mardi 19 avril 2022

Há que ler o desejo

A existência a partir da leitura 
Jorge Pinheiro, PhD


Ou, “há que ler o desejo: sem terra, sem pátria e sem objeto, ele vaga por um deserto, cujas trilhas conduzem o leitor à experiência limite mais-além do que aparece na imagem”. 

O fazer da existência vale a pena. A eternidade aprecia esse bem-fazer humano, que tem seu próprio tempo, que integra a existência de cada ser na história dos fazeres humanos. É por isso que Bereshit, o primeiro texto na Torá, apresenta um ponto zero. O tempo zero vai do entardecer à meia-noite. É quando o sol desilumina o nosso espaço de forma gradual. O tempo do não-ser não é uma fratura do tempo, é tempo da história. Qoh não contempla a passagem do tempo, mas a vinda do tempo. O tempo significa nada ou pouco para o eterno, mas há um sentido de tempo para o humano. A conclusão de Qoh é que temos de ser no tempo para dar valor à eternidade que brota do nada do não-ser. E a partir de Qoh vamos a Paulo de Tarso. 

Pede-se ser levantado 

Você está falando de bens materiais, de coisa frágil. Se você tem certeza de que esses bens ficarão sempre com você, fique com eles sem partilhar com ninguém. Mas se você não é o senhor absoluto deles, se tudo que você tem depende mais da sorte do que de você mesmo, por que este apego a eles?”. 

Fuks conta que Freud, um dia depois do sepultamento do pai, sonhou com um cartaz onde estava escrito: “Pede-se fechar os olhos”. Mais tarde, em carta a Fliess, o pai da psicanálise falou dos sentidos subjetivos da frase: “era parte da minha auto-análise, minha reação diante da morte de meu pai, vale dizer, diante da perda mais terrível na vida de um homem”. 

Não vou entrar nos detalhes das leituras que o próprio Freud fez da frase que apareceu em seu sonho. Diria ao leitor que vale a pena ler Freud e a Judeidade. Pretendo aqui levantar uma proposta de Fuks: “há que ler o desejo: sem terra, sem pátria e sem objeto, ele vaga por um deserto, cujas trilhas conduzem o leitor à experiência limite mais-além do que aparece na imagem”. É a partir dessa hermenêutica, que vamos ler trechos do final da primeira carta de Paulo aos Coríntios. 

“... Foi sepultado e foi despertado do sono no terceiro dia, de acordo com o escrito”. 

A frase acima, e a continuação do texto, é uma das mais importantes sobre a egeiro e anástasis, duas expressões gregas não substancialmente diferentes, que sintetizam a teologia da anástase dos cristãos do primeiro século. As traduções posteriores, e creio que dificilmente poderiam ser diferentes, criaram um padrão de imagem que dificultam a experiência do ir além. Por isso, fomos obrigados antes da tradução transversa fazer a desconstrução histórico-filosófica da anástase. 

As leituras da anástasis e egeiró remontam a Homero e ao grego antigo e com seus sentidos correlatos axanástasis, anhistémi e anazaó, que podem ser traduzidas por “ficar de pé”, “ser levantado” e “voltar à vida”, foram fundamentais para a construção do conceito anástase, amplamente utilizado pelas ciências do espírito. Mas é com Platão, na literatura filosófica, que vamos encontrar um debate fundamental para a teologia da anástase, quando apresenta a alma enquanto semelhança do divino e o corpo enquanto semelhança do que é físico e temporário. 

Platão, em Fédon, num diálogo entre Sócrates e seus amigos defendeu a idéia da imortalidade da alma. Sócrates foi condenado à morte por envenenamento, mas não teve medo, por crer ser a alma imortal. Para Platão, as almas possuem semelhanças com as formas, que são realidades eternas por trás do mundo físico, natural. Nesse sentido, para Platão, o corpo morre, mas a alma não. Ele parte do padrão cíclico da natureza, frio/ quente/ frio, noite/ dia/ noite. Assim, os mortos despertam numa nova vida depois da morte: caso contrário, a vida desapareceria. 

E dirá através de Sócrates em Fédon: “(...) perguntemos a nós mesmos se acreditamos que a morte seja alguma coisa? (...) Que não será senão a separação entre a alma e o corpo? Morrer, então, consistirá em apartar-se da alma o corpo, ficando este reduzido a si mesmo e, por outro lado, em libertar-se do corpo a alma e isolar-se em si mesma? Ou será a morte outra coisa? (...) Considera agora, meu caro, se pensas como eu. Estou certo de que desse modo ficaremos conhecendo melhor o que nos propomos investigar. És de opinião que seja próprio do filósofo esforçar-se para a aquisição dos pretensos prazeres, tal como comer e beber?” 

