jeudi 22 avril 2021

Aquele que matou Ícaro

Aquele que matou Ícaro
Jorge Pinheiro

Peça em três atos. Todos os personagens estão em cena desde o início, apenas o jogo de luz define o cenário, quando os personagens em cada ato são iluminados. Quando um personagem fala, a luz vai se tornando mais intensa. Quando ele se cala, a luz declina. E quando o outro personagem fala, iluminado, vive processo idêntico. No palco há um espelho, que fala como imagens de televisão. As imagens em bricolagem desfilam enquanto Macário, o espelho, fala. Mas, outras montagens, cenários e luzes são possíveis. O diretor define. Para os leitores, fica o desafio: façam a leitura do texto em voz alta. Depois dos ensaios, convidem os amigos e vizinhos. Encenem. O teatro faz bem à alma.

Primeiro ato
Ao amanhecer, no palácio de Cócalo, rei de Câmico, na costa meridional da Sicília. 

Dédalo -- Bom dia, Macário.
Macário -- Bom dia, Dédalo.

Macário (continua) -- Por que você abandonou Ícaro, como Jefté fez com a menina? Eu bem que avisei você, Dédalo. Eu disse para você não fazer como Jefté, que disse: eu queimarei em sacrifício aquele que sair primeiro da minha casa para me encontrar quando eu voltar da guerra. Eu o oferecerei em sacrifício ao Eterno. Você tinha que dominar a sua arte, caso contrário ela se tornaria inimiga, se colocaria à porta do seu coração como uma fera querendo saltar em cima e devorar você. Cabia a você dominá-la.

Dédalo -- Dominá-la! Dominá-la! O que significa isso, Macário? E quando eu me engalfinho com ela, quando dou pernada e levo sopapos da minha arte, para ter controle sobre ela, já não estou tão envolvido, que de bela fera imaginada ela já não é realidade vivida no peito que dói?

Macário -- Mas eu vi quando você abandonou Ícaro. Você o levou lá para cima, acima das colinas, das pastagens de Creta, vagando pelo azul, e não ficaram os dois, um e outro, o par olhando para as ondas debaixo. E vagou com as nuvens, flutuou na imensidão, cheio de prazer e realização. Coitado de você Dédalo, arquiteto de engenho e arte. Você se bastou, deixou o menino se esgueirar alucinado em direção ao sol forte.

Dédalo -- Para você é fácil julgar, Macário. Você é reflexo da minha loucura, assim como foi reflexo dos caminhos de meu filho. Você é meu inverso, como foi dele, você se mexe, mas está fixo. E quando a gente é um ponto fixo e o resto é cenário é fácil julgar. Você é o sagrado que me consome. Você é a minha dimensão apofática, negação daquilo que sou, é martírio, cruz, morte. Através de você mergulho nas trevas. É isso mesmo Macário, reconheço a minha arrogância e desejo, esse é o meu desejo, que no reconhecimento do desvario possa conhecer para além da razão.

Macário -- Eu sei que é por isso que nos vemos todos os dias. Que é por isso que você levanta, fica diante de mim e começamos a conversar. Eu, Macário, sou misterium tremendum que esmaga e leva o medo até a profundidade da sua alma. Esse temor qualitativo, motivo para reflexão e energia, faz de você meu adorador.

Dédalo -- Eu sei, Macário, meu senhor, que necessito ser como você. Quero incorporar aquilo que me é distinto. Mas, apesar de nossa intimidade a cada manhã, permanece esse abismo entre eu, adorador, e você, sagrado. Desejo saltar o abismo que nos separa, e talvez seja esse o móvel que faz de mim espiritual, ao imitar a queda de Ícaro, o amor do filósofo e a insanidade da juventude. Talvez...

Macário -- Agora, não dá mais, Dédalo! Eu vi você abandonar Dédalo. Você o derrubou, você derreteu as asas dele. Com sua imaginação, com suas mãos de escultor você o puxou para a imensidão do Egeu. Você não o olhou nos olhos. Olhos nos olhos. Dois de realização, egocentrados, dois de terror, caindo no abismo. E você continuou seu vôo de prazer profundo. Esqueceu, abandonou, não viu o rosto aterrorizado que mergulhava. Profundo, vil prazer. E você, mestre, fez os olhos temerosos saltarem. Eu vi, Dédalo. E isso você vai ver também, a cada manhã que olhar para mim.

Dédalo -- Ah! Querido Ícaro, estou perdido nos meus labirintos. Vejo seus cabelos cacheados, os olhos negros, instigantes, voadores. O rosto de jovem que sonha, queimado pelo sol esperto. Ah! Miserável homem que sou, quem livrará o meu corpo da morte?

Macário -- Dédalo, a sua confusão já não está, mas também não estão a escultura e o vôo. Você matou Ícaro e metade da sua alma se foi. Vou colocar no seu rosto, a marca dos olhos desesperados, que olham para além do que todo mundo vê. E as pessoas que olharem para você verão que você vê o que elas não vêem. E fugirão de você por isso. E não matarão você porque vão ficar com medo. E essa será a vingança que Ícaro me autorizou dar a você. Vagar sem esperança pelo labirinto da vida. 

Segundo ato
Ao entardecer, num orquidário em Jardim, na chapada do Araripe.

Carvoeiro – Eu vejo a dor de Dédalo de maneira diferente. Dédalo sempre esteve sujo como eu. Bicho humano vivia na sombra. Vou prosar uma toada. Dédalo estava preso na mina, que tinha só uma luz do sol iluminada na entrada. Lá desde a infância teve a cabeça e as pernas amarradas de movimentos. Bicho preso, só conseguia ver o que estava diante. Não tinha voltar do rosto e olhar para trás. Mas, atrás dele, a luz do candeeiro do céu alumiava. Entre a ilustração e Dédalo havia um caminho, mas também um tapume alto. Lá estava Dédalo, libertário, infância adentro...

Maquinista – Não sei aonde você quer chegar, mas Dédalo é um do protesto. Está livre para criar e fazer. Com ele não tem contras, é ranzinza para a norma dos deuses. As amarrações antigas não têm para ele, o que é engenharia é bom. Legal é novidoso, é bênção buscada. Vou ficar afluente! Ser ourudo está no ninho do coração de Dédalo e não conseguir é pecado.

Guarda-chuva – Não sei não. Vocês são complicados. Acho que já está escrito quando se nasce. Sou guarda-chuva e aqui todo mundo me conhece assim. Quando cheguei, ela estava na cama aos berros. Fiz psiu para se acalmar, embora berrar não fosse mau. Peguei jornal e coloquei debaixo dela. Peguei a minha tesoura, linha de algodão e cortei em três pedaços de vinte e cinco centímetros. Peguei o cobertor, na verdade uma colcha fina que estava ao lado da cama. Dobrei em três e coloquei em cima da mulher. Minhas mãos estavam limpas, mas eu esfreguei com álcool.

Carvoeiro – Espera aí guarda chuva, eu quero continuar. Dédalo se livrou dos nós, das amarrações, mas não da astúcia das idéias. Desatado, levantou, voltou a cabeça, andou, olhou para a luz. Como o filho, Dédalo sofreu muito: a iluminação foi coisa de dor, mas o deslumbrou e ele não conseguiu ver as gentes por inteiro. Foi isso que aconteceu com Dédalo, o engenho e a arte dançaram na frente dos olhos dele e queimaram! Que confusão, as verdades doeram, e a astúcia das idéias foi bem mais amistosa do que o mundo transiluminado pelo candeeiro do meio-dia! O filho despencou lá de cima e Dédalo foi para a Sicília.

Maquinista – Dédalo se lançou, cheio do espírito, no criar e fazer no mundão besta. É arquiteto virtuoso, de virtude aburguesada. É puro dos modernosos, cheio de economias e racionalidades, e quer que tudo que é criatura seja trabalhador sóbrio e industrioso, aferrado no manejo, destinado na vida amarrada pelos divinos. Dédalo quer tudo que é criatura debaixo do mando dele, que é decreto eterno vindo dos deuses.

Guarda-chuva – Sei não. Vocês são complicados. Acho que coisa má nasce feita. Quando as contrações aumentaram e a bolsa d´água rompeu, coloquei os dois travesseiros que encontrei para amparar a cabeça e as costas da mulher. Ela começou a fazer força, retinha a respiração e segurou as coxas por trás dos joelhos, puxando as pernas. Apareceu a cabeça. Coloquei uma toalha embaixo das nádegas dela. Mas eu não tinha outra toalha para colocar entre as pernas da mulher. Amparei a cabeça roliça da criança com as mãos em concha. Tinha uma membrana, mas retirei. Para complicar, o cordão veio enrolado no pescoço. Coloquei um dedo por baixo do cordão, afrouxei e passei o cordão por cima da cabeça. Disse para a mulher parar de fazer força. Eu queria que a criança nascesse feliz, sorrindo, sem ruína da vida.
 
