mercredi 7 décembre 2016

500 anos de uma Reforma pendente

O professor Dr. Daniel Stosiek nos deu no final deste ano de 2016, na Faculdade Teológica Batista de São Paulo, uma aula, aos nossos alunos de Filosofia 2, sobre a Reforma pendente. Com autorização dele, apresento aos alunos o texto escrito por ele, que fundamentou a exposição realizada. Boa leitura e discussão para vocês. JP.

500 anos de uma reforma pendente 
Daniel Stosiek 

Propósito 

No conseguinte estou ligando considerações históricas tanto da libertação quanto da opressão antes da Reforma com reflexões do presente e do futuro. 

Esboço histórico

1 Boêmia 

A reforma começou com movimentos sociais em vários países como Boêmia e depois Alemanha que visaram a revolver, a revolucionar o mundo humano inteiro. Já no século 14 existiram movimentos na igreja em Boêmia que criticaram a igreja desde a Bíblia, e às vezes a sociedade toda. Se percebeu uma contradição profunda entre os valores e orientações da Bíblia e a riqueza material e injustiça dentro da igreja, e em outros casos se criticou veementemente o feudalismo com a servidão e o senhorialismo. No século 14 se criticou a igreja pelas riquezas materiais obtidas em virtude de prebendas.

O imperador Carlos IV fundou a universidade em Praga no século 14, sendo este acontecimento parte do humanismo em Europa. Estudantes desta universidade que tinham estudado em Oxford, trouxeram escritos de John Wycliffe para Praga. John Wycliffe criticou a autoridade do clero, do papa (denominando ele de anti-Crist), o celibato dos sacerdotes, a doutrina da transubstanciação, e exigiu das pessoas da igreja uma vida de uma simplicidade dos primeiros cristãos / da comunidade cristã originária. Sobre tudo, ele atacou a autoridade e dominação da hierarquia eclesiástica e clerical desde a Bíblia.

Jan Hus (João Huss) conheceu os escritos de John Wycliffe pelo ano 1400. Por meio dele, o movimento de reforma boêmio que já existia, se ligou com os pensamentos de John Wycliffe. Jan Hus pregava o sacerdócio universal dos crentes, sem a mediação sacramental e eclesial. Criticou a indulgência e se orientou exclusivamente na Bíblia. 

Me falta a maioria dos livros da história de Alemanha, Europa, Boêmia, que deixei na Alemanha; por isso reconstruí muito da memória e busquei alguns dados no internet.

No ano 1415, Jan Hus foi queimado durante o Concílio de Constança como herege. Só depois disso, a partir do ano 1419, surgiu o movimento dos hussitas, e 1420 começaram as guerras hussitas. Uma parte dos hussitas se desenvolveu de maneira radical e violenta, uma segunda corrente de maneira moderada, e uma terceira corrente também de maneira radical mas ao mesmo tempo sem violência. Os taboritas foram os mais radicais e guerreiros, situados na cidade Tábor (na região da Boêmia do Sul, denominado assim em homenagem ao Monte Tábor onde aconteceu a transfiguração de Jesus). Eles recusaram o sacerdócio, o cerimonial sacerdotal, a veste (dos sacerdotes), a veneração de relíquias e santos, e se orientaram pela comunidade cristã originária. Viviam singelamente, com roupa simples, e esperaram a instauração imediata do Reino de Cristo na Terra. Os taboritas recusaram toda opressão, guardavam a igualdade de todos. Mas na dinâmica em que foram atacados militarmente, eles também se tornaram muito violentos. 

Os utraquistas (sub utraque specie, a eucaristia "em ambas as espécies") ou calixtinos (calix=o cálice) eram a corrente mais “moderada” dos hussitas. “Moderado” significa na verdade: mais próximos aos poderosos. Eles sustentaram a pregação livre, o cálice (calix) para os leigos e a secularização das fazendas da igreja (bona ecclesiastica). Os calixtinos foram apoiados pela nobreza e a burguesia. Na decorrência da guerra com os taboritas, os calixtinos finalmente se incorporaram às tropas do imperador, e juntos aniquilaram os taboritas e os seus aliados e massacraram uma boa parte deles. Os hussitas mais moderados reconheceram finalmente o rei de Boêmia. 

Mas existia uma terceira corrente dos hussitas, os irmãos boêmios (unitas fratrum=unidade dos irmãos). Propriamente, “irmãos boêmios” foi uma denominação geral dos hussitas. Porém, depois se usou só para uma parte deles. Petr Chelčický, partidário de Jan Hus, era radical como os taboritas, estava contra o monarquismo, apoiava a igualdade de todos os cristãos, mas estava contra a violência. Junto com ele, sendo líder, os irmãos boêmios eram radicais como os taboritas, mas ao invés deles inteiramente pacifistas. Também para eles, a comunidade cristã originária era o modelo de orientação, e eles recusaram a ordem social do senhorialismo baseado na propriedade de terra. E além disso, eles recusavam o serviço militar. 

Na decorrência da Guerra dos Trinta Anos, os dominadores católicos totalitários da Casa de Habsburgo, aniquilaram a maioria dos irmãos boêmios. Muitos fugiram para Morávia  (Mähren, perto de Boêmia) e outros a outros países como Polônia, Hungria. No século 18, uma parte considerável dos fugidos, a maioria deles de Morávia, foi à fazenda do conde Nikolaus Ludwig von Zinzendorf em Alemanha. Fundaram lá perto um lugarejo que denominaram de Herrnhut, o que significa “amparo do Senhor”. Assim nasceu a Igreja dos Irmãos Morávios, em alemão “Herrnhuter Brüdergemeine”, e em latim “unitas fratrum” (como os irmãos boêmios). No final do século 18, a Igreja dos Irmãos Morávios missionava em vários países e expandia. Na Inglaterra, ela se tornou uma das fontes do Metodismo que surgiu lá. 

Agora quase se perdeu a memória viva de que a reforma começou com um movimento revolucionário que visou revolver a sociedade inteira, tombar o senhorialismo e abolir a servidão – sendo isto um movimento tanto material quanto espiritual. Apesar da recusa incipiente do feudalismo, se voltou a uma imagem de Deus como Senhor feudal que dá amparo sob a condição que o crente se subjuga (o significado de Herrnhut). Se interiorizou a violência com que os dominadores derrotaram os movimentos de libertação, e se imagina Deus como se se tratasse de um déspota total. Mas a memória oculta pode ainda tornar-se uma força libertadora. 

Alemanha 

Enquanto os Habsburgos destruíram a maior parte da reforma na Boêmia, a reforma na Alemanha que surgiu um pouco mais tarde, sobreviveu, pelo menos a parte “moderada”. Já nos séculos 13 e 14 sucederam insurreições de camponeses e também moradores de cidades na Alemanha. Entre os séculos 14 e 16 aconteceram processos incipientes de capitalização na agricultura. O século 16 foi uma época de protestas veementes de camponeses. Nos anos 1524 e 1525 surgiram revoltas de camponeses em Alemanha, Áustria e Suíça, juntando-se à Guerra dos Camponeses Alemães. 

No ano 1525, os camponeses formularam os 12 artigos de Memmingen que são considerados como formulação antiga de direitos humanos. Entre os artigos, se demanda entre outras coisas que cada comunidade elege o seu pároco, se afirma que todos os seres humanos são iguais, se recusa a servidão (Leibeigenschaft), se demanda a redução da corveia (Frondienst) e da entrega do arrendamento (Pachtabgabe). E sobre tudo, se demanda a restituição das florestas, gramados e roçados que pertenciam à comunidade como propriedade comunitária e que foram apropriados pelos dominadores.

O clero e a nobreza alta não quiseram alterações dos seus privilégios. Obtinham dinheiro pela indulgência e o dízimo. Cada vez mais terrenos de propriedade comunitária das comunidades foram expropriados pelos senhores com direitos feudais sobre a terra. 

O “teólogo da revolução” (como diz Ernst Bloch), Thomas Müntzer, foi um líder rebelde nos movimentos e durante a guerra dos camponeses. Na cidade Mühlhausen, ele junto com aliados implementaram os seus conceitos de justiça social: desfizeram mosteiros, criaram espaços para desabrigados, e se estabeleceu a alimentação para pobres, bodo. Se visou uma comunidade de todos os bens, a obrigação de todos a trabalhar, a abolição de toda superioridade (de pessoas sobre outras). 

Thomas Müntzer entrou em contato com os depois chamados “anabatistas”, “rebatizadores“, que se deveria denominar segundo as suas formas próprias de pensar de “batistas”, batizadores (Täufer), em Zürich (Suíça) no ano 1524 quando apenas surgiu este movimento. A partir do ano 1525, ano da derrota dos camponeses, o movimento dos batistas se estabeleceu, unânime com os camponeses na recusa do clero e da servidão. Uma das correntes dos batistas, os huteritas, viviam com propriedade comunitária, consoante o modelo da comunidade cristã originária de Jerusalém. 

Os Fugger de Augsburgo, os mais ricos do mundo do capitalismo emergente no século 16, ajudaram a derrotar os camponeses, sendo estes últimos mal armados, às vezes com foices e batedores. Os próprios camponeses tinham sido violentos em alguns casos. O movimento deles foi derrotado brutalmente. Se matou 100 a 300 miles de pessoas. Se mutilou muitos dos sobreviventes, cortou dedos e olhos. Depois se proibiu a realização de festas, a frequentar bares da aldeia na noite (e bailar bailes eróticos). Em muitos aspetos se aniquilou a vida comunitária. Se adotou cada vez mais um padrão rígido na sexualidade. Na mesma época, se agravou o conceito da propriedade privada e castigou cruelmente os ladrões. Pelo desaparecimento de propriedade compartilhada, muitos camponeses perderam a sua terra a viver nela. Massas cada vez maiores de vagabundos, gatunos, mágicos, músicos, pelotiqueiros e outros artistas migraram por Europa toda, e piratas pelos mares. 

(Em partes da Alemanha e Suíça, venceu finalmente a reforma dos “moderados” como Martinho Lutero, João Calvino e Ulrico Zuínglio (Ulrich Zwingli); em que Lutero finalmente apoiava mais os príncipes do que os camponeses na guerra, Calvino deixou queimar vivo o médico e erudito humanista Miguel Servet por ele afirmar que a trindade foi um erro, Calvino também chamou a rastejar e erradicar as chamadas bruxas (na sua época, 1545 em Genebra, 34 mulheres e homens foram torturados em frente das suas casas e depois queimados), e Zuínglio influenciou o conselho de Zurique (Zürich) a expulsar ou capturar e torturar e executar todos os batistas da cidade.) 

A gênese do “desejo mimético” 

Se pode supor que a derrota das insurreições dos camponeses, a destruição da vida comunitária em aspetos sociais e emocionais e a expulsão de massas de pessoas devido ao conceito de propriedade privada agravado, aumentou um processo de “inversão dos afetos” em que se paralisou parcialmente o mundo das emoções ligados à vida social e aos processos de trabalho vivo em relação com a natureza, e se vincularam os afetos e emoções cada vez mais à coisas, a produtos. Suponho que em certa medida, a devastação brutal da vida comunitária rural, tanto social quanto afetiva-emocional-volitiva depois da aniquilação das insurreições dos camponeses se interiorizou social e psiquicamente. Os movimentos de libertação que recusaram o senhorialismo, se transformaram em igrejas nas quais se reza a um Deus que se imagina como um Senhor feudal. E a devoção se torna um ato íntimo de servidão. Os movimentos de propriedade comunitária se transformaram em expressões de piedade privatizada. Franz Hinkelammert escreve sobre igrejas protestantes de hoje em dia onde se adotou a ética privada de “não beber, não fumar, não dançar”2. Aqui se interioriza a derrota de movimentos de libertação, e ao mesmo tempo se oprime os afetos e desejos sociais e corporais para projetá-los às mercadorias (isso a minha suposição). 