Paulo conhecia a discussão filosófica grega acerca da anástase, já que isso se evidencia em seus escritos, principalmente no trecho que estamos analisando, mas é certo que construiu seu conceito também levando em conta a tradição judaica, acrescentando novidades ao debate teológico. Existem referências ao ser trazido de volta à vida nas escrituras hebraico-judaicas. Mas a preocupação judaica era existencial, como vimos em Qohélet. Mais do que remeter a um futuro distante, embora tais leituras estejam presentes na teologia de alguns profetas, as histórias de anástase relacionadas aos profetas Elias e Eliseu falam do aqui e agora. Aliás, este último, mesmo de depois de morto, trouxe à vida um defunto que foi jogado sobre sua ossada. Ao tocar os ossos de Eliseu, o morto ficou vivo de novo e se levantou. Esse caminho será a novidade da compreensão cristã/ helênica da anástase. 

Somos arautos de que o ungido foi levantado do meio dos mortos: como alguns podem dizer que não há o ser erguido dos mortos? E, se não há o despertar do sono da morte, também o ungido não foi levantado. E se o ungido não foi levantado, é inútil o que falamos e também inútil a nossa crença. Somos então testemunhas falsas, porque anunciamos que Deus ergueu o ungido. Mas se ele não foi levantado, os mortos também não são erguidos. E se os mortos não são erguidos, o ungido também não o foi. E, se o ungido não foi erguido, a nossa crença é inútil e vocês continuam a vagar sem destino. E os que foram colocados para dormir no ungido estão destruídos”. 

Outras fontes de Paulo foram o profeta Daniel e outras literaturas intertestamentárias, que trabalharam com a idéia de “despertar subitamente do sono”. Chifflot e De Vaux situam o livro de Daniel no período helênico por entender que é uma edição de antigos fragmentos do período babilônico, compilados, organizados e contextualizados ao momento histórico descrito no capítulo onze. Nesse capítulo, as guerras entre lágidas e selêucidas, assim como as investidas de Antíoco IV Epífanes contra Jerusalém e o templo são narradas com riquezas de detalhes. Ao contrário do que acontece nos livros proféticos anteriores, aqui o autor cita fatos aparentemente insignificantes, querendo demonstrar que é uma testemunha ocular da história. Dessa maneira, a edição que conhecemos do livro de Daniel deve ser situada no período da grande perseguição de Antíoco IV Epífanes, possivelmente entre os anos de 167 e 164 a.C., segundo Chifflot e De Vaux, já citados. A partir desse enquadramento, os capítulos 7 a 12 de Daniel, enquanto edição são chamados de “vaticinia ex eventu”, dado que o texto é contemporâneo aos acontecimentos descritos. Esses capítulos expressam a reação contra a helenização da Judéia e das perseguições em curso, mas, paradoxalmente, uma forma de pensamento afetado pela civilização helênica. 

A partir da segunda metade do livro, o autor trabalha sobre dois temas registrados na primeira metade: que o judeu deve ser fiel a Deus em meio à tentação e à provação; e que Deus defende o servo leal que prefere morrer a violar os mandamentos. Nos seis capítulos finais, o sábio (ou grupo de sábios, cujos escritos foram compilados por um redator) retoma o conteúdo das visões que teve em relação à profanação do templo, em 167 a.C., e o erguimento da “abominação desoladora”. 

Durante o período helênico idéias novas afloraram em meio à vida judaica, entre elas a esperança da recompensa escatolõgica apresentada pelas profecias apocalípticas, como em 2Macabeus 7, Daniel 12:2-3 e o Escrito de Damasco 4:4, que se traduzem concretamente na anástase. 

Assim, os elementos novos da compreensão paulina da anástase já aparecem delineados no profeta Daniel: “Muitos dos que dormem no pó da terra despertarão, uns para a vida eterna, e outros para vergonha e horror eterno. Os que forem sábios, pois, resplandecerão como o fulgor do firmamento; e os que a muitos conduzirem à justiça, como as estrelas, sempre e eternamente”. Paulo, porém, somará um componente existencial à compreensão de Daniel, dirá que a morte, o maior de todos os odiados pela espécie humana, será privada de força. 