Maquinista - A sina de Dédalo é essa, ficou na especialização, esqueceu que casa de gente é terra e céu. Dédalo é ciborgue, meio gente, meio máquina, e quando fala faz ruído de máquina. E não fala sem máquina. Dédalo tem o estilo da máquina e vai parir máquinas até a última gota de combustível. Mesmo no céu, está preso na mina, como disse o carvoeiro, mas a mina é de ferro, sistema de uso e danação das idéias livres e do fazer gostoso. 

Guarda-chuva -- Principio a entender, mas não sei se concordo com vocês. Quando um ombro começou a sair, amparei, e o outro veio saindo também. Segurei o resto do corpo com as mãos. Não puxei o menino, que poderia se chamar Dédalo. Por que não? E o resto do corpo veio em baba de quiabo. Retirei as gosmas da boca e do nariz com um pano. Segurei de ponta cabeça e o resto da baba saiu. Chorou raivoso o choro dos infelizes. Coloquei-o de costas, amarrei o cordão com as linhas de algodão. Dei dois nós, um mais ou menos a quinze centímetros e outro a vinte centímetros do umbigo. Cortei entre os nós. E fiz depois um terceiro nó a dez centímetros do umbigo e cobri o umbigo com um tampão. Entreguei Dédalo para a mãe. Ele já estava agasalhado. Cobri a mulher e fiquei esperando aquela água-viva vir escorrendo. Coloquei num prato, cortei em pedaços pequenos e dei para ela comer. Eu não jogo a vida fora. Por isso, sou guarda-chuva de fama aqui no Jardim.

Terceiro ato
Ao amanhecer, no palácio de Cócalo, rei de Câmico, na costa meridional da Sicília. 

Dédalo -- Que tristeza profunda! Minha sem-vida começa agora, é vazio, não há reino, nem fé, nem paciência. Não há utopia: perdi os sentidos, o êxtase, o presente também.

Macário -- É isso mesmo, Dédalo. Para você não há mais iluminação, nenhuma notícia boa. Você começou a vagar com desespero, sem perspectiva, cheio de medo. E olhar o mundo assim é terrível. Não há mais fonte inesgotável para a imaginação, não há mais transformação. Não há mais possibilidades emergentes à luz do futuro prometido.

Dédalo -- Estou na Sicília, no palácio de Cócalo, e o que vejo? Gente sem âmago, só pedaços. Não há sinais, nem caminho. Não há sentido cronológico de término, não há a absoluta necessidade de pensar o fim, não há kairos, significado maior e profundo na história. Não há expectativa, lúdico, alegria, não há um momento de grande emoção.

Macário -- É a sina de olhar o mundo sem ter Ícaro junto. O que parecia ser bom, ao deixar o labirinto para trás, é queda e perda de sentido. A alegria, felicidade e destino escorrem entre os dedos. Sem Ícaro você é só infeliz. E assim fica o que você vê. Por isso, você precisa cada vez mais de mim. Por isso, todos os dias, você tem que olhar e conversar comigo, ver o vivo e o morto, chorar e ter medo. Não há salvação para você. Infeliz, porque o sol derreteu a aventura e o risco. Não há mais tempo oportuno, não existe para você um começar agora de esperança. 

O profeta e o espelho
O diretor da peça tem a liberdade de inserir este diálogo entre o profeta e o espelho na peça Aquele que matou Ícaro, enquanto uma voz não definida grita: Artaud, Artaud, quem matou Ícaro! 

Abandonai as cavernas do ser. Vinde, o espírito se revigora fora do espírito. Já é hora de deixar vossas moradas. [Cartas aos Poderes, Antonin Artaud].
 �Foi surrealista. Antonin Artaud (1896-1948) criou o Teatro da Crueldade. Suprimiu os diálogos, a organização cênico-espacial e os meios de atuação tradicionais do teatro, e incorporou novos conceitos de gestualidade. Foi um dos fundadores do Teatro Alfred Jarry, em Paris. Sofreu de enfermidades físicas e beirou a demência, e não foi aceito pela crítica e pelo público da época. Hoje, é influência viva em escolas teatrais experimentalistas e entre diretores e atores. A ele dedico in memoriam...
 
Na fronteira do mundo, o profeta olha para o cristal límpido. 

Profeta -- Quero falar, dizer para você o perigo que está correndo...

Espelho -- Bobagem, sempre consegui resolver os meus problemas. Às vezes, é verdade, de forma meio violenta, com um pouco de sangue, mas aqui estamos nós, sobrevivendo.

Profeta – Não, eu preciso... Ouça ao menos um pouquinho do que tenho a dizer. Se não falar não vou poder dormir. Estou angustiado, desesperado com a situação...

Espelho – Então vá lá. Fale. Não quero ver você neste estado.

Profeta – O Eterno disse: coitada da cidade, orgulho e coroa dos bêbados! Ai dessa bela cidade que fica acima de terras boas! Os seus moradores estão embriagados, e a beleza da cidade desaparece como uma flor que murcha.

Espelho – Mas porque ele diz isso? O que tem contra a cidade? Isso me deixa irritado, ele está sempre contra. Ele é do contra.

Profeta – É por isso que preciso falar, para que você compreenda e viva. Há uma razão para a destruição: você. Você está plantando tudo isso. Será que não entende?

“Há outros que andam tontos por terem bebido muito vinho, que não podem ficar de pé por causa das bebidas: são os sacerdotes e os profetas, que vivem embriagados e tontos. Os profetas, quando recebem visões do Eterno, estão bêbados, e os sacerdotes também, quando julgam os casos no tribunal. As suas mesas estão cobertas de vômito, não há um só lugar que esteja limpo.”

Espelho – Não dá para entender. Ele está falando de você, acusando, está falando mal de você. Afinal, você é um profeta, não é?

Profeta – É verdade, eu e você somos iguais, embriagados, sentados no vômito, fedendo. É por isso que estou desesperado, clamando por nós dois. Mas se você ao menos prestasse atenção. O seu desprezo só aumenta a distância...

Espelho – Não encha o saco, não somos crianças!

Profeta – Se você não quiser ouvir, estrangeiros vão falar em nome do Eterno. Estou lhe dizendo, o Eterno lhe dará descanso, ele lhe dará segurança. Mas você não quer ouvir. Por isso, o Eterno vai cuidar de você como se fosse criança. Você tentará andar, mas cairá de costas; vai se machucar, cairá em armadilhas, será preso.
“O maravilhoso está na raiz do espírito. Nós estamos dentro do espírito, no interior da cabeça. Idéias, lógica, ordem, verdade, razão: tudo oferecemos ao nada da morte. Cuidado com as lógicas, senhores, cuidado com as lógicas. Não imaginam até onde pode nos levar o ódio.”

Espelho – Chega! Fizemos sim um acordo com a morte. Mas fizemos porque é o jeito de darmos um basta ao caos. Estamos organizando a casa. Talvez, custe um pouco de sangue, talvez a morte se faça presente, mas não há outro jeito.

Profeta – Discordo. Você não precisa viver com medo.

“Por isso, o Eterno diz: Estou colocando sobre esta cidade uma pedra, uma pedra pesada, enorme, que eu escolhi para ser a pedra principal do alicerce. Nela está escrito isto: Quem tem fé não tem medo. Como prumo usarei a justiça e a honestidade – serão a minha medida.”

Espelho – E a morte? O que faço com ela? Ai! Na verdade, já não sei qual é melhor, o medo, a insegurança, ou esse acordo com a morte.

“O acordo que vocês fizeram com a morte será anulado, o que vocês combinaram com o mundo dos mortos será desfeito. E, quando chegar a terrível desgraça, ela arrastará vocês como se fosse uma enchente. Todas às vezes que chegar, ela os arrastará; chegará todos os dias, de manhã e de noite. Cada mensagem do Eterno trará um novo pavor. Vocês serão como a pessoa de que fala aquele provérbio: A cama é tão curta, que ela não pode se deitar, o cobertor é tão estreito, que não dá para ela se cobrir.”

Profeta – Sente-se aqui ao meu lado. Vou falar e você vai ouvir... Certa vez, Artaud disse que os céus respondem à nossa atitude de absurdo insensato. Que o hábito que temos de dar as costas às perguntas não impedirá que os céus se abram no dia estabelecido. E que uma nova linguagem se instale no meio de nossas imbecis transações, das transações imbecis de nossos pensamentos.

Espelho – Deixa eu abraçar você. Eu amo... Queria tanto que Artaud, Bataille e os outros estivessem aqui. Vamos ouvir...
“Escutem o que vou dizer! Dêem atenção à minha mensagem! Um homem que está preparando o terreno para semear trigo não gasta todo o seu tempo arando a terra, cavando e remexendo nela. Depois de ter aplanado a terra, ele semeia o endro e o cominho e planta o trigo, a cevada e outros cereais nos lugares certos. Ele faz tudo direito porque o Eterno lhe ensinou. E no tempo da colheita ele não usa um instrumento pesado para debulhar os grãos de endro e de cominho; ao contrário, ele usa varas pequenas e leves. Quando malha o trigo, ele não continua malhando até quebrar os grãos. Ele sabe passar a carreta por cima das espigas sem esmagar os grãos. Esse conhecimento também vem do Eterno. Os seus planos são maravilhosos, e ele é sábio em tudo o que faz.”