A reforma faz parte de um processo da inversão dos afetos que finalmente viabilizou uma subjetividade específica que é o fundamento do capitalismo. 

___________________________________________________________
2Assim Hinkelammert in Hugo Assmann, Franz Hinkelammert: Götze Markt, Düsseldorf 1992 (original em português 1989 em Petrópolis), p. 64.
___________________________________________________________

René Girard3 tematizou o desejo mimético como base da violência entre seres humanos que potencialmente conduz a espirais sem fim de vingança de morte. O desejo mimético que se refere a objetos conduz a conflitos porque mais de uma pessoa deseja ou apetece o mesmo objeto. Segundo René Girard, a instituição do sacrifício tinha historicamente a tarefa de amansar, dominar, reduzir a violência ubíqua que resulta do desejo mimético, e que só o direito moderno substituiu e com isso superou o sacrifício. 

Segundo Jung Mo Sung4, o desejo mimético é também a base do mercado capitalista ou mais geralmente da modernidade. Se trata do “desejo mimético de consumo, ou, em termos de René Girard, desejo mimético de apropriação. Este tipo de desejo mimético está no centro da própria modernidade na qual vivemos. A modernidade se caracteriza pelo mito de progresso [...]” (53). O desejo mimético faz com que uma maioria da população imite a elite, em outras palavras, aspire a ter as coisas que ela tem, assim que “a chave deste progresso tecnológico está no desejo mimético” (54). Assim, o sistema inteiro da economia de hoje se baseia no desejo mimético (54-66). Incluso Fr.v.Hayek, ideólogo do neoliberalismo, admite, como Sung destaca, que as pessoas das camadas mais atrasadas no desenvolvimento econômico desejam e aspiram ter as coisas que os indivíduos das camadas mais avançadas têm. Apesar que segundo René Girard o sistema jurídico substituiu o sacrifício (64), hoje em dia, como diz Sung, se realiza o sacrifício em outro lugar: os pobres e a satisfação das suas necessidades (básicas) são sacrificados (54-66). 

Então, parece que o chamado desejo mimético pode explicar a aspiração motivante dos sujeitos do capitalismo por ter, possuir cada vez mais coisas – ou também a abstração de coisas, dinheiro. Porém, a minha crítica a René Girard e a Jung Mo Sung é que o desejo mimético não simplesmente explica os fenômenos, mas por sua vez precisa duma explicação (não se trata só de um explicans mas de um explicandum). 

No seguinte intento explicar o desejo mimético:
Baruch Spinoza explica os afetos básicos desde o conatus, o que é a aspiração de cada “coisa” (“res” em latim)5 de permanecer no ser, na existência6: O conatus é a aspiração com 

__________________________________________________________
3René Girard: A violência e o sagrado, São Paulo: Paz e Terra. 1990.
Hugo Assmann (organizador): Götzenbilder und Opfer. René Girard im Gespräch mit der Befreiungstheologie. LIT Verlag Münster-Hamburg 1996 (edição original em português 1991).
4Jung Mo Sung: Desejo, Mercado e Religião, Petrópolis 1998.
5Se trata tanto de ‘objeto’ quanto de ‘sujeito’, porque Spinoza não aceita de maneira alguma a separação da realidade em coisa pensante e coisa extensa segundo Descartes (nas Meditações [Descartes: Discurso Do
___________________________________________________________

a qual cada coisa/sujeito aspira a permanecer no seu ser (conatus, quo unaquaeque res in suo esse perseverare conatur). Quando o conatus se refere ao corpo e à mente ao mesmo tempo, se denomina de appetitus (inclinação/impulso). No que se refere à consciência do appetitus, se trata da cupiditas (desejo/cobiço). A cupiditas (cobiço) é o appetitus (impulso) sob o aspeto que se está consciente dele. Os três afetos básicos segundo Spinoza são por conseguinte a já dita cupiditas e em consequência a laetitia (alegria) e a tristitia (tristeza). A laetitia acompanha o sucesso de permanecer no ser, no aumento do poder de atuar (potentia agendi) e de pensar (mentis nostri cogitandi potentia); e a tristitia acompanha o insucesso ou o sucesso diminuído do permanecer no ser e a diminuição do poder de atuar e de pensar.7 

O que é a necessidade? O sociólogo peruano Fernando Vidal desenvolve no texto “Exclusión social, modernidad y reconciliación”8 uma teoria das necessidades que abarca dialeticamente uma área desde o mais rudimentar até o mais complexo. A necessidade inclui tanto os aspetos da atividade humana, do trabalho, dos atos, então o “ser”, viver como processo, quanto os aspetos de “ter”, ter não só os produtos para a vida diária, mas também direitos e contatos sociais. Sempre a necessidade se refere à totalidade da vida natural, cultural e social e ao sentido. 

Para colocar a necessidade em relação com as categorias de Spinoza, é de constatar que ela é o appetitus específico do ser humano. Se trata do que o ser humano precisa para viver bem (conatus) no seu mundo e ser material, referindo-se ao corpo e à mente ao mesmo tempo (corpo e mente nos sentidos tanto individual quanto social). Proponho denominar de desejo a cupiditas específica do ser humano. O desejo é então a necessidade sob o aspeto que se está consciente desta. 

Por isso vejo criticamente a maneira como Hugo Assmann e Jung Mo Sung9 distinguem entre necessidade (o que se precisa para viver) e desejo (no sentido unilateral de preferência
 
__________________________________________________________
Método. As Paixões Da Alma. Meditações. Objeções e Respostas. São Paulo 1996]), mas explica res cogitans e res extensa como dois atributos da mesma realidade.
6Baruch de Spinoza: Ethik in geometrischer Ordnung dargestellt, latim e alemão, traduzido e organizado por Wolfgang Bartuschat, Hamburg 2007, p. 240, Teorema 8. 
7Ibid. p. 243, teorema 11; p. 245.
8Fernando Vidal: Exclusión social, modernidad y reconciliación
9Hugo Assmann: Clamor dos pobres e “racionalidade” econômica, São Paulo 1990; J. M. Sung: a obra já citada.
___________________________________________________________

arbitrária de sujeitos no mercado) e a separação dicotômica que Jung Mo Sung faz entre necessidade e desejo10.

Se, como suponho, o desejo é a necessidade mesma sob o aspeto da consciência dela, a pergunta ardente e consternante a ser respondida será por quê o desejo se transformou e reduziu a um desejo limitadamente dirigido a meros objetos, a produtos de trabalho a serem apropriados e consumidos. O desejo é junto com a alegria e a tristeza um dos afetos básicos do ser humano. Deve de ter acontecido uma inversão dos afetos humanos. 

Desde a teoria de Spinoza se pode concluir que os afetos básicos de um ser vivo se referem à preservação e á continuação da vida deste ser (conatus). Além disso, no que se refere ao ser humano e a sua essência social, é de supor que os afetos compartilhados se referem à preservação e á continuação da vida da comunidade, – e ulteriormente à continuação da vida na relação entre ser humano e natureza (onde começa a experiência religiosa) etc..... Isto deve de incluir todos os aspetos da vida, todas as atividades nas duas qualidades: tanto nos aspetos da vida vivida, o desgaste de energia, os movimentos corporais, mentais, espirituais e muito mais, quanto no aspeto de trabalho, ou seja o aspeto da atividade de produzir uma estrutura de energia potencial que possibilita a continuação da vida vivida (da energia cinética). É de supor que os desejos básicos do ser humano se referem em primeiro lugar ao conjunto das atividades em relações sociais que constituem a vida como processo, e só em segundo lugar, ainda que necessariamente, aos objetos e a sua produção que são necessários para poder continuar a vida vivida como processo. 

Uma inversão dos afetos começou provavelmente junto com a dominação da natureza, à redução da natureza a um objeto de exploração, deixando ao lado a percepção da natureza como sujeito e da relação entre ser humano e natureza como relação social (como até hora se vê entre povos indígenas11). Isto começou com a agricultura em grande envergadura com a qual se iniciou o processo do ser humano de explorar o trabalho da natureza cada vez mais. Se começa a reduzir as atividades da natureza ao trabalho que produz um resultado o 

___________________________________________________________
10Jung Mo Sung: Desejo, Mercado e Religião, p. 68.
11Eduardo Viveiros de Castro: Perspectivismo indígena, em: Instituto Socioambiental (ISA): Visões do Rio Negro – Construindo uma rede socioambiental na maior bacia [cuenca] do mundo, São Paulo 2008, pp. 84-90. Idem: A inconstância da alma selvagem e outros ensaios de antropologia, São Paulo 2006 (primeira edição 2002), pp. 459-472.
____________________________________________________________

qual é uma estrutura de energia potencial, ou seja alimento neste caso, deixando ao lado (ou produzindo como não existente, como diria Boaventura de Sousa Santos12) o outro aspeto das atividades da natureza: a vida vivida, as ressonâncias13.

Surge um grupo de pessoas que guarda os excedentes de coisas as quais consegue obter com uma quantidade diminuída de trabalho próprio, e isto significa ao mesmo tempo, por meio de uma quantidade diminuída de vida vivida, de energia gastada. Este grupo vai desenvolver um desejo crescente que se refere às coisas/aos produtos e vai ao mesmo tempo diminuir e suprimir o desejo que se refere às atividades da vida vivida em relações sociais. Na medida na qual uma elite dirige os seus afetos e desejos unicamente à possessão de produtos de trabalho, vai desenvolver o conceito de propriedade que se refere aos produtos mesmos e aos seus pré-requisitos que são a força de trabalho da natureza (a terra) e a força de trabalho do ser humano. Vai escravizar tanto a natureza quanto o ser humano e reduzir as suas atividades à qualidade de produção de coisas deixando ao lado a qualidade de vida vivida em relações sociais. 