Caso o ungido só sirva para esta vida, somos as pessoas mais dignas de lástima. Mas o ungido foi levantado dentre os mortos e foi o primeiro fruto dos que foram colocados para dormir. Porque se a morte chegou pela humanidade, também o ungido dará à luz nova vida. Como morre a espécie, no ungido ela recebe vida. E isso acontece numa ordem: o ungido é o primeiro fruto, depois os que pertencem ao ungido, quando ele aparecer. E veremos o limite, quando o ungido entregar o reino a Deus e Pai, e tornar inoperante o império, os poderes e os exércitos. Convém que seja rei até derrubar os odiados por terra. O último odiado a ser privado de força é a morte, porque o resto já foi colocado debaixo de seus pés”. 

É interessante que Paulo em seu texto sobre a anástase cita o dramaturgo, filósofo e poeta grego Menandro (342-291 a.C.), que num verso disse: “as más companhias corrompem os bons costumes”. E voltando ao Misantropo: “insisto que, enquanto você é dono deles, você deve usá-los como um homem de bem, ajudando os outros, fazendo felizes tantas pessoas quantas você puder! Isto é que não morre, e se um dia você for golpeado pela má sorte você receberá de volta o mesmo que tiver dado. Um amigo certo é muito melhor que riquezas incertas, que você mantém enterradas”. Tudo indica que Paulo gostava de teatro e de comédias. 

Que Paulo recorreu à tradição profética fica claro quando cita o profeta Oséias literalmente: “eu os remirei do poder do inferno e os resgatarei da morte? Onde estão ó morte as tuas pragas? Onde está ó morte a tua destruição?”. Mas há uma correlação entre Platão e a tradição hebraico-judaica, que pode ser lida nesta carta de Paulo. Isto porque, como afirma Fuks, o leitor desconstrói, pois ler não é repetir o texto: é um modo de criação e de transformação. Por isso, digo que ler é um ato de anástase. E Paulo trabalhou de forma brilhante o termo, tanto nas suas leituras e estudos, como na reconstrução do próprio conceito. 

Que farão os que se batizam pelos mortos, se os mortos não são chamados de volta à vida? Por que se batizam então pelos mortos? Por que estamos a cada hora em perigo? Protesto contra a morte de cada dia. Eu me glorio por vocês, no ungido Iesous a quem pertencemos. Combati em Éfeso contra animais ferozes, mas o que significa isso, se os mortos não podem ressurgir? Comamos e bebamos, porque amanhã morreremos. Mas não vamos nos enganar: as más companhias corrompem os bons costumes”. 

Na sequência da tradição hebraico-judaica, ou como diz Fuks, “os antigos hebreus não estavam trabalhados, como nós, pela necessidade de abstração, de síntese e de precisão na análise conceitual do real, herança dos gregos”, Paulo está preocupado com o corpo, com a vida. 

Mas alguém pode perguntar: como os mortos são trazidos à vida? E com que corpo? Estúpido! O que se semeia não tem vida, está morto. E, quando se semeia, não é semeado o corpo que há de nascer, mas o grão, como de trigo ou qualquer outra semente. Deus dá o corpo como quiser, e a cada semente o corpo que deve ter. Nem toda a carne é uma mesma carne, há carne humana, de animais terrestres, de peixes, de aves. E há corpos celestes e corpos terrestres, uma é a dignidade dos celestes e outra a dos terrestres. Diferente é o esplendor do sol do esplendor da lua e das estrelas. Porque uma estrela difere em brilho de outra estrela. Assim também o ser levantado dentre os mortos. Semeia-se o corpo perecível; levantará sem corrupção. Semeia-se na desgraça, será levantado em excelência. Semeia-se em debilidade, será erguido vigoroso. Semeia-se corpo controlado pela psiquê, ressuscitará corpo espiritual. Se há corpo controlado pela psiquê , também há corpo espiritual”. 

Para Paulo, anástase leva à uma teologia da vida que nasce do corpo. Mas, não é simplesmente ter de volta a vida do corpo material, tanto que em certo momento Paulus diz que “deveremos ser a imagem do homem do céu”. 

“Assim também está escrito: o primeiro ser humano, terrestre, foi feito ser-que-deseja, o futuro humano será um espírito-cheio-de-vida. Mas o que não é espiritual vem primeiro, é o natural, depois vem o espiritual. O primeiro ser humano, da terra, é terreno; o segundo humano, a quem pertencemos, é celestial. Como é o da terra, assim são os terrestres. E como é o celeste, assim são os celestiais. E, como somos a imagem do terreno, assim seremos também a imagem do celestial”. 

