samedi 16 avril 2016

Jacob Gorender nos fala sobre o golpe de 1964

(Conheci, fui amigo e trabalhei com Jacob Gorender. Neste artigo ele nos conta um pouco do golpe de 1964. Vale a pena conhecer este momento da história do Brasil. JP).

A sociedade cindida 
Jacob Gorender* 
Este texto foi publicado na Revista Teoria e Debate nº 57 (mar/abr 2004)


Transcorre, neste ano, o quadragésimo aniversário do golpe militar de 1º de 
abril de 1964. Uma data que não é para celebrar, tampouco para esquecer. 
Sobretudo, com a distância do tempo, convém explorar seu significado 
histórico e avaliar suas seqüelas. Em primeiro lugar, o generalizado emprego 
da classificação do evento como golpe militar. Emprego no qual eu mesmo 
tenho incidido. Faz-se necessário frisar que não se tratou de mera manobra 
de cúpula, na qual apenas se teriam envolvido círculos políticos e militares 
dirigentes, resultando na mera substituição de uma camarilha por outra. 

A campanha pela deposição do presidente da República suscitou um grande 
movimento de massas e foi, decisivamente, o resultado desse movimento. 
Conforme veremos adiante, a participação maciça da classe média teve um 
papel de grande peso. Podemos continuar a empregar a classificação de golpe 
militar, levando em consideração tais ressalvas. 

Circunstâncias da chegada ao poder 

João Goulart (ou Jango, como será doravante chamado) chegou à Presidência da 
República com a renúncia de Jânio Quadros, em agosto de 1961, uma vez que 
era o vice-presidente, como já o fora de Juscelino Kubitschek. 

Jânio pretendeu conseguir do Congresso poderes excepcionais. Uma vez que não 
lhe foram concedidos, acreditou que a renúncia suscitaria pressão popular 
suficientemente forte para dobrar o Congresso. Errou no cálculo. Diante da 
ausência da esperada pressão popular, ao invés de regressar a Brasília, 
tomou o navio em Santos para um passeio na Europa. 

Conterrâneo e discípulo de Getúlio Vargas, Jango não poderia deixar de ser 
identificado como seu continuador. Ao ser eleito em 1950, retornando ao 
Catete após a deposição em 1945, Getúlio veio com o propósito de aplicar um 
programa nacionalista, criando, entre outras medidas, empresas estatais de 
importância estratégica para o desenvolvimento econômico do país. Contava 
com a ajuda dos Estados Unidos, de cujo governo obtivera créditos e 
colaboração técnica em 1943 para erguer a usina siderúrgica de Volta 
Redonda, em troca da permissão de instalação de bases militares 
norte-americanas no Nordeste. Mas, em seu segundo mandato governamental, 
perdeu a confiança dos Estados Unidos, que retiraram seus representantes da 
comissão conjunta com o Brasil para financiamento de empreendimentos de 
desenvolvimento econômico. Getúlio, não obstante, prosseguiu na execução do 
programa previsto, contando apenas com recursos internos. Desta iniciativa 
surgiram a Petrobras e a Eletrobrás. 

O presidente Vargas viu-se acossado por uma campanha na mídia e no 
Parlamento, capitaneada por Carlos Lacerda, governador do estado da 
Guanabara (então, abrangente somente da cidade do Rio de Janeiro). 

Nos princípios de agosto de 1954, pistoleiros da guarda presidencial tomaram 
a iniciativa (ao que tudo indica, por conta própria), de eliminar Lacerda. 
Quando este regressava a sua residência na Rua Tonelero, na Zona Sul do Rio 
de Janeiro, alvejaram-no, porém só conseguiram feri-lo numa perna. Mas o 
guarda-costas de Lacerda, o major Vaz, oficial da Aeronáutica, tombou morto 
no atentado. O episódio desencadeou gravíssima crise política, que envolveu 
as Forças Armadas. Getúlio havia declarado, em discurso na campanha 
eleitoral, que não renunciaria uma segunda vez. A 24 de agosto suicidou-se 
com um tiro no coração, em pleno Palácio do Catete. 

Diante de tais precedentes, a posse de Jango, apesar de legal e legítima, 
não poderia ser tranqüila. No momento da renúncia de Jânio, o 
vice-presidente encontrava-se em visita à China. Os adversários - que 
reuniam os representantes das forças mais reacionárias e pró-imperialistas - 
pretenderam impedir que regressasse ao Brasil. Jango conseguiu retornar, em 
meio ao clamor crescente contra sua posse no Palácio do Planalto. Uma vez 
mais, vinha à frente das propostas anticonstitucionais Carlos Lacerda, 
utilizando um virulento arsenal de insultos e calúnias. 

Enquanto em Brasília a posse de Jango era contestada, Leonel Brizola, então 
governador do Rio Grande do Sul, unia a população do estado e obtinha o 
apoio do III Exército, ali sediado e comandado pelo general Jair Dantas 
Ribeiro, para a luta em favor da posse. O recrudescimento da oposição entre 
Brasília e Porto Alegre ameaçava jogar o país na guerra civil. 

A fim de evitá-la, optou-se pela solução conciliatória do parlamentarismo, 
por meio de emenda constitucional. Jango governaria com um 
primeiro-ministro, submetido ao voto de confiança do Congresso. Estaria sob 
controle suficiente - julgavam os adversários - para impedir iniciativas 
nacionalistas e, sobretudo, obstar sua intenção, mais ou menos evidente, de 
conseguir um segundo mandato presidencial. 

A experiência parlamentarista 

A república brasileira não tinha nenhuma tradição parlamentarista. A memória 
histórica do parlamentarismo do Império, tutelado por D. Pedro II, não 
inspirava simpatias. 