Isto é a gênese do desejo que se dirige só a coisas, objetos. Todos os afetos da vida vivida e das relações sociais, tanto os entre os seres humanos, quanto os entre ser humano e natureza, são reprimidos, oprimidos. Mas, como Freud elaborou, os afetos oprimidos, suprimidos não desaparecem simplesmente, mas mudam na sua forma. Inconscientemente se projeta o conjunto dos afetos, desejos, emoções que são conectados com a vida vivida e as relações sociais, agora a coisas, a produtos de trabalho humano e de trabalho da natureza. Isto deve de ser a origem do ídolo, do fetiche. E aqui se deveria encontrar a origem do desejo mimético que se refere exclusivamente a objetos. Porque depois de tal inversão dos afetos, o ser humano vê nos objetos / nos produtos de trabalho, e mais tarde na história no dinheiro (abstração dos produtos, ou seja das estruturas com energia potencial), o conjunto da vida vivida, das relações sociais, a vida do cosmo inteiro e a sua própria vida (do sujeito). Ele vê o cúmulo da vida nas coisas da riqueza material, da vida que ao mesmo tempo é oprimida, aniquilada. Se enxerga incluso Deus em forma invertida, negada no produto, e depois no dinheiro. Se vai ansiar a posse de produtos (do trabalho da 

___________________________________________________________
12Boaventura de Sousa Santos: Die Soziologie der Abwesenheit und die Soziologie der Emergenzen: Für eine Ökologie der Wissensformen (traduzido do espanhol por W. Jantzen), in: Willehad Lanwer, Wolfgang Jantzen: Jahrbuch der Luria-Gesellschaft 2012, Berlin 2013, pp. 29-46.
13Acoplamento estrutural espaçotemporal entre oscilações de diferentes sistemas/seres vivos.
____________________________________________________________

natureza e do trabalho do ser humano, natura naturata feita por natura naturans), mas este anseio nunca pode ser saciado porque a vida permanece excluída socialmente. Isto pode explicar por que o desejo mimético gere uma violência na qual povos lutam como se se tratasse de vida e morte. 

Todo este processo se agravou a partir do século 16, com a colonização de uma parte grande do planeta Terra. Francis Bacon formulou uma utopia de uma humanidade que se caracteriza de uma posse e de um poder cada vez maior os quais se baseiam na disposição ou no controle do trabalho potencial da natureza, ou seja da força de trabalho da natureza.14 Depois da derrota da guerra dos camponeses, se oprimiu a vida popular, social, também sensual do povo comum. No protestantismo especialmente, segundo Max Weber, como Rogério Pamponet Rodrigues acabou de explicar ontem, se oprime o “gozo dos prazeres da vida”. De maneira comparável, na missão dos povos indígenas nas Américas, se oprimia a vida social, espiritual e sensual deles, se quebrou os seu corações. Tudo isto ajuda a dirigir os afetos, os desejos, as emoções, a espiritualidade, já mutilados, a meras coisas, a produtos de trabalho. Isto é uma das fontes da “religião do capitalismo” (Walter Benjamin). 

A reforma pendente 

A herança da Reforma é pelo menos uma dupla. Por um lado existe a memória de um processo começado de libertação integral. Pelo outro lado, a religião mesma ajudou a agravar o processo histórico da inversão dos afetos e com isso fez a sua parte para fundamentar a subjetividade disposta ao capitalismo. Se deve acordar-se criticamente e ligar as memórias com movimentos atuais como com diálogos com povos indígenas, com outras religiões, com a teologia da libertação, com movimentos sociais. Em diálogo com outros sujeitos poderá ser possível renovar um processo de reforma. 

_____________________________________________________________
14Francis Bacon: Novum Organum ou Verdadeiras Indicações acerca da Interpretação da Natureza. Nova Atlântida, São Paulo 1999.
_____________________________________________________________

mardi 6 décembre 2016

O Deus trino

O Deus Trino
Prof. Dr. Jorge Pinheiro


Vamos começar esse capítulo com a cláusula joanina que encontramos na Primeira carta de João 5.7-8. Sabemos que alguns estudiosos afirmam ter esse pequeno texto ser um acréscimo feito à carta do apóstolo no século XII, no Quarto Concílio de Latrão. Mas o certo é que está presente em nossas bíblias, e diz, dependendo da tradução, que “há três que dão testemunho [no céu: o Pai, a Palavra e o Espírito Santo; e estes três são um. E três são os que testificam na terra]: O Espírito, a água e o sangue, e os três são unânimes num só propósito". E nas bíblias que descartam a cláusula joanina a redação segue este padrão “são três os que dão testemunho: o Espírito, a água e o sangue, e os três estão de acordo entre si”.

Por ser uma referência explícita à Trindade é rejeitado pelas correntes cristãs que não aceitam este dogma e, por isso, não está incluído em suas versões da Bíblia. Mas, a própria Igreja Católica, apesar de aceitar o dogma da Trindade, não reconhece o "Parêntese Joanino" como autêntico, e não o inclui em sua Bíblia canônica.

Veja o que diz a Bíblia de Jerusalém, tradução católica, em uma de suas notas:

"O texto dos vv. 7-8 está na Vulgata de um inciso (aqui abaixo está entre parênteses) ausente nos antigos mss. (manuscritos) gregos, nas antigas versões e nos melhores mms. da Vulg[ata], e que parece ser uma glosa marginal introduzida posteriormente no texto: 'Porque há três que testemunham (no Céu: o Pai, o Verbo e o Espírito Santo, e esses três são um só; e há três que testemunham na terra): o Espírito, a água e o sangue, e esses três são um só'."

Em alguns manuscritos antigos constam o "Parêntese Joanino" e em outros não. As controvérsias vem de longe e, historicamente, envolvem diferentes correntes dentro do cristianismo. As que rejeitam a Trindade, consideram Jesus um ser divino, mas numa escala abaixo do Pai. Para algumas correntes, o "Parêntese Joanino" teria sido acrescentado como resposta às heresias que surgiram a partir do segundo século, e serviu para firmar a figura de Jesus como "semelhante ao Pai", ao afirmar a Trindade como Pai, Filho e Espírito. Para muitos, tal parêntese não pertencia à carta do apóstolo João e por ser acréscimo, não seria inspirado texto inspirado, logo não era escritura sagrada.

A corrente contrária argumenta que o "Parêntese Joanino" é autêntico, tendo sido escrito por João, e que foi ao longo do tempo excluído em alguns manuscritos e codex em função das conveniências doutrinárias de algumas correntes, nos primórdios do cristianismo. Tendo sido escrita por João, é de inspiração divina, logo pertencente ao Livro Sagrado.

De todas as maneiras, o Novo Testamento nos apresenta em diferentes textos a fórmula trinitária, como a apóstolo Paulo em IICoríntios 13.13, quando diz: “a graça do Senhor Jesus Cristo, o amor de Deus e a comunhão do Espírito Santos estejam com todos vocês”. Essa oração litúrgica trinitária (cf. Mt 28.19) aparece em outras passagens das epístolas paulinas, em diferentes contextos, e aqui citaremos algumas: Rm 1.4ss; 1Co 2.10-16, 2Co 1.21ss; Gl 4.6; Fl 2.1; Ef 4.4-6; IITs 2.13; e Tt 3.5ss.  Mas estão presentes também em Atos 20.28; Hebreus 9.14, 1Pedro 3.18; Judas 20-21;  e Apocalipse 22.1. 

Além das formulações ternárias, é importante ver a força do pensamento trinitário de Paulo, quando diz, por exemplo, em 2Tessalonicenses 2.13-17:

“Irmãos, sempre devemos dar graças a Deus por vocês, a quem o Senhor ama. Pois Deus os escolheu como os primeiros a serem salvos pelo poder do Espírito Santo e pela fé que vocês têm na verdade, a fim de tornar vocês o seu povo dedicado a ele. Foi para isso que Deus os chamou, por meio do evangelho que anunciamos, a fim de que vocês tomem parte na glória do nosso Senhor Jesus Cristo. Portanto, irmãos, fiquem firmes e guardem aquelas verdades que ensinamos a vocês tanto nas nossas mensagens como na nossa carta. Que o próprio Jesus Cristo, o nosso Senhor, e Deus, o nosso Pai, que nos ama e que na sua bondade nos dá uma coragem que não acaba e uma esperança firme, encham o coração de vocês de ânimo e os tornem fortes para fazerem e dizerem tudo o que é bom!”

A partir da leitura trinitária das Escrituras Sagradas, em especial do Novo Testamento, os fiéis dos primeiros séculos adoraram a Santa Trindade de Deus presente nos textos apostólicos. Mas, com o passar do tempo, dúvidas surgiram e afirmaram apenas a unicidade de Deus. Entre aqueles que defendiam tal posição estava o arianismo. Fez-se necessário então voltar a discutir e formular posições sobre a trindade de Deus.

Duas declarações de fé, propostas nos séculos quarto e quinto da era cristã, têm norteado a compreensão da Trindade. Logicamente, para a teologia evangélica esses credos não podem ser vistos como dogmas, mas como elementos fundamentais para a discussão, por serem as primeiras formalizações teóricas da Trindade. Vejamos o que dizem esses credos:

“Cremos em um Deu Pai todo poderoso, criador de todas as coisas visíveis e invisíveis. E em um Senhor Jesus Cristo, o Filho de Deus, gerado como o Unigênito do Pai, isto é, da substância do Pai, Deus em Deus, luz de luz. Deus verdadeiro de Deus verdadeiro, gerado, não feito, consubstancial com o Pai, mediante o qual todas as coisas foram feitas, tanto as que estão nos céus, como as que estão na terra, que para nós humanos e para nossa salvação desceu e se fez carne, se fez homem, e sofreu, e ressuscitou ao terceiro dia, e virá para julgar os vivos e os mortos. E no Espírito Santo. Aos que dizem, pois, que houve [um tempo] quando o Filho de Deus não existia e que antes de ser concebido não existia, e que foi feito das coisas que não são ou que foi formado de outra substância ou essência, ou que é uma criatura, ou que é mutável ou variável, a estes a igreja católica [universal] anatematiza”. 

“Fiéis aos santos pais, todos nós, perfeitamente unânimes, ensinamos que se deve confessar um só e mesmo Filho, nosso Senhor Jesus Cristo, perfeito quanto à divindade, e perfeito quanto à humanidade, verdadeiramente Deus e verdadeiramente homem, constando de alma racional e de corpo: consubstancial [homoosious] segundo a divindade, e consubstancial [homoousios] a nós segundo a humanidade, ‘em todas as coisas semelhante a nós, excetuando o pecado’, gerado segundo a divindade antes dos séculos pelo Pai e, segundo a humanidade, por nós e para nossa salvação, gerado da virgem Maria, mãe de Deus [theotókos]. Um só e mesmo Cristo, Filho, Senhor, Unigênito, que se deve confessar, em duas naturezas, inconfundíveis e imutáveis, conseparáveis e indivisíveis. A distinção de naturezas de modo algum é anulada pela união, mas, pelo contrário, as propriedades de cada natureza permanecem intactas, concorrendo para formar um só pessoa [prosopon] e subsistência [hypostasis]: não dividido ou separado em duas pessoas [prosopa]. Mas um só e mesmo Filho Unigênito, Deus Verbo, Jesus Cristo Senhor, conforme os profetas outrora a seu respeito testemunharam, e o mesmo Jesus Cristo nos ensinou e o credo dos padres nos transmitiu”.

I. A natureza do Deus trino

A natureza de Deus pode ser considerada de dois modos: (1) como ela é em si mesma, como a vida de Deus; (2) e aquela que é revelada. Quando analisamos a partir do segundo modo, ou seja, da natureza do Deus trino revelada, temos a Sabedoria divina não criada, que pode ser definida como a mente divina que pensa a si mesma.

Nesse sentido, a Sabedoria, a Sofia do Deus trino não é uma simples idéia, mas algo real, embora não seja uma pessoa. Esta Sabedoria eterna revela a plenitude do Deus trino, mas revela também a beleza e a felicidade das três pessoas da Trindade, que nós chamamos de “glória de Deus”, que é diferente daquela glória que damos a Ele, porque a “glória de Deus” efetiva é aquela que Ele tem em si mesmo.