O pensamento grego, platônico, está presente na anástase paulina, já que a eternidade não é construída em cima da carne e do sangue. Vemos aqui a dualidade entre a realidade física e o mundo das formas. O dualismo metafísico de Paulo admite aqui duas substâncias que regem o ser humano, no mundo natural, a psiquê, e no mundo pós-anástase, o pneuma. E dois princípios, nesse sentido bem próximo a Platão, o bem e o mal. 

“E agora digo que a carne e o sangue não podem herdar o reino de Deus, nem a corrupção herdar a eternidade. Digo um mistério: nem todos vamos adormecer, mas seremos transformados. Num momento, num abrir e fechar de olhos, ante a última trombeta, porque a trombeta soará, os mortos serão levantados incorruptíveis, e seremos transformados. Convém que o corrompido seja tornado eterno, e o que é mortal seja tornado imortal. E, quando o que é corruptível se vestir de eternidade, e o que é mortal for transformado em imortal, então será cumprida a palavra que está escrita: a morte foi conquistada definitivamente. Onde está, ó morte, a tua picada? Onde está, ó inferno, a tua vitória? Ora, a picada da morte é o desviar-se do caminho da honra e da justiça, e a força do erro é a lei. Mas a alegria que Deus dá é a vitória por Iesous, o ungido, a quem pertencemos. Sejam firmes e persistentes, abundantes no serviço daquele a quem pertencemos, conscientes de que o trabalho árduo e duro não é desprezado por aquele a quem pertencemos”. [Ver texto na Vulgata]. 

Caso voltemos à análise do conceito anástase no capítulo 15 da primeira carta aos Coríntios, tomando como ponto de partida o desafio de Fuks: “há que ler o desejo: sem terra, sem pátria e sem objeto, ele vaga por um deserto, cujas trilhas conduzem o leitor à experiência limite mais-além do que aparece na imagem”, vemos que Paulo traduziu para as novas gerações o desejo judaico-helênico, humano, da anástase: “Pede-se ser levantado”. 

Vulgata -- 1Coríntios 15 

[50] Hoc autem dico, fratres: quia caro et sanguis regnum Dei possidere non possunt: neque corruptio incorruptelam possidebit. [51] Ecce mysterium vobis dico: omnes quidem resurgemus, sed non omnes immutabimur. [52] In momento, in ictu oculi, in novissima tuba: canet enim tuba, et mortui resurgent incorrupti: et nos immutabimur. [53] Oportet enim corruptibile hoc induere incorruptionem: et mortale hoc induere immortalitatem. [54] Cum autem mortale hoc induerit immortalitatem, tunc fiet sermo, qui scriptus est: Absorpta est mors in victoria. [55] Ubi est mors victoria tua? ubi est mors stimulus tuus? [56] Stimulus autem mortis peccatum est: virtus vero peccati lex. [57] Deo autem gratias, qui dedit nobis victoriam per Dominum nostrum Jesum Christum. [58] Itaque fratres mei dilecti, stabiles estote, et immobiles: abundantes in opere Domini semper, scientes quod labor vester non est inanis in Domino. 


Bibliografia recomendada 

Andrés Torres Queiruga, Repensar a ressurreição, São Paulo, Paulinas 2010. 
Jonas Machado, Morte e ressurreição de Jesus, São Paulo, Paulinas, 2009. 
Marko Ivan Rupnik, Ainda que Tenha Morrido, Viverá/ Ensaio Sobre a Ressurreição dos Corpos, São Paulo, Paulinas, 2010. 




lundi 4 avril 2022

Ma proposition pour un futur gouvernement Lula. Si cela arrive...

Les leçons d'un protestant tardif

L'un des théologiens les plus respectés de notre époque, fondateur de la Fraternité théologique latino-américaine, Samuel Escobar, a déclaré à la fin du siècle dernier que "le monde de demain n'a pas besoin de Latino-Américains qui aspirent à vivre dans le confort et le luxe, mais - Des Américains qui convainquent leurs partenaires qu'ils peuvent vivre avec simplicité et joie, avec les moyens nécessaires pour faire le travail, et un sentiment de satisfaction qui vient d'être fidèle à l'appel de Dieu ».

Au début du XXIe siècle, les évangéliques brésiliens reconnaissent qu'il est possible pour les êtres humains de vivre l'expérience de la grâce salvatrice de Dieu à partir de la vision biblique de l'être humain en tant qu'être social, dont la transformation est vécue dans le contexte de sa propre communauté.