Sob a presidência de Jango, a partir de 1961, sucederam-se três 
primeiros-ministros no regime parlamentarista: Tancredo Neves, Brochado da 
Rocha e Hermes Lima. Nenhum deles conseguiu enfrentar a situação econômica, 
deteriorada pela inflação herdada do qüinqüênio de Juscelino, nem se haver 
com os problemas políticos suscitados por sucessivas greves, reivindicações 
dos mais variados setores e difíceis de atender e, principalmente, o assédio 
incessante das forças conservadoras, aglutinadas em torno da UDN. Com a 
deterioração política, que criava uma instabilidade julgada inconveniente e 
ameaçadora pela própria classe dominante, a idéia do retorno ao regime 
presidencialista ganhou crescente apoio político-popular. 

A 14 de setembro de 1962, uma greve nacional, articulada com o apoio do 
comandante do III Exército, general Jair Dantas Ribeiro, obrigou o Congresso 
a aprovar a emenda Valadares, que determinou a antecipação para janeiro de 
1963 da realização do plebiscito sobre o parlamentarismo, marcado para 1965. 

Na ab-rogação do parlamentarismo estava interessado não somente Jango. 
Pretendentes à Presidência, também Carlos Lacerda, Magalhães Pinto, Adhemar 
de Barros e Juscelino Kubitschek apoiaram o movimento de retorno ao 
presidencialismo, que já estaria vigente nas eleições de 1965. Em 
conseqüência, o parlamentarismo foi rejeitado por mais de 10 milhões de 
votos, na proporção de cinco votos contra um. 

Jango pôde, então, passar a governar com as prerrogativas amplas do 
presidencialismo brasileiro. 

Novos atores, novo quadro político 

Com vistas ao combate à inflação, Jango encarregou Celso Furtado, ministro 
do Planejamento, de elaborar um plano antiinflacionário. Veio, assim, à luz, 
uma semana antes do plebiscito de 6 de janeiro, o Plano Trienal preparado 
pelo prestigioso economista. Consistia numa versão da clássica estabilização 
financeira, temperada por uma dose de desenvolvimentismo. Entre as propostas 
principais, figuravam a chamada "verdade cambial", ou seja, a desvalorização 
do cruzeiro (moeda nacional na época), visando ao incremento das 
exportações, o corte dos subsídios ao consumo do trigo e de derivados de 
petróleo, a elevação das tarifas dos serviços públicos, a contenção do 
crédito e das emissões de papel-moeda e a disciplina de salários e preços. 
Prometia, simultaneamente, a recuperação de taxas elevadas de crescimento. 

Assim que pôde ser analisado, o Plano Trienal foi criticado e rejeitado 
pelas organizações operárias e esquerdistas em geral, particularmente o PCB. 
Verificou-se, com pouco tempo, que era inoperante e inócuo. 

Jango se viu no centro de uma cena política em que novos atores ganhavam 
relevância. Precisava enfrentar um movimento popular diversificado e 
fortemente reivindicativo. 

No Nordeste, sob a liderança de Francisco Julião, surgiram as Ligas 
Camponesas, que acentuaram as lutas na área rural. Tomou grande impulso a 
sindicalização de trabalhadores rurais. Insignificantes até 1962, já eram 
270 sindicatos rurais em dezembro de 1963 formalmente reconhecidos pelo 
Ministério do Trabalho e 557 em fase de reconhecimento. Daí resultou a 
estruturação da Confederação dos Trabalhadores da Agricultura (Contag). O 
fortalecimento dos trabalhadores rurais recebeu, no Nordeste, contribuição 
de grande importância da política aplicada por Miguel Arraes, governador de 
Pernambuco, que impôs o pagamento rigoroso do salário mínimo na Zona da Mata 
e incentivou iniciativas de educação e cultura popular, com a mobilização de 
milhares de ativistas, particularmente estudantes. Com essas iniciativas, 
Arraes se tornou um político de influência nacional. 

A 19 de novembro de 1963, 200 mil cortadores de cana de Pernambuco e da 
Paraíba realizaram uma greve vitoriosa, após três dias de duração. Era uma 
ação totalmente inédita numa região onde costumava imperar a violência 
impiedosa da classe dominante. 

Acentuou-se o "grande medo" dos usineiros, latifundiários e empresários em 
geral. Defrontavam-se com ações não rotinizadas, com as quais não sabiam 
como lidar. Os usineiros e latifundiários plantadores de cana reagiram 
comprando grandes quantidades de armas e apelando a reações violentas contra 
as reivindicações dos assalariados. 

O golpismo de direita, em franca evolução, atuava através de organizações 
como o Instituto Brasileiro de Ação Democrática (Ibad), do Instituto de 
Pesquisas e Estudos Sociais (Ipes), dirigido pelo general Golbery do Couto e 
Silva, da UDN e das pregações falsárias e antidemocráticas do deputado Bilac 
Pinto. 

Papel importantíssimo, na articulação e suporte das forças reacionárias e 
pró-imperialistas, teve o embaixador Lincoln Gordon, representante dos 
Estados Unidos no Brasil, de 1961 a 1966. Gordon não era diplomata 
profissional, mas professor de economia da Universidade Harvard, tendo sido 
escolhido para o cargo diplomático pelo próprio presidente Kennedy. Em 1963, 
diante de informações alarmantes, Kennedy enviou, como reforço à Embaixada 
americana no Brasil, o coronel Vernon Walters, especializado no serviço de 
inteligência. Poliglota, Walters falava fluentemente o português. Durante a 
Segunda Guerra Mundial, atuara na Itália como oficial de ligação entre a FEB 
e o V Corpo do Exército dos Estados Unidos, ao qual os expedicionários 
brasileiros estavam incorporados. Tal função lhe permitira estabelecer 
relacionamento com vários oficiais brasileiros que iriam ter papel de relevo 
no golpe de 64, a exemplo de Castelo Branco, Cordeiro de Farias e Syzeno 
Sarmento. (Ver Elio Gaspari A Ditadura Envergonhada. São Paulo, Companhia 
das Letras, 2002, p. 59-61). 

