.
[7] Idem, op. cit., p. 274.
[8] Osvaldo Luís Golfe, O Mesmo, o Outro, o Ethos Latino-Americano na filosofia de Enrique Dussel in Artigos -- Jung e Pós-Jungianos, www.rubedo.psc.br | Artigos | © Osvaldo Luís Golfe.
[9] Enrique Dussel, Da Ciência à Filosofia da Libertação, in Filosofia da Libertação, São Paulo, Loyola, 1980, pp. 163-164.
[10] Enrique Dussel, Para uma ética da Libertação Latino-americana, Eticidade e Moralidade, p. 85.
[11] Enrique Dussel, América Latina, Dependencia y Liberación, Buenos Aires, Fernando Garcia Cambeiro, 1973, p. 121.
[12] “A palavra desenvolvimentismo indica uma categoria filosófica fundamental, uma posição ontológica pela qual se pensa que o desenvolvimento europeu deverá ser seguido com as mesmas características por qualquer outra cultura. É o movimento necessário, para Hegel; o seu desenvolvimento inevitável. Eurocentrismo e falácia desenvolvimentista são dois aspectos do Mesmo”. Enrique Dussel. El encubrimiento del Otro. Hacia el origen del Mito de la Modernidad, Madri, Ed. Utopia, 1992.
[13] Clóvis Bueno de Azevedo, Leninismo e social-democracia: uma investigação sobre o projeto político do Partido dos Trabalhadores, dissertação de Mestrado, São Paulo, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, 1991; Márcia Regina Berbel, Partido dos trabalhadores: tradição e ruptura na esquerda brasileira (1978-1980), dissertação de Mestrado, São Paulo, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, 1991; Marco Antonio Mondaini de Souza, Da esquerda revolucionária pré-64 ao PT: continuidade e ruptura, dissertação de Mestrado, São Paulo, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, 1995.
[14] Resoluções de Encontros e Congressos, 1979-1998, Ed. Fundação Perseu Abramo, São Paulo, 1999, p. 12.

jeudi 24 septembre 2015

Stálin, cozinheiro...

A sopa de repolho e o cozinheiro de pratos picantes
Jorge Pinheiro

Quando falamos de assassinatos por envenenamento nos lembramos imediatamente de uma jovem chamada Lucrecia, que nasceu em Roma em 1480. E que teve por pai o cardeal Rodrigo Borgia, que mais tarde se tornaria o Papa Alexandre VI, e por mãe Vanozza Cattanei. Embora filha ilegítima, Rodrigo a reconheceu, lhe deu seu sobrenome, e a usou nas mais diferentes intrigas palacianas. Mas, ao contrário do que conta a lenda, seus contemporâneos não viam em Lucrecia Borgia nada mais que uma princesa usada por seu pai e irmão, Cesare Borgia, Il Valentino, em lutas políticas, por ser bela, culta, amante das artes e mulher caridosa.

Por isso, talvez seja melhor falar de filosofia e teologia.

Definir prato picante pode variar, conforme a culinária ou o gosto de cada um. Mas uma coisa permanece nesta idéia : é um prato que chama a atenção por condimentos que excitam o paladar e deixam um gosto marcado na boca. Assim, o escritor Airton Ortiz, por exemplo, tem uma receita de churrasco, onde recomenda que coloquemos «no primeiro espeto um pedaço de lingüiça calabresa, a mais picante que encontrar». Segundo ele, «aprendi a comer pratos picantes na Índia, fiquei contaminado e agora não abro mão da pimenta. Asso-a rapidamente, na labareda mesmo. Ela fica torradinha. Para torrar mais rápido, furo a tripa com um palito, para escorrer a água. Servida no início do churrasco, na hora dos aperitivos, serve especialmente para despertar nos meus convidados o gosto pela cerveja. Mesmo os que não são adeptos do álcool partem imediatamente para um copo estupidamente gelado».[1]

Mas, talvez, um dos pratos picantes mais conhecidos e citados na historiografia da culinária seja o Shchi ou sopa de repolho russa, conforme receita usada e divulgada por Josef Stálin (1929-1953), ex-ditador da União Soviética. O shchi pode ser feito com carne ou sem ela , mas é indispensável o chucrute ou o repolho, ou ambos. Uma recomendação fundamental é que deve sentar e curar no mínimo por um ou dois dias, antes de ser comida. Esta receita que fazia parte do cardápio de Stálin, e era, segundo alguns, seu prato preferido, por causa da presença do chucrute e do repolho, é cheia de sabores e texturas e deve ser comida quente, com pumpernickel ou pão de centeio e manteiga.

