lundi 17 juillet 2017

O Brasil e o socialismo

O Brasil e o socialismo: de 1945 a 1980

Jorge Pinheiro, PhD


O pensamento socialista e, mais especificamente, o marxismo, em sua elaboração sobre as religiões e sobre o cristianismo tem a sua formulação mais aguda num manuscrito escrito por Karl Marx, em 1845, quando estava exilado em Bruxelas, que ficou conhecido como as Teses sobre Feuerbach. Na quarta tese, talvez a mais importante para o desenvolvimento de nossa tese e para a discussão metodológica de nosso trabalho, Marx afirma:

“Feuerbach parte do fato da auto-alienação religiosa, da duplicação do mundo no mundo religioso, representado, e num real. O seu trabalho consiste em resolver o mundo religioso na sua base mundana. Ele perde de vista que depois de completado este trabalho ainda fica por fazer o principal. É que o fato de esta base mundana se destacar de si própria e se fixar, um reino autônomo, nas nuvens, só se pode explicar precisamente pela autodivisão e pelo contradizer-se a si mesma desta base mundana. É esta mesma, portanto, que tem de ser primeiramente entendida na sua contradição e depois praticamente revolucionada por meio da eliminação da contradição. Portanto, depois de, por exemplo a família terrena estar descoberta como o segredo da sagrada família, é a primeira que tem, então, de ser ela mesma teoricamente criticada e praticamente revolucionada”.

Dessa maneira, Marx parte do fato de que a religião torna o homem estranho a si mesmo e desdobra o mundo em um mundo religioso, imaginário, e um mundo real. Por isso, considera que o trabalho do teórico consiste em dissolver o mundo religioso em sua base terrena. Por isso vai dizer que Feuerbach não percebe que, findo este trabalho, o principal ainda está por fazer. O fato de que a base terrena se separe de si mesma e se estabeleça nas nuvens, como reino independente, só pode ser explicado pela dissociação interna e pela contradição dessa base terrena consigo mesma. O que deve, portanto, ser feito antes de qualquer coisa é compreendê-la em sua contradição e depois remover essa contradição. Assim, por exemplo, após descobrir que a família terrena é o segredo da ‘Sagrada Família’, é a família terrena que deve ser criticada teoricamente e revolucionada. 

Marx explica a crença religiosa por meio das contradições da sociedade humana e de suas dissociações, que induzem o ser humano a projetar fora do mundo, em um paraíso, a realidade na qual desejaria viver. Mas como afirma Radice[1], na quarta tese sobre Feuerbach, Marx afirma de modo explícito que a forma religiosa reflete um conteúdo histórico. Por estar impotente, o ser humano imagina uma potência divina, por estar abandonado cria uma providência. 

Mas aonde levam essas visões? E aqui está a redescoberta pelo pensamento marxista oficial, no final dos anos 60, a respeito da importância da consciência religiosa. Em seu décimo congresso o Partido Comunista Italiano diria que é necessário compreender como “a aspiração a uma sociedade socialista não só possa abrir caminho em homens que têm uma fé religiosa, mas que tal aspiração pode encontrar em uma sofrida consciência religiosa um estímulo frente aos dramáticos problemas do mundo contemporâneo”. [2]

Dizemos redescoberta da importância da consciência religiosa, porque Gramsci algumas dezenas de anos antes do décimo congresso do PCI já havia afirmado que “a religião cristã, que – em certos período histórico e em condições históricas determinadas – foi e continua a ser uma necessidade, uma forma necessária de racionalidade do mundo e da vida”. [3] E o mais interessante é que Gramsci afirmou ser o marxismo herdeiro de dois movimentos culturais, a Reforma protestante a Revolução francesa:

“A filosofia da práxis pressupõe todo este passado cultural, o Renascimento e a Reforma, a filosofia alemã e a revolução francesa, o liberalismo laico e o historicismo; em suma, o que está na base de toda concepção moderna da vida. A filosofia da práxis é o coroamento de todo movimento de reforma intelectual e moral, dialetizado no contraste entre cultura popular e alta cultura. Ela corresponde ao nexo Reforma protestante mais Revolução francesa: trata-se de uma filosofia que é também uma política e uma política que é também uma filosofia”. [4]

Assim, o marxismo pode ser entendido como desenvolvimento que se dá a partir de três correntes da Reforma protestante: a luterana que legou a Hegel, a calvinista que legou Ricardo e a economia clássica, e a huguenote que criou o jacobinismo. Segundo Portelli, “a estas três fontes originais, Gramsci tenta ligar a tradição cultural italiana, principalmente Maquiavel, como precursor do jacobinismo, e Croce como desenvolvimento historicista da filosofia alemã. O marxismo torna-se assim um ponto de conferência destas três correntes sob a forma de crítica radical”.[5]

Dessa forma, para Gramsci, a Reforma foi não somente uma reforma ao nível da economia, filosofia e política, mas também uma revolução cultural, no sentido de que procurou forjar uma nova humanidade. Para Gramsci a consciência religiosa cristã, que se traduziu em revolução cultural no século XVI, teve um caráter de suma importância na construção do pensamento contemporâneo. Ou, nas suas palavras: “da primitiva rusticidade intelectual do homem da Reforma (leia-se Lutero) decorreu a filosofia clássica alemã e o vasto movimento cultural de onde nasceu o mundo moderno”. [6]

Com o fim do Estado Novo em 1945, a redemocratização e o surgimento de novos partidos, e em especial do Partido Socialista Brasileiro, a novidade político-partidária não se deu à margem de discussões caras à modernidade, como aquela sobre o processo do conhecimento, sobre a história da riqueza e da acumulação capitalista e a questão da liberdade humana. Temas que quase sempre enfocamos como meramente políticos, mas, como alertou Gramsci, têm também base na Reforma protestante e em seus desdobramentos ao nível do pensamento e da práxis.

Depois da redemocratização de 1945, dois partidos vão polarizar a esquerda do país, o Partido Comunista Brasileiro, PCB, e o Partido Socialista Brasileiro, PSB. Nestes dois partidos traduziram-se duas visões diferentes de socialismo, que no correr dos vinte anos seguintes atrairiam importantes setores da esquerda brasileira.

Mesmo com o golpe militar de 1964 e a conseqüente ilegalidade dos partidos políticos do período anterior, intelectuais e militantes migraram para as organizações da esquerda clandestina levando idéias e projetos político-partidários. Assim, as idéias socialistas não morreram, mas foram transplantadas para organizações que procuravam sobreviver sob precárias condições de clandestinidade e exílios.

Parte dessa esquerda lançou-se à luta armada, sofrendo baixas e distanciando-se cada vez mais de suas bases sociais. A esquerda armada e o que representou para a história das idéias socialistas no Brasil é parte do capítulo, assim como a autocrítica a essa política militarista. O autor desse projeto de tese, junto com outros companheiros, um deles assassinado durante o golpe de Pinochet no Chile, é um dos autores da primeira crítica pública do esquerdismo militarista da época. Produzido no Chile, por militantes exilados reunidos no grupo Ponto de Partida, tal crítica foi publicada em português e teve circulação clandestina, sendo posteriormente publicada no jornal socialista norte-americano The Militant. 

Com a crise do governo militar e a abertura política no final dos anos 70, idéias e militantes voltam à luz e sem armas, mas com bagagem ideológica, desembarcam no recém criado Partido dos Trabalhadores. Qual fênix, velhos debates ganham novos foros. Entre eles: socialismo, mas que socialismo?



A tradição democrática do PSB

O período que cobre os anos de 1945 a 1964 é conhecido pela historiografia brasileira como “a era dos partidos”. A deposição do ditador Getúlio Vargas, no dia 29 de outubro de 1945, aprofundou o processo de democratização vivido pelo país nos dois últimos anos e que tinha levado o governo Vargas a promulgar em 28 de fevereiro a Lei Constitucional no.9, fixando eleições e estabelecendo que o Parlamento modificaria a Carta outorgada em 1937.

As eleições para presidente da República, para deputados e senadores que comporiam a Assembléia Constituinte continuaram marcadas para o dia dois de dezembro. A esta altura doze partidos se mobilizavam para a participação eleitoral: o Partido Social Democrata (PSD), o Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), o Partido Republicano Democrático (PRD), o Partido Libertador (PL), o Partido Republicano (PR), o Partido Comunista do Brasil (PCB), o Partido Popular Sindicalista (PPS), o Partido Republicano Progressista (PRP, do ex-interventor Ademar de Barros), o Partido Agrário Nacional (PAN), o Partido Democrata Cristão (PDC), o Partido de Representação Popular (PRP, do integralista Plínio Salgado) e a União Democrática Nacional (UDN). 

Desses, apenas quatro conseguiram conquistar um número expressivo de eleitores. Mas outros partidos ainda estavam em processo de gestação, entre os quais o futuro Partido Socialista Brasileiro, o único no espectro político a defender um socialismo democrático. 

Em 1945, a idéia de democracia estava viva para os intelectuais e estudantes, e também para a classe média, mas para os trabalhadores urbanos, por terem adquirido direitos sociais durante a ditadura, havia um profundo sentido de gratidão à pessoa de Getúlio Vargas. Como a vivência da democracia no Brasil era pequena e não se estabelecera uma cultura democrática, a maioria dos operários preferia a garantia do espaço social que a liberdade política. 

No combate ao regime de Vargas havia setores à direita, como os latifundiários, empresários ligados ao capital estrangeiro, e setores à esquerda, como os liberais e socialistas. 

Assim, em 1945, um grupo de intelectuais e políticos fundou a Esquerda Democrática. Um poema do Guilherme de Figueiredo, militante da Esquerda Democrática, reflete o clima político da época. No Poema da Moça caída no Mar, Guilherme de Figueiredo lança um apelo a militares, cristãos e ao “homem pequenino que mora numa prisão” (referência ao líder comunista Luís Carlos Prestes) para que salvem o país que está se afogando.[7]

Mário de Andrade, depressa
A moça caiu no mar...
A MOÇA CAIU NO MAR!
Não estão ouvindo vocês?
Vamos todos, vamos todos,
Venha quem quiser ajudar.
Murilo põe na vitrola
Um concerto de Mozart
Sobral Pinto mande cartas
Brigadeiro desça do ar
General chame os amigos
Que a moça caiu no mar.

A moça caiu no mar
Já sente o gosto de sal
Seus cabelos estão frios
Chamai Tristão para rezar.
Vêm os peixes fluorescentes
Comer-lhe os dedos da mão
Vem doutor Getúlio Vargas
Devorar-lhe o coração
Vem os peixinhos do DIP
Os peixes dos Institutos
Peixões da Coordenação.
Chico Campos, Góes Monteiro
Receitam constituição
De 37 – não, não!
Se ela não morrer afogada
Morrerá dessa poção,
Marcondes Filho oferece
Uma complementação
Oh! Que vontade que eu sinto
De dizer um palavrão.

Amigos por que esperais?
A moça caiu no mar
Palimércio, Palimércio
Traze a tua legião,
Ressuscita Rui Barbosa
Ressuscita Castro Alves
Vejam todos quantos são.
João que chame Maria
Maria chame João
Venha o homem pequenino
Que mora numa prisão
Meu pai, você nem precisa
Fazer mais revolução.[8]


Mas o sonho de uma frente nacional que depusesse Getúlio Vargas e tirasse “a moça do mar” não se concretizou, porque Luís Carlos Prestes, anistiado pelo governo, apoiou o ditador. E Afonso Pena Júnior assim comentou o fato:


Não foi possível, não foi
Tirar a moça do mar
Porque o homem pequenino
Que morava na prisão
E a gente botou na rua
Para entrar no mutirão
Carregou para outra banda
Os caboclos do arrastão.
E a moça afogou no mar.
Nosso Senhor lhe perdoe
Que eu não perdôo não
Pois deixou morrer a moça
E acabou-se a geração...[9]


Fernando de Azevedo, professor paulista, expressou a posição da Esquerda Democrática, em março de 1945, ao criticar a aliança de Luís Carlos Prestes e dos comunistas com Getúlio Vargas. Segundo Azevedo, uma união nacional ao redor de Vargas poderia resultar numa “reação conservadora que traz em si mesma o germe das forças reacionárias que hoje desfraldam, na oposição, a bandeira democrática, para a enrolarem amanhã, conquistado o poder – se convier a seus interesses de dominação – mediante os estados de sítio ou de guerra montado para a opressão das minorias”.[10]

Assim, com a redemocratização, os campos políticos foram se definindo: democratas e socialistas por um lado, comunistas por outro. Dois anos depois, socialistas oriundos da Esquerda Democrática e da UDN fundaram o Partido Socialista Brasileiro, PSB. Seus dois líderes de maior expressão eram João Mangabeira e Hermes Lima, e a proposta central do PSB o “socialismo democrático", em oposição ao comunismo stalinista, visto como correia de transmissão da política internacional da União Soviética.

Foi nesse ambiente, de fragilidade do consenso e da democratização, que a intelectualidade brasileira estreou suas lutas, aderindo às causas populares. Alguns à esquerda, abjuram o liberalismo da UDN para em seguida entrarem no Partido Socialista Brasileiro ao tempo em que outro segmento, comprometido com o stalinismo firmava posição dentro do Partido Comunista — declarado ilegal em 1947 e com os parlamentares cassados em 1948.[11] Daniel Pécaut em estudo sobre os intelectuais da geração 1954-1964, analisando esse contexto declara:

"... o ardor democrático dos intelectuais de 1945 tinha poucas chances de durar. Tendo admitido, por cálculo ou impotência, o aspecto corporativista do regime, pouco inclinados aos prazeres da política partidária e, além disso, pouco instrumentados para tomar parte nela, não tinham motivos para celebrar as virtudes da ‘democracia formal’ que de qualquer forma nunca exaltaram assim".[12]

Segundo Cabrera[13], apesar das limitações impostas pela própria realidade da organização partidária, o PSB teve peso na intelectualidade de esquerda que se opunha ao stalinismo, ou seja, dissidentes do PCB, socialistas-cristãos e trotsquistas. Apesar de suas limitações, formulou propostas avançadas em termos sociais. Seu programa não lembra os dos partidos da social-democracia européia do pós-guerra, que, por exemplo, caminharam para um crescente alinhamento com os Estados Unidos, e tiveram condições de disputar a hegemonia das massas com os comunistas. O PSB reafirmou o socialismo e fez a defesa da socialização dos meios de produção. Seu programa, nos marcos do regime democrático, posicionou-se à esquerda, denunciando os males da sociedade capitalista brasileira, afirmando que a solução viria com a superação do regime de "exploração do homem pelo homem". Mas, ao fazer a defesa de tal superação, afirmava os marcos da democracia e da pluralidade, embora dissesse que a democracia não podia ser vista de maneira estática. Por isso, seu programa apontava para um conjunto de medidas que deveriam aprofundar a democracia e o controle popular do Estado.

Para entender a construção deste ideário, é importante ver que um de seus fundadores e também teórico de grande importância, João Mangabeira tinha sido preso em 1936 por fazer a defesa dos comunistas que realizaram o levante conhecido como a Intentona Comunista. Mas ao ser libertado em 1937 assim expôs suas idéias, que mais tarde seriam as da Esquerda Democrática:

Não sou comunista nem integralista, porque sou contra todas as ditaduras (...) sou homem da esquerda. Declaradamente da esquerda. Assim, sou pela liberdade ampla do pensamento e da cátedra, pela exposição livre de todas as doutrinas, pelo livre exame sem restrições. Sou pela separação entre Igreja e Estado. Na ordem social, sou pelas reivindicações proletárias e pelos deveres maiores impostos à propriedade (...) Sou por todas as soluções tendentes a retirar o país do estado de colonização em que se encontra.[14]

Na formação de Esquerda Democrática, no Rio de Janeiro, além de Mangabeira participaram dois intelectuais de primeira linha: Hermes Lima, jurista, professor universitário que perdera a cátedra em 1936 por seu combate ao fascismo e Domingos Velasco, goiano que participara dos levantes tenentistas e se tornara deputado federal em 1934. 