Profeta – Quem sabe ainda haja vida para nós?
No mundo sem porteira, o cristal vê o profeta translúcido.


Antonin ARTAUD – Une Vie, une Œuvre : Artaud, né de son œuvre (France Culture, 1995)






lundi 19 avril 2021

A paixão explode em chamas

 A paixão explode em chamas 

Jorge Pinheiro 



Imaginei um pensar transverso entre Teresa de Ávila (1515-1582), Baruch de Spinoza (1632-1677) e Georges Bataille (1897-1962). Não uma conversa que deve levar a leituras definitivas, mas a matutar percepções sobre a experiência religiosa, a paixão e a morte. Assim, lemos Teresa em Versos nacidos al fuego del amor.


Vivo sin vivir en mí,
y de tal manera espero,
que muero porque no muero
 


Spinoza considerava a teologia um pensar primevo, que caía muito bem na construção pré-científica da realidade, mas não na sua contemporaneidade. Achava que a tal busca das últimas causas não acrescentou nada à compreensão da natureza. E, que, só quando a humanidade parou de olhar para cima e olhou para si própria e ao seu redor pode pensar a física e as ciências possibilitaram a expansão do conhecimento. Gosto de Spinoza, mas acho que estava enganado ao colocar a teologia fora do humanismo e do naturalismo que defendia. Na verdade, se olharmos a teologia e, por extensão, a experiência religiosa apenas como formas de um supranaturalismo, elas se mostram, sem dúvida, superficiais. 


Vivo ya fuera de mí 
después que muero de amor; 
porque vivo en el Señor, 
que me quiso para sí; 
cuando el corazón le di 
puse en él este letrero: 
que muero porque no muero. 


Há algo no pensar de Spinoza que é desnorteador, em parte por sua veracidade: o comportamento humano deve ser explicado de modo semelhante ao dos demais comportamentos na natureza. E a partir daí ia fundo, radicalizava: a princípio, não há liberdade, nem responsabilidade no comportamento humano. O fazer humano, até o mais íntimo, deve ser explicado por suas causas mecânicas, como fenômenos da natureza. Assim, bom é simplesmente aquilo que dá prazer; e mal o que causa dor. Mas, o que isso significa, amigo Spinoza? 


Esta divina prisión 
del amor con que yo vivo 
ha hecho a Dios mi cautivo, 
y libre mi corazón; 
y causa en mí tal pasión 
ver a Dios mi prisionero, 
que muero porque no muero. 


Gostaria que você, amigo Spinoza, tivesse lido as confissões de uma jovem monja carmelita, chamada Teresa, no Livro de sua vida, onde contou um dos seus muitos momentos de êxtase:


“Vi nele uma comprida lança de ouro e sua ponta parecia ser um ponto de fogo. Parece que ele a enterrou muitas vezes em meu coração e perfurou minhas entranhas. Quando retirava a lança, parecia também retirar minhas entranhas e me deixar toda em fogo do grande amor de Deus. A dor era tão grande que me fazia gemer, porém, a doçura dessa dor excessiva era tal que eu não podia pensar em ficar livre dela... A dor não é corporal, mas espiritual, embora o corpo tenha sua parte e mesmo uma grande parte. É uma carícia de amor tão doce, que então acontece entre a alma e Deus, que rogo a Deus em sua bondade faça com que seja experimentada por quem possa pensar que estou mentindo”. 


Vamos ouvir um pensador maldito, Bataille. Para ele a experiência religiosa está marcada pelo prazer. O prazer de viver. E é esse tropismo ao prazer que leva à superação, no cristianismo, da acentuação de uma teologia do pecado, com sua culpa infindável. Mas, aqui estamos diante de um paradoxo, pois a tradição cristã enfrenta esta pedra de tropeço, pois enquanto construção simbólica pesa sobre ela a sombra de um instrumento de tortura do qual pendeu seu fundador. De todas as maneiras, mesmo sem negar a culpa, a experiência religiosa recupera o prazer de viver e leva o fiel em êxtase a saborear as frutas que a vida oferece, doces e amargas.  


¡Ay, qué larga es esta vida! 
¡Qué duros estos destierros, 
esta cárcel, estos hierros 
en que el alma está metida! 
Sólo esperar la salida 
me causa dolor tan fiero, 
que muero porque no muero. 


É por isso que Teresa, em meio à solidão da cela, falava da liberdade do êxtase.


“Durante os dias em que isso acontecia, ficava meio abobada; não queria ver nem falar, mas ficar abraçada com meu sofrimento que para mim era a maior glória. Isto ocorria algumas vezes, quando o Senhor queria que me viessem estes arrebatamentos intensos, que mesmo estando entre pessoas, não podia resistir. Antes que esse sofrimento de que falo agora comece, parece que o Senhor arrebata a alma e a põe em êxtase, e assim não há lugar para dor e padecimento, porque logo vem o gozar”. 


E Bataille, em O Erotismo, ao falar sobre a experiência mística, que está presente em todos os movimentos cristãos, mesmo os mais conservadores, diz que, como a proibição criou, na violência organizada das transgres­sões, o erotismo inicial, ao proibir a transgressão organizada, por sua vez aprofundou os graus da expressão sensual. E dá como exemplos as noites dos sabbats, ou da solidão celas, onde, por exemplo, o marquês de Sade escreveu Cent Vingt Journées. E cita Baudelaire quando afirmou que a única e suprema volúpia do desejo jaz na certeza de fazer o mal. Ou seja, homem e mulher sabem que é no mal que se acha a volúpia.


¡Ay, qué vida tan amarga 
do no se goza el Señor! 
Porque si es dulce el amor, 
no lo es la esperanza larga. 
Quíteme Dios esta carga, 
más pesada que el acero, 
que muero porque no muero. 


Bem, se o prazer se liga à transgressão, como explicar o êxtase religioso, que não produz culpa? E aí é onde Bataille dá um show de bola, e completa Spinoza quando aquele criticava o pensar teológico. Para Bataille, o mal não é a transgressão, é a transgressão condenada. O mal é o pecado. E foi do pecado que Baudelaire falou. Da mesma maneira, as narrações dos sabbats falam de uma procura pelo pecado. Mas, Sade e Teresa negam o mal e o pecado, embora trabalhem com a idéia da irregularidade para transmitir o desencadeamento da crise voluptuosa. 


Sólo con la confianza 
vivo de que he de morir, 
porque muriendo, el vivir 
me asegura mi esperanza. 
Muerte do el vivir se alcanza, 
no te tardes, que te espero, 
que muero porque no muero. 


O cristianismo negou o caráter sagrado da atividade erótica encarada na transgressão. E os místicos negaram o que a igreja considerava divino. Nessa negação, o cristianismo, com o tempo, perdeu o poder religioso de evocar a pre­sença demoníaca: perdeu-o na medida em que o diabo deixou de estar na base de qualquer perturbação fundamental. Hoje, os movimentos ligados ao neopentecostalismo estão fazendo o caminho inverso. Mas, o certo é que os místicos, aqueles que foram marcados pela experiência religiosa do êxtase, deixaram de acreditar no mal. Desse modo, encaminharam-se para um estado de coisas em que o erotismo, deixando de ser um pecado, deixava de ser uma certeza de fazer o mal. Já na experiência profana, somos chamados a dar atenção a Spinoza, o erotismo seria pura mecânica animal. Mas, a partir da experiência religiosa e, mais exatamente, do êxtase místico, como aqueles de Teresa de Ávila, há um ultrapassar, sem que isso signifique voltar ao ponto de partida. 


Mira que el amor es fuerte, 
vida, no me seas molesta; 
mira que sólo te resta, 
para ganarte, perderte. 
Venga ya la dulce muerte, 
el morir venga ligero, 
que muero porque no muero. 


E por quê? Porque, nos explica Bataille, há na liberdade a impotência da liberdade, mas nem por isso a liberdade deixa de ser disposição de nós por nós próprios. As a­ções dos corpos podem, na lucidez, abrir-se à recordação inconsciente duma metamorfose infindável, cu­jos aspectos não deixarão de estar disponíveis. Veremos, então, que, por caminhos não prescritos o erotismo se reencontra. Chegamos, então, ao erotismo dos corações, ao erotismo mais ardente, quando, aparentemente, o erotismo dos corpos já sucumbiram. E voltamos aos Versos nacidos al fuego del amor.


Vida, ¿qué puedo yo darle 
a mi Dios, que vive en mí, 
si no es el perderte a ti 
para mejor a Él gozarle? 
Quiero muriendo alcanzarle, 
pues tanto a mi Amado quiero, 
que muero porque no muero. 


Ou como diz uma canção, lá no primeiro Testamento, o desejo é poderoso como a morte; e a paixão é forte como a sepultura. O desejo e a paixão explodem em chamas e queimam como fogo furioso. 




samedi 17 avril 2021

Sobre bruxas e Bruxas

Notas para uma crônica sobre bruxas e Bruxas 

Essas são minhas notas para uma última crônica nesta temporada na Europa. Anotações sobre uma igreja, a Catedral de São Salvador de Bruges. E anotações várias, além dessa primeira. 