É importante dizer que não foi Stálin quem inventou o shchi, pois há evidências de que já era conhecido na Rússia desde antes do ano 988, quando o cristianismo foi aceito. Shchi originariamente significava "comida líquida" e só depois ficou conhecida como "sopa de repolho", quando legume passou a ser cultivado na região. Foi a sopa favorita de mongóis, de Ivã, o terrível, Nicholas II, de Lenin, de Stalin, e de Mao Zedong.[2]

E Alexandre Dumas gostou tanto da shchi que a colocou no seu livro de receitas. E Lewis Carroll a achou bebível, mas um pouco azeda, condizente com o paladar russo. Isso é tão verdadeiro que ainda hoje na Rússia se alguém for chamado de “professor de shchi azedo” significa que é uma fraude, ou seja, incapaz de preparar algo que todo mundo sabe fazer.

Por isso, fugindo ao apodo de “professor de shchi azedo” segue aqui uma versão unânime da sopa de repolho russa. Ingredientes: quatro xícaras de repolho, duas ou três xícaras de chucrute não enlatado. Duas colheres de massa de tomate, doze xícaras de carne de boi, ou, se não come carne, de legumes variados, em especial cogumelos. Três colheres de sopa de manteiga, uma cenoura descascada e cortada em Julienne, uma xícara e meia de cebola cortada, um talo de aipo bem cortadinho, um nabo grande descascado e também bem cortadinho. E ainda tomates cortados, sal e pimenta. E, por fim, cravo da Índia picado.

Como preparar: comece saturando os cogumelos, depois de lavados e secados e fatiados, em água. Em uma frigideira grande derreta a manteiga em calor médio, refogue a cenoura, cebolas, aipo, nabos, e cogumelos até ficarem ligeiramente marrom (aproximadamente quinze minutos). Numa caçarola, coloque o repolho e o chucrute e refogue durante 15 minutos, mexendo sempre. Depois coloque os ingredientes da frigideira na caçarola, e os temperos. Mexa tudo, cubra e deixe cozinhar em fogo brando por vinte minutos. Por fim, acrescente o alho e cozinhe por mais cinco minutos. 

Deixe então sentar e curar por um ou dois dias. Se for inverno aqueça antes de servir. Se for no verão, como recomenda Limonov, sirva frio. Com guarnição sirva endro fresco cortado e misturado com nata azeda. Por ser um prato azedo e picante combina com vinho branco, mas os russos, logicamente, preferem acompanhar com vodca. Assim, presente tanto na historiografia da culinária[3], como na literatura[4], não seria de estranhar que também se fizesse presença na política russa. 

Vladimir Illich Lênin, pai da revolução bolchevique, apelidou Stálin de “o cozinheiro de pratos picantes”. Esse apelido partia do viés culinário de Stálin, mas guardava um outro sentido: a acusação velada de que Stálin envenenava seus desafetos. O apelido foi mais tarde utilizado por Trotsky contra Stálin e acabou se generalizando na Oposição de Esquerda.

Stálin, Lênin e Trostsky

Trotsky acreditava ou ao menos fez questão de publicitar que Stálin tinha envenenado Lênin. Apesar de durante todo o período stalinista, esta acusação tenha ficado marginalizada da historiografia soviética, ela reapareceu com força com o fim da União Soviética. Ela por exemplo está presente em Touro, filme do cineasta russo Alexander Sokourov[5] que evoca os últimos dias de Lenin em 1922, depois que sofreu um primeiro derrame. Prematuramente velho, caminha com dificuldade e tem surtos de depressão e delírios. Só Krupskaya, sua mulher, o trata com carinho. Rodeado por guardas e criados, alguns dos quais informantes da polícia política, aqui o retrato de Lênin é o do Minotauro, monstro e vítima, possuidor de poder, mas cada vez mais solitário e isolado. A cena em que Lênin descobre que o telefone da datcha foi cortado mostra isso. E a visita de Stalin, discutida várias vezes, mas em especial num jantar, onde o prato servido é a shchi, traz à tona o medo de Lênin de ser envenenado pelo novo secretário-geral do Partido. E quando Stálin chega e entra na casa, Sokourov traduz em sombras e meia-luz esta presença maligna do anjo da morte. 