Sur la base de ce constat, je me réfère à une interview que le sénateur de l'époque José Alencar (1931-2011) a accordée à Informes, un organe du Parti des travailleurs visant les noyaux du parti, dans la seconde moitié de juin 2002. Dans celle-ci, le Le sénateur a défendu un gouvernement monté sur le trépied (1) le sentiment national, (2) la sensibilité sociale et (3) la probité administrative.

Cette proposition de José Alencar nous rappelle Max Weber et son éthique protestante et l'esprit du capitalisme. Il est intéressant de voir que l'éthique protestante, qui aurait guidé l'esprit des pères de la nation nord-américaine, serait également arrivée ici et aurait été reconnue comme un différentiel positif par le monde académique. Le magazine Veja, le 30 juin 2002, dans un article de couverture sur les évangéliques, a déclaré, citant l'économiste Carlos Lessa, alors recteur de l'Université fédérale de Rio de Janeiro, que les églises évangéliques ont contribué à la création d'une nouvelle éthique, positive pour le pays. . "Les croyants ne transigent pas sur les règles et apprennent à les exiger d'eux-mêmes et des frères".

En accord avec cette déclaration, selon le magazine, le professeur Almir de Souza Maia, doyen de l'Université méthodiste de Piracicaba, a déclaré que "les fondements du mouvement protestant prêchent la moralisation de l'individu et le développement d'une éthique de responsabilité sociale" .

L'alternance de pouvoir

Pour le sénateur Alencar, il semblait naturel de défendre la probité administrative, puisque, selon lui, les sondages montraient que 70 % des Brésiliens souhaitaient une alternance au pouvoir, une alternance pour le Parti des travailleurs et son allié le Parti libéral.

Mais qu'est-ce que le sentiment national ? Pour le sénateur, le Brésil était l'un des pays les plus riches du monde en termes de ressources naturelles et humaines. « Nous sommes à la 5e place en extension territoriale, nous avons un sol très riche, mais aussi de nombreuses zones improductives. Le potentiel du Brésil est énorme pour les entreprises rurales et l'agriculture familiale, et nous avons beaucoup d'espace pour nous tourner vers la production et le travail de valeur ».

Pour lui, "les géologues disent que le Brésil a 3,5 millions de kilomètres carrés de bassin sédimentaire où il y a du pétrole sur terre et nous n'avons même pas commencé la prospection. Nous savons que Petrobras, qui est une société brésilienne relativement nouvelle, a mis au point une technologie en eaux profondes qui fera l'envie des universitaires du monde entier. Nous avons la plus grande réserve d'eau douce de la planète, en particulier dans la région amazonienne. D'autre part, le Brésil n'a pas rempli son devoir. Par exemple, dans le domaine de l'assainissement, rien n'a été fait. Regardez les rivières Tietê, à São Paulo et les Arrudas, à Belo Horizonte, qui sont des égouts à ciel ouvert. Nous avons échoué dans le domaine des routes, des ports et nous n'avons plus de navigation de cabotage. Il y a donc beaucoup à faire et nous devons travailler.

Ainsi, pour le sénateur, le sentiment national pourrait faire face à cette nervosité des marchés, pression du FMI qui reflète les intérêts des spéculateurs.

Pour lui, les spéculateurs étaient si importants parce qu'ils contrôlaient les agences de cotation. Alors, ils ont donné un score au pays. Mais ils savaient qu'un pays comme le Brésil, avec tout son potentiel, ne pouvait pas présenter ce risque. Ça ne pouvait pas, ça n'aurait aucun sens. Comment le Brésil pourrait-il poser un plus grand risque que n'importe quel pays d'Amérique latine ? Et à l'époque on dépassait même le Nigeria en terme de risque. Où sommes-nous ?, a demandé José Alencar.

Et il a répondu : « Je connais des pays en Afrique où la pauvreté n'a rien à voir avec le Brésil. Mon Dieu, où sommes-nous ? Nous sommes absolument incompétents dans l'administration des affaires publiques au Brésil. Cela ne peut en aucun cas arriver. Nous devons savoir qu'il existe quelque chose qui s'appelle la compétition et nous devons la motiver pour que le Brésil soit vu tel qu'il est. Sinon, nous serons à la merci de ces agences qui font du Brésil ce qu'il est, qui disent que le Brésil vaut tant. Nous payons des taux d'intérêt qui tueront l'économie parce que nous avons un excédent primaire de 3,75 % du PIB, mais le coût du renouvellement de la dette est trois fois cet excédent. Donc, là où vont ces deux tiers, ils s'ajoutent à la dette qui grossit comme une boule de neige. Nous devons donc changer cela.