1. O meu interesse não está exatamente na catedral, mas no paradoxo do nome Catedral de São Salvador de Bruges. Para que o leitor entenda, Brugge/Bruges tem um correlato inglês, Bridge, mas em espanhol e português o nome da cidade pode e deve ser traduzido, se formos traduzir, por Bruxas. Mas é bom dizer que na raiz flamenga brugge significa ponte, porque se acreditava que a bruxa era a ponte entre aquele mundo medieval chato e outro mundo de desejos possíveis. 

2. Donde, o nome da igreja é Catedral de São Salvador das Bruxas. Mas por que bruxas em Bruges? Bem, para os especialistas, historiadores no caso, esta era uma região de bruxas e feitiçarias, assim como o restante da Bélgica. Por isso, encontramos uma interessante bibliografia sobre a região e as atividades das bruxas. Para os interessados vamos citar dois artigos, um de Gailliard e outro de autor desconhecido, e também o livro de Stalpaert. 

3. Mas quero falar de bruxas e da catedral. E para falar de bruxas vou recorrer a um texto de Luiza Tomita, onde cita o Malleus Maleficarum, documento usado pelos homens da Inquisição: 

-- Toda bruxaria tem origem na cobiça carnal, insaciável nas mulheres, pois, segundo Provérbios 30, ela é comparável a um fogo que é preciso alimentar incessantemente, devoradora como o louva-a-deus. 

-- Há três coisas insaciáveis, quatro que nunca dizem: Basta! A quarta é a boca do útero. Pelo que, para saciarem sua lascívia, copulam até mesmo com demônios. 

-- As mulheres saciam os seus desejos obscenos não apenas consigo mesmas, mas também com aqueles que se acham no vigor da idade, de qualquer classe ou condição; causando-lhes, através de bruxarias, de toda espécie, a morte da alma, pelo fascínio desmedido do amor carnal, de tal forma a não haver persuasão ou vergonha que os faça abster-se de tais atos. 

4. Tal obsessão sobre o sexo da mulher, como diz Tomita, traduzia o desejo, o medo e sentimentos confusos, presentes no pensamento e nos escritos da igreja cristã medieval. E como resultado, de 1560 a 1630, a perseguição vitimou cerca de 100 mil mulheres – alguns historiadores falam em um milhão – na França, Alemanha, Suíça, Bélgica, Holanda e Luxemburgo. 

5. A Catedral de São Salvador das Bruxas foi levantada como igreja de paróquia no século XII e dedicada a São Donato. No século XIV sofreu mudanças e partes seguiram um estilo particular de gótico, o gótico de Escalda, nome do rio que atravessa essa região da cidade. No século XV, o deambulatório com suas capelinhas seguiram o gótico verticalista. 

6. A medievalidade de Bruges com suas ruas estreitas e tortuosas, canais, sombras e imaginações noturnas, não nos remete apenas às bruxas, mas à máfia dos tempos bicudos da alta-modernidade. Por isso, virou filme de Martin McDonagh. Depois de um trabalho em Londres que corre mal, dois assassinos são enviados para Bruges. Objetivo: desaparecerem do mapa por uns tempos. Ray (Colin Farrell) odeia a cidade e está irritado com o insucesso do trabalho. Ken (Brendan Gleeson) se deixa levar pela beleza mítica da cidade. Durante a estadia, sucedem-se encontros estranhos com turistas e residentes: um ator norte-americano anão, prostitutas e uma misteriosa mulher, Clémence Poésy -- Seria uma bruxa? Não se esqueçam que ela foi Fleur Delacour no filme Harry Potter e o Cálice de Fogo. As tais férias acabam quando o chefe, Harry (Ralph Fiennes), telefona a um deles e ordena-lhe que assassine o outro. As ruas das Bruxas tornam-se então um cenário surrealista de perseguições. 

7. E não se esqueça, há um dia das feiticeiras na Bélgica, é o 27 de Julho, com direito a procissão das bruxas e tudo. 

8. Essa história de bruxas nos remete à obsessão por amuletos na Idade Média, que estava ali-ali com a feitiçaria. Umberto Eco nos conta uma história que para mim raia a loucura. Diz ele, que “o prepúcio de Jesus estava exposto em Calcata (Viterbo) até que em 1970 o pároco comunicou o seu sumiço. Mas reivindicaram a posse da mesma relíquia Roma, Santiago de Compostela, Chartres, Besançon, Metz, Hildesheim, Charroux, Conques, Langres, Amberes, Fécamp, Puy-en-Velay e Auvergne. O sangue que brotou da ferida lateral, recolhido por Longino, teria sido levado para Mântua, mas outro sangue conserva-se na basílica do Sangue Sagrado em Bruges, na Bélgica”. 

Assim, de novo, Brugge/Bruges/Bruxas volta à berlinda e uma igreja, a Basílica do Sangue Sagrado, aparece como guardiã de uma relíquia inusitada. Que a engenharia genética não leve isso muito a sério... 

9. Para os finalmentes me pergunto: salvador de quem? Das bruxas ou daqueles que queimavam mulheres? Salvador das bruxas não poderia ser, pois como diz Tomita, para Santo Agostinho, a abominação da bruxaria surgiu da ligação entre a humanidade e o diabo: a mulher para tornar-se bruxa deveria renunciar a fé católica; dedicar-se de corpo e alma à prática do mal; ofertar crianças não batizadas ao demônio; e entregar-se aos atos carnais com íncubos e súcubos. 

10. Na Catedral de São Salvador das Bruxas, hoje uma igreja protestante, temos obras de arte. Entre elas, tapeçarias que decoram as paredes da nave, tecidas em Bruxelas por Van der Borcht, em 1730. São exuberantes. Sob o altar está uma escultura do Deus Pai, em mármore branco, feita por Arthur Quellin. À direita do prédio está o museu da catedral. Nele, há pinturas flamengas, jóias e relicários ouro e prata. 

Para as bruxas do século XXI sobrou uma procissão no dia 27 de julho. 


Découverte : Bruges, la Venise du nord, inchangée depuis 5 siècles


On part à Bruges, une ville belge qui doit son essor à un raz-de-marée en 1134. C’est à la fin du 15ème siècle que le port menacé par l'ensablement de la rivière, a vu son commerce s’affaiblir. Cette cité riche de son histoire a su conserver son patrimoine. On vous emmène découvrir cette Venise du nord, véritable musée à ciel ouvert et ancienne capitale européenne de la culture. Le site de l'émission : http://www.france3.fr/meteoalacarte Facebook : https://www.facebook.com/MeteoALaCarte Twitter : https://twitter.com/Meteoalacarte Instagram : http://instagram.com/meteoalacarte



vendredi 16 avril 2021

A segunda Eva

A segunda Eva
Jorge Pinheiro, PhD


“Isabel exclamou em alta voz: De onde me provém que me venha visitar a mãe do meu Senhor?” (Lucas 1.4243).

Embora a dogmática cristã ao falar de duas naturezas do filho se refira ao divino e ao humano, esses dois processos simbolicamente nos falam de duas gerações. E no caso de Maria, fala da filha que é gerada pelo pai, num primeiro momento, e do pai que é gerado pela filha numa universalidade posterior.

“Fiéis aos santos pais, todos nós, perfeitamente unânimes, ensinamos que se deve confessar um só e mesmo Filho. (...) gerado segundo a divindade antes dos séculos pelo Pai e, segundo a humanidade, por nós e para nossa salvação, gerado da virgem Maria, mãe de Deus [théotokos]”, reza o credo de Calcedônia, 415 AD, que apresenta Maria, a moça de Nazaré, como théotokos, mãe de deus. Nesse conceito há uma desconstrução da patriarcalidade ocidental e, por extensão, da propriedade. O que significa Maria mãe de deus nesta revisão da questão de parentesco? 

Miticamente, Maria aparece nos ícones como aquela que deu à luz deus e, portanto, substituta do pai. Ao mesmo tempo, a defesa daqueles que adoravam Maria através dos ícones era de que quando adoravam não a encaravam como deusa à maneira pagã, mas como aquela que deu à luz deus. 

Esse pensamento percorreu um caminho que levou até a idéia de segunda Eva. Uma revolução na história da linguagem acerca de Maria. E por que segunda Eva? Qual a diferença entre a primeira e a segunda? Há algumas questões intrigantes nesta discussão: a primeira é a idéia de que ela deu à luz deus; a segunda a percepção da necessidade de identificar uma pessoa como a geradora de uma nova criação; e a terceira de que, sendo deus criado e a pessoa geradora da nova criação uma jovem, o gênero feminino ocuparia a centralidade da nova estrutura de parentesco. Vejamos cada uma delas.

Em primeiro lugar, a maternidade não depende de um homem e que, de fato, o pai não é um pai. Na verdade, na universalidade da maternidade da moça de Nazaré, ela se tornou mãe de seu pai e, por extensão, mãe de todos os pais. 