Em sentido oposto, intensificou-se a atuação das forças operárias e 
democráticas. 

A inflação incontida suscitava greves sucessivas, sem que os trabalhadores 
conseguissem resultados positivos duradouros. Impunha-se uma coordenação 
mais eficiente. Sindicatos e federações se entenderam e criaram o Comando 
Geral dos Trabalhadores (CGT), com abrangência nacional. 

A novidade mais significativa veio, porém, dos subalternos das Forças 
Armadas, marinheiros e sargentos. Até então, a tradição das ações rebeldes e 
antilegalistas da oficialidade incluía sempre a colaboração submissa dos 
subalternos. A única ação independente de subalternos, na história nacional, 
remontava a 1910, quando ocorreu a célebre Revolta da Chibata, comandada 
pelo marinheiro João Cândido. Em 1962, pela primeira vez na segunda metade 
do século 20 e numa fase muito mais adiantada das lutas sociais, os 
subalternos passam a tomar iniciativas por conta própria. 

A 25 de março de 1962, surge, no Rio de Janeiro, a Associação dos 
Marinheiros e Fuzileiros Navais, que chega a reunir milhares de adeptos. 
Além de reivindicações profissionais, colocam em destaque a conquista de 
direitos políticos, inclusive a elegibilidade para o Congresso. Enfrentando 
a hostilidade do Ministério da Marinha, os marinheiros e fuzileiros navais 
editam um periódico, a Tribuna do Mar, e mantêm uma escola de preparatórios 
de exames de madureza, tendo como professores universitários da UNE. Sob a 
direção da UNE, incrementa-se notavelmente a mobilização estudantil pelas 
reformas de base. 

Os sargentos das três forças militares passam também a agir com 
independência. Manifestaram sobretudo a aspiração aos direitos cidadãos de 
elegibilidade nas disputas eleitorais. Provocou revolta a sentença do 
Supremo Tribunal Federal pela cassação do mandato do sargento Aimoré 
Cavaleiro, eleito deputado estadual no Rio Grande do Sul. A sentença da 
suprema corte ameaçava o mandato do sargento Antonio Garcia Filho, eleito 
deputado federal. Em resposta, a 12 de setembro de 1963, algumas centenas de 
sargentos da Aeronáutica e da Marinha, liderados pelo sargento Antonio 
Prestes de Paula, se sublevaram em Brasília. Prenderam altas autoridades e 
ocuparam a sede dos Ministérios da Marinha e da Aeronáutica, a Base Aérea, o 
aeroporto e a central telefônica. O movimento era intempestivo e preparado 
com precipitação. Dificilmente deixaria de fracassar. Os sublevados acabaram 
presos, porque, ao invés de contar com o apoio de colegas do Exército, 
tiveram de ceder diante das tropas que o ministro da Guerra sediou em 
Brasília, as quais sufocaram a rebelião. A atitude preventiva do ministro 
Jair Dantas Ribeiro, ciente do motim em preparação, resultou na prisão de 
seiscentos sargentos, inutilizando importante contingente para as lutas 
futuras, mais duras e decisivas e em acelerada aproximação. 

Pré-revolução e contra-revolução preventiva 

Recuperadas as prerrogativas próprias do regime presidencialista, Jango 
passou a enfrentar as reivindicações de um vigoroso movimento popular em 
favor das reformas de base. 

No segundo pós-guerra, durante os governos Dutra (continuador do regime 
repressivo do Estado Novo), Getúlio, Juscelino e Jânio, as forças 
democráticas, da classe operária aos estudantes, profissionais liberais, 
intelectuais em geral e parte dos empresários, ganharam um poder de 
mobilização desconhecido na história nacional. Cresceu o vigor dos setores 
que reivindicavam mudanças em profundidade na sociedade brasileira. Tais 
mudanças receberam a denominação de reformas de base, dentre as quais tinham 
prioridade a reforma agrária e a legislação nacionalista sobre o capital 
estrangeiro. 

A reforma agrária era praticamente impossibilitada pelo dispositivo 
constitucional, que obrigava ao pagamento prévio e em dinheiro das 
desapropriações de terras. Os projetos em favor da derrogação desse 
dispositivo eram sistematicamente barrados pela maioria do Congresso. 

Com relação ao capital estrangeiro, foi possível importante vitória ainda em 
1962. Baseada em projeto do deputado Sérgio Magalhães, presidente da Frente 
Parlamentar Nacionalista (FPN), foi aprovada no Congresso, a 3 de setembro, 
a Lei 4.131 sobre as remessas de lucro do capital estrangeiro. Essas 
remessas passavam a ter o teto de 10% sobre o capital efetivamente 
ingressado no país, com exclusão, portanto, para cálculo do percentual, do 
capital adicionado e originário dos lucros obtidos no Brasil. A aprovação da 
lei foi possibilitada pela divisão das bancadas do PSD e da UDN. Provocou, 
não obstante, reação contundente da grande imprensa e aberta condenação do 
embaixador Gordon. Esquivando-se de sua responsabilidade como presidente, 
Jango deixou escoar o prazo constitucional sem sancionar a lei. Coube ao 
presidente do Senado fazê-lo. Mas a lei ficou engavetada, enquanto o 
Executivo não procedia a sua regulamentação. 