Em São Paulo, socialistas opositores do Partido Comunista Brasileiro criaram a União Democrática Socialista, UDS, e depois se uniram à Esquerda Democrática. Entre os fundadores estavam Paulo Emílio Salles Gomes, Antonio Candido, Aziz Simão, o presidente da União dos Trabalhadores Gráficos, João da Costa Pimenta, e Febus Gikovate.

No Rio Grande do Sul, com a fundação da Esquerda Democrática, lideranças como Bruno de Mendonça Lima, Germano Bonow Filho, Lenine Naquete tiveram importante participação na política estadual. 

Nas eleições de 1945, o PSD, locomotiva partidária do Estado Novo, conquistou 2.528.169 votos, elegendo o presidente da República, 151 deputados federais e 26 senadores, obtendo a maioria absoluta do eleitorado nacional. Faziam parte do PSD o próprio Getúlio Vargas, seus parentes próximos, como Êrnani do Amaral Peixoto, interventor no Rio de Janeiro em 1937 e genro do ditador, familiares de políticos de confiança de Vargas, como o general de brigada Ismar de Góis Monteiro, irmão do general Pedro Aurélio de Góis Monteiro (PSD/AL), que fora ministro da Guerra em 1934/35, Agamenon Sérgio de Godói Magalhães (PSD/PE), ministro do Trabalho em 1934/37 e cunhado do cônego Olímpio de Melo, interventor no Distrito Federal em 1936/37. E também grandes proprietários de terras, Maurício Graco Cardoso (PSD/SE), caciques políticos como Israel Pinheiro (PSD/MG), e grandes comerciantes como Cristiano Monteiro Machado (PSD/MG).

A UDN, que obteve 1.574.241 votos nas eleições, surgiu como o maior partido de oposição, elegendo 87 parlamentares para a Constituinte. Era uma oposição representativa do setor privado, pois dele faziam parte alguns dos mais importantes banqueiros do país, como José de Magalhães Pinto, fundador do Banco Nacional de Minas Gerais, Pedro Aleixo, diretor do Banco Hipotecário e Agrícola de Minas Gerais, e empresários da comunicação, como Assis Chateaubriand, dos Diários Associados, Herbert Moses, de O Globo, Paulo Bittencourt, do Correio da Manhã, e os Mesquita, de O Estado de S. Paulo. Tal composição levou os setores de esquerda da UDN a se deslocarem em direção a um partido que não estive comprometido com o grande capital.

Em abril de 1946, na sede da UNE no Rio de Janeiro, foi criado o Partido da Esquerda Democrática com programa e estatutos próprios que seriam a base para os do PSB. Para diferenciar-se dos comunistas apresentava-se sem “uma concepção filosófica de vida” e disposto “a realizar suas reivindicações por processos democráticos de luta política”. 

Um primeiro elemento que chama a atenção é que o PSB não se afirmava como um partido marxista, embora influenciado pelo pensamento de Karl Marx e de outros teóricos marxistas. O PCB reconhecia esta contribuição e se pretendia um espaço aberto a todos que desejassem lutar por uma sociedade fundada no socialismo e na liberdade. No PSB mescla-se o socialismo democrático, desvinculado da tradição stalinista, com um socialismo inspirado no pensamento de Rosa Luxemburgo e uma concepção liberal sobre o Estado e a sociedade.

Analisando o programa do PSB, sua prática política e sua trajetória, (...) o mesmo se constituiu num partido-semente, agitador de uma nova concepção política e cultural que deu base a um projeto de cidadania coletiva que, ao contrário dos projetos dos liberais orgânicos e mesmos dos comunistas, combinava as dimensões políticas e sociais da democracia.[15]

Ao definir a sociedade almejada separam-se do liberalismo econômico udenista e do socialismo dos comunistas:

O partido não considera socialização dos meios de produção e distribuição a simples intervenção do estado na economia (...) e realizar-se-á gradativamente, até a transferência, ao domínio social, de todos os bens possíveis de criar riqueza, mantida a propriedade privada nos limites das possibilidades de utilização pessoal, sem prejuízo do interesse coletivo.[16]

Assim, como expõe Cabrera[17], o PSB em seu programa tinha como objetivo o fim dos antagonismos de classe e se colocava como defensor dos interesses políticos dos trabalhadores. Admitia "a possibilidade de realizar algumas de suas reivindicações em regime capitalista, mas afirma sua convicção de que a solução definitiva dos problemas sociais e econômicos, mormente os de suma importância, como a democratização da cultura e da saúde pública, só será possível mediante a execução integral de seu programa" [18].

O programa do PSB consistia de doze pontos que sintetizavam o tipo de sociedade projetada pelo partido. A propriedade deveria ser gradualmente socializada, passando para a mão dos trabalhadores, a partir da ação parlamentar. O mesmo deveria acontecer com a terra que, nos casos de latifúndio, seria transformada em propriedade coletiva. Os itens que tratam da democratização, da organização do trabalho, da saúde e de educação, da organização política do Estado, do crédito, das finanças públicas, reforçam esta busca de transformação da sociedade. Diante da impossibilidade imediata de aplicação desses pontos programáticos, foram formulados nove pontos de transição, que partindo da ação imediata deviam levar às condições para a implantação do programa socialista. Assim as reivindicações transitórias propunham um programa de nacionalizações de bens, empresas, energia, terra, de adequação do crédito, do estímulo ao cooperativismo, da autonomia sindical, de aperfeiçoamento da democracia e da implantação de mecanismos de saúde pública e educacional que respondessem às necessidades do País.

No Congresso que elaborou a Constituição de 46, de composição predominantemente conservadora, a Esquerda Democrática, com dois parlamentares, Hermes Lima e Domingos Velasco, defendeu a reformulação da estrutura agrária, a liberdade partidária e sindical e denunciou a pressão policial sobre entidades populares. 

No movimento sindical defenderam a autonomia sindical sem o controle estatal. Foram favoráveis à unidade sindical, desde que decidida pelos trabalhadores e não uma unicidade definida por lei. Alguns militantes socialistas levantaram-se contra o imposto sindical e outros o admitiram desde que gerido pelos sindicatos. 

Mesmo sendo oposição às concepções e práticas do PCB a Esquerda Democrática colocou-se na defesa de sua existência legal e dos mandatos de seus parlamentares sob os princípios da inviolabilidade do mandato popular, a independência da Câmara dos Deputados e a inconstitucionalidade da medida. É interessante notar como eles desenvolviam a combinação dos princípios democráticos, incluindo a convivência com a diferença. 

A presença trotskista no PSB

Em abril de 1947, a segunda convenção do Partido da Esquerda Democrática resolveu pela sua transformação em Partido Socialista Brasileiro. Os objetivos eram os de definir com clareza seu socialismo e retirar os trabalhadores dos cultos ao chefe Luís Carlos Prestes, do PCB, e ao caudilho Getúlio Vargas, do PTB.

Plínio Mello, jornalista nos anos 40, contou, em entrevista à revista Teoria e Debate, que deixou a diretoria do Sindicato dos Jornalistas de São Paulo em 1947. Desde 1945, quando caiu a ditadura do Estado Novo, ele acompanhou o processo de reorganização partidária, integrando a Esquerda Democrática. Na sua II Convenção Nacional, em abril de 1947, a Esquerda Democrática transformou-se no Partido Socialista Brasileiro (PSB). Assim, muitos dos militantes trotskistas dos anos 30, no Brasil, passarão às fileiras do PSB: João da Costa Pimenta, Aristides Lobo, Fúlvio Abramo, Febus Gikovate, Mário Pedrosa (com o jornal Vanguarda Socialista) e Plínio Mello.

“Fui um dos promotores da mudança do nome da Esquerda Democrática para Partido Socialista. Escrevi um artigo sugerindo isso. O PSB era um partido pequeno, de elite, de intelectuais. (...) Cheguei a ser secretário-geral regional de São Paulo do PSB”.[19]

Karepovs e Marques Neto resgataram a trajetória dos trotskistas brasileiros das origens até o ano de 1966. O trotskismo durante esses anos se caracterizou por reunir pequenos grupos de militantes, sem inserção no movimento operário e de massas, composto principalmente por intelectuais e estudantes. Contudo, o trotskismo também ficou conhecido por sua radicalidade e capacidade de interpretar a realidade social brasileira. Segundo os autores, isto permitia aos trotskistas “enunciar realidades que escapavam a outras organizações políticas contemporâneas”. O trotskismo contribuiu ainda para romper com o monolitismo do partido único, dando um caráter pluralista à historia do movimento operário e fornecendo chaves teóricas para a discussão dos impasses e derrotas dos projetos da esquerda. (pp. 103-04).

As raízes do trotskismo brasileiro têm origens nos enfrentamentos internos do Partido Comunista da União Soviética e na Terceira Internacional. A oposição de Leon Trotsky a Josef Stálin, na década de 1920, determinou a reconfiguração do movimento comunista internacional com a formação da Oposição Internacional de Esquerda e, posteriormente, a Quarta Internacional, em 1938, proposta como partido mundial da revolução. Através da criação de seções nacionais e da implementação da teoria de que a revolução é permanente e mundial ou não será, e do Programa de Transição, Trotsky acreditou que poderia criar um movimento que teria condições de lutar contra o capitalismo, contra a social-democracia, contra o stalinismo e a proposta de “socialismo em um só país”, feita por Stálin. 

No Programa de Transição, base do pensamento político do grupo de Mário Pedrosa, Trotsky analisa o que chama de “as premissas objetivas para uma revolução socialista”. Para ele, a situação política mundial caracterizava-se pela crise histórica da direção do proletariado, e a premissa econômica da revolução proletária alcançara o ponto mais elevado atingido sob o capitalismo. 

“As forças produtivas da humanidade deixaram de crescer. As novas invenções e os novos progressos técnicos não conduzem mais a um crescimento da riqueza material. As crises conjunturais, nas condições da crise social de todo o sistema capitalista, sobrecarregam as massas de privações e sofrimentos cada vez maiores. O crescimento do desemprego aprofunda, por sua vez, a crise financeira do Estado e mina os sistemas monetários estremecidos”. 

As premissas objetivas da revolução proletária não estão somente maduras: elas começam a apodrecer. Sem vitória da revolução socialista no próximo período histórico, toda a civilização humana está ameaçada de ser conduzida a uma catástrofe. Tudo depende do proletariado, ou seja, antes que nada, de sua vanguarda revolucionária. A crise histórica da humanidade reduz-se à crise da direção revolucionária. [20]

Em entrevista aos seus camaradas do Socialista Workers Party, dos Estados Unidos, realizada no México, Trotsky explicou como via esta questão da crise da direção revolucionária. Disse que a consciência de cada classe social está determinada por condições objetivas, pelas forças produtivas, pelo estado econômico do país, mas que essa determinação não se realizava de forma mecânica. 

“A consciência, em geral, atrasa-se; atrasa-se em relação ao desenvolvimento econômico e esse atraso pode ser mais ou menos acentuado. Em tempos normais, quando o desenvolvimento é lento, quando as coisas progridem a pouco e pouco, esse atraso não pode ter conseqüências catastróficas. Em larga medida, esse atraso significa que os trabalhadores não estão à altura das tarefas impostas pelas condições objetivas. Numa altura de crise em contrapartida, esse atraso pode ser catastrófico”. [21]

Diante desse dilema, Trotsky se perguntou se deveria adaptar o programa à situação objetiva ou à mentalidade dos operários? E, partindo do que chamou de “as três condições para uma nova sociedade” explicou aos camaradas do SWP a importância de um programa de transição nas mãos na vanguarda revolucionária:

A primeira condição para uma nova sociedade é que as forças produtivas estejam suficientemente desenvolvidas para dar à luz um nível superior. As forças produtivas estarão suficientemente desenvolvidas para isso? Sim, estavam suficientemente desenvolvidas no século 19, não tanto como nos nossos dias, mas suficientemente. Hoje, especialmente nos Estados Unidos seria muito fácil a um bom estatístico demonstrar que se as forças produtivas americanas fossem libertadas, poderiam ser duplicadas e triplicadas mesmo atualmente. Penso que os nossos camaradas deveriam fazer observações estatísticas desse tipo.

A segunda condição: tem que haver uma classe progressiva que seja suficientemente numerosa e que tenha influência econômica suficiente para impor a sua vontade à sociedade. Essa classe é o proletariado. Ela deve representar a maioria da nação, ou ter a possibilidade de dirigir a maioria. 

A terceira condição é o fator subjetivo. Essa classe tem que compreender a posição que ocupa na sociedade e possuir as suas próprias organizações. É a condição que falta atualmente do ponto de vista histórico. Do ponto de vista social não é somente uma possibilidade, mas uma necessidade absoluta no sentido em que será ou o socialismo ou a barbárie. Essa é a alternativa histórica. [22]

Concluiu, então, de que esse era um programa científico, baseado numa análise objetiva da situação objetiva, que possivelmente não pudesse ser compreendido no seu conjunto pelos operários, por isso “seria muito bom que a vanguarda o compreendesse no próximo período” (...).[23]

É neste contexto de luta política e teórica que Mário Pedrosa e seus camaradas assumem a tarefa de construir a alternativa trotskista no Brasil e posteriormente formam o Partido Socialista Brasileiro.

Mas, o PSB não sofreu apenas influências do trotskismo. Segundo Margarida Luiza de Matos Vieira[24], no PSB mescla-se o socialismo democrático, desvinculado da tradição stalinista, um socialismo inspirado no pensamento de Rosa Luxemburgo e uma concepção liberal sobre o Estado e a sociedade.

Analisando o programa do PSB, sua prática política e sua trajetória, Vieira conclui que o mesmo se constituiu num “partido-semente”, agitador de uma nova concepção política e cultural que deu base a um projeto de cidadania coletiva que, ao contrário dos projetos dos liberais orgânicos e aqueles dos comunistas, combinava as dimensões políticas e sociais da democracia. 

A partir do trabalho Semeando democracia: a trajetória do socialismo democrático no Brasil, tese de Miracy B. S. Gustin e Margarida L. M. Vieira, podemos assinalar alguns elementos da proposta política do PSB. 

Gustin e Vieira caracterizam o PSB como “união de agremiações de pensamento”, formada por grupos socialista-cristão e socialista-liberal; com “grupo de antigos combatentes”, tenentes ligados à Revolução de 30; “agremiações clandestinas”, como os grupos trotskistas; e sindicalistas, principalmente o grupo da União dos Trabalhadores Gráficos. 