“O SENHOR me possuiu no princípio de seus caminhos e antes de suas obras mais antigas.  Desde a eternidade, fui ungida; desde o princípio, antes do começo da terra. Antes de haver abismos, fui gerada; e antes ainda de haver fontes carregadas de águas. Antes que os montes fossem firmados, antes dos outeiros, eu fui gerada. Ainda ele não tinha feito a terra, nem os campos, nem sequer o princípio do pó do mundo. Quando ele preparava os céus, aí estava eu; quando compassava ao redor a face do abismo; quando firmava as nuvens de cima, quando fortificava as fontes do abismo; quando punha ao mar o seu termo, para que as águas não trespassassem o seu mando; quando compunha os fundamentos da terra, então, eu estava com ele e era seu aluno; e era cada dia as suas delícias, folgando perante ele em todo o tempo, folgando no seu mundo habitável e achando as minhas delícias com os filhos dos homens”. Provérbios 8.22-32.

Essa Sabedoria eterna -- que é apresentada em Provérbios 8.22-32 como real, embora não seja uma pessoa, não é hipostática, tem o verbo hebraico qanah como origem, que significa possuir, dirigir e é diferente de barah, criar. A Sabedoria pertence indistintamente às três pessoas da Trindade, porém é revelação do Cristo e do Espírito. É revelação do Cristo enquanto universalidade das idéias divinas, e é revelação do Espírito enquanto glória de Deus.

Dessa maneira, as relações dentro da Trindade não são relações de origem ou causalidade, mas relações mútuas de revelação: o Pai se revela, o Filho e o Espírito revelam o Pai. Esta qualidade – a Sabedoria eterna – é a essência Deus trino.

A geração do Filho e a expiração do Espírito não devem ser compreendidas com o conceito de procedência, já que este conceito leva à conclusão da desigualdade e a um caráter de subordinação entre as três Pessoas. O conceito correto é o da auto-revelação através da Sabedoria. Nesse sentido, as relações dentro da Trindade não são subsistentes, mas predicamentais.

E porque a Sabedoria está nas três Pessoas, em sua hipóstase (pessoa) imediata, a Sabedoria é o Cristo, o Verbo de Deus, e o Verbo de Deus é Sabedoria. Mas a está no Espírito Santo que é a hipóstase do amor. 

“O amor de Deus, o amor do Pai pelo Filho e o amor do Filho pelo Pai, não é uma simples qualidade ou uma relação: ele possui uma vida pessoal, uma vida hipostática. O amor de Deus é o Espírito Santo, que procede do Pai ao Filho e que repousa nele. O Filho só existe para o Pai no Espírito Santo que repousa nele. Igualmente, o Pai manifesta o seu amor ao Filho através do Espírito Santo, que é a unidade de vida do Pai e do Filho. Esse é o lugar do Espírito Santo no âmbito da Santíssima Trindade” 

A Sabedoria do Deus trino revela a glória do Pai, do Filho e do Espírito (Rm ll.33-36; Ef 1.11,12; Cl 1:16). Ela é qualidade de Deus, quer na criação (Sl.19:1-7; Sl.104), como na redenção (Ico 2.7; Ef 3.10).

A doutrina cristã da Trindade designa um só Deus em três pessoas. Embora não apareça nas Escrituras o termo Trindade, a maioria quase absoluta da igreja cristã considera uma designação correta para o único Deus que se revelou nas Escrituras como Pai, Filho e Espírito Santo. Tal designação significa que dentro de uma única essência, a Sabedoria, da Divindade temos que distinguir três Pessoas que não são três deuses, nem três partes, nem três modos de Deus se revelar, mas coiguais e coeternamente Deus.

Assim, podemos falar de:
 
a) Unidade do Ser: Há no Ser divino apenas uma essência, predicado das três Pessoas, a Sabedoria. Deus é um nesta sua natureza constitucional. Não há separação entre qualidades. Ele é tudo que Ele é e em tudo que Ele faz (Dt 6.4; Is. 43.40; Tg 2.19; 1Tm 2.5). A unidade da divindade é ensinada nas palavras de Jesus: Eu e o Pai somos um. (Jo.10:30). Jesus está falando da unidade da essência e não de unidade de propósito. (Jo.17:11,21-23, IJo.5:7). 

b) Pessoalidade na Trindade: Há três Pessoas no Ser divino: o Pai, o Filho e o Espírito Santo. (Mc.10:9;12:29; ICo.8:5,6; ITm.2:5; Tg.2:19; Jo.17:3; Gl.3:20; Ef.4:6). 

c) Diversidade na Trindade, ou seja, diversidade hipostática no Ser divino. Algumas passagens mostram uma Pessoa se referindo à outra (Gn.19:24; Os.1:7; Zc.3:1,2; IITm.1:18; Sl.110:1; Hb.1:9). 

O Deus trino é o Eterno Eu Sou (Ex 3.14). O Deus trino é absolutamente independente de tudo fora de Si mesmo para a continuidade e perpetuidade do seu Ser. O Deus trino é a razão de sua própria existência (Jo.5:26; At.17:24-28; ITm.6:15,16).

II. A TEOLOGIA DOS PAIS ORIENTAIS

A teologia dos Pais orientais é uma teologia trinitária por excelência, elaboradora das definições da unidade e diversidade das Pessoas na Trindade. O termo homoousios permitiu exprimir o mistério da Trindade. As relações entre as Pessoas da Trindade não são de oposição, nem de separação, mas de diversidade, de reciprocidade, de revelação recíproca e de comunhão no Pai. 

Os atributos, que são predicados e qualidades, se referem à natureza comum das três Pessoas sem diferenciações. Sendo a unicidade evocada na sua relação com à fonte que é o Pai. A inascibilidade do Pai, a geração do Filho e a processão do Espírito são as relações que melhor permitem distinguí-las.

As relações de origem não são o único fundamento das hipóstases, que as constituiria e as esgotaria do seu conteúdo. A teologia dos pais orientais reserva um caráter sempre ternário das relações, suprimindo qualquer possibilidade de as reduzir à dualidade, à formação de díades no seio da Trindade.

Na Trindade encontram-se reunidos e circunscritos o uno e o múltiplo, no entanto, os Pais não procuravam justificar pela razão o número três. A própria ciência matemática não justifica o um absoluto, sendo assim a unidade composta de Deus, não pode ser explicada através de pensamentos ditos “lógicos”, se a própria ciência não reconhece o um absoluto.

A teologia dos Pais orientais encara em primeiro lugar o subordinado e aí penetra depois para encontrar a natureza. Este método facilita a nossa compreensão, pois parte das três pessoas, como Jesus o fez na “Grande Comissão”, chega-se a partir daá à unidade de Deus. Para os pais orientais partir da monarquia do Pai é tanto um perigo como partir da natureza una que se transforma em princípio da unidade na Trindade. O princípio de unidade não é a natureza, mas as relações de origem que o Pai estabeleceu em relação a Ele mesmo, como a única fonte de qualquer relação.

Confessar a unidade trinitária é reconhecer o Pai como a única fonte das hipóstases que simultaneamente recebem dele a mesma e única natureza. A hipóstase é a maneira pessoal de se apropriar da mesma natureza, sendo que cada uma delas na sua realidade única ultrapassa as simples relações de origem eterna. A única fonte hipostática é o Pai. E a geração do Filho e a processão do Espírito é isto: a auto-revelação do Pai, através do Espírito, no Filho; e a auto-revelação do Pai, através do Cristo, no Espírito. 

O Pai é a fonte da verdade, o Filho é o princípio da revelação da verdade do Pai, o Espírito Santo é o princípio da sua manifestação dinâmica e vivificante, ele é a vida da verdade. E através da humanidade glorificada do Cristo temos a expressão do amor da Trindade infinita, a participação na vida divina e a visão da glória DO Deus trino.

III. A TRINDADE NOS DOIS TESTAMENTOS

A principal contribuição do Antigo Testamento para a doutrina da Trindade é enfatizar a unidade de Deus. Deus é singular e único, conforme Dt 6.4 -- “O Senhor nosso deus é o único Senhor”]. Deus exige a exclusão de todos os falsos deuses, descartando qualquer possibilidade de triteísmo (Dt 5.7-11).

“Chegai-vos a mim e ouvi isto: Não falei em segredo desde o princípio; desde o tempo em que aquilo se fez, eu estava ali; e, agora, o Senhor Iavé me enviou o seu Espírito”. Isaías 48.16. Também no Antigo Testamento encontramos textos trinitários.
 
No Novo Testamento a evidência trinitariana é esmagadora. Deus continua sendo pregado como Deus único (Gl 3.20), Jesus porém proclama sua própria divindade (Jo 8.58) e aceita a adoração de seus discípulos (Mt 16.16; Jo 20.28). É equiparado a Deus (Jo 1.1), e associado a Deus nas cartas de Paulo (1Co 1.3, etc.). Mas o Consolador, o Espírito de Deus é incluído no mesmo relacionamento (2Co 13.14).

O apóstolo Pedro destaca a eleição pelo Pai, a santificação através do Espírito e a aspersão do sangue de Jesus Cristo (1Pe 1.2) em relação à salvação dos crentes. No batismo de Jesus, as três Pessoas são mencionadas (Mt 3.16-17). Os discípulos são chamados a batizar em nome das três Pessoas (Mt 28.19) e a benção de Paulo, completa, inclui o amor de Deus, a graça do Filho e a comunhão do Espírito Santo (2Co 13.14). 

IV. O TESTEMUNHO DOS PRIMEIROS CRISTÃOS

As citações seguintes testemunham o que os primeiros cristãos pensavam sobre a existência de um Deus em Três Pessoas.

"E mais, meus irmãos: se o Senhor [Jesus] suportou sofrer por nós, embora fosse o Senhor do mundo inteiro, a quem Deus disse desde a criação do mundo: 'façamos o homem à nossa imagem e semelhança', como pode ele suportar sofrer pela mão dos homens?" (Autor desconhecido, ano 74, Carta de Barnabé 5,5).

"Por isso vos peço que estejais dispostos a fazer todas as coisas na concórdia de Deus, sob a presidência do bispo, que ocupa o lugar de Deus, dos presbíteros, que representam o colégio dos apóstolos, e dos diáconos, que são muito caros para mim, aos quais foi confiado o serviço de Jesus Cristo, que antes dos séculos estava junto do Pai e por fim se manifestou. [...] Correi todos juntos como ao único templo de Deus, ao redor do único altar, em torno do único Jesus Cristo, que saiu do único Pai e que era único em si e para ele voltou. [...] Existe um só Deus, que se manifestou por meio de Jesus Cristo seu Filho, que é o seu Verbo saído do silêncio, e que em todas as coisas se tornou agradável àquele que o tinha enviado" (Inácio de Antioquia, ano 110, Carta aos Magnésios 6,1; 7,2; 8,2).

"Amigos, foi do mesmo modo que a Palavra de Deus se expressou pela boca de Moisés ao indicar-nos que o Deus que se manifestou a nós falou a mesma coisa na criação do homem, dizendo estas palavras: 'Façamos o homem à nossa imagem e semelhança'. [...] Citar-vos-ei agora outras palavras do mesmo Moisés. Através delas, sem nenhuma discussão possível, temos de reconhecer que Deus conversou com alguém que era numericamente distinto e igualmente racional. [...] Mas esse gerado, emitido realmente pelo Pai, estava com ele antes de todas as criaturas e com ele o Pai conversa, como nos manifestou a palavra por meio de Salomão. (Justino Mártir, ano 155, Diálogo com o Judeu Trifão 62,1-2.4).