La sensibilité nationale

En plus de la probité administrative et du sentiment national, une sensibilité nationale était nécessaire. Pour José Alencar, alors candidat à la vice-présidence sur la liste de Luiz Inácio Lula da Silva, le changement était nécessaire et possible. Mais il a averti : « Nous n'allons pas changer unilatéralement, rompre les contrats, en aucune façon. Changeons cela en revenant à la croissance du pays ».

« Nous devons augmenter nos exportations pour alléger notre contrainte de taux de change car notre déficit courant est élevé. Il faut réduire ce déficit, y mettre un terme. Le Brésil a déjà enregistré un excédent commercial de 18 milliards de dollars américains. C'était le troisième au monde; le premier venait du Japon, le deuxième d'Allemagne et le troisième du Brésil. Ensuite, ce gouvernement, il y a trois, quatre ou sept ans, a commencé à créer un déficit dans la balance commerciale, alléguant qu'il était mal de faire un excédent commercial. Ce sont les idées des grands économistes et nous nous sommes toujours prononcés contre et nous n'avons jamais été entendus. Nous ouvrons nos ports, nos aéroports et nos frontières à la contrebande, ce qui explique cet armement lourd et sophistiqué qui est entre les mains du crime à Rio de Janeiro, São Paulo et d'autres grandes villes du pays ».

Et contrairement à ce que beaucoup croyaient, José Alencar considérait que le pays avait une solution à moyen terme. Mais pour cela il fallait un gouvernement qui possédât d'abord le sentiment national. C'était extrêmement important. Deuxièmement, la sensibilité envers les personnes et les régions défavorisées. Troisièmement, la probité absolue dans le traitement des affaires publiques. "Si on fait un gouvernement basé sur ce trépied, sentiment national, sensibilité sociale et probité, on aura déjà fait quelque chose".

Le magazine Veja a déclaré qu'en politique, les évangéliques étaient un tracteur. Et que la magistrature évangélique, avec plus de cinquante parlementaires à la Chambre fédérale, était unie et agissait bien au-delà des barrières partisanes dans les affaires liées aux intérêts de la communauté protestante.

Le rôle crucial de l'Église

Le théologien protestant J. B. Metz [Sur la théologie du monde, 1968] avait raison d'expliquer notre responsabilité sociale et politique : Selon Metz, le salut a poussé Jésus dans un conflit mortel avec les pouvoirs politiques de son temps. C'est que sa croix ne se limitait pas à la sphère privée de la personne et au domaine purement religieux. Elle a continué encore et encore. Elle est dehors, comme le formule la théologie de la Lettre aux Hébreux. Le voile du temple était définitivement déchiré. Le scandale et la promesse de ce salut sont publics.

Ainsi, dans l'élaboration d'une politique évangélique, l'Église a la tâche de proclamer l'évangile du salut, exerçant un rôle critique dans la société. L'église évangélique peut et doit assumer cette tâche, malgré les nombreuses erreurs qu'elle a commises. Une telle tâche doit s'exercer dans la défense de la personne et dans la mobilisation du pouvoir critique de l'amour qui est au cœur de la tradition chrétienne.

Il faut cependant savoir que ce rôle critique de l'Église vis-à-vis de la société aura des répercussions sur l'Église elle-même, dans une voie à double sens : il favorisera une nouvelle prise de conscience au sein de l'Église et créera une transformation de relations avec la société.

A Dieu toute la gloire !
De l'ami Jorge Pinheiro.



dimanche 3 avril 2022

O amor do Deus único

O amor do Deus único

Jorge Pinheiro, PhD

Kadish, vida, morte e reino
Fonte Editorial, 2018.

O amor do Deus único foi revelado no messias através dos seus ensinos e das suas obras, da sua morte na cruz. Quando crescemos na graça e no conhecimento de Yeshua hamashiah, nos revestimos do caráter dele e nos parecemos mais com ele. O caráter de Yeshua se revela em nós através das virtudes que dão o tom da nossa comunhão com os irmãos na comunidade de fé. 