O grupo dirigido por Mário Pedrosa, formado ao redor do jornal “Vanguarda Socialista” teve influência na “dimensão sindical do projeto de cidadania do PSB”, que combinou o objetivo da unidade com a liberdade de escolha da forma de organização pelos trabalhadores. Exemplo disso é que o “autogoverno dos trabalhadores” faz parte do projeto de cidadania do PSB.[25]

A proposta do PSB previa o controle social dos espaços nacionalizados ou estatizados, por representantes dos trabalhadores e pelo Congresso. Numa visão não-estatista do nacionalismo, a preocupação central era socializar, o objetivo final era o controle social dos meios de produção e a democratização do Estado, bases de um projeto nacional alternativo, condição para uma cidadania coletiva. Assim, em 1950, a Folha Socialista, do PSB, publica dois projetos do militante paulista Azis Simão que propõem o controle operário das indústrias nacionalizadas e o controle parlamentar das empresas do Estado.[26]

Na verdade, desde sua fundação, o PSB fez a crítica do liberalismo econômico e procurou separar-se dos comunistas, colocando-os na esfera da democracia socialista, conforme afirma sua declaração de princípios:

A nossa intransigência na via democrática significa, necessariamente, a opção pela implantação gradual e evolutiva do socialismo, compreendendo períodos de avanço e de retrocessos, segundo o esquema normal da rotatividade democrática. Acreditando na pregação e na conscientização, optamos pelo caminho do convencimento e do voto.[27]

Por isso, o PSB teve como lema o binômio Socialismo e Liberdade. E sua estrutura partidária, discutida e implantada em vários estados, continha uma novidade: os grupos de base. Segundo Fúlvio Abramo,

os estatutos reconhecem que a linha política do Partido se forma através e pela colaboração de todos os grupos: estes constituem as unidades básicas da organização: deles é que deve subir, às instâncias dirigentes, o reflexo do pensamento partidário; da soma de suas opiniões, debatidas em assembléias democráticas de grupo é que se formam a orientação e o alvo partidários.[28]

Paralelamente explicitam a oposição ao “capitalismo de estado” que expressaria o caso soviético, apresentam um projeto de socialização não estatista e democrática exigindo a combinação socialismo e democracia. Sobre a questão agrária o projeto proposto por Fúlvio Abramo foi inovador. Contempla um Código para o trabalhador rural, com extensão da legislação trabalhista para o campo, um Código da propriedade rural que limita a área, permite desapropriações e cooperativas, um Código de comércio e até um Código da terra e da planta com medida de proteção ao meio ambiente. 

Em Pernambuco, Gilberto Freire foi o primeiro presidente do PSB, mas também foram destaque Osório Borba, jornalista, e o operário Mário Apolinário dos Santos. Na Paraíba, Aluísio Campos foi eleito deputado estadual em 1950. Em Minas, Roberto Gusmão, foi eleito presidente da UNE no período da campanha “O petróleo é nosso”. Mas outros dois intelectuais também marcaram o cenário em Belo Horizonte: Fernando Correia Dias, sociólogo, e Hélio Peregrino. Aliás, comentário da época dizia que o PSB em Belo Horizonte era formado pelo doutor Hélio Peregrino e meia dúzia de pacientes.

O PSB entre os anos de 1947 a 1965 aprofundou na sociedade brasileira a discussão política a respeito do socialismo democrático e participou da vida política através da presença de sua bancada parlamentar na Câmara dos Deputados e de sua atuação no campo. As Ligas Camponesas foram a maior dessas atuações, e teve como seu principal líder, o advogado Francisco Julião.

Pelópidas da Silveira ganhou as eleições para a prefeitura do Recife, à época a terceira maior cidade do país e João Mangabeira ocupou o ministério das Minas e Energia e, depois, o ministério da Justiça durante o governo de João Goulart.

Para o PSB, a idéia central dos seus fundadores pode ser traduzida na constatação de que a atualidade do socialismo resulta no fato de que a compatibilização entre liberdade e igualdade, como grandes aspirações humanas, é tarefa pendente e, por isso, deve orientar os socialistas na luta por transformações sociais profundas. 

A medida que estes elementos vão ficando na história, é fundamental que se busque novas contribuições para manter viva a adesão cidadã ao socialismo, e a partir dela perspectivas de mudanças que assegurem aos excluídos pelo atual e perverso sistema político e econômico, os direitos elementares ao exercício da cidadania. 

Democracia significa muito mais que um espaço de escolha dos dirigentes através de eleições, democracia significa a participação de todos na vida da família, da escola, da empresa ou de qualquer reunião de pessoas. Elas têm desejos, idéias e sonhos diferentes. Para que possam decidir entre opções diversas elas conversam, ouvem umas às outras, discutem. Se todas concordam com uma opção ocorre o consenso. Se for preciso decidir entre mais de uma possibilidade votam e deve prevalecer a decisão da maioria. Quem for minoria deve respeitar a decisão, mas tem todo direito de continuar apresentando suas idéias e pode, no futuro, ser maioria.[29]

Na ação parlamentar, em 1948, João Mangabeira propõe projetos para liberação da estrutura sindical e convocando eleições sindicais com normas democráticas. Os projetos foram arquivados. 

Uma das ações mais importantes na história do PSB foi a campanha do petróleo. Ela começou com o discurso de Hermes Lima condenando o anteprojeto sobre a questão petrolífera apresentado pelo presidente Dutra em 1946. Apontou para o perigo representado pelos trustes petrolíferos, criticou a alegada falta de capitais internos. Orientou a bancada na defesa do monopólio estatal do petróleo. Recomendou ao PSB ampla agitação e participação na campanha que começava. Mobilizaram-se os militantes e os estudantes. O presidente da UNE em 1947/48 era Roberto Gusmão do PSB e também Rogê Ferreira em 1949/50. 

Os anos 50 marcam um momento de crescimento econômico e participação política no país. 

Para marcar sua oposição ao getulismo e ao udenismo apresentou a candidatura de João Mangabeira à presidência da República. A derrota foi calamitosa, não obteve nem 1% dos votos. A reflexão sobre esse resultado levou o PSB a trabalhar com alianças mais amplas com partidos como PCB e PTB. Elas levaram a um crescimento eleitoral no parlamento e em administrações municipais e estaduais. 

Em Pernambuco, em 1952, Ozório Borba, jornalista pernambucano que militava na imprensa carioca, foi lançado para governador do Estado com apoio do não só do PSB, mas também do PCB. Uma rápida campanha deu-lhe a vitória em Recife e Olinda, sendo derrotado pela votação do interior. Os correligionários batizaram-no de “governador de Olinda e Recife”. 

Era o início da “Frente do Recife” que levou o socialista Pelópidas da Silveira à Prefeitura. Este construiu avenidas, implantou linhas de ônibus elétrico, modernizou os mercados. Criou associações de bairro e audiências coletivas quinzenais em que discutia com o povo. Pelópidas, como vice-governador, foi decisivo para a vitória de Cid Sampaio em 1962. Seria substituído na prefeitura por Miguel Arraes que se tornaria governador de Pernambuco, em 1962, desenvolvendo ações na área da distribuição da terra, e combate ao analfabetismo com projeto de um jovem chamado Paulo Freire. 

Em São Paulo, desde 1948, o vereador Cid Franco iniciara a defesa da autonomia municipal e das eleições diretas para prefeito. O vereador Jânio Quadros, que atuava com ele em demandas populares, participou da campanha, e em 1953, foi candidato a prefeito de São Paulo com o apoio do PSB. 

O janismo cresceu e acabou dominando o PSB em São Paulo e depois em outros estados. A seção de São Paulo só conseguiu romper com o controle janista em 1957 e nacionalmente só em 1960, quando optou pelo apoio ao general Lott e não ao Jânio Quadros para presidente. A aliança com Jânio significou um crescimento inicial para os socialistas, mas acabou se traduzindo em perda programática e de identidade partidária. 

Após a vitória de Jânio na Prefeitura de São Paulo, em 1953, ocorreu a greve dos trabalhadores têxteis, metalúrgicos, marceneiros, carpinteiros e gráficos, conhecida como “greve dos trezentos mil”. Segundo Paul Singer, em artigo publicado pela Folha Socialista, o socialista Remo Forli, presidente do sindicato dos metalúrgicos, e seus companheiros buscavam resultados econômicos efetivos, sem a radicalização puramente política desenvolvida pelos comunistas. 

Em 1950, quando o jornal Última Hora denunciou que havia uma articulação da direita para não dar posse ao presidente eleito Getúlio Vargas, o PSB, mesmo derrotado nas eleições, saiu em defesa da democracia. Frente à pressão udenista o senador Domingos Velasco declarou que a posição dos socialistas é a de quem alerta o Sr. Getúlio Vargas.

Desejamos, como defensores da Constituição, que ele se mantenha na Presidência da República até o fim de seu mandato. E assim desejamos porque, como socialistas democráticos, somos contrários a qualquer golpe, a qualquer ditadura, a qualquer substituição de governo que implique em retrocesso político, mas exigimos dos poderes constituídos a punição de todos os corruptores e dilapidadores da fortuna pública.[30]

Fechando o ano de 1953 ocorreu a 5a. Convenção anual do PSB que direcionou a política para duas questões: industrialização e reforma agrária, voltadas para a elevação do nível de vida do povo, de sua capacidade de produção e consumo. 

Os anos 60, não apenas no Brasil, mas no mundo foram marcados por sonhos de mudanças. No caso brasileiro a renúncia de Jânio Quadros à presidência da República provocara um movimento de defesa da legalidade contra a tentativa dos militares e setores conservadores de evitar a posse de João Goulart. 

O governo Goulart foi marcado pela busca de reformas, combinada aos anseios populares por uma sociedade mais justa. Mas os setores conservadores radicalizavam pela manutenção de seus privilégios. E como pano de fundo, estava instaurada a crise do modelo de desenvolvimento baseado na substituição de importações e alavancado pela atuação estatal na área de bens de capital, no planejamento e nos subsídios. 

Neste cenário o PSB ampliou sua inserção nas lutas sociais e sua participação nos espaços institucionais. No Parlamento, Aurélio Viana, Barbosa Lima Sobrinho, Domingos Velasco, José Joffily[31], Jamil Haddad e Adalgisa Nery se tornaram lideranças nacionalmente respeitadas. No movimento estudantil Altino Dantas era a maior liderança do PSB, no movimento sindical urbano Remo Forli, e na luta pela reforma agrária, Francisco Julião. 

Durante o governo de Jânio, o PSB fez oposição à política interna, mas apoiou sua política externa, que se posicionara pela autonomia de Cuba. A revolução cubana começava a exercer influência sobre os socialistas brasileiros, pois surgia como possibilidade de uma sociedade mais justa na América Latina. Paul Singer, secretário do primeiro Comitê da Defesa da Revolução Cubana, comenta que “houve radicalização de toda a esquerda e também do Partido Socialista que se tornou mais socialista, mais de esquerda, obviamente mais radical nas suas formulações”. 

Com a renúncia de Jânio Quadros, o PSB ficou na linha de frente da defesa da legalidade. Segundo o deputado Aurélio Viana, em discurso após a renúncia,

nossa luta não é em torno de homens, mas de princípios, de idéias. A garantia de legalidade democrática é o primeiro princípio que nos deve unir a todos (...). Estou satisfeito e orgulhoso de liderar um partido pequeno, mas que está procurando por todos os meios formar, firmar-se como partido e se projetar defendendo as instituições democráticas.[32]

Os socialistas participaram de manifestações públicas pela posse de Goulart. No Estado da Guanabara, Bayard Boiteux[33], liderança do PSB entre os professores foi preso. A deputada Adalgisa Nery assinou a solicitação de impeachment contra Lacerda que implantou a censura à imprensa e repressão aos legalistas. As manifestações dos metalúrgicos, ferroviários e portuários contaram com a participação dos militantes operários do PSB. 

Mas o Congresso votou pelo parlamentarismo. Durante o período em que Tancredo Neves foi o Primeiro Ministro os parlamentares socialistas cobravam o cumprimento do programa de governo exigindo reformas. Tancredo chegou a declarar quando embarcava para Roma que voltaria para responder às interpelações formuladas por deputados liderados por Aurélio Viana. Quando o gabinete Tancredo renunciou, o PSB apoiou a indicação de San Thiago Dantas, mas acabou sendo indicado em solução de compromisso Brochado da Rocha, que ficou apenas dois meses. O gabinete que o sucedeu, dirigido por Hermes Lima que em 1958 mudara para a legenda do PTB, foi na prática presidencialista. João Mangabeira, presidente do PSB, foi Ministro de Minas e Energia no gabinete Brochado da Rocha e Ministro da Justiça no gabinete Hermes Lima.

Em novembro de 1961, o PSB realizou sua 9a. Convenção, em memória de Ozório Borba, no Rio de Janeiro. As resoluções acentuavam a necessidade de uma frente popular, da unidade das esquerdas e a convocação de uma Assembléia Nacional Constituinte. 

No clima de agitação política, poucos à esquerda prestaram atenção à reorganização da direita. Em novembro de 1961, fora criado o IPES (Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais), que junto com o IBAD (Instituto Brasileiro de Ação Democrática) e setores civis e militares desempenhariam papel decisivo na derrubada do governo Goulart. 

Nas eleições de 1962, o PSB cresceu em representação parlamentar, com candidatos próprios ou apoiando candidatos de partidos próximos como na eleição do governador Arraes em Pernambuco. 

Para Paul Singer,

o Partido Socialista estava começando a atrair a esquerda, que estava nos anos sessenta em todos os partidos. O Partido Socialista era o único dos legais, de expressão, que era de esquerda. (...) O Partido Socialista seria assim um pouco como um terreno neutro para a esquerda onde esses vários grupos podiam colaborar com projetos ideológicos, seminários ou criação de frente única (...) o Partido Socialista, com sua modesta sede no centro da cidade, era um terreno em que todo mundo se entendia, podia vir e se sentir à vontade.[34]

No período presidencialista João Mangabeira continuou como ministro da Justiça, mas acabou renunciando ao cargo por discordar de medidas tomadas pelo governo. Dentro do PSB, Mangabeira traduzia o pensamento da ala mais moderada. Os mais radicais cresciam. Apesar das discordâncias, Mangabeira era respeitado como um socialista democrático histórico. 

Em 31 de março se dá o golpe que derruba João Goulart e a democracia brasileira. A tentativa de realização de reformas estruturais daria lugar a uma modernização associada ao capital estrangeiro, excludente da participação popular. 

Até 1965, quando se deu sua extinção legal, o PSB, através do núcleo paulista, continuou a editar a Folha Socialista. Numa das vendas públicas do jornal, já clandestino, Altino Dantas, que entrara para o partido em 1961, foi preso. Entre uma prisão e outra, o futuro presidente da UNE começou a analisar, assim como milhares de jovens, a possibilidade de uma outra via para a construção do socialismo no Brasil. 

A nova esquerda

Aparentemente, existem apenas dois posicionamentos extremos em relação à novidade que o Partido dos Trabalhadores representou na história política brasileira: a postura que considera o PT nada mais do que o último dos partidos comunistas; e a postura que vê no PT o início de inteiramente novo.

Na verdade, as duas leituras desprezam o fato histórico de que a partir dos anos 60 surge uma nova esquerda no cenário político brasileiro e que está se fará presente na formação do Partido dos Trabalhadores. 

Podemos dizer, como já o fez Marco Antônio Mondaini de Souza, que o Partido dos Trabalhadores constituiu na sua formação algo novo no cenário social e político brasileiro, mas enquanto novidade permeada de tradições e permanências legadas pelo passado. Ou como afirmou:

A nova esquerda traz em seu âmago – ora negando, ora afirmando – a velha esquerda, já que os agentes da renovação história têm como paradigma os agentes da conservação histórica, seja para nega-los abertamente ou para incorporá-los implicitamente.[35]

A nova esquerda do final dos anos 60, em especial na França e Estados Unidos, se caracterizou por fazer uma leitura frankfurtiana, psicanalítica e rebelde do marxismo. Assim, autores como Marcuse, Wilhelm Reich e Rosa Luxemburgo foram descobertos e transformaram-se em referenciais teóricos na leitura de Marx, em especial do jovem Marx de Os manuscritos econômico-filosóficos.