Diante do movimento em ascensão pelas reformas de base, Jango prolongava uma 
atitude de indefinição, que não podia passar despercebida aos partidários 
das mudanças progressistas. Não se tratava de reivindicações 
revolucionárias. Poderiam, no entanto, preparar o caminho à transformação da 
sociedade brasileira numa democracia avançada, com hegemonia dos 
trabalhadores e de seus aliados do segmento de assalariados intelectuais. 
Neste sentido, considero que o movimento pelas reformas de base criava uma 
situação de pré-revolução. 

Na conjuntura de 1963, algumas das lideranças mais destacadas radicalizaram 
o comportamento, adotando linhas de atuação destituídas de suporte em forças 
efetivas. Julião, que fez as Ligas Camponesas avançar enquanto as manteve no 
terreno das reivindicações legais, retornou de uma visita a Cuba com a 
cabeça feita pelo foquismo e pela idéia de uma reforma agrária coletivista. 
Tal proposta e sua palavra de ordem "reforma agrária na lei ou na marra" 
assustou não só os latifundiários, mas também os pequenos proprietários 
rurais, jogando-os no campo dos adversários da reforma agrária. As Ligas 
Camponesas enfraqueceram e se tornaram impotentes para agir em situações 
decisivas. Antes avesso à atuação parlamentar, Julião se candidatou a 
deputado federal e só com muita dificuldade conseguiu se eleger. 

Da sua parte, Brizola não foi capaz de impedir que o governo do Rio Grande 
do Sul caísse nas mãos de Ildo Meneghetti, que viria a apoiar o golpe em 
1964. Em contrapartida, Brizola logrou eleger-se deputado federal pela 
Guanabara, com votação elevada. Lançou o movimento pela formação dos Grupos 
dos Onze, com estruturação e objetivos vagamente formulados, mas sugerindo 
preparação para ações armadas. 

Da sua parte, Jango prosseguia no jogo de atitudes contraditórias. 

No dia 4 de abril, a Agência Nacional difundiu a convocação de um comício 
para o Largo do Machado, no Rio de Janeiro. A convocação tinha caráter 
claramente provocativo, prevendo o deslocamento da massa popular ao Palácio 
Guanabara, sede do governo de Lacerda. O deslocamento justificaria a 
intervenção de tropas federais e de ações contra o CGT e outras organizações 
populares. O alerta oportuno do general Osvino Ferreira Alves, comandante do 
I Exército, desfez a armadilha e frustrou a realização do comício. 

Contudo, estranhamente, em sincronização com a convocação do comício, Jango 
discursava em Marília, interior do estado de São Paulo, apresentando-se como 
o mais credenciado dos anticomunistas. Reforçou a jogada direitista com 
elogios ao governador Adhemar de Barros e ao falido Plano Trienal. Fazia-se 
evidente que buscava uma recomposição com as forças conservadoras 
direitistas. 

Todavia, à noite da mesma data, o presidente discursou na Faculdade de 
Direito do Largo de São Francisco, na capital paulista. Prudentemente deixou 
de lado o anticomunismo e fez vagas alusões às reformas de base. 

No dia 23 de agosto, à tardinha, realizou-se na Cinelândia, centro do Rio de 
Janeiro, um comício em homenagem à memória de Getúlio Vargas. Jango 
discursou perante 60 mil pessoas. Faixas estendidas diziam: "Jango, não 
vacile", "Jango, chega de conciliação com os inimigos do povo. Reforma já!" 
Diante das frases vazias do presidente, a massa o interrompeu com o grito 
cadenciado: "De-fi-ni-ção!" 

No dia 4 de outubro, Jango enviou ao Congresso um requerimento de decretação 
do estado de sítio. As organizações agrupadas na Frente de Mobilização 
Popular (FMP) manifestaram oposição. O mesmo fez o governador Miguel Arraes, 
que não ignorava a intenção presidencial de alijá-lo junto com a deposição 
de Lacerda. Ao constatar a falta de apoio parlamentar, o governo federal 
retirou o requerimento no dia 7. 

O crédito de Jango junto às forças conservadoras estava esgotado, uma vez 
que não conseguira coibir o crescimento do movimento reformista nem deter a 
inflação. O presidente decidiu-se, finalmente, por uma posição clara em 
favor das reformas de base, sempre com a expectativa de que abrisse o 
caminho para um segundo mandato, o que necessitaria de emenda 
constitucional. Tomando o novo rumo, ordenou a regulamentação da lei sobre 
remessa de lucros do capital estrangeiro e prestigiou a Superintendência de 
Política Agrária (Supra), comparecendo a um ato de entrega de títulos de 
propriedade da terra a lavradores do estado do Rio. Ao mesmo tempo, 
encarregou San Tiago Dantas de articular uma Frente Ampla, que viabilizasse 
a aprovação parlamentar das reformas de base. 

A ambição continuísta do chefe da Nação era particularmente incentivada 
pelos comunistas. Embora desprovidos de registro legal partidário no 
Tribunal Eleitoral, os comunistas constituíam, então, uma corrente de 
esquerda influente. Em repetidas manifestações, Luiz Carlos Prestes defendeu 
o segundo mandato para Jango e propôs publicamente a iniciativa de emenda 
constitucional que o permitisse. Semelhante proposta esquentava ainda mais a 
temperatura já bastante acalorada do clima político. 