Nossa comunhão com as pessoas, na comunidade de fé, se faz através da misericórdia, que é um relacionamento afetivo e cuidadoso com irmãos e pessoas machucadas e abatidas. Quando Yeshua viu a multidão, ficou com muita pena daquela gente porque eles estavam aflitos e abandonados, como ovelhas sem pastor. Por isso, somos chamados à bondade, prontos para fazer o bem sem olhar a quem; à humildade, numa atitude prestativa; à mansidão, numa relação sem coerção para mudança das pessoas; à longanimidade, com boa vontade para ser tolerante diante da fraqueza das pessoas; ao perdão, já que somos perdoados por haShem caso perdoemos; e à paz, já que como resultado da prática do amor, do perdão e da bondade, a comunidade de fé mostra ao mundo que a reconciliação e a paz podem ser alcançadas em Yeshua. As decisões feitas em justiça e amor constroem a paz que excede a compreensão humana, mesmo nas situações de conflito. 

Nós, criados à imagem e à semelhança do Deus único, somos chamados a viver a experiência cristã como comunidade de fé. Podemos usufruir, como iguais que somos, as bênçãos dessa comunidade nas celebrações de nossa igreja. Somos convocados a conviver no corpo de Yeshua que alcança o mundo, na comunidade de fé da nossa igreja local. 

Portanto, não existe mais condenação para aqueles que estão em Jesus. A lei da ruach da vida em Yeshua te libertou da alienação e da extinção. Coisa impossível ao esforço humano, porque enfraquecido pelo distanciamento, o Deus único enviando o seu filho numa humanidade semelhante à nossa, condenou a alienação, o distanciamento e os alvos errados, a fim de que sua justiça se cumprisse em nós que vivemos segundo o espírito. Com efeito, os que vivem segundo o espírito, as desejam as coisas que são do espírito. 

Na carta do apóstolo Paulo -- que passaremos a chamar de rabino Shaul por ter sido fariseu filho de fariseus --, aos judeus romanos temos dois blocos de textos: um maior, que é o capítulo oito inteiro, e cuja temática é a vida sob a lei do espírito; e um bloco menor (1-5) que trata especificamente da vida emancipada por esta lei do espírito. Esses dois blocos nos dão a linha de pensamento de Shaul: a vida emancipada; a vida exaltada; a vida esperançosa; e a vida exultante. Dessa maneira, o rabino traça o curso da vida, na qual a graça triunfa sobre o esforço humano, e os justos experimentam o livramento da alienação. 

A epístola de Shaul, como um todo, enfoca três blocos temáticos: um que fala da justificação através da emunah; outro que discute a exclusão temporal do povo da estrela, e a inclusão daqueles que não têm o berit milah; e por fim exortações práticas. 

Ao analisar a justificação, mostra que a libertação do ser humano repousa fundamentalmente sobre a emunah, que é fé-posicionamento, proveniente da graça de Yeshua. Essa misericórdia de haShem não depende da lei, porque o homem, em sua natureza pecaminosa, não tem como responder efetivamente às exigências da lei, que expressa a santidade de haShem. Assim, a graça provem do messias, que no seu amor e sacrifício, perdoa os pecados dos humanos. A liberdade da vida cristã, liberdade diante da lei, não depende da própria pessoa, nem do que ela possa fazer, mas daquilo que haShem já fez por ela. 

Há outra carta do rabino Shaul, que também trata dessa relação esforços humanos versus graça, que é a carta escrita aos gálatas. Ali, o rabino escreve sobre a justificação através da emunah, falando da liberdade. 

Sem dúvida, a análise de Shaul parte da Torá e ele escreve aos judeus romanos, e explica que a promessa feita a Abraham teve por base a emunah, já que ainda não tinha realizado o berit milah. 

O texto está inserido numa epístola, forma literária específica, amplamente utilizada pelos apóstolos e pela comunidade de fé primitiva. No capítulo que segue, analisaremos com mais detalhes esta forma literária, inserindo-a no contexto histórico de gregos e romanos durante o primeiro século da Era Comum. A epístola aos Romanos é uma carta de construção sofisticada, porque o rabino Shaul, o apóstolo Paulo cristão, intercala um pensamento central com várias digressões, tornando complexa a conexão das idéias. E o tema que o rabino trata é um assunto eletrizante para a época, mas hoje aceito pela totalidade dos seguidores de Yeshua: povos e raças de todo o mundo podem se tornar seguidores de Yeshua e não somente o povo da estrela. 