“A petrificação da teoria marxista viola o princípio básico que a Nova Esquerda proclama: a unidade de teoria e prática. Uma teoria que não tenha acompanhado a evolução da prática capitalista não terá possibilidades de guiar a prática que visa à abolição do capitalismo. A redução da teoria marxista a sólidas estruturas divorcia a teoria da realidade e confere-lhe um caráter abstrato, remoto, ‘científico’, que facilita a sua ritualização dogmática”.[36]

Mas a teologia e o pensamento cristão, através de pensadores como Paul Tillich, influenciaram a nova esquerda. James Farrell[37] e Rossinow[38] analisaram a importância da presença do pensamento cristão protestante e da espiritualidade evangelical na formação da nova esquerda norte-americana, que reafirmou valores ligados a ética social. Localizaram nessa presença, por exemplo, a dimensão moral do movimento dos direitos civis de Martin Luther King Jr. e o existencialismo cristão de Paul Tillich. Farrell e Rossinow foram unânimes ao afirmar que nos anos 60, a vanguarda da nova esquerda norte-americana leu e discutiu Albert Camus, Dietrich Bonhoeffer e Paul Tillich. Em relação a Tillich, dois de seus livros marcaram essa presença na nova esquerda, a História do Pensamento Cristão e Coragem de Ser. Assim, para Rossinow, a nova esquerda trouxe para a mesa de discussão da política norte-americana o cristianismo reformado evangelical, o evangelho social e o feminismo popular[39].

Marcuse e Reich, porém, foram os críticos do capitalismo posterior à segunda guerra mundial que discutiram o poder, a ideologia, a cultura e a repressão sexual a partir de novas perspectivas. Embora tenham trazido para o marxismo o ar fresco de uma leitura não dogmática e contextualizada de Marx, o poder para os dois ainda era visto apenas num sentido negativo, onde o futuro não existia, e se existia era como sobra ou barbárie. 

“Na fase suprema do capitalismo, a revolução mais necessária parece ser a mais improvável. A mais necessária porque o sistema estabelecido somente se preserva através da destruição global de recursos, da natureza, da vida humana, e das condições objetivas que poriam fim a tudo isso”.[40]

Assim, a nova esquerda viu a revolução como processo prenunciado sob forma ideológica pelas contra-imagens e contra-valores que contradiziam a imagem do universo capitalista, como “as manifestações de um comportamento não competitivo, a rejeição da virilidade brutal, o desmascaramento da produtividade capitalista do trabalho, a afirmação da sensibilidade, a sensualidade do corpo, o protesto ecológico, o desprezo pelo falso heroísmo no espaço exterior e nas guerras coloniais, o Movimento de Libertação das Mulheres (...), a rejeição do culto puritano, antierótico, da beleza e do asseio plásticos”.[41] Para a nova esquerda todas essas tendências contribuíam para o enfraquecimento do princípio do desempenho capitalista. 

Mais tarde, já nos anos 80, essas questões do poder, da ideologia e da repressão sexual foram analisadas por dois outros teóricos, Foucault e Félix Guattari, mas desde a perspectiva de inclusão, de atração do novo, que antes a nova esquerda não tinha visto. Assim, esses dois lados do processo capitalista, de destruição das forças produtivas, mas também de inclusão e apropriação da revolta cultural e ideológica, aparentemente antagônicos, serão debatidos pelos novos teóricos da nova esquerda, o que trouxe novos conteúdos, como o da biopolítica e da política do corpo, à teoria marxista.

Essas leituras não foram hegemônicas no pensamento da nova esquerda brasileira, que privilegiou a análise do “crescimento das forças anticapitalistas no Terceiro Mundo, (...) que reduz as reservas de exploração”[42], mas estavam presentes nas discussões das lideranças, o que possibilitou nos anos 80 uma leitura nova das questões de gênero, sexualidade e das questões nacionais que envolvem os povos indígenas e afrobrasileiros.

Assim, a vanguarda da nova esquerda brasileira acompanhou os debates que aconteciam na Europa e nos Estados Unidos, leu marxistas não ortodoxos como Rosa Luxemburgo, León Trotsky e Che Guevara, e travou contato com pensadores cristãos, como Martin Luther King Jr. e Ernesto Cardenal. E se essa nova esquerda procurava levar a imaginação ao poder, por que não resgatar a ética humanista do socialismo?

A radicalização do movimento de massas nos anos 1960 e em especial a vitória da revolução cubana gerou as condições para o surgimento de uma nova esquerda desvinculada da tradição stalinista. A esta conjuntura acrescente-se um ingrediente novo, o crescimento da esquerda católica, em especial no movimento estudantil. É neste contexto que surgem duas organizações políticas que marcarão o pensamento da esquerda: a Política Operária, Polop, e a Ação Popular, AP.

A Política Operária

Para a Polop convergiram antigos militantes do PCB, da Juventude Socialista do PSB do Rio de Janeiro, da Juventude Trabalhista do PTB de Minas Gerais, e socialistas independentes. Entraram para a Polop militantes conhecidos na política e na intelectualidade brasileira, como Theotônio dos Santos, Moniz Bandeira, Ruy Mauro Marini, Juarez Guimarães, Emir e Eder Sader, Michel Lowy e Eric Sachs, mais conhecido pelo pseudônimo de Ernesto Martins. Procurando fontes teóricas pouco conhecidas no país, como Rosa Luxemburgo, Brandler e Talheimer, a Polop foi, sem dúvida, a precursora da nova esquerda no Brasil. Fez a crítica do stalinismo, mas não aderiu ao trotskismo. 

Foi a primeira organização de esquerda, depois dos trotskistas, a realizar uma análise da revolução brasileira que confrontou a concepção da revolução por etapas proposta pelo stalinismo[43]. E defendeu a necessidade de elaboração de um programa socialista para a revolução brasileira.

A Polop foi assim uma das matrizes da nova esquerda brasileira, tendo sido o primeiro agrupamento a se organizar como opção partidária ao PCB, em fevereiro de 1961, excetuando as organizações trotskistas. Nesse congresso de fundação, reuniu “círculos de estudantes provenientes da Mocidade Trabalhista de Minas Gerais, da Liga Socialista de São Paulo (luxemburguistas), trotskistas e dissidentes do PCB do Rio, São Paulo e Minas”.[44] Mas, a presença e permanência dos militares no poder levaram a esquerda brasileira a um processo de fracionamentos. Assim, três anos depois do golpe, do fracionamento da Polop surgiram algumas principais organizações que povoaram o universo da esquerda brasileira no final dos anos 60 e início dos 70: Comando de Libertação Nacional, Vanguarda Popular Revolucionária, Partido Operário Comunista, Vanguarda Armada Revolucionária-Palmares, Organização de Combate Marxista-Leninista-Política Operária, Movimento Comunista Revolucionário e Movimento pela Emancipação do Proletariado.

“Desde o seu surgimento, a Polop deu mais importância ao debate teórico e doutrinário dentro da esquerda marxista do que a um projeto de construir uma alternativa política ao PCB. Não chegou, dessa forma, a se constituir em uma organização nacional, embora tenha alcançado certo prestígio nos meios universitários (...)”.[45]

Em permanente choque com as posições defendidas pelo PCB, a Polop não aceitava o chamado para a formação de uma aliança com a “burguesia nacional”, a fim de fazer frente ao imperialismo e à herança feudal no campo brasileiro. Elaborou um Programa Socialista para o Brasil, onde afirmava que o modo de produção no país era capitalista e por isso exigia transformações socialistas imediatas, sem necessidade de uma etapa intermediária, nacionalista-democrática.

Com o golpe militar de 1964, a Polop pendeu para a guerrilha, participando em duas articulações em aliança com ex-militares cassados pelo novo regime. A principal delas, a Guerrilha de Caparaó, aconteceu em 1967, liderada por militares vinculados ao Movimento Nacionalista Revolucionário, MNR.

Na verdade, em 1967, aconteceu com a Polop um impacto semelhante ao ocorrido no interior do PCB com a desestalinização. Influenciada pelo movimento guerrilheiro que se alastrava pela América Latina sob a inspiração da Revolução Cubana, viveu duas grandes cisões. A primeira em Minas, quando uma parte dos militantes constituiu o Colina. E em São Paulo, uma ala à esquerda da organização se uniu aos militantes remanescentes do MNR e criaram a Vanguarda Popular Revolucionária, VPR.

“Após as cisões que geraram a VPR e o Colina, essa organização restou claramente debilitada. Reagiu a isso, aproximando-se da Dissidência Leninista do Rio Grande do Sul (do PCB) e de mais alguns círculos de militantes, para constituir o Partido Operário Comunista (POC). O POC conseguiu ter certa expressão no Movimento Estudantil de 1968, onde atuava sob a designação de Movimento Universidade Crítica. Suas propostas políticas assinalavam uma nítida continuidade da linha seguida anteriormente pela Polop. Procurou também estabelecer alguma presença junto do meio operário das capitais”.[46]

Em 1970, militantes se desligaram do POC para voltar a constituir a Polop. Fizeram a autocrítica das ações armadas e da estratégia guerrilheira, concentrando seus militantes no trabalhando de propaganda junto a operários. E rebatizaram a Polop como Organização de Combate Marxista-Leninista - Política Operária, OCML-PO.[47]

Mas essa nova Polop durou pouco. Antes de completar um ano de vida, a organização foi dividida pela Fração Bolchevique da Polop que, em 1976, adotou o nome de Movimento pela Emancipação do Proletariado, MEP. Esse fracionamento colocou um ponto final nos 15 anos de história da Polop. 

 A Ação Popular

O caso da Ação Popular é peculiar. Trata-se de uma síntese construída nos anos 60 entre o socialismo e a esquerda católica. As origens da AP, suas propostas e sua trajetória nos ajudam a compreender subjetividades, potencialidades e contradições de projetos socialistas construídos posteriormente. As relações entre religião e política surgiram então como discussões dentro dos agrupamentos de esquerda: existe uma possibilidade de sacralização da política? Podemos falar em secularização da religião num sentido político? 

A experiência da AP nos ajuda a entender a relação entre esquerda cristã e socialismo, que nos anos 1980 retornou com força a partir da atuação das pastorais e das Comunidades Eclesiais de Base, fundadas na teologia da libertação.

Está claro que o fenômeno do surgimento da nova esquerda no Brasil não está distante das experiências que se deram em outras partes do mundo, em especial o impacto das revoluções chinesa, cubana e nicaragüense.

É interessante notar a tensão vivida pelos militantes da AP, que procuravam uma síntese entre o humanismo cristão e o ideário da revolução comunista, que se traduzia em crise da espiritualidade cristã, pois o discurso da luta de classes levava às propostas de luta armada e guerra revolucionária, o que aparentemente significava uma ruptura do mandamento do amor. A questão levou para dentro das organizações de esquerda brasileiras uma nova discussão, já realizada nas décadas de 20 e 30 por Tillich e outros teólogos socialistas: qual a relação existente entre espiritualidade e política?

A Ação Popular nasceu entre militantes estudantis da Juventude Universitária Católica e de agremiações da Ação Católica. Segundo Jacob Gorender, esses militantes queriam criar um veículo de ação política “que permitisse a liberdade de atuação e não envolvesse a hierarquia católica hostil a politização esquerdizante”.[48] Em junho de 1962, em um congresso em Belo Horizonte, fez-se o lançamento da AP.

No ano seguinte, em um segundo congresso em Salvador, a AP decidiu-se pelo “socialismo humanista”, buscando inspiração em Emmanuel Mounier, Teilhard de Chardin, Jacques Maritain e Padre Lebret. Teve uma vertente protestante, cujo representante mais conhecido foi Paulo Stuart Wright. Na maioria composta de lideranças estudantis, como Herbert José de Souza (Betinho), José Serra, Vinícius Caldeira Brant, Aldo Arantes, e outros, teve também a adesão de lideranças camponesas, como Manoel da Conceição e José Gomes Novais, e de lideranças operárias.

Antes do golpe militar de 1964, publicou os jornais Ação Popular e Brasil Urgente, este último fundado pelo frei Carlos Josaphat, que fazia a defesa das reformas de base e das lutas dos trabalhadores, e que levou milhares de católicos às posições de vanguarda.[49] Após o golpe, esses ativistas se lançaram à clandestinidade ou deixaram o país.

“Nos anos seguintes a AP reorganizava, aos poucos, sua estrutura, apoiando-se para tanto, especialmente, no meio universitário. E inicia uma demorada discussão para redefinir seus princípios políticos e filosóficos (...) De 1965 a 1967, em meio a controvertidas polêmicas, a organização caminha para a adoção do marxismo como guia teórico de suas atividades”.[50]

A AP deslocou militantes para as fábricas e para o meio rural e fez experiências de implantação em meios populares como o ABC paulista; na Zona Canavieira em Pernambuco; na região Cacaueira da Bahia; na área de Pariconha e Água Branca em Alagoas; e no Vale do Pindaré, no Maranhão, “onde se notabilizou a figura do líder camponês Manoel da Conceição, que teve uma perna amputada como decorrência de ferimento provocado por forças policiais e maus tratos na prisão”.[51]

Em 1968, surgiu uma dissidência, o Partido Revolucionário dos Trabalhadores, PRT, liderada pelo padre Alípio de Freitas, Vinícius Caldeira Brant e Altino Dantas. O PRT foi duramente golpeado pela repressão em 1971, e desapareceu.

Em 1971, a Ação Popular iniciou um processo de aproximação com o Partido Comunista do Brasil, de linha maoísta, e no ano seguinte as duas organizações fundiram-se. Um pequeno setor que passou a ser conhecido como AP Socialista manteve-se independente, mas em 1973 aproximou-se da Polop e do MR-8, mas acabou por ser desarticulado pela repressão.[52]

O trotskismo nos anos 60

Desde 1929, diversos grupos políticos reuniram-se como oposição de esquerda ao stalinismo. Esses grupos quase sempre traduziam os ensinamentos de Leon Trotsky, comandante do Exército Vermelho durante a Revolução Russa, de 1917, e depois da morte de Lênin, principal opositor de Stálin.

Em 1953, apesar da presença trotskista no PSB, surge o Partido Operário Revolucionário dos Trabalhadores, PORT, que seguia as diretrizes de Homero Cristali, mais conhecido pelo pseudônimo político de J. Posadas, então responsável pelo Bureau Latino-Americano da Quarta Internacional, fundada por Trotsky, no México, em 1938. Durante anos seguintes, o PORT publicou o jornal Frente Operária. 

Na década de 60, o PORT ficou conhecido por sua postura à esquerda do PCB. Estava presente em três estados, São Paulo, Rio Grande do Sul e Pernambuco, mas neste estado ligou-se às lutas das Ligas Camponesas e teve vários militantes presos ainda no governo Goulart. Depois do golpe militar, sofreu uma dura repressão política, mas conseguiu reorganizar sua estrutura principalmente nos meios estudantis de São Paulo, Brasília e Rio Grande do Sul.[53]

Deslocou militantes para trabalhar como operários na indústria, como foi o caso de Olavo Hansen, morto em 1970 no DOPS de São Paulo, após ter sido preso distribuindo panfletos em uma manifestação de 1º de Maio.

Entre 1970 e 1972, o PORT de novo foi atingido por ondas de prisões, ocorrendo o mesmo com sua dissidência, a Fração Bolchevique Trotskista (FBT). O que caracterizou a linha política do PORT no período foi a defesa do papel desempenhado pela União Soviética no contexto internacional; a condenação da luta armada, sustentada por grupos de esquerda; e o chamado para que militares nacionalistas se opusessem à ditadura e liderassem a redemocratização do país. 

Em 1968, constituiu-se a Fração Bolchevique Trotskista, dentro do PORT, principalmente no Rio Grande do Sul, enquanto em São Paulo formava-se outra dissidência denominada Primeiro de Maio. Em 1976, essas duas organizações iriam se unificar sob a sigla de Organização Socialista Internacionalista, OSI, mais conhecida no meio estudantil como Liberdade e Luta.