Em segundo lugar, se acrescentarmos o anúncio do anjo Gabriel de que a geração da moça de Nazaré seria fruto do ruach hakadosh, do vento santo, temos a ruptura do significado biológico e cultural da paternidade, o que dá à maternidade caráter suprabiológico e supracultural, já que foram rompidos os laços de sangue. Então, o pai não é mais pai, nem o filho é filho do pai, mas da mãe. Nesse sentido, podemos entender théotokos. Mas tal desconstrução não para aí. A priori há uma realidade natural: inter feces et urinas nascimur. A vulva, a madre aberta pela passagem do primogênito/a permanece presente em nossa cultura e tem a consistência da lei biológica: ninguém chega ao mundo de outra maneira. Não há exceção. Mas em théotokos há a ruptura.

Em terceiro lugar, é interessante notar que Pilatos pergunta à multidão quem ela deseja que seja solto: Jesus ou Barrabás? Ora, Jesus é o eterno liberta; e Barrabás, filho do pai. Assim, naquele momento demônico, a multidão pede a morte da liberdade e a permanência da estrutura de parentesco, do filho do pai. Momentos mais tarde, já na cruz, Jesus reafirma a universalidade da maternidade suprabiológica e supracultural e diz ao seu amigo João que Maria é sua mãe, e à Maria que João é seu filho. 

Estamos diante de uma nova estrutura de parentesco, liberta dos laços de sangue, do biológico e dos condicionamentos culturais da patriarcalidade. Aqui encontramos uma ponte de diálogo com a cultura popular brasileira, a estrutura de parentesco matrifocal, que tem como possibilidade de construção o parentesco definido pelo amor, mas também por seu oposto, o abandono. Tal postura leva à escolha adotiva e, nesse sentido, aponta para a liberdade, mas também em posição, à escravidão, ambas, liberdade e escravidão em relação à natureza e às construções daí decorrentes.

Em quarto lugar, extrapola o universo da naturalidade, está embutida em théotokos e aponta para o futuro -- a gravidez e o parto da mulher virgem, que não tem a vulva como caminho, mas acontece na exterioridade do corpo. Assim, a moça de Nazaré, eterna virgem, preanuncia o tempo da maior de todas as desconstruções, a abolição da maternidade e a expansão da matrifocalidade. Essa desconstrução, sem dúvida, transformará a face da história do cristianismo. Mãe de seu pai, a mulher virgem gerará seu pai. E assim construiremos nosso próprio parentesco. 

Nessa construção teológica de expansão da matrifocalidade tomamos como modelo o papel da mulher na família mediterrânea, onde o espaço físico da casa é entendido enquanto categoria de gestão da chefia feminina e de arranjos extensos presentes nos grupos de parentesco. Nesses arranjos a centralidade da figura feminina e do papel exercido pelas mulheres, além de ser traço característico, religiosos ou não, exerce um eixo estruturador, que produz e reproduz modos de ser do modelo familiar. 

A presença matrifocal no modelo mediterrâneo não está associada à idéia de pessoas e comunidades fracas do ponto de vista da sobrevivência, mas denotam a expansão das trajetórias de ascensão das mulheres, que podem ser identificadas como representantes de um tipo de matriarcado. Podem ou não ser chefes da casa, assim como podem ou não ser liderança de extenso grupo familiar, onde homens, pai e filhos, aceitam a chefia feminina. Assim, é importante entender que a matrifocalidade mediterrânea não representa ausência do homem na família ou comunidade, e nem implica em chefia de mulheres solteiras, distante dos agrupamentos familiares, ou solitárias na gerência da prole. 

Teologicamente, a extensão da matrifocalidade é entendida aqui como construção e expansão da imagem de Maria, que concentra poder entendido como força simbólica circulante, que se fundamenta em presença conquistada na trajetória da fé cristã. Essa presença se traduz na definição de espaço espiritual próprio, que é fruto do prestigio adquirido nas comunidades, já que recebe o estatuto de mãe coletiva pela sua trajetória: no caso gerar o pai, e pelo tipo de funções desempenhadas, de parteira de um novo tempo, responsável por trazer ao mundo, com suas próprias mãos, o filho de novas gerações. A este conceito vamos chamar de feminescência.

Aqueles que procuram nas escrituras cristãs textos que possam remeter à tradição matrifocal da moça de Nazaré surpreendem-se com o fato destes textos serem poucos. Além dos relatos agrupados nos evangelhos de Mateus e Lucas nos capítulos 1 e 2, só se menciona Maria em passagens de João 2 e 19. Afora isso, há uma alusão a que o pai enviou ao mundo o seu filho, nascido de mulher, na carta de Paulo aos gálatas (4.4). Da mesma maneira, os estudos das escrituras cristãs mostram que a primeira geração de escritores, como Paulo, Marcos e João, não deu nenhuma importância à memória da moça de Nazaré: não se referiu a ela como virgem mãe e nem deu destaque à história da concepção do filho por ação do espírito. Isso, no entanto, não diminui a importância da matrifocalidade que seria construída com os passar dos anos na fé católica ocidental e oriental.

A raridade dos textos neotestamentários sobre a virgem mãe contrasta com a quantidade de histórias e relatos de milagres que foram se acumulando nos séculos de história da catolicidade. A explicação para isso é que, com o passar dos tempos, a catolicidade foi desenvolvendo uma simbologia matrifocal a partir de aspectos originários de sua fé, procurando relacioná-la com culturas e sensibilidades dos povos aos quais os católicos começavam a anunciar o evangelho. Assim, podemos falar de quatro aspectos na construção da matrifocalidade católica.

Tal matrifocalidade hoje nos lembra afluentes que correm para a formação de um rio. Surge do relato bíblico e da memória da virgem mãe, com a qual a comunidade católica se identifica através do próprio canto da moça de Nazaré, quando diz que “todas as gerações me proclamarão bendita porque o Todo-poderoso fez em mim maravilhas”, conforme Lucas 1.48-49.

Sabemos que o cumprimento dessa profecia veio aos poucos, dando seu salto formal com os concílios da jovem igreja católica. Mas não podemos dizer que o cumprimento dessa profecia de bendição ao pai, pela graça dada à moça de Nazaré, se deve exclusivamente aos católicos. Maria sempre virgem foi vista assim por Lutero, que dedicou a ela seu Magnificat, mas também por Wesley. O que as jovens igrejas reformadas não aceitaram é que se construísse uma piedade cristã a partir de uma teologia matrifocal que colocasse Maria ao mesmo nível do Cristo. Não podemos nos esquecer que certas tradições católicas chamam Maria de co-redentora. 

Paulo afirma em sua primeira carta a Timóteo (2.5) que há um só Deus e um único mediador entre Deus e a humanidade, que é Jesus Cristo. Os catecismos católicos responderam à polêmica suscitada pela matrifocalidade fazendo distinções entre adoração a Deus e veneração à virgem mãe, procurando expressões doces para a matrifocalidade e ligando-a de forma mais íntima à própria piedade ao Cristo. Mas a simbologia matrifocal tem tanta força que, de fato, a leitura patriarcal da trindade fez água: pai e filho perderam importância de forma crescente na tradição popular.

Esta situação tem raízes históricas. Uma delas, sem dúvida, foi o analfabetismo das massas e a conseqüente despreocupação em relação à leitura dos textos neotestamentários no longo período de construção da igreja católica, restando ao povo a devoção tradicional combinada às crenças e costumes de suas comunidades. Este tipo de sincretismo foi a regra no mundo antigo que se tornava católico.

Quando o catolicismo entrou no norte da Europa, encontrou os cultos celtas a uma deusa que era a rainha do céu. Logicamente, a síncrese entre a rainha do céu e a virgem foi um processo natural, onde os celtas convertidos atribuíram à imagem de Maria as capacidades e peculiaridades da rainha do céu. Assim, essas percepções se deram cada vez que o catolicismo se inseriu em uma região, assumiu a cultura e procurou traduzir as crenças que lhe eram anteriores a uma forma compatível com a fé católica. 

Na América invadida pelos europeus, a matrifocalidade religiosa se traduzia, em muitas regiões, pelos cultos à terra mãe, e também foram substituídos pelo culto à virgem mãe católica. O mesmo se deu em outros lugares com o culto à deusa lua. O culto asteca à Tonantzim foi incorporado na figura e no culto à virgem de Guadalupe. Este fenômeno é correlacional porque se deu como uma forma de esvaziar um mito da ancestralidade substituindo-o pela devoção católica invasora. Por outro lado, acabou em alguns casos, sendo expressão de inserção do catolicismo nas culturas. Tomemos como exemplo o caso de Guadalupe, onde a devoção a Maria foi proposta como forma de substituir o culto ancestral a Tonantzim, heroína civilizadora. Mas com o tempo, os descendentes dos astecas se reapropriaram da matrifocalidade católica de tal forma que através dela voltaram a expressar a simbologia de sua cultura com seus valores próprios, que de outro modo estaria condenada pela dominação colonial.