No entanto, repetiam-se os incidentes conflituosos. Programadas para 
discursar em faculdades e outros recintos, personalidades como Lacerda, 
Brizola, Clemente Mariani e João Pinheiro Neto foram barradas pelos 
adversários. Só com muita dificuldade e com a proteção da Polícia Militar, 
conseguiu Arraes discursar em Juiz de Fora. 

Na tarde de 13 de março de 1964, o comício na praça da Central do Brasil 
reuniu meio milhão de pessoas. Após pronunciamentos de líderes políticos, 
sindicais e estudantis, Jango valeu-se de dois trunfos no discurso de 
encerramento do comício: o decreto de encampação das refinarias particulares 
de derivados de petróleo e o decreto da Supra, que declarava sujeitas a 
desapropriação as propriedades rurais superiores a 500 hectares marginais de 
vias federais numa faixa de 10 quilômetros e as propriedades superiores a 30 
hectares marginais de açudes e obras de irrigação com financiamento 
governamental. A legislação que permitiria tais atos já se encontrava em 
preparação para envio ao Congresso. 

Enquanto o comício do dia 13 se realizava, os apartamentos na Zona Sul do 
Rio de Janeiro mantinham as luzes acesas e exibiam lençóis brancos nas 
janelas. Uma demonstração explícita de oposição da classe média carioca ao 
comício da Central do Brasil. 

No dia 19 de março, meio milhão de pessoas se reuniu, em São Paulo, na 
primeira Marcha da Família com Deus pela Liberdade, desfilando da Praça da 
República à Praça da Sé. Organizada por entidades da direita política e com 
o apoio do clero católico, era uma clara manifestação antigovernamental da 
classe média. A sociedade estava nitidamente cindida. Irritada pelas 
numerosas greves, pela carestia, pelo desabastecimento de gêneros 
alimentícios e pela inoperância oficial, a classe média se passou 
maciçamente para o campo dos opositores do governo Jango. 

Simultaneamente, o apoio do presidente aos marinheiros reunidos em 
assembléia no Sindicato dos Metalúrgicos, no Rio de Janeiro, e sua aliança 
com os sargentos nacionalistas jogaram a oficialidade em massa também na 
oposição. A oficialidade sentia gravemente abalados os princípios da 
hierarquia e da disciplina, fundamentais nas corporações militares. 

Na noite de 30 de março, Jango discursou numa solenidade promovida pela 
Associação dos Sargentos e Suboficiais da Polícia Militar, no salão do 
Automóvel Clube, no centro do Rio de Janeiro. Foi o que bastou para detonar 
o golpe, já em franco andamento nos bastidores conspirativos. 

No dia 31 de março, as tropas do Exército aquarteladas em Minas Gerais, sob 
o comando do general Olympio Mourão Filho, com o apoio do governador 
Magalhães Pinto, se insurgiram e marcharam em direção ao Rio de Janeiro. Um 
após outro, os comandos militares, supostamente fiéis a Jango, mudaram de 
posição e, sob a coordenação do general Odilo Denys, adotaram o rumo do 
golpe. O dispositivo militar, garantido pelo general Assis Brasil, chefe do 
Gabinete Militar, revelou extrema fragilidade. 

Jango podia contar, no primeiro momento, com uma esquadrilha de oficiais 
nacionalistas da Aeronáutica, que se dispunha a despejar bombas sobre a 
coluna do general Mourão. Os fuzileiros navais, sob o comando do almirante 
nacionalista Cândido Aragão, tinham a possibilidade, também no primeiro 
momento, de assaltar o Palácio Guanabara e prender Lacerda, o que alcançaria 
grande repercussão nacional em favor do governo. 

Jango preferiu capitular. Desautorizou as ações dos oficiais da Aeronáutica 
e dos fuzileiros navais. No dia 1º de abril, retirou-se do Palácio das 
Laranjeiras, no Rio de Janeiro, e voou para Brasília. Dali, partiu depressa 
para o Rio Grande do Sul, donde, finalmente, sairia do país. 

Em Brasília, o senador Auro de Moura Andrade, presidente do Congresso, 
declarou a Presidência da República vacante. No dia 9, o primeiro Ato 
Institucional deu início às cassações de mandatos e direitos políticos. O 
general Castelo Branco assumiu a chefia do governo, inaugurando a sucessão 
de generais-presidentes, que se prolongaria por 21 anos. 

No dia 3 de abril, 1 milhão de pessoas desfilou, no Rio de Janeiro, na 
segunda Marcha da Família com Deus pela Liberdade. A sociedade estava 
claramente cindida. De um lado, a favor do rumo progressista e democrático, 
os trabalhadores. No lado contrário, a classe média em peso. O que chamamos 
de golpe militar teve inequívoco e poderoso apoio social. Funcionou como 
contra-revolução preventiva. 

Trabalhadores e classe média iriam fazer a amarga experiência de dois 
decênios ditatoriais. Ao contrário de muitos países latino-americanos, era a 
primeira vez, em sua história, que o povo brasileiro se via sob o jugo de 
uma ditadura militar. Dessa experiência, que custou tantos sacrifícios aos 
melhores patriotas, surgiu finalmente a democracia difícil, que hoje molda a 
vida política nacional. 