Em 1971, militantes da FBT, exilados no Chile, reuniram-se a ex-militantes de organizações armadas e criaram o grupo Ponto de Partida, que publicamente fez a crítica da estratégia de guerrilha em curso no Brasil. O grupo exortou a esquerda a ligar-se ao movimento operário e sindical e a preparar-se para o processo de redemocratização do país. Apoiado pelo PST argentino, liderado por Nahuel Moreno, e pelo Socialist Workers Party norte-americano, em dezembro de 1973, remanescentes do grupo Ponto de Partida e socialistas independentes fundaram a Liga Operária. Em abril de 1974, o primeiro grupo de militantes da Liga Operária entraram clandestinamente no Brasil e fundaram as primeiras células em São Paulo e no ABC paulista. 

Alinhada à Minoria da Quarta Internacional, que reunia os partidos argentino, boliviano, peruano, norte-americano e dissidências em Portugal e Espanha, a Liga Operária opunha-se à política do Partido Operário comunista, POC, que, a partir de 1972, no exílio, assumiu as concepções do Secretariado Unificado da Quarta Internacional, que tinha como expoente o economista belga Ernest Mandel.[54]




A Convergência Socialista

Em dezembro de 1973, quatro meses depois do golpe militar que derrubou a Unidade Popular no Chile, foi fundada a Liga Operária, em Buenos Aires. Em 1977, a Liga Operária teve parte de sua liderança no ABC paulista presa, e eu, um de seus líderes, que estava na Europa desde o final de 1976, permaneci lá até 1978. Soltos os militantes do ABC, a Liga Operária realizou uma conferência interna para definir a política partidária. Optou por concentrar seus esforços na plantação de células operárias, na militância sindical e numa campanha aberta e pública a favor da democratização do país. Para viabilizar seu principal objetivo naquele momento, a democratização do país, organizou um movimento que ficou conhecido como Convergência Socialista.

A Convergência nasceu de um núcleo de militantes que começou a fazer uma reflexão sobre a experiência da guerrilha no Brasil no início dos anos 70. Esse núcleo original se constituiu no Chile em torno de um grupo que se chamava Ponto de Partida, que naquela época recebeu uma grande influência do Mário Pedrosa. Na verdade, Mário Pedrosa trouxe esses jovens militantes para o marxismo revolucionário e para a Quarta Internacional. Depois do golpe do Pinochet uma parte dos companheiros conseguiu exílio na Argentina e entra no Brasil na clandestinidade em 1974.[55]

Na verdade, a idéia de uma Convergência Socialista, eu trouxe na Espanha. Depois da morte do generalíssimo Francisco Franco, o Partido Socialista Operário Espanhol, PSOE, apresentou-se à sociedade como a alternativa de oposição ao regime franquista. Assim, de cinco a sete de dezembro de 1976, antes de sua legalização, organizou seu primeiro congresso depois da morte do ditador, o primeiro na Espanha depois de 32 anos. O 27o. Congresso reuniu em Madri líderes e políticos socialistas como Willy Brandt, presidente da Internacional Socialista, Olof Palme, primeiro ministro de Suécia, Bruno Kreisky, primeiro ministro da Áustria, Anker Joergeson, primeiro ministro da Dinamarca, o líder socialista chileno Carlos Altamirano, o italiano Pietro Nenni. Todos chegaram para legitimar como secretário geral dos socialistas espanhóis a Felipe González, que dirigia o partido, junto com Alfonso Guerra, desde o congresso anterior, quando substituiu a velha guarda representada por Ramón Llopis.

As bandeiras levantadas no 27o. Congresso lembravam as reivindicações populares da Espanha republicana. Carlos Altamirano, por exemplo, propôs a união de comunistas e socialistas na construção de um bloco anticapitalista. Falou-se também em marxismo e República, rechaçou-se qualquer possibilidade de acomodação ao capitalismo, defendeu-se a escola pública única e a administração da justiça através de tribunais populares eleitos pelos cidadãos. 

O programa aprovado pelo 27o. Congresso era socialista e republicano. Falava de autodeterminação, autogestão e intervenção, mas a atuação prática do PSOE foi flexível e habilidosa. Sua palavra de ordem eleitoral “Socialismo é liberdade” tocou fundo naqueles que desejavam um trânsito firme e decidido em direção à democracia. Assim, o principal beneficiário do voto das esquerdas foi o PSOE.

Mas o PSOE não era a única corrente da esquerda socialista. Entre as várias existentes se destacava a Convergência Socialista, com presença na Catalunha e em Madri. A Convergência Socialista foi constituída em julho de 1974 e em 1976 realizou seu primeiro congresso regional na Catalunha. Nessa época, teve início a busca da unidade socialista.

O PSOE, através de Felipe González representava a possibilidade de construção de uma Espanha aberta e plural. Assim, a direção do partido se deu como objetivo nos primeiros meses de 1977 aglutinar os socialistas espanhóis. Embora não tenha conseguido incorporar todas elas, trouxe para o PSOE à Convergência Socialista, grupo de origem católica, que lutava pela formação de um partido socialista que reconhecesse as nacionalidades.

A Convergência Socialista traduzia uma feliz combinação. Ao se posicionar nas fileiras do socialismo trazia para o presente a heróica luta da esquerda espanhola e ao reafirmar sua origem cristã retirava das mãos da direita e do franquismo a bandeira do catolicismo. O PSOE não colocava em dúvida o socialismo da CS e a esquerda católica via nela a opção por um socialismo que, ao invés de se mostrar ateu e anticlerical, levantava as bandeiras solidárias do cristianismo. Assim, entrada da Convergência Socialista para o PSOE não somente fortaleceu o socialismo e a transição para a democracia, mas permitiu um diálogo com os católicos da Espanha pós-franquista.

Este sentimento foi traduzido nas entrevistas de muitos exilados ao voltarem à Espanha. O cantor e compositor Joan Manuel Serrat, por exemplo, pisou em solo catalão em agosto de 1976, onze meses depois de seu exílio forçado. Ele tinha sido beneficiado pela anistia concedida pela Coroa espanhola em agosto de 1976.

Serrat chegou disposto a ter “um papel político e social, como todo mundo”. Filiou-se à Convergência Socialista, partido que conheceu no exílio. E declarou: “Estou com a CS da Catalunha na luta por criar um Partido Socialista da Catalunha. Amo a Catalunha e sou partidário do socialismo. Não há nenhuma contradição nisso”.[56]

E deu uma entrevista à revista Interviú[57], onde expôs suas posições políticas e contou porque se filiou à Convergência Socialista.

-- E por que você se afiliou à Convergência Socialista da Catalunha? 

-- Porque acho que, enquanto o autêntico Partido Socialista da Catalunha não é uma realidade e todos os socialistas independentes não podem se aglutinar em um único partido, a Convergência é onde me sinto realmente bem, e onde posso compartilhar o que sinto e onde posso ser mais útil. 

-- Que socialismo você quer para a Espanha? O que você entende por socialismo? 

-- Você está me examinando? Isso é feio... Você sabe disso... 

-- Mas concretamente, você se considera marxista? 

-- Eu sou socialista, genuinamente consciente, mas penso também penso que a história é um processo. 

-- Eu sempre achei que você tinha uma veia anárquica, não necessariamente ideológica, pois suas atitudes pessoais eram freqüentemente mais éticas e espontâneas que políticas. Como você vai articular esta sua personalidade não muito inclinada à disciplina militante com a Convergência Socialista? 

-- A contribuição principal que posso dar é meu trabalho, e meu trabalho não é necessariamente disciplinado, já que permite uma certa anarquia, nele me sinto livre. Se tivesse outro tipo de atividade, minha militância seria de outro tipo. 

-- Com sua entrada para a Convergência Socialista muda a sua produção artística? Você vai continuar a ser o mesmo cantor de antes? 

-- Claro, eu continuo o mesmo! 

-- Mas o seu trabalho pode mudar... 

-- Bem, isso se verá. Você me perguntou em que estou trabalhando agora. Quando terminar a gente vai poder conversar. Por enquanto estou nos esboços; as idéias devem amadurecer. 

-- Você conheceu muita gente no exílio? Muitos políticos? 

-- Vi de tudo, políticos, operários, pessoas que sabem das coisas, pessoas que não sabem nada. Em onze meses você vê muita gente... e deixa de ver muitas outras. 

-- Durante este período, amadureceu sua decisão de entrar para a Convergência? 

-- A Convergência Socialista apareceu e eu fui atraído para ela. Escolhi a opção que me pareceu mais interessante. No momento certo de medir a importância e real representatividade de cada grupo político se verá qual é a força popular do partido. Para mim interessam os catalães que se chamam López ou Fernández, mas também o proletariado que não é catalão, mas trabalha na Catalunha e que constitui uma realidade que não podemos ignorar.

Assim, a regional catalã da Convergência Socialista iniciou, em 1977, conversações com a regional de Madri, que participava da Federação de Partidos Socialistas, sobre a viabilidade de unificação com o PSOE. Fruto dessas conversações, no dia 15 de maio foi celebrado o congresso que unificou a Convergência Socialista ao Partido Socialista Operário Espanhol. 

As alianças com a Convergência Socialista e com os socialistas catalães, aliadas ao carisma de Felipe González e à popularidade de Alfonso Guerra, foram as responsáveis de que o PSOE passasse dos 10% previstos pelas pesquisas aos 29% que conquistou em 15 de junho de 1977. Com 118 cadeiras no Parlamento converteu-se na segunda força política do país, com um milhão de votos a menos que a UCD de Adolfo Suárez. Assim, o Partido Socialista Operário Espanhol conquistou nas urnas a credencial de “principal partido da oposição”, título que nos últimos anos do regime de Franco pertencera ao Partido Comunista Espanhol de Santiago Carrillo. 

Nessa época, como membro da direção da Liga Operária brasileira e da Fração Bolchevique da Quarta Internacional, eu vivia no bairro de Aluche, na periferia de Madri. Minhas atividades estavam voltadas à construção da seção espanhola da Quarta Internacional, tanto em Madri, como em Vigo, na Galícia. O fato de sermos trotskistas, aliado à história da oposição de esquerda e do POUM durante a Guerra Civil, possibilitou conversações com lideranças do proletariado madrilenho e com dirigentes sindicais, o que nos levou a acompanhar de perto o processo de democratização espanhol e a unificação dos socialistas. 

Assim, eu trouxe a experiência vivida pelos socialistas espanhóis para o Brasil. Aprovada pelo comitê central do PST a proposta de centralizarmos a luta pela democratização na construção do Partido Socialista, iniciamos o processo do lançamento público da Convergência Socialista, que desde seu início foi além da leitura dogmática do marxismo, situando-se no campo da nova esquerda européia e norte-americana. Surgiu, dessa maneira, como novidade no espectro da esquerda brasileira. 

“Nos últimos dias do mês passado, diversos núcleos que participam desse movimento pela criação de um partido socialista deram um passo adiante. Em reunião realizada na PUC de São Paulo, no dia 28 passado, criaram o movimento Convergência Socialista, que tem como objetivo a unificação de todos os setores que lutam pela criação de um partido socialista”.[58]

E a reportagem esclarecia que participaram do encontro cerca de 200 pessoas, representando aproximadamente vinte entidades. E dizia ter sido formada uma coordenação provisória integrada por todos os grupos que participam da Convergência Socialista, a fim de desenvolver esforços na tentativa de uma reunião nacional, “pois a intenção é criar antes das eleições de novembro próximo pelo menos um amplo movimento pró-criação do PS”.[59]

A partir daí a Convergência Socialista procurou manter um amplo debate com a esquerda brasileira, realizando conversações com Almiro Affonso, Chico Pinto, Edmundo Moniz, Fernando Henrique Cardoso, José Álvaro Moisés, Plínio de Arruda Sampaio, e a Tendência Socialista do MDB, no Rio Grande do Sul. [60]

A Convergência se lança como um movimento que pretende unir todos os socialistas, dispersos em muitos agrupamentos clandestinos, que tivessem posicionamento pela construção de um partido socialista dos trabalhadores. Nesse período começamos a ter uma unidade maior com os sindicalistas do ABC. No 1º de maio de 1978 a esquerda toda se dividiu entre comemorar com os sindicalistas do ABC ou fazer o 1º de maio com os da oposição em Osasco. Nós fomos a única corrente de esquerda que comemorou o 1º de maio no ABC. Dessa relação com eles surgiu o apoio eleitoral, no segundo semestre.[61]

Assim, a Convergência Socialista definiu como tática apoiar candidatos operários dentro das listas do PMDB, “uma mediação para tentar construir a independência política de classe. Procuramos o Lula, ele não quis ser candidato. Apoiamos o Benedito Marcílio, que era o presidente do Sindicato dos Metalúrgicos de Santo André. Quando propusemos, como condição do acordo eleitoral, que no programa da candidatura estivesse explicitado que éramos por um partido socialista dos trabalhadores, o Marcílio nos disse: ‘Digamos por um Partido dos Trabalhadores, não se coloque o socialista. Construamos primeiro um PT e depois discutamos o que é o socialismo, porque os trabalhadores não sabem’. Aí surgem as primeiras articulações que vão originar o movimento pró-PT. Nesse processo começam a se unir muitos outros companheiros. Mas foi uma iniciativa pioneira. Nós temos orgulho”.[62]

E assim, no 9o. Congresso dos Metalúrgicos de São Paulo, em janeiro de 1979, em Lins (SP), Zé Maria, do Sindicato dos Metalúrgicos de Santo André e militante da CS, propôs um manifesto chamando "todos os trabalhadores brasileiros a unir-se na construção de seu partido, o Partido dos Trabalhadores". A moção foi aprovada.[63]

“A proposta de formação de um Partido de Trabalhadores começou a ser veiculada pelo jornal Versus, influenciado pela organização Convergência Socialista, em meados do ano de 1978. Tal proposta se materializou na tese que o Sindicato dos Metalúrgicos de Santo André, apresentou no 9º Congresso dos Trabalhadores Metalúrgicos, Mecânicos e de Material Elétrico do Estado de São Paulo realizado na cidade de Lins, em janeiro de 1979. [64] A tese propunha um chamado a todos os trabalhadores brasileiros para a construção de ‘seu partido, o Partido dos Trabalhadores’. Tal partido deveria excluir a colaboração com a burguesia, deveria ser ‘de todos os trabalhadores da cidade e do campo’, [65] mas ‘sem patrões’.” [66]

Mas, se por um lado realizava conversações com as lideranças da esquerda, montava seus núcleos nas fábricas do ABC e atuava nas oposições sindicais classistas, por outro, a Convergência Socialista adotou a linguagem da nova esquerda européia e norte-americana, apresentando através do jornal Versus a política sob novas perspectivas. 

Entre as acusações que sofreu, era de que estava formada por estudantes e intelectuais, e que sua política de proletarização de quadros através do trabalho nas fábricas do ABC e a ida para os bairros operários, não poderia mudar a realidade de que seus militantes vinham da classe média. Na verdade, essa acusação já tinha sido feita antes à Polop e também à AP.

Mas, como já tinha afirmado Marcuse, essa era uma característica da nova esquerda, que “assume um caráter aparentemente elitista, em virtude de seu conteúdo intelectual: um assunto mais para ‘intelectuais’ do que para ‘trabalhadores’”.[67]

“O predomínio de intelectuais (e de intelectuais antiintelectuais) no movimento é, de fato, obvio. Pode muito bem ser expressivo do crescente uso de intelectuais de todos os gêneros tanto na infraestrutura como no setor ideológico do processo econômico e político. Além disso, à medida que a libertação pressupõe o desenvolvimento de uma consciência radicalmente diferente (uma contraconsciência), capaz de suplantar o fetichismo da sociedade de consumo, ela pressupõe um conhecimento e uma sensibilidade que a ordem estabelecida, através do seu sistema de classes na educação, interdita à maioria das pessoas. Em sua fase atual, a Nova Esquerda e, necessária e essencialmente, um movimento intelectual (...)”.[68]

Assim, consciente do papel intelectual que jogava, a Convergência procurou abrir ao máximo o espectro de suas relações com a radicalidade opositora ao regime: enfocou a questão negra e abrigou em suas fileiras ativistas do movimento negro unificado. E apoiou também outras minorias que começavam a se organizar. 