O testamento cristão deu continuidade às escrituras hebraico-judaicas a partir da vida e das palavras de Jesus. Quando Lucas conta, no primeiro capítulo do seu evangelho, a anunciação do anjo a uma moça de Nazaré e depois sua visita à prima Isabel (1.36 e seguintes), ele estava recorrendo a alguns relatos proféticos das escrituras hebraico-judaicas, como o relato de Sofonias capítulo 3 e o relato de 2º. Samuel capítulo 6. Se for assim, a idéia da matrifocalidade está explícita, aquela moça simbolizava a figura da comunidade crente. É o símbolo da gente despossuída, fiel a Deus e, ao mesmo tempo, da humanidade nova.

Nesse sentido a figura de uma mulher, mais precisamente de uma moça no desamparo de seu gênero, sintetiza a vocação do seu povo e dos crentes da nova aliança. Ela seria, então, em pessoa a realização plena do que os profetas antigos chamaram de virgem, filha de Sião, referindo-se ao povo fiel, conforme vemos em 2º. Reis (19.21); Isaías 52; Jeremias (31.4 e seguintes); e Sofonias (3.12 e seguintes). A matrifocalidade católica está sintetizada nessa moça sem poderes políticos, mas mãe de deus, e sintetiza a história do Israel fiel à aliança. E é uma parábola da humanidade futura.

É interessante ver como a matrifocalidade católica fortalece e amplia a leitura de gênero presente nas escrituras hebraico-judaicas. Na leitura da criação, narrada no Gênesis, a mulher é produção do pai e culminou sua ação criadora. Em muitos textos bíblicos, embora a mulher seja figura da humanidade em sua relação com o pai, ela mais que nada é esposa. Tal imagem no livro do Apocalipse expande a matrifocalidade católica nascente ao dizer que apareceu no céu um grande sinal: uma mulher vestida do sol, com a lua debaixo dos pés e na cabeça uma coroa de doze estrelas (12.1). Por trás desta imagem, está o simbolismo matrifocal de antigas ancestralidades e apresenta a vitória da comunidade cristã que enfrentava o martírio e as perseguições. E não foi por acaso, então, que o catolicismo nascente viu nesta imagem da comunidade grávida do messias a figura de Maria mãe.

A construção matrifocal católica criou uma rica simbologia ao redor da moça de Nazaré. É interessante que essa construção procurou na medida do possível partir de bases conceituais neotestamentárias. Assim, a imaculada concepção de Maria, declarada em 1854 pelo papa Pio IX, é fruto, em previsão, dos méritos do Cristo na cruz. Os cristãos católicos diziam assim que o pai preservou a moça de Nazaré do pecado original pelos méritos antecipados da morte do filho. Ela, a moça de Nazaré teria sido a primeira salva, ou seja, com ela aconteceu antes, antecipou-se, a salvação que, pela cruz, os outros filhos receberiam.

Na seqüência da mesma construção simbólica, quando, em 1950, o papa Pio XII tornou dogma a assunção da moça de Nazaré ao céu com corpo e alma, dizia que ocorreu com ela, também em antecipação, o destino de todos, pois os cristãos oram no Credo, creio na ressurreição da carne. É isso e não privilégio dado por santidade própria ou por mérito diverso.

Mas ao discutir o fim do parentesco como conseqüência da expansão da matrifocalidade, esses dois dogmas que, talvez por centenas de anos, repousaram no inconsciente cristão, trazem percepções importantes: ela é mãe do pai, mas é santificada e exaltada pela morte do filho que vai nascer. Nesse sentido, o fato de ser mãe do pai/filho que vai morrer, faz dela símbolo perfeito da feminescência. Assim, a feminescência católica traduziria uma revolução, a moça de Nazaré é figura do caminho de toda a humanidade.

O eixo fundamental das escrituras hebraico-judaicas e cristãs é a revelação de que o pai tem um projeto para a humanidade: uma vida de intimidade com ele. Essa intimidade que recebe também os nomes de aliança ou reino de Deus supõe uma proximidade afetiva que lembra a relação homem/mulher. É como um casamento. Ora, a imagem tradicional de deus nas religiões é de um pai dono do poder. Para se ter acesso a esse pai é necessário um intermediário. É como alguém que para ter acesso a um presidente precisa de um intermediário político ou de um padrinho. É essa constatação, num primeiro momento inconsciente, mas que se conscientiza na construção católica e leva ao surgimento e à expansão da matrifocalidade. Por ter sido educado olhando o pai ausente, no caso brasileiro, o povo simples não é diferente das massas dos primeiros séculos do início do catolicismo.

Para ouvir a palavra do pai, as massas recorreram àquilo que as escrituras chamaram de “anjo do Senhor”, emanação visível do pai transcendente. É imagem ou expressão da presença do pai. Em outros lugares, os textos chamam de “glória do Senhor”, o sinal visível da presença do pai. Como no Êxodo, a nuvem que desce sobre o monte Sinai quando o pai fala (Ex 19) ou a tenda na qual o povo consulta o pai. Quando os israelitas acolhem e reverenciam a tenda, a arca, a nuvem ou o vento, sinais da presença divina, não é nenhum destes elementos em si que eles adoram e sim o pai presente através deles.

A matrifocalidade rompe a ausência e o distanciamento paterno. O que ela faz é trazer a realidade da ancestralidade para o presente. Heróis civilizadores deixam de estar no passado e passam a estar no cotidiano da vida, nas coisas que são feitas e que representam no dia a dia a manutenção da vida. Nesse sentido, a expansão da matrifocalidade não é representação do pai ou do filho, mas o fim do parentesco. Diante da matrifocalidade todos são filhos e não há um filho mais importante, porque o primeiro, o mais querido, morreu. E a volta dele, o levantar dele, se dá como memória em todos os demais.

Essa expansão da matrifocalidade, presente no inconsciente cristão, possibilitou a construção de pontes com outras culturas também marcadas pela matrifocalidade. E essa compreensão nos remete às tradições do catolicismo popular brasileiro. Mas, e isso é mais importante, aponta para uma teologia onde a universalidade cristã repousa em colo feminino, substituindo pai e filho, agora frutos da feminescência. E porque uma virgem deu à luz deus e é geradora de nova criação, o gênero feminino e não o masculino passa a ocupar a centralidade da nova estrutura de parentesco dessa nova criação.

Podemos, então, dizer: uma virgem gerou como filho seu criador e tornou-se mãe de seu pai. Estamos diante da desconstrução das relações convencionais de sangue, filiação, paternidade e parentesco biológico, mas, sobretudo, da quebra da naturalidade, da abolição do que restava da maternidade. Essa desconstrução das relações familiares, aqui chamada feminescência, produziu um estado simbólico inovador que transformou a face da história cristã. A partir daí nasceu uma época e, ao mesmo tempo, uma criança. Mãe de seu pai, uma virgem produzida produziu seu produtor. E, assim, desejos de pureza, incorpóreos e virginais da espécie humana são preenchidos pela feminescência da virgem. E, talvez, por isso, católicos ocidentais e orientais olhem com tanto carinho para Maria, a moça de Nazaré.








jeudi 15 avril 2021

Faz tempo que eu te amo

 Faz tempo que eu te amo



Il y a longtemps que je t’aime – Juliette (Kristin Scott Thomas) retorna à sua família e à sociedade após 15 anos de ausência. Apesar da longa e violenta separação familiar, sua irmã mais nova, Léa (Elsa Zylberstein), decide abrigá-la em sua casa, onde mora com o marido, as duas filhas adotivas e o sogro. Aos poucos, a trama revela uma questão crucial que subjaz enquanto tragédia que manteve Juliette afastada por tanto tempo da vida em liberdade. 



No filme do escritor Philippe Claudel, cujo nome não era muito conhecido como cineasta, o tema de fundo é a morte doce, ou seja, o ato de proporcionar morte sem sofrimento a um doente de enfermidade incurável que produz dores não toleráveis. 


Juliette levou seu filho Pierre, de seis anos, que estava enfermo, em estado terminal, à morte sem sofrimento, expressão que conhecemos pelo termo grego
euthanasía. Ela mesma, médica, fez os testes de laboratório e diagnosticou o estado da criança, que sofria dores terríveis. E lhe aplicou uma injeção letal. A eutanásia ativa é crime na França, e Juliette, considerada culpada, foi condenada a 15 anos de prisão. 


Ela está enferma, que desespero! O devo fazer? 

Ela está enferma, que desespero! Como enfrentar isso?

Que conforto, que remédio? Ó céus, você tem que me ouvir 

Enquanto esse duro mal que está diante, este mal que você vê 

Ferir sem piedade a doçura de seu rosto!

 
[Etienne La Boétie (1530-1563),
Elle est malaade, helas! que faut-il que je face?] 


Falar de eutanásia, a morte doce, é tabu, quando não preocupação mórbida. Mas, por incrível que pareça, essa questão está ligada à vida. E aqui desejamos discutir a questão a partir da nova legislação francesa sobre o tema e as reflexões que católicos e protestantes elaboraram na França.