"Por isso e por todas as outras coisas, eu te louvo, te bendigo, te glorifico, pelo eterno e celestial sacerdote Jesus Cristo, teu Filho amado, pelo qual seja dada glória a ti, com Ele e o Espírito, agora e pelos séculos futuros. Amém. (Policarpo de Esmirna, ano 155, Martírio de Policarpo 14,3).

"[O Pai] enviou o Verbo como graça, para que se manifestasse ao mundo. [...] Desde o princípio, ele apareceu como novo e era antigo, e agora sempre se torna novo nos corações dos fiéis. Ele é desde sempre, e hoje é reconhecido como Filho" (Quadrato, ano 160, Carta a Diogneto 11,3-4).

"Portanto, não foram os anjos que nos plasmaram - os anjos não poderiam fazer uma imagem de Deus - nem outro qualquer que não fosse o Deus verdadeiro, nem uma Potência que estivesse afastada do Pai de todas as coisas. Nem Deus precisava deles para fazer o que em si mesmo já tinha decretado fazer, como se ele não tivesse suas próprias mãos! Desde sempre, de fato, ele tem junto de si o Verbo e a Sabedoria, o Filho e o Espírito. É por meio deles e neles que fez todas as coisas, soberanamente e com toda a liberdade, e é a eles que se dirige quando diz: 'Façamos o homem à nossa imagem e semelhança'" (Ireneu de Lião, ano 189, Contra as Heresias IV,20,1).

"Anatematizamos todos aqueles que seguem o erro de Sabélio, os quais dizem que o Pai e o Filho são a mesma Pessoa" (Concílio de Roma, ano 382, Tomo do Papa Dâmaso, cânon 2).

Outras Fontes
Hermas: (ano 80) O Pastor 12.
Tertuliano: (ano 216) Contra Praxéas 2,3-4; 9,1.
Hipólito de Roma: (ano 228) Refutação de Todas as Heresias 9,7.
Novaciano: (ano 235) Tratado sobre a Trindade 26.
Papa Dionísio: (ano 262) Cartas ao Bispo Dionísio de Alexandria 1,1.
Gregório Taumaturgo: (ano 262) Confissão de Fé 8; 14.
Metódio: (ano 305) Prece ao Salmo 5.
Atanásio: (ano 359) Cartas a Serapião 1,28; (ano 360) Discurso contra os Arianos 3,4.
Fulgêncio de Ruspe: (ano 513) A Trindade 4,1.

Sobre a Santíssima Trindade

As citações seguintes testemunham o que os primeiros cristãos pensavam sobre a crença na Santíssima Trindade.
"No que diz respeito ao Batismo, batizai em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo em água corrente. Se não houver água corrente, batizai em outra água; se não puder batizar em água fria, façai com água quente. Na falta de uma ou outra, derramai três vezes água sobre a cabeça, em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo" (Autor desconhecido, ano 90, Didaqué 7,1-3).
"Um Deus, um Cristo, um Espírito de graça" (Clemente de Roma, ano 96, Carta aos Coríntios 46,6).
"Como Deus vive, assim vive o Senhor e o Espírito Santo" (Clemente de Roma, ano 96, Carta aos Coríntios 58,2).
"Vós sois as pedras do templo do Pai, elevado para o alto pelo guindaste de Jesus Cristo, que é a sua cruz, com o Espírito Santo como corda" (Inácio de Antioquia, ano 107, Carta aos Efésios 9,1).
"Procurai manter-vos firmes nos ensinamentos do Senhor e dos apóstolos, para que prospere tudo o que fizerdes na carne e no espírito, na fé e no amor, no Filho, no Pai e no Espírito, no princípio e no fim, unidos ao vosso digníssimo bispo e à preciosa coroa espiritual formada pelos vossos presbíteros e diáconos segundo Deus. Sejam submissos ao bispo e também uns aos outros, assim como Jesus Cristo se submeteu, na carne, ao Pai, e os apóstolos se submeteral a Cristo, ao Pai e ao Espírito, a fim de que haja união, tanto física omo espiritual" (Inácio de Antioquia, ano 107, Carta aos Magnésios 13,1-2).
"Que não somos ateus, quem estiver em são juízo não o dirá, pois cultuamos o Criador deste universo, do qual dizemos, conforme nos ensinaram, que não tem necessidade de sangue, libações ou incenso. [...] Em seguida, demonstramos que, com razão, honramos também Jesus Cristo, que foi nosso Mestre nessas coisas e para isso nasceu, o mesmo que foi crucificado sob Pôncio Pilatos, procurador na Judéia no tempo de Tibério César. Aprendemos que ele é o Filho do próprio Deus verdadeiro, e o colocamos em segundo lugar, assim como o Espírito profético, que pomos no terceiro. De fato, tacham-nos de loucos, dizendo que damos o segundo lugar a um homem crucificado, depois do Deus imutável, aquele que existe desde sempre e criou o universo. É que ignoram o mistério que existe nisso e, por isso, vos exortamos que presteis atenção quando o expomos" (Justino Mártir, ano 151, I Apologia 13,1.3-6).
"Os que são batizados por nós são levados para um lugar onde haja água e são regenerados da mesma forma como nós o fomos. É em nome do Pai de todos e Senhor Deus, e de Nosso Senhor Jesus Cristo, e do Espírito Santo que recebem a loção na água. Este rito foi-nos entregue pelos apóstolos" (Justino Mártir, ano 151, I Apologia 61).
"Eu te louvo, Deus da Verdade, te bendigo, te glorifico por teu Filho Jesus Cristo, nosso eterno e Sumo Sacerdote no céu; por Ele, com Ele e o Espírito Santo, glória seja dada a ti, agora e nos séculos futuros! Amém." (Policarpo, ano 156, Martírio de Policarpo 14,1-3).
"De fato, reconhecemos também um Filho de Deus. E que ninguém considere ridículo que, para mim, Deus tenha um Filho. Com efeito, nós não pensamos sobre Deus, e também Pai, e sobre seu Filho como fantasiavam vossos poetas, mostrando-nos deuses que não são em nada melhores do que os homens, mas que o Filho de Deus é o Verbo do Pai em idéia e operação, pois conforme a ele e por seu intermédio tudo foi feito, sendo o Pai e o Filho um só. Estando o Filho no Pai e o Pai no Filho por unidade e poder do Espírito, o Filho de Deus é inteligência e Verbo do Pai. Se, por causa da eminência de vossa inteligência, vos ocorre perguntar o que quer dizer "Filho", eu o direi livremente: o Filho é o primeiro broto do Pai, não como feito, pois desde o princípio Deus, que é inteligência eterna, tinha o Verbo em si mesmo; sendo eternamente racional, mas como procedendo de Deus, quando todas as coisas materiais eram natureza informe e terra inerte e estavam misturadas as coisas mais pesadas com as mais leves, para ser sobre elas idéia e operação" (Atenágoras de Atenas, ano 177, Súplica pelos Cristãos, 10,2-4).
"Como não se admiraria alguém de ouvir chamar ateus os que admitem um Deus Pai, um Deus Filho e o Espírito Santo, ensinando que o seu poder é único e que sua distinção é apenas distinção de ordens?" (Atenágoras de Atenas, ano 177, Súplica pelos Cristãos 10).
"Igualmente os três dias que precedem a criação dos luzeiros são símbolo da Trindade: de Deus [=Pai], de seu Verbo [=Filho] e de sua Sabedoria [=Espírito Santo]" (Teófilo de Antioquia, ano 181, Segundo Livro a Autólico 15,3).
"Com efeito, a Igreja espalhada pelo mundo inteiro até os confins da terra recebeu dos apóstolos e seus discípulos a fé em um só Deus, Pai onipotente, que fez o céu e a terra, o mar e tudo quanto nele existe; em um só Jesus Cristo, Filho de Deus, encarnado para nossa salvação; e no Espírito Santo que, pelos profetas, anunciou a economia de Deus..." (Ireneu de Lião, ano 189, Contra as Heresias I,10,1).
"Já temos mostrado que o Verbo, isto é, o Filho esteve sempre com o Pai. Mas também a Sabedoria, o Espírito estava igualmente junto dele antes de toda a criação" (Ireneu de Lião, ano 189, Contra as Heresias IV,20,4).
"Foi estabelecida a lei de batizar e prescrita a fórmula: 'Ide, ensinai os povos batizando-os em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo'" (Tertuliano, ano 210, Do Batismo 13).
"Cremos... em um só Senhor Jesus Cristo, Filho de Deus, nascido do Pai como Unigênito, isto é, da substância do Pai, Deus de Deus, luz da luz, Deus verdadeiro de Deus verdadeiro, gerado, não feito, consubstancial com o Pai, por quem foi feito tudo que há no céu e na terra. [...] Cremos no Espírito Santo, Senhor e fonte de vida, que procede do Pai, com o Pai e o Filho é adorado e glorificado, o qual falou pelos Profetas" (1º Concílio de Nicéia, ano 325, Credo de Nicéia).

Outras Fontes:
Tertuliano: (ano 216) Contra Praxéas 2; 9; 25.
Orígenes: (ano 225) Doutrinas Fundamentais IV,4,1.
Hipólito de Roma: (ano 228) Refutação de Todas as Heresias 10,29.
Novaciano: (ano 235) Tratado sobre a Trindade 11.
Papa Dionísio: (ano 262) Carta a Dionísio de Alexandria 1; 2; 3.
Gregório Taumaturgo: (ano 265) Declaração de Fé.
Sechnall de Irlanda: (ano 444) Hino a São Patrício 22.
Patrício: (ano 447) O Peitoral de São Patrício 1; (ano 452) Confissão de São Patrício 4.

A Santa Trindade de Deus

TEOLOGIA SISTEMÁTICA
Prof. Dr. JORGE PINHEIRO


A SANTA TRINDADE DE DEUS


Dois Credos

“Cremos em um Deus Pai todo poderoso, criador de todas as coisas visíveis e invisíveis. E em um Senhor Jesus Cristo, o Filho de Deus, gerado como o Unigênito do Pai, isto é, da substância do Pai, Deus em Deus, luz de luz. Deus verdadeiro de Deus verdadeiro, gerado, não feito, consubstancial com o Pai, mediante o qual todas as coisas foram feitas, tanto as que estão nos céus, como as que estão na terra, que para nós humanos e para nossa salvação desceu e se fez carne, se fez homem, e sofreu, e ressuscitou ao terceiro dia, e virá para julgar os vivos e os mortos. E no Espírito Santo. Aos que dizem, pois, que houve [um tempo] quando o Filho de Deus não existia e que antes de ser concebido não existia, e que foi feito das coisas que não são ou que foi formado de outra substância ou essência, ou que é uma criatura, ou que é mutável ou variável, a estes a igreja católica [universal] anatematiza”. [Credo de Nicéia (325 AD) in J. L. González, Uma História do Cristianismo, 2:97; em português contemporâneo por JP].