“Em 1980, no Rio de Janeiro, durante a Semana Santa, foi realizado o I Encontro Brasileiro de Grupos Homossexuais. Participaram oitocentas pessoas. Estiveram presentes a Facção Homossexual da Convergência Socialista, o grupo Eros de São Paulo, os grupos Somos de Sorocaba e do Rio de Janeiro, o grupo Beijo Livre de Brasília, o grupo Libertos de Guarulhos e Grupo de Ação Lésbico-Feminista”.[69]

Manteve também um diálogo com a América Latina, Estados Unidos e Europa, através de relacionamento com partidos e pensadores trotskistas e da nova esquerda. E procurou participar do processo revolucionário latino-americano, mandando militantes para a Nicarágua, que acompanharam a queda do regime de Somoza e a reconstrução do país.


Notas

[1] Lucio Lombardo Radice, Um marxista diante dos fatos novos no pensamento e na consciência religiosa, Revista Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, Ano III, Número 16, novembro/dezembro de 1967, pp. 6-7. 
[2] Radice, idem, op. cit., pp. 10-11. 
[3] Hugues Portelli, Gramsci e a questão religiosa, São Paulo, Edições Paulinas, 1984, p. 32. 
[4] Portelli, idem, op. cit., p. 188. 
[5] Portelli, idem, op. cit., pp. 188-189. 
[6] Portelli, idem, op. cit., p. 189. 
[7] Maria Victoria de Mesquita Benevides, A UDN e o Udenismo, Ambigüidades do liberalismo brasileiro (1945-1965), Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1981, p. 39. 
[8] Maria Victoria de Mesquita Benevides, idem, op. cit., pp. 39-40. 
[9] Citado por Alceu Amoroso Lima, discurso na ABL, Discursos Acadêmicos, vol. XIII, 1948-1955, p. 84. 
[10] Arquivo Fernando de Azevedo, I.E.B., USP. 
[11] Roberto Ribeiro Corrêa, Democracia e Populismo no Brasil, Belém, 1999, in A priori, site: www.apriori.com.br/artigos/democracia_e_populismo (acesso em 20/11/03). 
[12] Daniel Pécaut, Os intelectuais e a política no Brasil. Entre o povo e a nação, São Paulo, Editora Ática, 1989, p. 99. 
[13] José Roberto Cabrera, Os caminhos da Rosa: um estudo sobre a social-democracia no Brasil, Campinas, Unicamp, 1995, pp. 37-39. 
[14] A história do PSB e a atualidade do socialismo democrático, in site do Partido Socialista Brasileiro: www.psbnacional.org.br/principal (acesso em 18/11/2003). 
[15] Marcelo Ridenti e Daniel Aarão Reis Filho (orgs.), História do Marxismo no Brasil, Partidos e organizações dos anos 20 aos 60, Capítulo 4, Margarida Luiza de Matos Vieira, Campinas, Editora da UNICAMP, 2002, pp. 181-182. 
[16] A história do PSB e a atualidade do socialismo democrático, idem artigo citado. 
[17] José Roberto Cabrera, op. cit., pp. 38-39. 
[18]Programa do Partido Socialista Brasileiro, abril de 1947 in Evaristo de Moraes Filho, op. cit., pp. 272. 
[19] Plínio Mello, entrevista de Dainis Karepovs, Valentim Facioli, José Castilho Marques, revista Teoria e Debate nº 7, jul/ago/set 1989. 
[20] León Trotsky, O Programa de Transição, html por José Braz para o Marxists Internet Archive, gentilmente cedido pela Juventude do PSTU. (acessado em 14/10/2004). 
www.marxists.org/portugues/trotsky/1938/09/03_programadetransicao/index.htm
[21] León Trotsky, A Agonia do capitalismo, entrevista com membros dos Socialist Workers Party, SWP, México, 1938, www.pco.org.br /biblioteca/partido/programa.htm (acessado em 14/10/2004). 
[22] León Trotsky, A Agonia do capitalismo, entrevista citada. 
[23] León Trotsky, A Agonia do capitalismo, entrevista citada. 
[24] Margarida Luiza de Matos Vieira in História do Marxismo no Brasil, Marcelo Ridenti e Daniel Aarão Reis Filho (orgs.), Campinas, Editora da Unicamp, vol. 5, capítulo 4, pp. 181-182. 
[25] Cláudio Nascimento, Autogestão e economia solidária, Rede Brasileira de Socioeconomia Solidária, Instituto de Filosofia da Libertação, Milênio: www.milenio.com.br/ifil/rcs/biblioteca/nascimento.htm 
[26] Azis Simão in Folha Socialista, São Paulo, 1950, números 44 e 45. 
[27] A história do PSB e a atualidade do socialismo democrático, idem artigo citado. 
[28] A história do PSB e a atualidade do socialismo democrático, idem artigo citado. 
[29] A história do PSB e a atualidade do socialismo democrático, idem artigo citado. 
[30] A história do PSB e a atualidade do socialismo democrático, idem artigo citado. 
[31] José Joffily, escritor paraibano, foi um dos cem primeiros cidadãos que tiveram seus direitos cassados, por dez anos, pelo Comando Supremo da Revolução, em 9 de abril de 1964. 
[32] A história do PSB e a atualidade do socialismo democrático, idem artigo citado. 
[33] Anos mais tarde, em 1965, já no Movimento Nacionalista Revolucionário – MNR, do qual o autor da tese foi militante, Bayard Boiteux dirigiu a guerrilha de Caparaó, em Minas Gerais. 
[34] A história do PSB e a atualidade do socialismo democrático, idem artigo citado. 
[35] Marco Antônio Mondaini de Souza. Da esquerda revolucionária pré-64 ao PT: continuidades e rupturas. São Paulo, FFLCH/USP, 1995, p. 8. 
[36] Herbert Marcuse, Contra-Revolução e Revolta, Rio de Janeiro, Zahar Editores, 1978, p. 41. 
[37] James Farrell, Review of Doug Rossinow, The Politics of Authenticity: Liberalism, Christianity and the New Left in America, H-Pol, H-Net Reviews, September, 1998. 
URL: www.h-net.org/reviews/showrev.cgi?path=28741905267699 (acesso 15/10/2004). 
[38] Doug Rossinow, The Politics of Authenticity: Liberalism, Christianity, and the New Left in America, New York, Columbia University Press, 1998. 
[39] Doug Rossinow, op. cit., p.. 312. 
[40] Herbert Marcuse, op. cit., p. 16. 
[41] Herbert Marcuse, op. cit., pp. 38-39. 
[42] Herbert Marcuse, op. cit., p. 16. 
[43] Em busca da revolução socialista: a trajetória da POLOP (1961-1967) 
[44] Um relato para a História, Brasil Nunca Mais, Petrópolis, Vozes, 1985, 7a. edição, p. 102. 
[45] Brasil Nunca Mais, op. cit., p. 102. 
[46] Brasil Nunca Mais, op. cit., p. 105. 
[47] Nilmário Miranda e Carlos Tibúrcio, Dos Filhos Deste Solo, São Paulo, Boitempo. 
[48] Jacob Gorender, São Paulo, Combate nas trevas. 
[49] Jacob Gorender, op.cit. 
[50] Brasil Nunca Mais, op. cit., p. 100. 
[51] Brasil Nunca Mais, op. cit., p. 101. 
[52] Nilmário Miranda e Carlos Tibúrcio, Dos Filhos Deste Solo, São Paulo, editora Boitempo. 
[53] Brasil Nunca Mais, op. cit., p. 107. 
[54] Brasil Nunca Mais, op. cit., p. 109. 
[55] Entrevista de Valério Arcary a Ricardo Azevedo, Qual é a tua, Convergência?, Tendência e Debates, nº 10, março/abril de 1990. Na época da entrevista, Valério Arcary era membro da direção nacional da Convergência Socialista e integrante do Diretório Nacional do PT, e Ricardo Azevedo era membro da Executiva Estadual do Diretório Regional do PT-SP e diretor da revista Teoria & Debate. 
[56] Elvira Motta, Regreso de América y compromiso político, Lecturas, setembro de 1976. 
[57] Carlos Alfieri, Serrat ahora habla aqui, Interviú, número 16, 2/9/1976. 
[58] Movimento, As articulações por um partido socialista, no. 136, São Paulo, 06/02/1978, p. 4. 
[59] As articulações por um partido socialista, artigo citado, p. 4. 
[60] Ênio Bucchioni e Omar de Barros Filho, O editorial dos editoriais, 1978, São Paulo, Versus no 28, janeiro de 1979, pp.3-9. 
[61] Entrevista de Valério Arcary, artigo citado. 
[62] Idem, entrevista de Valério Arcary, artigo citado. 
[63] Suplemento PSTU 10 anos, www.pstu.org.br/jornal.asp?id=2028 (acessado em 12/10/2004). 
[64] Partido dos Trabalhadores. “A Tese de ‘Santo André-Lins’ - 1979”. In: Resoluções de Encontros e Congressos. 1979-1998. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 1998, pp. 47-48. 
[65] Partido dos Trabalhadores. “A Tese de ‘Santo André-Lins’ - 1979”., idem, op. cit., p. 48. [66] Álvaro Bianchi, Do PCB ao PT: continuidades e rupturas na esquerda brasileira, São Bernardo do Campo, UMESP, http://planeta.terra.com.br/educacao/politikon/dopcbaopt.htm#_ftnref25 (acessado em 15/10/2004). 
[67] Herbert Marcuse, Contra-revolução e revolta, Rio de Janeiro, Zahar Editores, 1978, p. 39. 
[68] Idem, Marcuse, op. cit., p. 39. 
[69]Livre Expressão, uma ação comunicativa contra o preconceito e pela cidadania, Secretaria Nacional de Gays, Lésbicas e Homossexuais, PSTU, 15/03/1999, www.pstu.org.br/gaylesb_artigo-01.asp (acessado em 15/10/2004).






dimanche 16 juillet 2017

Berit, um conceito histórico-genético

Aliança 
Um conceito histórico-genético 
Jorge Pinheiro, PhD


Metodologia e definição 

Quando se estuda a religião de Israel, questões referentes à revelação e ao surgimento de determinados conceitos teológicos vêm à tona. Duas fortes correntes teológicas tentaram nos últimos duzentos anos apresentar respostas para essas questões. Uma apriorística, colocando a ênfase exclusivamente na revelação, e outra empirista, vendo a religião de Israel como fruto da experiência cultural e religiosa dos povos vizinhos. 

Essas duas correntes, embora tenham armazenado um arsenal considerável de informações, que não podem ser descartados, pecam ao nível da metodologia. Não levam em conta que todo conhecimento pressupõe uma elaboração nova, e exige do estudioso jamais esquecer as duas caras de qualquer processo social e histórico. A primeira dessas facetas está diretamente ligada ao homem, enquanto sujeito, se dá no terreno formal, e só se torna necessária depois de elaborada. A outra cara dessa moeda, acontece ao nível do objeto, no terreno do real, e possibilita a conquista da objetividade.

Assim, o que precisamos entender é como se dá a origem de um conhecimento específico, ou de uma estrutura nova. Em primeiro lugar, seria um erro, afirmar que uma nova estrutura pode ser fruto único de um processo exclusivo, apriorístico, revelado ou inato. Ou, ao contrário, que repousa em características preexistentes do objeto. Em ambas os casos, o erro consiste em definir o conhecimento como predeterminado, quer por estruturas internas ao sujeito, quer por características preexistentes no objeto. Descarta-se, assim, o conhecimento enquanto construção efetiva e contínua. 

O que acontece é que o conhecimento não começa com um sujeito plenamente consciente de seu ato histórico, nem de realidades definidas a priori. Resulta sim de interações que surgem da combinação de múltiplos fatores, que vão criando dependência e novas relações. Não é um intercâmbio entre formas diferentes, mas a construção de realidades com plasticidades inteiramente novas.

A este processo de surgimento de novas estruturas chamamos revolução. Isto porque são novas construções de conhecimento e não evolução ou reforma de uma estrutura já conhecida. Aqui, temos crise e ruptura de estruturas e conhecimentos anteriores, gerando fatores que criam novas relações e novos equilíbrios. Nesse processo haverá sempre um ou vários desequilíbrios iniciais, uma crise epistemológica, que rompe esquemas definidos, gerando movimentos que parecem estar fora do controle do sujeito.

Em relação à religião de Israel assistimos a essa revolução epistemológica na própria formação da aliança. Na construção dessa realidade, movimentos ao nível do indivíduo e da sociedade patriarcal desencadearam processos que revolucionaram o próprio conceito de religião e, por extensão, mudaram a face da fé no mundo.

Neste trabalho queremos mostrar como esse processo se desenvolveu e se realizou. Mais do que escrever a história da aliança abraâmica a intenção é definir uma metodologia de trabalho, que possibilite ao estudante entender o processo que gerou novas estruturas na religião de Israel e a partir daí compreender a afirmação de Kaiser, quando diz que “a natureza da teologia do AT (...) não é meramente uma teologia que está em conformidade com a Bíblia inteira, mas é aquela teologia que se descreve e se contém na Bíblia (...) e conscientemente vinculada de era em era, enquanto todo o contexto antecedente e mais antigo se torna a base para a teologia que se seguia em cada era. Sua estrutura é disposta historicamente, e seu conteúdo é exegeticamente controlado. Seu centro e conceitualidade unificada se acham nas descrições, explanações e conexões textuais”.[2]

Assim, a aliança sinaítica, ou mosaica, surgirá como um fenômeno de consolidação em relação à aliança anterior. É, na verdade, uma normatização. E o movimento liderado por Esdras, no período pós-exílio, é um momento de reforma. Aliás, convém notar que o judaísmo, alavancado por Esdras, é um movimento reformista dentro da religião de Israel. Outro revolução epistemológica acontecerá depois, no bojo da guerra dos macabeus. Entender esse processo, é definir o movimento de uma metodologia que leva à compreensão da religião de Israel e, por extensão, dos fenômenos sociais e históricos que eclodiram com o surgimento do cristianismo.

A tradição bíblica apresenta os pais da humanidade e os patriarcas como monoteístas. Adão, Sete, Noé, Abraão e seus descendentes conheciam Elohim e guardavam seus preceitos. O politeísmo surge como degeneração e distanciamento do Deus criador. Essa visão, ainda hoje, prevalece no judaísmo, no cristianismo e no islamismo, e era hegemônica em toda a cultura ocidental até há duzentos anos. No entanto, a partir de Darwin, e do desenvolvimento das ciências naturais no século 19, essa crença foi seriamente abalada.

O criticismo clássico

A visão clássica da crítica bíblica, da qual J. Wellhausen é um dos expoentes, parte dessa postura empiricista e considera que a profecia clássica foi a fonte do monoteísmo israelita. Na verdade, para Wellhausen, os profetas literários criaram o monoteísmo ético, e a Torah é apenas a formulação sacerdotal-popular posterior do pensamento profético.

É importante notar que a hermenêutica crítica vê a Bíblia apenas como objeto histórico, fonte preservada de informações sobre a cultura e história dos hebreus. Assim, as bases de sua metodologia repousam sobre um arcabouço que combina racionalismo alemão, historicismo e idealismo filosófico. Em outras palavras, esta corrente que caracteriza a crítica acadêmica do século 19, considera a Bíblia, e no caso o Pentateuco, não como a palavra do Deus transcendental e imanente, que apresenta ao homem sua vontade e suas ações sobrenaturais, mas um documento histórico e textual, embora invulgar, que deve ser estudado à luz de outros textos religiosos, da história, da poesia e dos mitos dos povos vizinhos a Israel nos dois milênios que antecedem a Jesus Cristo.