 
O problema que se levanta é: até que ponto se pode ou se deve lutar para diminuir um sofrimento terrível e terminal? A questão colocada é: deve-se finalizar uma vida que não é mais vida consciente e plena? Muitos consideram que tal ação não significa somente liberar da angústia da morte, porque aqui a questão central não mais é a morte, porém por fim a não-vida que se assenhoreou da vida. 


No dia 22 de abril de 2005, a França promulgou uma lei sobre o fim da vida, onde reconheceu o direito ao tratamento médico sedativo cujos efeitos secundários podem ser de antecipar o fim do paciente. 


A lei oferece também ao paciente e sua família a possibilidade de dizer não ao tratamento não razoável, não à reanimação artificial e não aos tratamentos agressivos. Mas a lei também possibilita um relacionamento aberto entre o paciente, sua família e o médico, apoiando este último judicialmente se uma dessas alternativas for a opção, desde que ele forneça informações completas sobre a situação do paciente. 


A lei também dá a qualquer adulto o direito de apresentar diretivas antecipadas para que sua vida não seja prolongada por meios artificiais, em caso de danos físicos ou de degradação física ou neuropsíquica. 


Se você levantar, cruel, o punho à Terra grave

Se for necessário lá no alto que rico se seja, 

Pensa em mim, por Deus, me leve,

Que com um golpe de mão Caronte nos passe a ambos 


Mas, se a lei prevê o direito de deixar morrer, não propõe que se forneça assistência ativa para morrer. A questão aqui é deixar a morte chegar, mas não se trata de por fim à vida. Portanto, a eutanásia ativa não é reconhecida, mas a eutanásia passiva já não é considerada um homicídio. 


É interessante lembrar que 30 anos antes da nova legislação francesa sobre a morte terminal, 1976, o Conselho Permanente do Episcopado francês em nota sobre a eutanásia propôs que não fosse proibido o uso de analgésicos para aliviar a dor, mesmo que indiretamente tal tratamento pudesse acelerar a morte de um paciente em idade avançada.


Ou se é o que dizem os dois irmãos de Helena,

Que um pelo outro no céu, e aqui embaixo se encontram, 

Destina-me à parte enviada. 


Anos depois, em junho de 1991, a Comissão de Ética da Federação Protestante da França também discutiu a questão dos doentes terminais, e considerou que os cuidados paliativos deviam ser desenvolvidos e incentivados. Mas que diante da dor irredutível, quando tais cuidados de nada servissem, o debate sobre a "vida decente" deveria por em cheque o próprio modo de vida das sociedades ocidentais. 


Por isso, os protestantes franceses consideraram que a defesa da eutanásia é uma réplica da tão condenada terapia agressiva, que traduziria a pretensão de nossa sociedade de se considerar senhora e mestra sobre a vida e a morte. Mas, acreditavam que diante do pedido da morte doce, quando se torna impossível lutar pela vida, deve-se ouvir e não julgar.

E por fim alertaram que quer seja permissiva ou restritiva nenhuma lei ou instância moral pode suprimir a responsabilidade ética do paciente, dos médicos e dos amigos. Por isso, a questão não poderia ser legislada de forma apressada, pois o futuro do direito europeu sobre doenças terminais e eutanásia só poderia ser construído a partir de um intenso debate público. 


Tenha, tenha de mim, tenha piedade 

Deixe-nos, em nome de profunda amizade, 

Eu morrer de sua morte, ela viver de minha vida.




O gozo em rosa

O gozo em rosa

 

As visões de mundo do camponês hebreu e mesmo do judeu do início da era comum eram diferentes das cosmovisões cristãs modernas. Talvez, o que de maior temos a aprender com hebreus e judeus é que a profundidade do texto é a sua humanidade. 

 

Ao mergulhar nessa humanidade temos, então, a possibilidade de encontrar sua transcendentalidade. E isso pode ser alcançado de duas maneiras: a acadêmica, que nos interessa aqui, e aquela da própria vida, quando chegamos lá através da maceração de nossa pessoalidade, da crise, da dor e do risco. 

 

Quando o intelectual judeu Samuel Cahen fez a primeira tradução das Escrituras judaicas para o francês, entre 1831 e 1851, em dezoito volumes – A Bíblia, novas traduções – procurou ir além das traduções anteriores, cristãs. Sua tradução, em edição bilíngue, trouxe para o leitor não-judeu a estrutura hebraica, as construções literárias e os hebraísmos. 


No século passado, seguindo a tradição de Cahen, André Chouraqui construiu uma tradução enciclopédica (1974-1977): a partir de exegetas como Rashi e Ibn Ezra fez a leitura oriental dos textos do testamento judaico. 


Ao compreender com os antigos exegetas judeus que a humanidade do texto é o caminho para o encontro possível com o transcendente, vamos, como exercício exegético, analisar dois versos de histórias e momentos diferentes das Escrituras judaicas. Não podemos esquecer, porém, que a escolástica teorizou modos de ler o quadrivium, conceito derivado da junção de duas palavras latinas: quattuor, que significa quatro, e via, que quer dizer caminho. Temos assim na leitura de um texto quatro vias: literária, pedagógica, teológica e escatológica. Quadrivium é encruzilhada e foi utilizado como hermenêutica por Hugo São Vitor e Tomás de Aquino. Mas, hoje, nas nossas leituras estamos interessados no sentido literário dos textos. 


“Na luta, o homem, ao ver que não podia vencer, bateu no vazio da coxa e enforcou a força de criar de Jacó”. (Gênesis 32.25).


O primeiro verso escolhido, que se situa no primeiro livro, o das origens, fala da luta do patriarca Jacó com um homem – a palavra hebraica no texto é îxe, homem, macho, e não anjo. A tradução SEV (versão de 1569) diz: “Y cuando el varón vio que no podía con él, tocó la palma de su muslo, la palma del muslo de Jacob se descoyuntó luchando con él”. É uma boa tradução, porque a expressão palma “kaph” se refere à cavidade ou parte do corpo que é dobrável ou curva, e “yarek” que foi traduzido por “muslo”, se refere a lombo, ou lugar do poder de procriação. 

 

Na luta com esse que poderia ser seu próprio irmão Esaú ou um dos capangas dele, o homem não conseguiu vencer Jacó. Então, já cansado, o homem recorre ao golpe mais antigo, que acaba com qualquer luta, dá uma joelhada no vazio da coxa de Jacó e estrangula sua força. 


Terminações nervosas, sensibilidades. Escroto, testículos. O chute produz sangramento interno, inchaço, dor. O músculo se retrai, nervos e artérias se enroscam e impedem o fluxo de sangue. O coice foi bravo, a cápsula se rompe e vaza. 


Visto assim, na sua humanidade, o texto fala de dois homens que lutam madrugada adentro, e que um deles, o trapaceiro, é golpeado na força de sua virilidade, sendo derrubado por um golpe em baixo e por baixo. Caído, resfolegando, entre gemidos, pede ao seu oponente um favor: liberdade para seguir adiante. E o homem – Esaú ou um capanga – diz para ele: segue seu caminho, hoje você não trapaceou, você venceu. Arrastando-se, aquele que se agarrou ao tornozelo do irmão, se levanta: foi alforriado, está livre para seguir em frente. 


As escrituras judaicas contêm uma jóia da literatura oriental: o Cântico dos cânticos. O superlativo não existia no hebraico, daí a idéia do mais bonito dos cânticos. O poema conta uma história de amor entre uma moça negra, a Sulamita, e um pastor. 


Para os cristãos, não estamos diante do erotismo oriental, mas de uma alegoria sobre o amor transcendente do Eterno. Agora, porém, neste artigo, nos interessa o caminho que o poema faz na materialidade do erótico humano. Por isso, vamos trabalhar apenas um verso do Cântico dos cânticos, procurando manter viva a expressão e seu conteúdo aparentemente não-religioso. 


“Entra na casa do vinho, o seu estandarte é desejo”. (Cântico dos cânticos 2.4). 

 

Temos no verso em hebraico o verbo “bow” ir para dentro, entrar, que está no grau hifil, causativo, no modo perfeito; a expressão metafórica “bayith yayin”, casa do vinho; “degel” bandeira, estandarte; e “ahabah” que expressa prazer, desejo sexual. A Vulgata de São Jerônimo traduz assim: “introduxit me in cellam vinariam ordinavit in me caritatem”. A tradução italiana de Diodati (versão de 1649) diz: “Egli mi ha condotta nella casa del convito, E l’insegna ch’egli mi alza è: Amoré”. E a tradução SEV de 1569, diz: “Me llevó a la cámara del vino, y puso su estandarte de amor sobre mí”. 

 

Estamos diante de um poema oriental. A expressão “casa do vinho”, em seu sentido literário, não deve ser tomada literalmente, mas seguindo tradições orientais antigas – e também portuguesas – é uma metáfora, ao modo de “adega do vinho” ou “casa rosada”, entre outras. 