“Fiéis aos santos pais, todos nós, perfeitamente unânimes, ensinamos que se deve confessar um só e mesmo Filho, nosso Senhor Jesus Cristo, perfeito quanto à divindade, e perfeito quanto à humanidade, verdadeiramente Deus e verdadeiramente homem, constando de alma racional e de corpo: consubstancial [homoosious] segundo a divindade, e consubstancial [homoousios] a nós segundo a humanidade, ‘em todas as coisas semelhante a nós, excetuando o pecado’, gerado segundo a divindade antes dos séculos pelo Pai e, segundo a humanidade, por nós e para nossa salvação, gerado da virgem Maria, mãe de Deus [theotókos]. Um só e mesmo Cristo, Filho, Senhor, Unigênito, que se deve confessar, em duas naturezas, inconfundíveis e imutáveis, conseparáveis e indivisíveis. A distinção de naturezas de modo algum é anulada pela união, mas, pelo contrário, as propriedades de cada natureza permanecem intactas, concorrendo para formar um só pessoa [prosopon] e subsistência [hypostasis]: não dividido ou separado em duas pessoas [prosopa]. Mas um só e mesmo Filho Unigênito, Deus Verbo, Jesus Cristo Senhor, conforme os profetas outrora a seu respeito testemunharam, e o mesmo Jesus Cristo nos ensinou e o credo dos pais nos transmitiu”. [Credo de Calcedônia (415 AD), Concílio de Calcedônia, Actio V, Mansi, VIII, 116s, in H. Bettenson, Documentos da Igreja Cristã, 1967, p.86, em português contemporâneo por JP].



Base doutrinária

A doutrina cristã da Trindade designa um só Deus em três pessoas. Embora não apareça nas Escrituras o termo Trindade, a maioria quase absoluta da igreja cristã considera uma designação correta para o único Deus que se revelou nas Escrituras como Pai, Filho e Espírito Santo. Tal designação significa que dentro de uma única essência da Divindade temos que distinguir três Pessoas que não são três deuses, nem três partes, nem três modos de Deus se revelar, mas coiguais e coeternamente Deus.

Assim, podemos falar de 
a) Unidade de Ser: Há no Ser divino apenas uma essência indivisível. Deus é um em sua natureza constitucional. Não há separação entre suas características. Ele é tudo que Ele é e em tudo que Ele faz (Dt 6.4; Is. 43.40; Tg 2.19; 1Tm 2.5). A unidade da divindade é ensinada nas palavras de Jesus: Eu e o Pai somos um. (Jo.10:30). Jesus está falando da unidade da essência e não de unidade de propósito. (Jo.17:11,21-23, IJo.5:7). 
b) Trindade de Personalidade: Há três Pessoas no Ser divino: o Pai, o Filho e o Espírito Santo. (Mc.10:9;12:29; ICo.8:5,6; ITm.2:5; Tg.2:19; Jo.17:3; Gl.3:20; Ef.4:6). 

c) Há distinção de Pessoas na Divindade: Algumas passagens mostram uma das Pessoas divinas se referindo à outra (Gn.19:24; Os.1:7; Zc.3:1,2; IITm.1:18; Sl.110:1; Hb.1:9). 

Polemizando com Jerônimo sobre a auto-existência de Deus. Jerônimo disse que “Deus é a origem de Si mesmo e a causa de Sua própria substância”. Jerônimo estava errado, pois Deus não tem causa de existência, pois não criou a Si mesmo e não foi causado por outra coisa ou por Si mesmo. Ele nunca teve início. Ele é o Eterno Eu Sou (Ex 3.14), portanto Deus é absolutamente independente de tudo fora de Si mesmo para a continuidade e perpetuidade de Seu Ser. Deus é a razão de sua própria existência (Jo.5:26; At.17:24-28; ITm.6:15,16). 


Relendo duas tradições, a oriental e a ocidental

A teologia dos Pais orientais da igreja cristã é uma teologia trinitária por excelência, elaboradora das definições dogmáticas e da unidade e diversidade das Pessoas em Deus. O termo homoousios permitiu exprimir o mistério de Deus. Assim, as relações entre as Pessoas da Trindade não são de oposição, nem de separação, mas de diversidade, de reciprocidade, de revelação recíproca e de comunhão no Pai. A forma ocidental de uma certa maneira contribuiu para realçar as relações de oposição e de separação.

Os atributos que se referem à natureza comum são inerentes às Três Pessoas sem diferenciações. Sendo a unicidade evocada na sua relação com à Fonte que é o Pai. A inascibilidade do Pai, a geração do Filho e a processão do Espírito são as relações que melhor permitem distinguí-las.

As relações de origem não são o único fundamento das hipóstases, que as constituiria e as esgotaria do seu conteúdo. A teologia do Oriente reserva um caráter sempre ternário ou triplo das relações, suprimindo qualquer possibilidade de as reduzir à dualidade, à formação de díades no seio da Trindade.

Na Trindade encontram-se reunidos e circunscritos o uno e o múltiplo, no entanto, os Pais não procuravam justificar pela razão o número Três. A própria ciência matemática não justifica o um absoluto, sendo assim a unidade composta de Deus, não pode ser explicada através de pensamentos ditos “lógicos”, se a própria ciência não reconhece o um absoluto.

A filosofia latina encara em primeiro lugar a natureza em si mesma e prossegue até o subordinado (a Pessoa); a filosofia grega encara em primeiro lugar o subordinado e aí penetra depois para encontrar a natureza. Este ponto explica justamente a facilidade de entendimento e compreensão do método ortodoxo para o ocidental, partindo das três pessoas como Jesus fez na “Grande Comissão”, chega-se unidade de Deus. Nós atrelados ao pensamento ocidental partimos de Deus para explicar a diversidade de Pessoas nele. O problema aqui não é o método ser certo ou errado, mas a facilidade que o pensamento ortodoxo fornece na compreensão da trindade é inegável.
 
O Oriente vê o perigo quando não é a Monarquia do Pai, mas a natureza una que se erige em princípio da unidade na Trindade. O princípio de unidade não é a natureza, mas o Pai que estabelece relações de origem em relação a Ele mesmo, como a única Fonte de qualquer relação.

Para os Pais Orientais confessar a unidade trinitária é reconhecer o Pai como a única fonte das Hipóstases que simultaneamente recebem dele a mesma e única natureza. A Hipóstase é a maneira pessoal de se apropriar a mesma natureza, sendo que cada uma delas na sua realidade única ultrapassa as simples relações de origem. Todos os Pais afirmam a única Fonte Hipostática do Pai e ao mesmo tempo uma relação íntima entre o Filho e o Espírito inseparavelmente concebidos e unidos. A processão do Filho e do Espírito Santo do único Pai foi sempre acentuada fortemente pelos Pais Orientais.

A beatitude designa, para o Oriente, o infinito da deificação, participação da vida divina e visão da glória trinitária através da humanidade glorificada do Cristo.

O Pai é a fonte da Verdade, o Filho é o princípio de revelação da Verdade do Pai, o Espírito Santo é o princípio da sua manifestação dinâmica e vivificante, ele é a Vida da Verdade, o seu Espírito.                          


A Trindade no Antigo e no Novo Testamento

A principal contribuição do Antigo Testamento para a doutrina da Trindade é enfatizar a unidade de Deus. Deus é singular e único, cf. Dt 6.4 [“O Senhor nosso deus é o único Senhor”]. Deus exige a exclusão de todos os falsos deuses, descartando qualquer possibilidade de triteísmo (Dt 5.7-11).

Mas, sem dúvida, também no Antigo encontramos textos claramente trinitários. Vejamos, por exemplo, Isaías 48.16, mas há um profundamente interessante; Provérbios 8.22-31, sobre a personificação da Sabedoria. Apesar dos problemas de tradução, estes, devidamente solucionados (qanah, significa possuir, dirigir e é diferente de bara, criar),  permitem uma impressionante leitura trinitária do texto.

No Novo Testamento a evidência trinitariana é esmagadora. Deus continua sendo pregado como Deus único (Gl 3.20), Jesus porém proclama sua própria divindade (Jo 8.58) e aceita a adoração de seus discípulos (Mt 16.16; Jo 20.28). É equiparado a Deus (Jo 1.1), associado a Deus nas cartas de Paulo (1Co 1.3, etc.). Mas o Consolador, o Espírito de Deus é incluído no mesmo relacionamento (2Co 13.14).

O apóstolo Pedro destaca a eleição pelo Pai, a santificação através do Espírito e a aspersão do sangue de Jesus Cristo (1Pe 1.2) em relação à salvação dos crentes. No batismo de Jesus, as três Pessoas são mencionadas (Mt 3.16-17). Os discípulos são chamados a batizar em nome das três Pessoas (Mt 28.19) e a benção de Paulo, completa, inclui o amor de Deus, a graça do Filho e a comunhão do Espírito Santo (2Co 13.14). 

A divindade de Deus Pai

De todas as pessoas da Trindade muito possivelmente Deus Pai é o menos conhecido. Mas o fato de que o Pai é Deus é indiscutível. Jo 6.27; Ef 4.6.

O nome hebraico Abba aparece no AT (Dt 32.6; 2Sm 7.14; 1Cr 17.13; 22.10; 28.6; Sl 68.5; 89.26; Is 63.16; 64.8; Jr 3.4,19; 31.19; Ml 1.6; 2.10). Literalmente, abba significa papai.

Ele é o Pai de Cristo – Mt 3.17; 11.27; Mc 14.36.
de Israel – Ex 4.22,23; Dt 32.6;
dos crentes – Rm 8.14-17; Gl 3.20; Ef 4.6
dos anjos – Jó 1.6; 38.7
E sendo “Pai da glória” (Ef 1.17), “Pai das luzes” (Tg 1.17) e “Pai de todos” (Ef 4.6), o título indica que a Primeira Pessoa da Trindade é a fonte da procedência de todas as coisas.

Atividades

Autor do decreto e da eleição – Sl 2.7-9; Ef 1.3-11; cf. Is 64.8
Criador de todos, através do Verbo e do Espírito Santo (Ef 3.14s; Hb 12.9)
Paternoster ou paterfamilias: é quem estabelece a família de Deus, administrando tanto herança como disciplina aos seus filhos – Gl 4.4-7; Hb 12.9.
É ele Aquele que ama o mundo – Jo 3.16
A Ele tudo irá voltar – 1Co 15.24-28.

A divindade do Filho, Jesus Cristo

Heresias de ontem e de hoje
“Houve um tempo quando Jesus não era”. Ário, sacerdote do século quarto que deu origem ao arianismo, heresia unitarista que afirmava ter sido Cristo criado por Deus, negando assim a Trindade.
“O Evangelho que Jesus proclamou só tem a ver com o Pai, e nada com o Filho”. A von Harnack (1851-1930), teólogo e historiador alemão (What is Christianity, al. 1900, ingl. 1912, pp. 146-147).
“Um homem escolhido por Deus para um cargo especial no propósito divino; (...) as idéias mais tardias de sobre Jesus como Deus encarnado, como a Segunda Pessoa da Santa Trindade vivendo uma vida humana, procedem de uma maneira mitológica ou poética de expressar o seu significado para nós”. John Hick, teólogo liberal contemporâneo, (The Myth os God Incarnate, 1977, p. ix).
O testemunho dos Evangelhos

Jo 8.58 – “Eu Sou”[εγϖ ειμι grego , cf. LXX, Ex 3.14s].
Jo 10.30 – “Eu e o Pai somos um”. [εν, gênero neutro em grego, indicando um em essência].
Jo 1.1-3 – “O Verbo era Deus... sem Ele nada do que feito se fez”.