O criticismo está preocupado com questões de autoria, data, circunstâncias, estilo e desenvolvimento do pensamento. O conteúdo da revelação tem valor secundário. Como conseqüência, esta postura leva a dois problemas: em primeiro lugar nega a história bíblica, como está apresentada no texto sagrado, e em segundo lugar propõe alterações em sua mensagem, a fim de que reflita o desenvolvimento do pensamento religioso.

Ao contrário, acreditamos que qualquer análise do surgimento da religião de Israel deve partir do homem Abraão e de seu contexto histórico e social. O mundo de Abraão é um mundo objetivo, não mitológico, e a aliança com o Deus Eterno a chave para entendermos todo o processo. Na primeira parte de nosso trabalho focalizamos a questão da aliança, como momento fundamental para a compreensão do livro de Gênesis e do Pentateuco, como um todo, já que nesses cinco livros estão as bases formais e necessárias da religião de Israel.

Mas, ao falar de aliança, colocamos em pauta uma outra pergunta: existiu entre o conhecimento formal de Abraão e a realidade histórica e social desse patriarca algum ponto de partida comum, algum elemento apriorístico? É claro que sim. E esse elemento, na questão da aliança, é o processo revelatório. Essa participação revelatória deve ser entendida como diferente das características inatas do sujeito, que estão ligadas aos sentidos, ao sistema nervoso e pertencem à ordem estrutural do sujeito. Já o processo revelatório, que abre caminho para um conhecimento novo, realiza-se ao nível da organização funcional. Caracteriza-se por ser ilimitado em sua possibilidade de construir noções e, acima de tudo, sobrepassa, vai além das informações sensíveis.

Apesar de seu empirismo, a crítica bíblica nos fornece uma série de informações que devem e precisam ser levadas em conta. O material colhido no campo da história, arqueologia, lingüística, sociologia e religião são imprescindíveis para entendermos o texto sagrado em seu contexto, historicidade e revelação progressiva.

A matriz do Pentateuco

Podemos dizer que a matriz do Pentateuco se encontra na aliança feita por Iaveh com Abraão, conforme encontramos em Gênesis 15. A consolidação dessa aliança acontecerá com Moisés, descrita em Êxodo 24 e reiterada em Deuteronômio 5, numa das montanhas do deserto do istmo, entre o Egito e Madiã-Seir. Essa é a idéia força de toda a religião de Israel. Um acordo que implica em salvação.

Berit, aliança, tem o sentido de obrigação, mas também de segurança. É um acordo entre duas pessoas, celebrado solenemente, com o derramamento de sangue. A parte mais forte fornece a segurança, ou a salvação, e a mais fraca se obrigava a determinados compromissos. Dessa maneira, a aliança impôs um relacionamento especial entre Deus e o povo. E os mandamentos e leis, dados no período da consolidação, transportam, assim, toda conotação legal e externa, para uma perspectiva de acordo maior. O centro da aliança está no primeiro mandamento do decálogo (as dez palavras, em hebraico) que proíbe a adoração de outros deuses, da milícia do céu e dos ídolos. 

Mas a aliança é também um pacto moral. Só que o fundamental desse pacto, que perpassa toda a Torah não é sua mera formalização, já que outros povos também possuíam noções desenvolvidas de lei e moralidade. O assassinato, o roubo, o adultério e o falso testemunho eram condenados não apenas pela lei moral universal, mas também duramente punidos pelos códigos de Ur-Nammu, de Lipit-Ishtar e de Hamurabi, para citar os mais representativos. Agora, no entanto, pela primeira vez a moralidade é apresentada pelo próprio Deus como fruto de um relacionamento entre Ele e o povo, com normas para o estabelecimento de um reino de novo tipo. É uma aliança com toda a nação. A consolidação sinaítica, fruto da aliança abraâmica, vai além das sabedorias babilônica e egípcia, que lidam com o indivíduo. A moralidade apresentada no Gênesis, por exemplo, que é individual, ganha aqui uma roupagem nova, passa a ser coletiva e nacional. 

Na verdade, a aliança que Iaveh faz com Abraão em Gênesis 15, historicamente, tem seu cumprimento em outra estrutura, no Sinai. Dessa maneira, literariamente, Gênesis não somente prepara o roteiro pentateuco, mas faz parte intrínseca dele. É bereshit não somente como saga da origem, mas como alicerce de todo o Pentateuco.

Equilíbrio e organização

É importante precisar que o conhecimento é sempre um processo de interação e organização, de construção de novas estruturas que se inserem nas já existentes. Todo conhecimento é sempre um padrão, uma medida de relação entre o sujeito e o objeto. Ou, se preferirmos, entre a nossa existência e o mundo. É impossível compreender a revolução da aliança abraâmica se não visualizarmos a dinâmica interior, que rasgou corações e mentes, assim como os fatores externos, que combinados geraram crise e ruptura numa relação anterior de interação e organização.

O período histórico aberto com a decadência de Ur e outras cidades da Mesopotâmia, com as migrações de povos, entre os quais grupos semitas para a Palestina e o Egito, levou todo o Crescente Fértil a um profundo desequilíbrio. Era uma época de conflitos e guerras, que levaram a novas formas de interação e organização. Colocamos os conceitos nessa ordem, porque interagir e organizar são aspectos de um mesmo processo. Interagir é sempre o equilíbrio necessário que resulta da relação entre a inteligência e o ambiente. É a resposta que damos a novas questões, quer de forma reflexiva, a partir do sujeito, quer de maneira dinâmica, procurando adaptar a realidade aos nossos desejos e necessidades. Só que acontece em primeiro lugar ao nível do objetivo, formalizando-se a posteriori.

Interagir implica em transformar a realidade circundante. Por isso, podemos dizer que a face objetiva da interação é a mudança, a reforma ou mesmo a revolução, e a subjetiva é a organização.

A organização tem como finalidade restabelecer um equilíbrio e para isso trabalha ao nível daquilo que se deseja. Procura-se uma meta, um fim, que coloque as coisas em seus devidos lugares e nos mostre a razão de ser das coisas. Quando se deseja alguma coisa é porque não temos essa coisa. Assim, organizar é definir como alcançar esse objetivo. Só que a organização é sempre genética, está em movimento. Não se estabiliza. Aponta sempre para uma organização nova e está sempre em construção. É claro que a organização é um processo formal, que se resolve ao nível do pensamento intelectual, por isso quando as condições sociais são violentamente desequilibradas, esse processo nunca é plenamente consciente. Ele se realiza, enquanto processo, historicamente. E é esse fenômeno, riquíssimo, construtor de novas estruturas e conhecimentos, que leva à construção do conceito de aliança.

A discussão em torno de um centro para a teologia do AT é polêmica, pois o próprio conceito de centro, para muitos teólogos, limita um segundo conceito: o de revelação progressiva. Ora, dizem eles, se a revelação é progressiva toda definição de centro é descabida. 

Acontece que não devemos falar de um desenvolvimento linear, mas de uma expansão da revelação. Podemos tomar uma imagem, apesar dos perigos que um grafismo pode representar, de círculos concêntricos formados na água ao cair de uma pedra. Há sem dúvida uma progressão, assim como um centro, mas a expansão não é linear, se dá em todos os sentidos.

A teologia do AT tem por base o conceito da aliança, não como paradigma doutrinário gerador de dogmas, mas como descrição de um processo vivo, que tem origem em determinado momento histórico, numa relação entre Deus e um homem historicamente definido. 

Assim, ao entendermos o conceito de aliança como centro unificador do AT a partir do diálogo entre Deus e Abraão, em Gênesis, a leitura do texto bíblico passa a ter uma compreensão muito mais ampla, que cresce conforme a aliança se transforma em osso e carne, primeiramente, na vida dos patriarcas e, posteriormente, na formação da própria nação.

O livro de Gênesis apresenta a humanidade recém formada como monoteísta. Até o capítulo 11 não vemos nenhum traço de idolatria. Só após Babel surge a idolatria, que seria contemporânea ao aparecimento das nações da antigüidade. Assim, a partir de Gênesis 12, temos nações idólatras e politeístas e indivíduos que adoravam ao Deus único. Entre estes estão Abraão e Melquisedeque. A compreensão desse fato é importante para tirarmos das costas de Abraão a responsabilidade de ter criado a primeira religião monoteísta. Ele não criou a religião do Deus único, mas viveu uma tradição, no sentido de transmissão de conhecimento e cultura, que vinha, em parte, de seus antepassados.

Homem ou mito

Vejamos um pouco mais sobre a vida desse homem, conforme descrita em Gênesis 12:1 a 25:18. Ele vivia na terra formada entre os rios Tigre e Eufrates, às margens de um afluente do Eufrates, chamado Balique. Viveu com sua família em Harã, uma cidade altamente desenvolvida. Seus parentes, Terá, Naor, Pelegue, Serugue, têm seus nomes registrados nos documentos de Mari e dos assírios como nomes de cidades naquelas regiões. 

A cidade de Ur, onde vivera antes de ir para Harã, é situada pelos arqueólogos na região da moderna Tell el-Muqayyar, a catorze quilômetros de Nasiryeh, no sul do Iraque. Segundo estudos de Sir Leonard Woolley, do Museu Britânico, que reconstruiu a história de Ur desde o quarto milênio até o ano 300 a.C., o deus-lua Nanar, que era adorado em Ur, também era a principal divindade em Harã.

É interessante agregar, que todas as ofensivas da teologia liberal, que se baseavam principalmente nos estudos de Graf-Wellhausen, e que afirmam que Abraão, Isaque e Jacó não existiram como indivíduos, mas são personagens criados pela literatura mitológica israelita entre os anos 950 e 400, estão em franco descrédito. Isto porque a partir de 1925, uma série de descobertas arqueológicas produziu uma revolução de informação até então inédita. “Temos agora textos, literalmente dezenas de milhares, contemporâneos ao período das origens de Israel”. E Bright cita os 25 mil textos de Mari; os milhares de textos capadócios; os das execracões, os do médio império egípcio; e os tabletes de Nuzi, Alalakh, e Ras Shamra, produzidos entre os séculos 20 a.C. e 14 a.C.

Segundo os documentos diplomáticos de Mari, cidade situada na região do rio Eufrates, o início do segundo milênio se caracterizou pelo tráfego de tribos nômades por toda a região da Mesopotâmia e Babilônia. Essas tribos tinham sua economia baseada na pecuária, ovinocultura e criação de camelos. 

A necessidade básica desses grupos era água e pastagens. Assim, a escassez desses elementos determinavam o movimento de toda a comunidade. Sendo uma economia ajustada, com mútua dependência de seus membros, forte sentido coletivo de propriedade, e consciência de uma descendência comum, o grande fator de desequilíbrio, fora questões climáticas, era o aumento natural da população tribal. Esse fator levava ao fracionamento do grupo, quando este crescia em demasia, à aglutinação de parcela de uma tribo a outro grupo tribal, ou a uma postura guerreira na tentativa de apossar-se de territórios controlados por comunidades agrícolas e sedentárias.

Normalmente, quando a terceira opção acontecia, essas tribos nômades, com o tempo, acabavam sendo assimiladas pela cultura sedentária. Nesses casos, os líderes nômades e seus descendentes, geralmente, passavam a ocupar a liderança da comunidade conquistada.

Abraão, seu pai e seus irmãos, assim como seu filho Isaque e seu neto, Jacó, foram nômades, ou melhor, seminômades, já que todos conheceram também a vida sedentária. Mas, Abraão, sem dúvida, foi um homem que viveu sob tendas, acompanhando seu rebanho às nascentes de água e pastagens. Enfrentou as guerras, que caracterizaram o período e o modo de vida tribal. Essa vida dura e cheia de dificuldades fazia desses homens pessoas bastante especiais para sua época. 

Ao sair de Harã, Abraão deixava para trás a cultura politeísta babilônica. Mas isso não significa que todos os seus parentes compartilhavam suas idéias sobre a adoração do Deus único. Em Josué 24:2 vemos que membros de sua família eram politeístas. Em Canaã, também estava rodeado de idólatras, mas mesmo assim erigiu um altar a Elohim. 

Este homem Abraão era, sem dúvida, alguém peculiar. Sua fé no Deus único produziu em sua vida um fruto muito especial. Era um homem que procurava a paz (13:8-9), generoso (14:21-24), hospitaleiro (18:1-8), intercessor (18:23-33), que buscava a justiça e o direito (18:19). Era um homem moral e temente a Deus. 

Dessa maneira, os livros de Gênesis e Êxodo apresentam a fé israelita, enquanto construção, fundamentada em dois acontecimentos históricos. O primeiro, é a escolha de um homem historicamente definido, chamado Abrão, que foi tirado da cidade de Ur e levado para Canaã, uma terra prometida a ele e sua descendência (Gn.12:1-3; 13:14-17). Essa promessa foi selada com um pacto, uma aliança entre Iaveh e Abraão, conforme Gênesis 15:5-10. E o segundo fato histórico é a libertação dos descendentes de Abraão da escravidão do Egito, através de Moisés, e sua entrada na terra prometida (Ex.3:6-10).

Esses dois acontecimentos expressam a materialidade da aliança, que se traduz como escolha de Deus a favor de um homem, gerador de um povo, para uma missão definida. Realidade esta que foi reafirmada, centenas de anos depois, pelo príncipe dos profetas israelitas:

“Ouvi-me, vós, que estais à procura da justiça, vós que buscais a Iaveh. Olhai para a rocha da qual fostes talhados, para a cova de que fostes extraídos. Olhai para Abraão, vosso pai, e para Sara, aquela que vos deu à luz. Ele estava só quando o chamei, mas eu o abençoei e o multipliquei”. Isaías 51:1-2.

A aliança com Abraão foi selada com sangue, conforme os versículos 9 e 10 do capítulo 15 de Gênesis. Segundo os costumes semitas, o berit (pacto ou aliança) era feito através da degola de animais, geralmente um bezerro, que era dividido em duas partes, colocadas uma em frente à outra, e os contratantes passavam entre os pedaços (Jr.34:18-20) e diziam: “que a divindade corte em pedaços, como a estes animais, os violadores deste pacto”. 

Daí as expressões, “karot berit”, imolar uma vítima para concluir um pacto; “bo ba berit”, entrar na aliança (Jr.34:10); “abor ba berit”, passar pela aliança (Dt. 39:2); “amod ba berit”, parar na aliança (2 Rs.23: 3). Assim, Deus deu a Abraão uma formalização do pacto. Ou seja, o próprio Deus selou o acordo com um costume humano, a fim de que a aliança pudesse ser visualizada por Abraão. E o Eterno, em seu amor pelo contratante mais fraco, passa no meio dos animais partidos (Gn.15:17). O versículo seguinte agrega: 

“Naquele dia, o eterno estabeleceu uma aliança com Abrão nestes termos: à tua posteridade darei esta terra(...)”. 

Aqui voltamos ao início dessa análise: por que o conceito de aliança fornece uma base para a compreensão do livro de Gênesis? Em primeiro lugar, porque o diálogo de Deus com Adão e Eva em Gênesis 3:15 aponta para um salvador. E em Gênesis 15 temos a primeira realização dessa promessa através da aliança com Abraão, que produzirá descendência, com duas missões: ser testemunha entre as nações, e ser a nação separada, da qual nasceria o Messias prometido.

“É de suma importância entender que a aliança iniciou uma nova relação entre Deus e Israel, uma relação imposta por Iaveh, mas exclusiva e íntima em seu ideal”. 

Embora, na tradição judaica, o livro de Êxodo seja o livro da aliança, o conceito está presente e é desenvolvido no primeiro livro do Pentateuco.