Trotsky décadas antes de Sukourov já havia apresentado sua versão: “Eu imagino que as coisas se passaram quase dessa forma. Lenin pede veneno ao final de fevereiro de 1923. No inverno, o estado de Lenin começou a melhorar lentamente. O uso da voz retornara. Stalin queria o poder. O objetivo estava próximo, mas o perigo emanado de Lenin estava mais próximo ainda. Stalin devia tomar a resoluão que lhe era imperativa, de agir sem demora. Se Stalin enviou o veneno a Lenin depois que os médicos tinham deixado entender por meias palavras que ele não tinha mais esperança ou se recorreu a outros maios mais diretos, eu ignoro”.[6] Essa leitura de Trotsky também é a de historiadores contemporâneos, como Antoni Domènech, que afirma ter sido Lênin assassinado por Stálin.[7]

Certamente é difícil dar uma palavra final sobre a morte de Lênin. Em 1991, documentos foram divulgados, entre eles a autópsia de Lênin, assim como as memórias daqueles que acompanharam sua morte. Um trabalho publicado no "European Journal of Neurology" de junho de 2004 sugere que Lênin, aos 54 anos, morreu de neurossífilis. Os autores, V. Lerner, Y. Finkelstein e E. Witztum, de Israel, com base em cinco anos de pesquisas em arquivos liberados da antiga União Soviética, relatórios de necropsia e livros de memória de antigos médicos, concluíram que Lênin sofreu de sífilis terciária, que no correr dos anos afeta o cérebro. A causa oficial da morte de Lênin foi uma arteriosclerose cerebral, mas apenas oito dos 27 médicos que trataram dele assinaram esse diagnóstico. Os dois médicos pessoais do revolucionário recusaram-se a assinar o atestado de óbito oficial. Segundo os médicos israelenses, a sífilis produziu lesões cerebrais e demência nos dois últimos anos de vida do líder.[8]

É verdade que a sífilis na época era incurável, mas é interessante que sua mulher Krupskaya viveu até 1939 e nunca apresentou nenhum sintoma da doença. Assim, a sífilis de Lênin pode ser mais uma especulação, principalmente quando nos lembramos que ele sofreu uma tentativa de assassinato em 1918 e que a bala nunca foi removida. Daí, uma outra hipótese, o do envenenamento lento causado pela bala não extraída.

Diante dessa comida que mata, dessa bebida que fulmina, talvez o jeito seja cantar o rock punk do k2o3:

Veneno que me rouba a vida/ veneno, uoohhoo! / É o veneno que me está a matar/ mesmo que queria não consigo escapar/ cruel e fria perseguição/ que só acaba com destruição. / Veneno que me rouba a vida/ veneno, uoohhoo![9]

Citações

[1] Airton Ortiz, O churrasco de um gaúcho viajante, Água na boca, www.missd.com.br (21/08/2004). 
[2] Faves of the Stars!, www.soupsong.com/bfaves (21/08/2004). 
[3] Shchi, Russian cabbage soup, www.soupsong.com/bfaves ( 21/08/2004). 
[4] Edouard Limonov, That's me, Edichka 
[5] Alexei Jankowski, Lénine en fauteuil roulant Taurus, film russe d’Alexandre Soukourov 1 h 30. Les Archives integrales de l´Humanité, L´Humanité, www.humanite.fr/journal/2001-05-18/2001-05-18-244434 (21/08/2004). 
[6] León Trotsky, O cozinheiro de pratos picantes, citado por Ludo Martens, O testamento de Lênin, Centro de Mídia Independente, http://brasil.indymedia.org/pt/blue/2003/08/260173.shtml (21/08/2004). 
[7] Antoni Doménech, El eclipse de la fraternidad, Una revisión republicana de la tradición socialista, Barcelona, Ed. Crítica, 2004. Vide: Entrevista político-filosófica de Antoni Domènech, Salvador López Arnal, www.nodo50.org/redrentabasica/descargas/Entrevista_TD_def.pdf (21/08/2004) . 
[8] Julio Abramczyk, Estudo especula sobre morte de Lênin, Folha de S. Paulo, 01/08/2004. 
[9] «És capaz» da banda de punk rock k2o3, formada em 1994. Seu álbum de estréia foi lançado em 1996, pela El Tatu. O segundo álbum recebeu o título de “Grita!”. O grupo não existe mais.