O testemunho de Atos e das cartas
At 20.28 – a igreja que Deus comprou “com o seu próprio sangue”.
Rm 9.5 – “Cristo ... Deus bendito para todo o sempre”.
Fp 2.5-8 – Ele “subsistindo em forma [μορφη, morfé] de Deus”.

Dificuldades exegéticas/teológicas a respeito da divindade de Cristo
Πρωτοϖτοκος  gr. protótokos, “o primogênito”: aparece nove vezes no NT, sendo que sete se referem a Cristo, cf. Lc. 2.7, Rm 8.29, Cl 1.15, 18, Hb 1.6, Ap 1.5. Em que sentido Jesus Cristo é o primogênito? 
Αρχη gr. arké, princípio. Em que sentido Jesus Cristo é “o princípio da criação de Deus”? [Ap 3.14].


O Espírito Santo é Deus 
É pessoal e distinto do Pai:
1Co 2.10-13 -- Ele tem inteligência própria.
Ef. 4.30 – Ele possui emoções [e mais: Mt. 12.31; Jo 14.26; At 5.3-9; Rm 8.16].

Ele é divino -- Mt 28.19 [e mais: AT. 5.3, 4, 9; 2Co 3.17-18; Is 48.16; Is. 40.13-18; 2Sm 23.2-3].

Atributos divinos: Onisciência -- Is 40.13-14,28; 1Co 2.10-11. Onipotência – Is 40.13-17. Onipresença – Sl 139.7-9. Santidade – Ef 4.30. Verdade – Jo 14.17; 15.26; 16.13. Vida – Rm 8.2. Espírito de graça – Hb 10.29. Glória – 1Pe 4.14.

“Todos os atributos específicos de Deus são atribuídos a Ele [o Espírito Santo], assim como ao Filho” (Calvino). Assim, resistir (At 7.51), apagar (1Ts 5.19), entristecer (Ef 4.30) ou ultrajar (Hb 10.29) o Espírito Santo é fazê-lo contra Deus.

Obras específicas do Espírito Santo: A geração de Jesus – Mt. 1.20; Lc 1.35. A criação do universo – Gn 1.2; Is 40.12; Sl 33.6. A inspiração das Escrituras – 2Tm 3.16; 2Pe 1.20,21; 1Co 2.12-16.

Ministério do Espírito Santo junto aos eleitos: regeneração / novo nascimento – Jo 3.5-7; batismo -- 1 Co 12.13; selo – Ef 4.30; habitação – 1Co 6.19.  Somos filhos legítimos de Deus – 1Jo 3.9-10; templo de Deus – 1Co 3.16; confortados pelo Espírito Santo – At 9.31; que intercede por nós – Rm 8.14, nos dá dons espirituais – 1Co 12.7; e nos ressuscita – Rm 8.11.


BATISMO E PLENITUDE DO ESPÍRITO SANTO
Uma leitura a partir de John Stott 

Quando falamos de batismo (βαπτιϖζω, mergulhar, imergir em grego) no Espírito Santo estamos nos referindo a uma benção recebida no início de nossa vida cristã, que não acontece tempos depois e que é concedida a todos os cristãos, conforme I Co 12:13, At 1:5 e Ef 4:5. Já a plenitude (plhvroma, estar completo, estar cheio em grego) do Espírito Santo é uma condição que deveria ser contínua, mas que para acontecer precisamos apropriar-nos continuamente desse dom, conforme Ef 5:18, Gl 5:16, I Ts 5:19, Ef 4:30. A conclusão é que o batismo, como acontecimento inicial, não pode ser repetido, nem pode ser perdido, mas o ato de ser enchido pode e, no mínimo, precisa ser conservado.

Stott divide o ser enchido em três grupos. Primeiro, como característica dos cristãos dedicados. Os sete homens que foram escolhidos para cuidar das viúvas da igreja de Jerusalém precisavam ser “cheios do Espírito”, assim como de boa reputação, cheios de sabedoria e cheios de fé (At 6:3-5). Barnabé também é descrito como um “homem cheio do Espírito Santo e de fé” (At 11:24). E os recém convertidos de Antioquia da Pisídia, “transbordavam de alegria e do Espírito Santo” (At 13:52). Em segundo lugar, a expressão indica uma capacitação para um ministério ou cargo especial. Assim, João Batista seria “cheio do Espírito, já do ventre materno”, como preparo para seu ministério profético (Lc 1:15-17). Da mesma maneira, Ananias fala a Saulo que ele seria “cheio do Espírito Santo”, referindo-se a sua indicação como apóstolo (At 9:17, 22:12-15 e 26:16-23).

Finalmente, temos aquelas ocasiões em que o Espírito Santo foi concedido para equipar para uma tarefa imediata, especialmente numa emergência. Zacarias foi enchido antes de profetizar, embora fosse sacerdote e não profeta. E também sua mulher, Isabel (Lc 1:5-8, 41 e 67). A mesma coisa aconteceu com Pedro, antes de falar no Sinédrio, com Estevão antes de ser martirizado, e com Paulo, antes de repreender o mago Elimas. Todos ficaram “cheios do Espírito Santo”, que os capacitou a enfrentarem situações desafiadoras (At 4:8 e 31, 7:55 e 13:9).

Em Efésios 5:18-21 Paulo fala sobre as características de uma pessoa cheia do Espírito Santo. Mostra que a principal é moral e não miraculosa. Reside no fruto do Espírito e não nos dons do Espírito. E o primeiro sinal desse fruto do Espírito é o amor, que se traduz em comunhão. É comunhão espiritual, que se expressa em culto conjunto. O segundo sinal é a glorificação do Senhor Jesus, que acontece através do coração. O terceiro sinal é o dar graças a Deus por todas as coisas, não importa o momento ou as circunstâncias. Sempre que um crente está cheio do Espírito, ele agradece ao Pai celeste. O quarto sinal, assim como o primeiro, está relacionado ao nosso irmão: a submissão, como afirma Stott, é a marca registrada no cristão cheio do Espírito Santo. Diz ele, “não é a auto-afirmação, mas a auto-submissão”.

“Deixai-vos encher” é uma ordem. A plenitude do Espírito Santo não é uma opção, mas uma obrigação de todo cristão. Em grego o verbo está no plural, ou seja, é uma ordem dirigida a toda a comunidade cristã, sem exceção. E está, também, na voz passiva: “sede enchidos” ou “deixai-vos encher”. A condição implícita na construção grega é o entregar-se sem reservas ao Espírito Santo, o que não implica numa atitude passiva, mas numa submissão consciente. E por fim, o verbo está no presente, o que significa uma ação presente e contínua, que começa agora.

Para mostrar que esta ação não deve ser estática, mas dinâmica, Stott dá o exemplo de um bebê recém-nascido, de três quilos, e de um homem adulto, de 1,80 m e 75 quilos de peso. Ambos estão “cheios de ar”, mas a capacidade de seus pulmões são diferentes. Da mesma maneira, o cristão maduro espiritualmente terá uma plenitude do Espírito Santo maior do que o crente recém nascido em Cristo.

É importante notar que um baixo nível de vida cristã é encontrado em todos os grupos cristãos. O fracasso acontece não no momento de sua conversão, mas no desenvolvimento de sua vida cristã, mesmo após terem vivido experiências excepcionais, ao rebaixarem suas responsabilidades morais, sua honestidade, pureza e altruísmo. E Stott agrega que “a derrota e a vida medíocre de muitos cristãos não são evidências de que necessitam ser batizados com o Espírito Santos, mas de que precisam recuperar a plenitude do Espírito”.

Uma parte das chamadas experiências pentecostais são demoníacas. E isso não deveria nos deixar boquiabertos, pois Jesus nos alertou que o demônio tentaria enganar os próprios escolhidos. A busca descontrolada, no mundo atual, por coisas ocultas pode levar muitos cristãos ao engano. Em segundo lugar, uma grande parte dessas experiências são psicológicas. Isto significa que têm origem na psiquê e não no Espírito de Deus. Exemplo disso são as formas de glossolalia, bem conhecida em círculos hindus, muçulmanos e em determinados casos clínicos. O que os cristãos envolvidos com fenômenos desse tipo devem se perguntar é até que ponto isso ajuda à edificação da igreja, promove a justiça e glorifica a Cristo. Mas, sem dúvida, existem experiências reais de conversão que envolvem experiências não previsíveis, mas que mesmo excepcionais estão dentro dos padrões bíblicos.

Exatamente porque existem experiências reais e verdadeiras não previsíveis, não devemos criticar a experiência cristã de ninguém. É claro, porém, que devemos ajudar crentes fiéis a entenderem a fé a partir das categorias bíblicas e do esclarecimento doutrinário que o Novo Testamento nos oferece.
 

O que os primeiros cristãos pensavam sobre
a Santa Trindade e as três Pessoas de Deus