Na aliança está embutida a idéia de salvação e de relacionamento pessoal com Deus. Esta realidade nova dentro do plano de redenção do homem, está implícita na declaração de Deus a Abraão: “Estabelecerei uma aliança entre eu e você, e a sua raça depois de você, de geração em geração, uma aliança perpétua, para ser o seu Deus e o da tua raça depois de você”. Gn.17:7. E como todo pacto, além do “berit milah” (pacto da circuncisão), Abraão e seus descendentes são chamados à responsabilidade moral (v.1) e à uma adoração permanente (vs.7 e 19). 

Elementos estes, que a partir de Moisés serão desenvolvidos, dando origem à religião de Israel, que tem por base, num primeiro momento histórico a primazia do culto e suas ordenanças e, num segundo momento, com o surgimento da profecia literária, da justiça social. Assim, é impossível fazer uma completa separação entre aliança e reino. Este último será uma construção que tem como primeiro tijolo a nova relação estabelecida por Deus com homens. Aqui, somos obrigados a recorrer a alguns conceitos da epistemologia, para entendermos o papel da transmissão do conhecimento de Deus e de sua vontade, realizado através da aliança, que Gênesis nos apresenta. Segundo Piaget, quando estudamos o desenvolvimento e a construção das estruturas de conhecimento, vemos que esta construção se dá através de uma dissociação de conteúdos e da elaboração de novas formas, mediante uma abstração reflexiva de conhecimentos anteriores.

Ora, a relevância da epistemologia está em que ela nos mostra que, por mais importantes que sejam as origens de dado conhecimento, o que determinará sua essência é seu movimento genético. Assim, quando temos a formalização desse processo temos de fato um conhecimento inteiramente novo, que extrapola os dados iniciais, transbordando o real. Sabemos que a circuncisão na época de Abraão era um costume generalizado, associado aos poderes da reprodução humana, que servia de distintivo tribal. Também sabemos, como vimos anteriormente, que os pactos eram selados com sangue e o seu rompimento significava a morte do transgressor.

Esses conteúdos faziam parte da cultura de Abraão e de seu clã. Da mesma forma, outros conteúdos, como adoração / “edificar um altar” (Gn.12:8), obediência / “foi habitar nos carvalhais de Manre” (13:17-18), entrega de bens e posses / “e de tudo lhe deu o dízimo” (14:20), fidelidade / “ele creu no Senhor” (15:6), e consciência da onipotência divina / “não fará justiça o juiz de toda a terra?” (18:25) são conteúdos espirituais da fé de Abraão e dos homens santos que o antecederam.

Dessa maneira, a questão não está centrada nas origens desses conteúdos que, sem dúvida, são históricos e refletem as culturas das civilizações mesopotâmica e da bacia do Nilo, assim como a tradição monoteísta na época de Abraão. O fundamental aqui é entender que esses conteúdos se organizam em nova estrutura: a aliança abraâmica, que se constrói geneticamente, com história peculiar. Esta aliança, cuja gênese e história mostram uma elaboração sucessiva, que é o próprio Pentateuco, como síntese lingüística, não é pré-formada. Sua construção histórico-genética é autenticamente constitutiva e não se reduz a um mero conjunto de conteúdos acessíveis.

O conhecimento que se origina na atividade reflexa do sujeito recebe com a revelação esta organização funcional, que o torna possível. Aqui, convém notar que para o conhecimento que tem por base o processo da revelação a organização funcional sempre se mantém invariável. Ou seja, essa organização funcional se mantém em equilíbrio, apesar dos processos vividos nas estruturas. E mais do que isso, se impõe a elas como necessárias.

É um bereshit, um fiat, um momento especial que dá origem à essa estrutura nascente: é a revelação. A partir da promessa de Gênesis 3:15 temos uma revelação. A aliança surge como revelação, como ruptura que dá vida a antigos conteúdos, colocando em movimento um processo histórico-genético que vai-se construir enquanto estrutura (povo escolhido / terra prometida) e dar novo salto com a formalização maior realizada no Sinai.

Esta realidade leva à uma outra, que é o da linguagem do Pentateuco, na seqüência da aliança. Considerando a moderna lingüística, do ponto de vista estrutural, vemos que a linguagem tem duas grandes características: por um lado é universal, enquanto estrutura geral, humana e, por outro, é livre e não serve apenas à função comunicativa, “mas é antes um instrumento para a livre expressão do pensamento e para a resposta apropriada às novas situações”.

Isto é o que explica o fato das grandes revoluções do conhecimento serem sempre acompanhadas pelo surgimento de uma linguagem nova e de novas estruturas de pensamento. Ora, a aliança descrita em Gênesis 15 e 17 vai abrir um processo de revolução em relação ao conhecimento de Deus e de sua vontade, e vai gerar uma nova linguagem.

De forma crescente vemos nos capítulos seguintes de Gênesis e dos demais livros do Pentateuco essa nova linguagem ganhar forma e consolidar-se enquanto linguagem da teologia da aliança.

Algumas palavras serão fundamentais nessa nova linguagem: acordo / aliança / pacto (berit, conforme Gn.12:2; 15:17; 17:7-8; 22: 16-18); altar / holocausto / sacrifício (conforme Gn. 12:7; 22:9; 35:1,7; Êx. 17:5; 24:4; 27:1-8; 30: 1-10; Lv. 16:16-19); circuncisão (berit milah, conforme Gn. 17:9-14; Êx. 4:24-26; Dt. 10:16); justiça / misericórdia (conforme Gn. 15:6) e santidade (conforme Gn.17:1; Êx. 19:6; Lv. 20:6).

Assim, tem razão Mullins, citado por Harbin, quando diz que “no Antigo Testamento, a aliança entre Deus e Israel era a base de todo trato de Deus com seu povo. O significado da aliança foi que Israel pertenceu a Deus e Deus pertenceu a Israel. A relação foi às vezes descrita com semelhante àquela entre pai e filho, ou como aquela de marido e esposa. Eis a declaração freqüente no Antigo Testamento que Deus é Deus ciumento (Êx.20:5; 34:14; Dt.4:24; Is.54:5; 62:5; Os.2:19)”. 

Dessa maneira, através de Abraão, a aliança é em primeiro lugar pessoal, abrangendo cada vez um espectro maior: tribal, nacional, universal. Mas, quer no primeiro caso, pessoal, quer historicamente, como redenção, ela é sempre estrutural.

Mas, se aliança é eleição, escolha, implica em preferência por alguém, escolher por prazer ou por amor. E essa conceituação entre aliança e amor é muito claramente enunciada em 1 Reis 11:13, quando Deus afirma que escolheu Jerusalém por amor.

Aliança e amor não podem ser separados, embora não sejam a mesma coisa. A aliança é o selo, o pacto. O amor, o motivo que leva à aliança. No livro de Gênesis vemos o amor de Deus na criação, na conversa com Adão e Eva e na promessa de um salvador. Mas é na aliança que o amor pelo homem caído torna-se material e compreensível.

A saga dos patriarcas descendentes de Abraão, que se torna um pai de muitos povos, mostra o caminho da concretização dessa aliança. Eis o tema central de Gênesis e de todo o Pentateuco: Deus ama e casa-se com um povo, criado por ele, e comissionado por ele. O resto da história, nós conhecemos. E por amor estamos dentro da aliança abraâmica.


Bibliografia recomendada

Bright, J., História de Israel, Paulinas, São Paulo, 1978
Eichrodt, Walter, O Homem no Antigo Testamento, A. A. João Wesley, SP, 1965
Hasel, Gerhard, Teologia do AT: Questões Fundamentais no Debate Atual, Juerp, 1992
Kidner, Derek, Gênesis, Introdução e Comentário, Mundo Cristão, SP, 1991
Rowley, H. H., A Fé em Israel: Aspectos do Pensamento do AT, Paulinas, SP, 1977
Schultz, Samuel J., A História de Israel no Antigo Testamento, Vida Nova, SP, 1992
Scott, R. B. Y., Os Profetas de Israel: Nossos Contemporâneos, ASTE, SP, 1968.
Wolff, Hans Walter, Antropologia do Antigo Testamento, Loyola, SP, 1975.

Notas

[1] “Não existe uma experiência da Revelação sem mediação histórico-social; além disso, a Revelação tem também, na realidade, um papel de mediação com relação à autocompreensão das comunidades, de modo que a Revelação tem, inclusive, uma função ideológica. Este fato é analisado de duas maneiras: de uma maneira histórico-crítica e de uma maneira temática; em ambos os casos constata-se que a experiência da Revelação implica sempre uma ‘teologia política’, seja no sentido afirmativo (e renovador), seja em sentido pioneiro (abrindo o futuro)”. Schillebeeckx, Edward / Iersel, B. Van, Revelação e Experiência, Editora Vozes, Petrópolis, 1978, pág. 5. 
[2] Walter C. Kaiser, Jr., Teologia do Antigo Testamento, São Paulo, Edições Vida Nova, 1997, p. 10. 
[3] Epsztein, León, A Justiça Social no Antigo Oriente Médio e o Povo da Bíblia, Ed. Paulinas, São Paulo, 1990, "As Leis Mesopotâmicas", págs. 11 a 26. 
[4]"Yahweh não elegeu Israel para fundar um novo culto mágico em benefício dele; elegeu-o para ser seu povo, para realizar nele o seu arbítrio. Portanto, por sua natureza, também a aliança religiosa foi uma aliança moral-legal, envolvendo não apenas o culto, mas também a estrutura e os regulamentos da sociedade. Assim, colocou-se o alicerce da religião da Torá, incluindo tanto o culto como a moralidade e concebendo a ambos como expressões da vontade divina". Kaufmann, Yehezkel, "A Religião de Israel", Editora Perspectiva, São Paulo, 1989, pág. 232. 
[5] "O exegeta Rashi quer que o primeiro versículo do Gênesis seja traduzido da seguinte maneira: "No princípio, ao criar Deus os céus e a terra, 2)2) a terra era vã," etc., pois a Escritura Sagrada não quer mostrar aqui a ordem da criação. A prova disso é que o fim do segundo versículo dá a entender que as águas já existiam antes dos céus e da terra". Haroldo de Campos, Bere'shith, A Cena da Origem, Ed. Perspectiva, São Paulo, 1993, pág. 24. 
[6] ”Não é necessário verificarmos a evolução do problema nos últimos dois séculos, quando surgiram apreciações bastante divergentes da teologia bíblica. A publicação da teologia de Eichrodt projetou a questão para uma nova dimensão. No seu entender, o “conceito central” e “símbolo apropriado” que garante a unidade da fé bíblica é a “aliança”.” Hasel, Gerhard F., “Teologia do Antigo Testamento / Questões Fundamentais no Debate Atual”, Juerp, São Paulo, 1992, p. 57. 
[7] “A centralidade da aliança para a religião do ATt já possuía defensores muito antes de Eichrodt”.: August Kayser, Die Theologie des AT in ihrer Geschichtlichen Entwicklung Dargestellt (Strassburg, 1886), p. 74. : “A concepção dominante dos profetas, a âncora e o alicerce da religião do AT em geral, é a noção de teocracia ou, utilizando a expressão do próprio AT, a noção de aliança”. G. F. Oehler, Theologie des AT (Tubingen, 1873), I, p. 69.: “O fundamento da religião do AT é a aliança por meio da qual Deus recebeu a tribo escolhida, a fim de realizar seu plano de salvação”, in Gerhard Hasel, obra citada, p. 57. 
[8] Kaufmann, Yehezkel, A Religião de Israel, Ed. Perspectiva, São Paulo, 1989, p. 220. 
[9] Schultz, Samuel J., A História de Israel no Antigo Testamento”, Ed. Vida Nova, São Paulo, 1992, p. 31. 
[10] Wellhausen, J. Prolegomena to the History of Israel, Edinburgo, p. 331. 
[11] Bright, J. , História de Israel, Ed. Paulinas, São Paulo, 1978, p. 97. 
[12]Epsztein, León, A Justiça Social no Antigo Oriente Médio e o Povo da Bíblia, Edições Paulinas, São Paulo, 1990, pág. 107, 108. “No deserto não existem muros para se protegerem, e daí a importância capital da liderança, a necessidade urgente de uma disciplina. Todavia, a mobilidade da vida nômade impede a fixação definitiva do poder em determinado grupo. Não há privilégio hierárquico. Quando surgem dificuldades, quando a guerra ameaça a segurança do grupo nômade, qualquer indivíduo de sagacidade maior ou de grande coragem impõe-se como chefe, mas não passa de primus inter pares: uma vez afastado o perigo, volta a seu lugar habitual. Diante de tais condições, o poder político dificilmente pode adquirir suficiente influência ou prestígio para prevalecer sobre a ética, sobre os valores morais, mormente com a crença dos hebreus, segundo a qual os homens, criados por Deus à sua imagem, beneficiam-se dos mesmo direitos e devem assumir as mesmas responsabilidades”. 
[13] Em Gênesis 17:5 Deus muda o nome de Abrão para Abraão. Essa mudança de nome traduz o seu chamado. Abrão significa “tão grande quanto seu pai”. Mas Deus o chama “ab hamôn”, pai de multidão. 
[14] Melamed, Meir Matzliah, A Lei de Moisés e as Haftarót”, Flórida, 1962, p. 33. 
[15] Harbin, Byron, Teologia do Antigo Testamento”, apostila, Faculdade Teológica Batista de São Paulo, São Paulo, 1996, p. 4. 
[16] ”A formalização constitui, desde o ponto de vista genético, um prolongamento das abstrações reflexivas que já atuam no desenvolvimento do pensamento, mas este prolongamento acontece através de especializações e generalizações que se tornam dominantes, adquirindo uma liberdade e uma fecundidade combinatória que sobrepassam amplamente e em todas as partes os limites do pensamento natural, mediante um processo análogo àquele, segundo o qual o possível transborda o real”. Piaget, Jean, La Epistemologia Genética”, A. Redondo Editor, Barcelona, 1970, p. 84. 
[17] Davidson, F, O Novo Comentário da Bíblia”, Ed. Vida Nova, São Paulo, 1994, p. 160 
[18] “O estudo da interação entre experiência e revelação leva a explorar três tópicos distintos, mas inter-relacionados. O primeiro é a especificação ou codificação da experiência. (...) Um segundo tópico é como essa experiência codificada consegue status de revelação numa comunidade. (...) O terceiro tópico refere-se à própria revelação como fonte de nova experiência. (...) Um dos elementos comuns a unir esses tópicos é a linguagem. (...) No encontro entre experiência e revelação é primariamente em sua linguagem que tanto a experiência como a revelação sofrem a mudança mais notável. A criatividade neste âmbito mostrar-se-á pela inovação linguística”. Schreiter, Robert, Especificação da Experiência e Linguagem da Revelação, in Revelação e Experiência, obra citada, pp. 58 e 59. 
[19] “A aquisição da linguagem é uma questão de crescimento e maturação de capacidades relativamente fixas, em condições externas adequadas. A forma da linguagem adquirida é determinada em grande parte por fatores internos”. Chomsky, Noam, Lingüística Cartesiana”, Ed. Vozes, Petrópolis, 1972, p. 80. 
[20] Chomsky, Noam, obra citada p. 23. 
[21] Mullins, Edgard Young, The Christian Religion in the Doctrinal Expression”, Philadelphia, Judson, 1954, pp. 237, 431, in Harbin, obra citada, p. 5. 
[22] É o “escândalo da história” ou “escândalo da particularidade” , segundo Dodd, C. H., The Apostolic Preaching and Its Development, Hodden and Stoughton, Londres, 1963, pág. 88, citado por Gabriel Moran, Teologia da Revelação, Editora Herder, São Paulo, 1969, p. 54.