*Jacob Gorender era historiador, autor de Combate nas Trevas (Ática) e outros.

jeudi 14 avril 2016

Paula Coatti recomenda Imago Dei, de Jorge Pinheiro




"Jorge Pinheiro
sintetiza nesta obra todo o seu legado político, teológico, filosófico e pastoral, de forma provocante, instigando qualquer leitor a sair de sua zona de conforto. Um conteúdo inteligentemente orquestrado, integrando aspectos da dialética materialista histórica, com a psicologia social crítica da construção intersubjetiva indivíduo-sociedade mediada pela linguagem, mergulhando na mística judaica do ensino de sabedoria. Propõe as hermenêuticas da complexidade e a da crítica às ideologias para a compreensão antropológica do Cristo: aquele de genealogia desconhecida e geografia marginal, um “sem terra-prometida”, o revolucionário radical, o Messias prometido. Resgata a proposta do evangelho de fazer-se a revolução pela ética e não por armas, proposta de diálogo consensual, base da verdadeira democracia. Mas para isto é necessário compreender o diálogo como revelação de Deus na tratativa com o humano, convidando à percepção das subjetividades na construção simbólica, onde o kairós viabiliza no chronos a manifestação do princípio protestante da não aceitação das desigualdades sociais, marca da subjugação da brasilidade. Um convite perturbador e ousado à Igreja brasileira, de reinventar-se para recuperar a integralidade missiológica, decretando o fim da consciência cartesiana, denunciando a apatia que tem aprisionado o sal impedindo-o de salgar a Terra Brasilis. Só poderia iniciar e terminar com citações do Inferno, da Divina Comédia de Dante Alighieri, pois, para bom entendedor, meia palavra basta".

O avesso do avesso

mercredi 13 avril 2016

Serpente - Pitty (Clipe Oficial)

Caminhar com o Eterno


Qual é o sentido da sua vida?
A caminhar a partir de Kierkegaard, Sartre e as Escrituras




Para para pensar no caminho de Santiago (1). 
Por que fazer esta caminhada? Ou seja, o que se busca?


A questão da existência: por que eu caminho?

Por que não morri eu na madre? Por que não expirei ao sair dela? Por que houve regaço que me acolhesse? E por que peitos, para que eu mamasse? Jó 3.11-12.

Você conhece o filósofo Jean-Paul Sartre? Por que a angústia? Ou seja, a vida pode ter sentido?

Assim como nos escolheu, nele, antes da fundação do mundo, para sermos santos e irrepreensíveis perante ele; e em amor nos destinou para ele, para a adoção de filhos, por meio de Jesus, o Messias, segundo o beneplácito de sua vontade. Efésios 1.4-5. É isso mesmo, existimos para sermos amados pelo Eterno.

A questão do significado: pessoas têm valor?

Eu mesmo disse: debalde tenho trabalhado, inútil e vãmente gastei as minhas forças; todavia, o meu direito está perante o Eterno, a minha recompensa, perante o meu Elohim. Isaías 49.4.

As vidas não são o trabalho inútil de um campo de concentração. Ou seja, as pessoas podem viver de maneiras diferentes: para sobreviverem, levadas pelas circunstâncias; para serem bem sucedidas, levadas pela competição e em busca de conquistas materiais; e para terem sentido, a caminhar nas trilhas e roteiros do Eterno. Ou seja, nesse caminhar, a trilha e o roteiro do Eterno dão sentido à vida.

Os teus olhos me viram a substância ainda informe, e no teu livro foram escritos todos os meus dias, cada um deles escrito e determinado, quando nem um deles havia ainda. Salmo 139.16.

Todos os humanos foram projetados para viverem um caminhar com o Eterno. Ou seja, há uma intenção, há uma razão, o caminhar com o Eterno. 

O temor do Eterno é o princípio da sabedoria, e o conhecimento do Santo é prudência. Provérbio 9.10.

A conhecer o roteiro e a trilha proposta pelo Eterno
Nele, digo, no qual fomos também feitos herança, predestinados segundo o propósito daquele que faz todas as coisas conforme o conselho da sua vontade. Efésios 1.11.

O exemplo de Obede Edom: se dispôs a receber a presença do Senhor e foi abençoado. Pelo que Davi não trouxe a arca para si, para a Cidade de Davi; mas a fez levar à casa de Obede-Edom, o geteu. 14 Assim, ficou a arca de Deus com a família de Obede-Edom, três meses em sua casa; e o Eterno abençoou a casa de Obede-Edom e tudo o que ele tinha. 1Crônicas 13.13-14.

E o Eterno junto, ao lado. Caminhar com Ele dá sentido à vida, responde à pergunta do por que fazer o caminho de Santiago. 

Pelo contrário, em qualquer nação, aquele que o teme e faz o que é justo lhe é aceitável. Atos 10.35.


E se o caminho de Santiago é uma metáfora, você descobre o sentido da sua vida quando caminha com o Eterno.


Notas

(1) Santiago de Compostela é uma cidade e município (concello em galego) no noroeste de Espanha. É capital da comunidade autónoma da Galiza e faz parte da província da Corunha e da comarca de Santiago. O município tem 220 km² de área e em 2013 tinha 96 041 habitantes (densidade: 436,6 hab./km²). É uma cidade internacionalmente famosa como um dos destinos de peregrinação cristã mais importantes do mundo, cuja popularidade possivelmente só é superada por Roma e Jerusalém. Ligado a esta tradição, que remonta à fundação da cidade no século IX, destaca-se a catedral de Santiago de fachada barroca, que alberga o túmulo de Santiago Maior, um dos apóstolos de Jesus Cristo. A visita a esse túmulo marca o fim da peregrinação, cujos percursos, os chamados Caminhos de Santiago ou Via Láctea, se estendem por toda a Europa Ocidental ao longo de milhares de quilómetros. Desde 1985 que o seu centro histórico (cidade velha) está incluído na lista de Património Mundial da UNESCO. Em 1993 foi também incluído nessa lista o Caminho de Santiago, que já tinha sido classificado como o primeiro itinerário cultural europeu pelo Conselho da Europa em 1987.Foi uma das capitais europeias da cultura em 2000.