"E mais, meus irmãos: se o Senhor [Jesus] suportou sofrer por nós, embora fosse o Senhor do mundo inteiro, a quem Deus disse desde a criação do mundo: 'façamos o homem à nossa imagem e semelhança', como pode ele suportar sofrer pela mão dos homens?" (Autor desconhecido, ano 74, Carta de Barnabé 5,5).
"No que diz respeito ao Batismo, batizai em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo em água corrente. Se não houver água corrente, batizai em outra água; se não puder batizar em água fria, façai com água quente. Na falta de uma ou outra, derramai três vezes água sobre a cabeça, em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo" (Autor desconhecido, ano 90, Didaquê 7,1-3).
"Um Deus, um Cristo, um Espírito de graça" (Clemente de Roma, ano 96, Carta aos Coríntios 46,6).
"Como Deus vive, assim vive o Senhor e o Espírito Santo" (Clemente de Roma, ano 96, Carta aos Coríntios 58,2).
"Vós sois as pedras do templo do Pai, elevado para o alto pelo guindaste de Jesus Cristo, que é a sua cruz, com o Espírito Santo como corda" (Inácio de Antioquia, ano 107, Carta aos Efésios 9,1).
"Procurai manter-vos firmes nos ensinamentos do Senhor e dos apóstolos, para que prospere tudo o que fizerdes na carne e no espírito, na fé e no amor, no Filho, no Pai e no Espírito, no princípio e no fim, unidos ao vosso digníssimo bispo e à preciosa coroa espiritual formada pelos vossos presbíteros e diáconos segundo Deus. Sejam submissos ao bispo e também uns aos outros, assim como Jesus Cristo se submeteu, na carne, ao Pai, e os apóstolos se submeteram a Cristo, ao Pai e ao Espírito, a fim de que haja união, tanto física como espiritual" (Inácio de Antioquia, ano 107, Carta aos Magnésios 13,1-2).
"Por isso vos peço que estejais dispostos a fazer todas as coisas na concórdia de Deus, sob a presidência do bispo, que ocupa o lugar de Deus, dos presbíteros, que representam o colégio dos apóstolos, e dos diáconos, que são muito caros para mim, aos quais foi confiado o serviço de Jesus Cristo, que antes dos séculos estava junto do Pai e por fim se manifestou. [...] Correi todos juntos como ao único templo de Deus, ao redor do único altar, em torno do único Jesus Cristo, que saiu do único Pai e que era único em si e para ele voltou. [...] Existe um só Deus, que se manifestou por meio de Jesus Cristo seu Filho, que é o seu Verbo saído do silêncio, e que em todas as coisas se tornou agradável àquele que o tinha enviado" (Inácio de Antioquia, ano 110, Carta aos Magnésios 6,1; 7,2; 8,2).
"Que não somos ateus, quem estiver em são juízo não o dirá, pois cultuamos o Criador deste universo, do qual dizemos, conforme nos ensinaram, que não tem necessidade de sangue, libações ou incenso. [...] Em seguida, demonstramos que, com razão, honramos também Jesus Cristo, que foi nosso Mestre nessas coisas e para isso nasceu, o mesmo que foi crucificado sob Pôncio Pilatos, procurador na Judéia no tempo de Tibério César. Aprendemos que ele é o Filho do próprio Deus verdadeiro, e o colocamos em segundo lugar, assim como o Espírito profético, que pomos no terceiro. De fato, tacham-nos de loucos, dizendo que damos o segundo lugar a um homem crucificado, depois do Deus imutável, aquele que existe desde sempre e criou o universo. É que ignoram o mistério que existe nisso e, por isso, vos exortamos que presteis atenção quando o expomos" (Justino Mártir, ano 151, I Apologia 13,1.3-6).
"Os que são batizados por nós são levados para um lugar onde haja água e são regenerados da mesma forma como nós o fomos. É em nome do Pai de todos e Senhor Deus, e de Nosso Senhor Jesus Cristo, e do Espírito Santo que recebem a loção na água. Este rito foi-nos entregue pelos apóstolos" (Justino Mártir, ano 151, I Apologia 61).
"Amigos, foi do mesmo modo que a Palavra de Deus se expressou pela boca de Moisés ao indicar-nos que o Deus que se manifestou a nós falou a mesma coisa na criação do homem, dizendo estas palavras: 'Façamos o homem à nossa imagem e semelhança'. [...] Citar-vos-ei agora outras palavras do mesmo Moisés. Através delas, sem nenhuma discussão possível, temos de reconhecer que Deus conversou com alguém que era numericamente distinto e igualmente racional. [...] Mas esse gerado, emitido realmente pelo Pai, estava com ele antes de todas as criaturas e com ele o Pai conversa, como nos manifestou a palavra por meio de Salomão. (Justino Mártir, ano 155, Diálogo com o Judeu Trifão 62,1-2.4).
"Por isso e por todas as outras coisas, eu te louvo, te bendigo, te glorifico, pelo eterno e celestial sacerdote Jesus Cristo, teu Filho amado, pelo qual seja dada glória a ti, com Ele e o Espírito, agora e pelos séculos futuros. Amém. (Policarpo de Esmirna, ano 155, Martírio de Policarpo 14,3).
"Eu te louvo, Deus da Verdade, te bendigo, te glorifico por teu Filho Jesus Cristo, nosso eterno e Sumo Sacerdote no céu; por Ele, com Ele e o Espírito Santo, glória seja dada a ti, agora e nos séculos futuros! Amém." (Policarpo, ano 156, Martírio de Policarpo 14,1-3).
"[O Pai] enviou o Verbo como graça, para que se manifestasse ao mundo. [...] Desde o princípio, ele apareceu como novo e era antigo, e agora sempre se torna novo nos corações dos fiéis. Ele é desde sempre, e hoje é reconhecido como Filho" (Quadrato, ano 160, Carta a Diogneto 11,3-4).
"De fato, reconhecemos também um Filho de Deus. E que ninguém considere ridículo que, para mim, Deus tenha um Filho. Com efeito, nós não pensamos sobre Deus, e também Pai, e sobre seu Filho como fantasiavam vossos poetas, mostrando-nos deuses que não são em nada melhores do que os homens, mas que o Filho de Deus é o Verbo do Pai em idéia e operação, pois conforme a ele e por seu intermédio tudo foi feito, sendo o Pai e o Filho um só. Estando o Filho no Pai e o Pai no Filho por unidade e poder do Espírito, o Filho de Deus é inteligência e Verbo do Pai. Se, por causa da eminência de vossa inteligência, vos ocorre perguntar o que quer dizer "Filho", eu o direi livremente: o Filho é o primeiro broto do Pai, não como feito, pois desde o princípio Deus, que é inteligência eterna, tinha o Verbo em si mesmo; sendo eternamente racional, mas como procedendo de Deus, quando todas as coisas materiais eram natureza informe e terra inerte e estavam misturadas as coisas mais pesadas com as mais leves, para ser sobre elas idéia e operação" (Atenágoras de Atenas, ano 177, Súplica pelos Cristãos, 10,2-4).
"Como não se admiraria alguém de ouvir chamar ateus os que admitem um Deus Pai, um Deus Filho e o Espírito Santo, ensinando que o seu poder é único e que sua distinção é apenas distinção de ordens?" (Atenágoras de Atenas, ano 177, Súplica pelos Cristãos 10).
"Igualmente os três dias que precedem a criação dos luzeiros são símbolo da Trindade: de Deus [=Pai], de seu Verbo [=Filho] e de sua Sabedoria [=Espírito Santo]" (Teófilo de Antioquia, ano 181, Segundo Livro a Autólico 15,3).
"Com efeito, a Igreja espalhada pelo mundo inteiro até os confins da terra recebeu dos apóstolos e seus discípulos a fé em um só Deus, Pai onipotente, que fez o céu e a terra, o mar e tudo quanto nele existe; em um só Jesus Cristo, Filho de Deus, encarnado para nossa salvação; e no Espírito Santo que, pelos profetas, anunciou a economia de Deus..." Irineu de Lião, 130-200, pai grego da igreja primitiva (Contra as Heresias, ano 189, I,10,1).
“O Filho, que sempre coexiste com o Pai desde o princípio, revela o Pai aos anjos, arcanjos, poderes, virtudes e todos a quem Deus quer Se revelar”. “Deus sempre tem com Ele seu Verbo e a sua Sabedoria, o Filho e o Espírito”. (Irineu, Contra as Heresias, II, 30; IV, 20, 21). 
"Já temos mostrado que o Verbo, isto é, o Filho esteve sempre com o Pai. Mas também a Sabedoria, o Espírito estava igualmente junto dele antes de toda a criação" (Irineu,, Contra as Heresias IV,20,4).
"Portanto, não foram os anjos que nos plasmaram -- os anjos não poderiam fazer uma imagem de Deus -- nem outro qualquer que não fosse o Deus verdadeiro, nem uma Potência que estivesse afastada do Pai de todas as coisas. Nem Deus precisava deles para fazer o que em si mesmo já tinha decretado fazer, como se ele não tivesse suas próprias mãos! Desde sempre, de fato, ele tem junto de si o Verbo e a Sabedoria, o Filho e o Espírito. É por meio deles e neles que fez todas as coisas, soberanamente e com toda a liberdade, e é a eles que se dirige quando diz: 'Façamos o homem à nossa imagem e semelhança'" (Irineu de Lião, ano 189, Contra as Heresias IV,20,1).
"Foi estabelecida a lei de batizar e prescrita a fórmula: 'Ide, ensinai os povos batizando-os em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo'" (Tertuliano, ano 210, Do Batismo 13).
“Existe então uma Trindade, santa e completa, que confessamos como Deus em [as pessoas do} Pai, Filho e Espírito Santo, o qual não contém nada estranho ou externo mesclado consigo mesmo, nem é composto de um que cria e outro que foi criado, pois todos são criadores. Possui uma só essência em sua natureza indivisível, sendo sua atividade uma. O Pai faz tudo através do Verbo [e] no Espírito. Logo, a unidade do Santo Triúno é preservada. Assim, um só Deus é pregado na igreja, ‘o qual é sobre todos (Ef 4.6), age por meio de todos e está em todos, (...) sobre tudo’ como o Pai, como princípio, como fonte, ‘por meio de todos’, através do Verbo [Logos], ‘em todos’, no Espírito Santo. É uma Trindade não apenas no nome e na maneira de falar, mas em verdade e realidade”. Atanásio (296-373), bispo de Alexandria, opositor da heresia ariana e o maior teólogo de seu tempo (Epistolae ad Serapion, 1.15.137).
"Anatematizamos todos aqueles que seguem o erro de Sabélio, os quais dizem que o Pai e o Filho são a mesma Pessoa" (Concílio de Roma, ano 382, Tomo de Dâmaso, cânon 2).
“Ele (Jesus) deve ser tornar um homem para sofrer, e continuar necessariamente sendo Deus para que possa sofrer suficientemente por todo o mundo... Consequentemente, desde que Ele mesmo é Deus, o Filho de Deus, Ele ofereceu-se a Si mesmo por sua própria honra para Si mesmo, assim como o fez ao Pai e ao Espírito. Isto é, Ele ofereceu sua humanidade à sua divindade, a qual é em si mesma uma das três pessoas”. Anselmo,1033-1109, arcebispo de Cantuária e um dos maiores teólogos medievais (Cur Deus Homo, p. 18).


Outras Fontes:
Hermas: (ano 80) O Pastor 12.
Tertuliano: (ano 216) Contra Praxéas 2; 9; 25.
Orígenes: (ano 225) Doutrinas Fundamentais IV,4,1.
Hipólito de Roma: (ano 228) Refutação de Todas as Heresias 9,7; 10,29.
Novaciano: (ano 235) Tratado sobre a Trindade 11; 26.
Dionísio: (ano 262) Carta a Dionísio de Alexandria 1; 2; 3.
Gregório Taumaturgo: (ano 265) Declaração de Fé.
Metódio: (ano 305) Prece ao Salmo 5.
Atanásio: (ano 359) Cartas a Serapião 1,28; (ano 360) Discurso contra os Arianos 3,4.
Sechnall de Irlanda: (ano 444) Hino a São Patrício 22.
Patrício: (ano 447) O Peitoral de São Patrício 1; (ano 452) Confissão de São Patrício 4.
Fulgêncio de Ruspe: (ano 513) A Trindade 4,1.


As objeções racionalistas à Trindade falham ao insistirem em interpretar o Criador em termos de criatura. Ou seja, ao ver a unidade de Deus em termos de unidade matemática. Somos chamados a conhecer Deus conforme Se revelou nas Escrituras e nelas o Deus único Se apresenta a nós como Pai, Filho e Espírito Santo. Portanto, entendendo a primazia da fé em nossa caminhada, reconhecemos a glória da Trindade eterna.


Textos recomendados

Robert Jensen, “O Deus triúno” in Dogmática Cristã, Braaten e Jensen, São Leopoldo, Sinodal, pp.99-202.
Millard Erickson, “A triunidade de Deus”, in Teologia Sistemática, São Paulo, EVN, pp.127-139.
J. Scott Horrell, “O Deus Trino que se dá, a imago Dei e a natureza da igreja local”,  São Paulo, Vox Scripturae, vol. VI, no 2, dezembro de 1996.
Ricardo Barbosa de Souza, “A Trindade, o pessoal e o social na espiritualidade cristã”, São Paulo, Vox Scripturae, vol. V, no 1, março de 1995.


São Paulo, 9 de fevereiro de 2006
Jorge Pinheiro