Até o final do século XIX, a moral estabelecia que arte e literatura eram ofensivas aos costumes quando recorressem à sexualidade ou a linguagem incluísse termos licenciosos. Em tais casos, arte e literatura eram consideradas eróticas ou pornográficas, já que não se discerniam os termos. Hoje, entendemos erótico como relativo ao desejo sexual ou que aborda o amor sexual, e pornográfico como aquilo que descreve ou evoca luxúria. 


Como muito desses sentimentos dos oitocentos ainda têm raízes profundas na cultura, o verso acima é canto que choca a mentalidade ocidental, pois a Sulamita, a jovem do Cântico dos cânticos, diz que seu amante a penetra quando ela está menstruada. É o tempo do durante, da casa do vinho, do gozo em rosa. E, assim, a regra da menstruação enquanto tempo de impureza, presente no livro de Levítico (15.19), é derrubada pela relação do casal. Não há nenhuma crítica ao ato, que ela apresenta como uma opção que nasce do desejo. 


E falar de desejo nos remete a um pequeno trecho de outro texto clássico da literatura oriental, as Mil e uma noites – Alf Lailah Oua Lailah – uma coletânea de textos árabes, persas, hindus, siríacos e judaicos. Os contos mais antigos remontam ao século XII no Egito. Mas agora nos interessa a relação do filho do mercador Ghânim e a favorita do sultão, Qût al-Qulûb. 


“Quando o gracioso filho do mercador Ghânim e a bela favorita do sultão foram para o leito, ele queria, mas ela não. Sobre a cintura da amante se podia ler: difícil. A resistência da mulher aumentava o desejo do homem. Os meses passaram e as coisas se inverteram. Quando mais tarde ela lhe dava beijos de incentivo, ele recuava e cada um ia dormir na sua esteira.” 


O filho do mercador e a favorita do sultão enfrentam a intermitência do desejo, mas no verso 2.4 do Cântico dos cânticos a Sulamita e seu amante estão em modulação unissonante: é pra ser, prazer, parônimo. 


Entendemos melhor a presença do erótico nos textos orientais antigos quando lemos Michel Foucault na História da Sexualidade, A Vontade de Saber. Para ele, no Ocidente, existem dois procedimentos diante do bem e do mal do sexo. Um procedimento desconfiado diante das culturas romana antiga, chinesa, hindu, japonesa e árabe, que desenvolveram uma ars erotica. Tal arte tira sua verdade do próprio prazer, entendido como experiência onde não há lugar para proibições, mas também do prazer que pode ser medido pela tesura do corpo e do espírito. Essa arte erótica é experiência e seu conhecimento não tem como ser transmitido pelo discurso. Sua força está no símbolo. 


A cultura ocidental não construiu uma ars erotica, por isso o outro procedimento nasceu de uma scientia sexualis, que gera regras para definir o bem e o mal do sexo. Assim, a sexualidade ocidental é, predominantemente, resultante de um discurso constituído em scientia sexualis, que a religião sacralizou para produzir a verdade sobre o sexo. 


O erotismo está presente nos textos antigos, no Cântico dos cânticos e nas Mil e umas noites, porque é dimensão da sexualidade lida através da ars erotica. Mas é olhado com desconfiança pela moral que repousa sobre a scientia sexualis. Eros é expressão humana e assim deveria ser visto pelos exegetas que se debruçam sobre textos orientais da ars erotica. 


Ou seja: o verso 2.4, analisado na profundidade do humano, nos fala de desejo, atributo da espécie, que nasce da capacidade de pensar o prazer. A jovem do Cântico dos cânticos não nos diz que durante a menstruação tem mais vontade de transar, mas também não nos diz o contrário. Se é regra, se não é regra, não sabemos. Somos informados, porém, que o desejo é um estandarte. E assim o amante entra na casa do vinho.


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mardi 13 avril 2021

Tempo quente em Buenos Aires



Tempo quente em Buenos Aires

As tradições coloniais espanholas e portuguesas herdadas e depois recicladas pelas repúblicas autoritárias fizeram das ruas das grandes cidades latino-americanas espaços de trânsito do tripalium e do sofrimento, e dos lares, casamatas de refúgio.

Na Argentina a melhor teologia foi construída pela classe trabalhadora. Desde o início do século XX e, depois, no correr dele, com a participação do movimento anarquista e da presença crescente do trotskismo, os trabalhadores descobriram e aprenderam que a liberdade é construída nas ruas, quando se torna espaço de liberdade. 

Muitos podem achar que estou falando de política e não de teologia, mas esta, numa definição de trincheira, é a experiência com a transcendência, que nos faz humanos e existencialmente livres. Nesses dias de Buenos Aires, acompanhei um caso do que estou apresentando teoricamente. Vou contar para vocês.

A primeira semana da primavera foi invadida por uma frente polar que derrubou os termômetros. As madrugadas beiraram zero grau, ao menos na sensação térmica, e um vento sudoeste nos fazia andar rápido em busca de abrigo, um café, no mínimo. 

Mas, no dia 25 de setembro de 2009, um acontecimento inesperado começou a elevar a temperatura social. Naquela sexta-feira, os trabalhadores que ocupavam uma planta da Kraft Foods, no bairro de General Pacheco, e exigiam a reintegração de 156 operários despedidos em agosto, enfrentaram a polícia. Foi um choque violento e os operários entrincheirados na fábrica foram desalojados. O saldo foi de 10 feridos e 70 presos. 

Diante do desemprego consumado, de pessoas hospitalizadas e dezenas de presos, o que fazer? A teologia operária brotou naturalmente e entusiástica. A Corrente Sindical Combativa, que tinha liderado a ocupação operária da fábrica, levantou a necessidade, agora, de ir às ruas. Uniram-se os partidos de esquerda, ditos radicais, Movimento Socialista dos Trabalhadores, Partido Operário, Partido dos Trabalhadores Socialistas, Movimento ao Socialismo, Socialismo Revolucionário, as organizações anarquistas, a Comissão Pastoral Social católica, e os maoístas do Partido Comunista Revolucionário. 

As palavras de ordem foram rapidamente unificadas ao redor de um dos pontos centrais da teologia operária, a questão da liberdade, concreta, de vida. Assim, as faixas preparadas para as manifestações exigiam liberdade para os operários presos e reintegração dos trabalhadores despedidos. 

No dia 28 de outubro, centenas de trabalhadores, ativistas de sindicatos e partidos de esquerda e estudantes ocuparam o quilômetro 35 da rodovia Pan-americana e as avenidas Santa Fé e Mayo, numa marcha decidida, guerreira, em direção ao palácio do governo, a Casa Rosada. 

Na teologia construída pela classe operária, a rua se torna um espaço de liberdade, que apesar de ser percorrido em algumas horas, pode criar um tempo de liberdade. E essa liberdade, que nasce do percurso das ruas, rompendo a tradição colonial e republicana autoritária do tripalium, resgata a vida. E como toda boa teologia, não é feita para ser rezada, mas para fazer agir e pensar, extrapola o espaço e a classe que está a lhe dar origem. Envolve toda a sociedade numa discussão sobre a liberdade e a vida. 

E assim foi. A embaixadora dos Estados Unidos, Vilma Socorro Martinez, disse que ela e seus pares estavam preocupados com a situação da Kraft e desejavam a plena aplicação dos direitos dos trabalhadores, mas também o respeito ao direito de propriedade. 

É bom lembrar que a Kraft Foods (antiga Terrabusi) é uma indústria de capital norte-americano e gera cerca de 160 mil empregos na Argentina. 

Os empresários também não ficaram calados, pois o conflito foi considerado, por sua repercussão e extensão, inclusive internacional, um estopim que poderia explodir em outras mobilizações. A União das Indústrias Argentinas e a Coordenação das Indústrias de Produtos Alimentícios se expressaram, ora alertando para o perigo de se optar por demissões em massa, como fez Kraft, ora afirmando que também não se pode permitir que as fábricas sejam ocupadas pelos trabalhadores. 

O certo é que Buenos Aires esteve isolada pelas mobilizações, que bloquearam ruas, avenidas e os principais acessos à capital argentina. E o coordenador do Movimento Bairros em Pé, Roberto Baigorria, disse que através dos protestos os trabalhadores reivindicam participação nos planos sociais e nas cooperativas do governo. 

É a primeira vez, desde 2001, que os trabalhadores, sindicalistas combativos e partidos de esquerda ocupam as ruas do país. 

Na teologia da rua, o espaço pode ser percorrido com vistas à liberdade para os operários presos e reintegração dos trabalhadores despedidos, mas também à alegria e à festa: com fanfarra, bumbos e dança. E assim foi na Plaza de Mayo. Cheios de esperança, nas últimas semanas os trabalhadores argentinos levaram às ruas a promessa de Miquéias: “Ele nos ensinará o que devemos fazer, e nós andaremos nos seus caminhos. Os povos transformarão as suas espadas em arados e as suas lanças em foices. Todos viverão seguros, e cada um descansará calmamente debaixo das suas figueiras e das suas parreiras”. Quando a teologia ocupa as ruas, renasce nas vidas a possibilidade da justiça.