(2) Uma peregrinação (do latim per agros, isto é, pelos campos), que traduz o caminhar, seguir um caminho, é uma jornada realizada por uma pessoa de uma dada religião a um lugar considerado santo. O termo "peregrino" aparece em nossa língua na primeira metade do século XIII, para denominar os cristãos que viajavam a Roma ou à Terra Santa, onde atualmente se encontra o Estado de Israel e os Territórios Palestinos, para visitar os lugares santos, com o objetivo de encontrar o sentido de sua vida, entregar culpas e pecados e ou cumprir penas canônicas. Desses peregrinos surgiria mais tarde a ideia das Cruzadas, enviadas para "reconquistar" os lugares que os cristãos consideravam sagrados e que estavam em poder de povos de outras religiões.





mardi 12 avril 2016

Adoração, ato de amor


Ato de amor


No entanto, está chegando a hora, e de fato já chegou, em que os verdadeiros adoradores adorarão o Pai em espírito e em verdade. São estes os adoradores que o Pai procura. Deus é espírito e é necessário que os seus adoradores o adorem em espírito e em verdade. João 4. 23-24.


É interessante que nenhuma das análises do já antigo filme de Mel Gibson, “Paixão de Cristo”, tratou de um dos temas centrais do cristianismo, que está presente no filme, mas que para milhões de espectadores passa desapercebido: a questão da espiritualidade cristã. E é esse tema que pretendo abordar, a partir de um texto clássico, o diálogo entre Jesus e a samaritana.

A discussão central de todo o texto onde Jesus conversa com a samaritana trata da espiritualidade cristã. Mas, agora, vamos nos ater aos versículos 23 e 24. De forma abrangente podemos dizer que espiritualidade é aquela relação do ser com a transcendência, que dá sentido à vida. E exatamente por isso intercalo no artigo o belo poema de Ada Negri, Atto d´amore, no idioma em que foi escrito.

Non seppi dirti quant'io t'amo, Dio
nel quale credo, Dio che sei la vita
vivente, e quella già vissuta e quella
ch'è da viver più oltre: oltre i confini
dei mondi, e dove non esiste il tempo.

O ser humano, unidade multiforme, tem em seu espírito não uma dimensão parcial da vida, mas irredutível, conforme afirma Vladimir Lossky [A l’image et la ressemblance de Dieu, Paris, 1967, p. 118]. Nesse sentido, o espírito é a totalidade da vida. Nas situações de perda, falta de sentido e de ameaça à vida há sempre experiência com a transcendência, pois mesmo na negação dela há um sentido transcendente.

Na reconstrução da Europa, depois da Segunda Guerra mundial, o teólogo teuto-americano Paul Tillich disse que a desintegração espiritual da sociedade ocidental já tinha sido prevista por teólogos e estudiosos, no século XIX, mas a necessidade de compreender este fenômeno exigia que nos aprofundássemos em seu estudo. E afirmou Paul Tillich: “Se não houver espírito, as construções humanas não poderão produzi-lo. Ele, o espírito age ou não age nos indivíduos e nos grupos. E quando age cria seu próprio meio de comunicação. Assim, o espírito se manifesta por meio das palavras, das formas de vida, das instituições sociais e dos símbolos religiosos. [A Era Protestante, São Paulo, Ciências da Religião, 1992, p. 275-276].

A idéia espírito, de que nos fala Jesus, nos leva a uma compreensão abrangente de espiritualidade, que não pode ser entendida apenas como sinônimo de piedade ou como conhecimento dos princípios de que se compõe a piedade.

Partindo do senso comum da igreja brasileira, a espiritualidade pode ser vista como uma interpretação particular do ideal evangélico, mas se partimos do que Jesus nos transmite e da contextualização realizada por Tillich podemos dizer que há uma espiritualidade comum à espécie humana, que ela se expressa existencialmente por sermos todos imago Dei.

Quando multidões assistem a um filme como A Paixão de Cristo e são despertadas, cada qual a sua maneira, acerca da miserabilidade humana, constatamos que o ser humano tem atributos potenciais para a espiritualidade. Esses atributos, presentes na imagem de Deus que somos, e que chamo de tropismo à transcendência, nos leva à questão do sagrado.

Non seppi; - ma a Te nulla occulto resta
di ciò che tace nel profondo. Ogni atto
di vita, in me, fu amore. Ed io credetti
fosse per l'uomo, o l'opera, o la patria
terrena, o i nati dal mio saldo ceppo,
o i fior, le piante, i frutti che dal sole
hanno sostanza, nutrimento e luce;
ma fu amore di Te, che in ogni cosa
e creatura sei presente. Ed ora
che ad uno ad uno caddero al mio fianco
i compagni di strada, e più sommesse
si fan le voci della terra, il tuo
Volto rifulge di splendor più forte
e la tua voce è cantico di gloria.

A espiritualidade e o sagrado


Rudolf Otto, um dos teóricos que se debruçou sobre esta questão, diz que a experiência humana diante do sagrado tem sempre algo intenso e profundo, que ele chama de mysterium tremendum, que traduz o numinoso, o que é transcendente para a realidade do crente, que diante daquilo que o esmaga desenvolve senso de temor [O Sagrado, Lisboa, Edições 70, 1992, pp. 21-22]. Esse temor é um medo qualitativo, motivo para reflexão e energia que transformado em poder faz dele um adorador.

Tais experiências com o sagrado encorajam e incorporam no adorador aquilo que lhe é distinto. Apesar dessa relação de aparente intimidade de relacionamento, permanece o abismo entre adorador e sagrado. Dessa maneira, este desejo de saltar sobre o abismo que separa humano e sagrado é em última instância o móvel que dará origem à espiritualidade.

Se por um lado a crise ocidental pode ser traduzida como uma crise espiritual, por outro essa busca frenética de bens materiais e de consumo aumenta o vazio humano e favorece a busca da espiritualidade como experiência de vida coerente e recomendável. Assim, vivemos numa sociedade em crise espiritual, que procura encontrar a espiritualidade perdida.


A espiritualidade cristã


A espiritualidade cristã foi construída ao redor da cruz. A paixão de Cristo sempre foi entendida por teólogos e crentes como o derramar do dom da vida de Deus sobre os seres humanos. E porque a morte de Jesus Cristo não é derrota, mas sacrifício livremente aceito, a espiritualidade cristã tem sempre dois movimentos:

1. Um movimento em relação ao outro, ao próximo, ao desvalido, àquele que sofre, que é um chamado ao compromisso. Este movimento da espiritualidade em relação ao próximo nós chamamos de serviço.

A partir desse momento em que a espiritualidade torna-se caminho para Deus através do serviço ao próximo, a espiritualidade tem algo a dizer a todos os nossos relacionamentos, tanto pessoais, como sociais e políticos.

Pode parecer desconcertante relacionar espiritualidade e relacionamentos pessoais, sociais e políticos, mas ao falar de espiritualidade estamos falando do exercício do amor e por relacionamentos pessoais, sociais e políticos entendemos a transformação da sociedade na direção do reino de Deus, para que se faça justiça aos excluídos de tal forma que encontrem vida e salvação. Nesse sentido, a espiritualidade dá sentido à vida pessoal, social e política e torna-se além de profética, transformadora.

2. Mas a espiritualidade tem um outro movimento, que se por um lado está ligado ao rigor da fé, como vemos na oração e nos momentos de contrição, ela se realiza existencialmente, enquanto encontro com Deus. Esse encontro, conforme no diz Jesus, é a adoração e está na raiz da conversão e de todo processo de santificação. É um processo místico, no sentido que mostra nossa miserabilidade diante do insondável mistério de Deus.

Por isso, a espiritualidade é profética e transformadora no encontro com o outro, com o humano, e um ato místico de adoração diante da majestade de Deus.

Or - Dio che sempre amai - t'amo sapendo
d'amarti; e l'ineffabile certezza
che tutto fu giustizia, anche il dolore,
tutto fu bene, anche il mio male, tutto
per me Tu fosti e sei, mi fa tremante
d'una gioia più grande della morte.
Resta con me, poiché la sera scende
sulla mia casa, con misericordia
d'ombre e di stelle.
Ch'io ti porga, al desco
umile, il poco pane e l'acqua pura
della mia povertà. Resta Tu solo
accanto a me tua serva; e nel silenzio
degli esseri, il mio cuore oda Te solo.

Assim, conforme nos diz Segundo Galilea, a contemplação de Jesus Cristo no irmão que sofre e a contemplação de Deus no Cristo ressurreto são sempre frutos da ação do Espírito em nossas vidas [Espiritualidade da Libertação, Petrópolis, Vozes, 1975, pp. 15-16]. Esses dois encontros são a base da espiritualidade cristã e fundamentam todo ato de adoração daquele que crê.


Unida, mas diferente

A Igreja de Jesus, unida mas diferente

Há um só corpo e um só Espírito, assim como a esperança para a qual vocês foram chamados é uma só, há um só Senhor, uma só fé, um só batismo, um só Deus e Pai de todos, que é sobre todos, por meio de todos e em todos. E a cada um de nós foi concedida a graça, conforme a medida repartida por Cristo. [Efésios 4.4-7].


Nesses três versículos, o apóstolo Paulo apresenta sete aspectos da Igreja, agrupados em três ao redor das três Pessoas da Trindade. 

Uma trindade no Espírito 

Há um só corpo e um só Espírito, assim como a esperança para a qual nós fomos chamados é uma só. Em primeiro lugar, há um só corpo, a Igreja, que deve sua existência e sua unidade a um só Espírito, que é dirigida no poder do Espírito em direção a um único alvo de esperança. 

Uma trindade em Cristo 

Há um só Senhor, uma só fé, um só batismo. Em segundo lugar, há um só Senhor, Jesus Cristo, o grande objeto de uma só fé pela qual as pessoas crêem para a salvação, o qual tem dado à Igreja a ordenança inicial de um só batismo (5). 

Uma unidade em Deus Pai 

Um só Deus e Pai de todos, que é sobre todos, por meio de todos e em todos. Em terceiro lugar, há um só Deus e Pai de todos, fonte suprema de toda unidade. Depois de dar relevo à diversidade e à unidade da Igreja na Trindade, o apóstolo Paulo volta a falar das pessoas, dos crentes, que juntos constituem a igreja. Não são peças uniformes de um mecanismo, mas cada pessoa possui uma personalidade que Deus reconhece e usa em Seu serviço.

E nós temos o dom da graça

E a cada um de nós foi concedida a graça, conforme a medida repartida por Cristo. Assim, no versículo 7, o apóstolo fala em termos gerais sobre o dom da graça de Deus, à qual repetidamente se refere, quando relata sua própria experiência no cap. 3 (veja 3.2-7, onde identifica sua missão aos gentios com este dom da graça). 

Agora ele aponta para cada um de nós, como possuidor do dom da graça, o qual difere de pessoa para pessoa. As diferenças entre esses dons não são determinadas por habilidade ou capacidade natural, mas repartidos segundo a medida de Cristo.

Para pensar: Essa é a nossa igreja? Você é parte dela! O que você está fazendo com o seu dom?