Em Romanos 8:1-5, encontramos no grego cinco verbos fundamentais para a compreensão do que o autor estava expondo. São eles: (1) receber alforria, o oposto ao estado de escravidão, não estar sujeito a uma obrigação, livrar, libertar. Te libertou e variantes: me libertou, nos libertou. É um aoristo passado, isto significa que a ação foi plenamente realizada, mas segue vigente no presente. (2) penalidade imposta por condenação judicial, servidão penal, condenar. Também é um aoristo passado. (3) encho, aterro, encho a ponto de transbordar, dou plenitude, cumpro. (4) ando, vivo, dirijo minha vida. (5) penso, ter a mente controlada por, ter como hábito de pensamento, inclinar-se. 

Desses verbos, dois são antônimos, receber alforria versus condenado judicialmente, e levam à oposição que o rabino quer mostrar entre a lei da ruach da vida e a lei da alienação e do extermínio. Assim, ao regime da alienação, o rabino Shaul opõe o novo regime da ruach hakadosh e diz que em nós transborda o que é justo e bom. Esse transbordar o que é justo, o que é bom, só é possível pela união com o messias através da emunah e tem sua tradução no mandamento do amor. Isto porque, não vivemos segundo a materialidade da vida, mas andamos no espírito, ou seja, temos a mente controlada pela ruach. 

A palavra lei aparece setenta vezes no texto de Romanos e sempre tem uma das três conotações: (a) revelação de haShem e de sua santidade, (b) foi dada para esclarecer o que é a alienação, e (c) existe para orientar a vida dos justos. Da mesma maneira, a palavra carne é sempre utilizada com o sentido de natureza humana enfraquecida e natureza humana não regenerada. 

O rabino nos apresenta a operação da ruach hakadosh, entendida como aquela que comunica a vida, aquela que dá liberdade e que intercede junto a Adonai. 

É interessante notar que o texto original de Romanos 8, em grego, começa com dois advérbios intercalados por uma partícula ilativa, que poderíamos traduzir assim: Atualmente, por isso, nada em absoluto pode condenar aqueles que estão em Yeshua. 

Essa partícula ilativa, que é um conectivo, nos leva ao capítulo 7, onde o rabino Shaul mostra que esforços humanos e alienação não são sinônimos. E que há uma grande diferença entre a esforços humanos e a natureza humana. Entre o que é espírito e o que é material. O corpo, com os membros que o compõem interessa a Shaul enquanto instrumento da vida moral. Submetido à tirania da materialidade, à alienação e à destruição, Shaul clama: quem me livrará? E dá "graças a haShem, por Yeshua, nosso senhor". É a partir desse clímax, que dá sequência ao texto, informando que por isso, hoje, nada em absoluto pode condenar os que estão no messias. 

No mundo de gregos e romanos, as cartas particulares tinham em média, cerca de noventa palavras. Já os textos literários, como os de Sêneca, por exemplo, tinham em média duzentas palavras. As epístolas de Shaul, no entanto, eram bem maiores. A menor delas, dirigida a Filemon, tem 335 palavras, e a maior, enviada a igreja de Roma, 7.101 palavras. Assim, podemos dizer que este Paulo, rabino e apóstolo, criou um novo gênero literário, a epístola, maior que as cartas e os textos literários comuns à época, de conteúdo teológico explícito, e dirigida a comunidade específica. 

Quase sempre, as cartas eram ditadas a um escriba profissional, chamado amanuense, que usava uma espécie de taquigrafia durante o ditado rápido. Depois, o amanuense burilava o texto, e o autor, finalmente, editava a carta. Na carta de Shaul aos judeus romanos seu amanuense foi Tércio. 

Quando escreveu sua epístola aos romanos, o rabino Shaul tinha mais de cinquenta anos e vinte e cinco de encontro com o mashiah. Estava ansioso para ministrar nessa comunidade romana, que já era conhecida no mundo, e por isso escreveu a carta que deveria preparar sua futura visita. Foi escrita em Corinto, quando estava levantando uma coleta para as comunidades da Palestina. Partiu, então, para Jerusalém para entregar o dinheiro. Lá foi preso, e acabou sendo levado à Roma, mas como prisioneiro. 

Teólogos como Orígenes e Barth consideram que a carta do rabino aos judeus romanos é o ponto alto dos textos neotestamentários. Ela sedimentou a compreensão de Agostinho e a reforma de Lutero. Calvino considerava que quem entendesse esta epístola estaria com a porta aberta para a compreensão de toda as escrituras judaico-cristãs. E Tyndale disse algo parecido, ao afirmar que a carta é "a parte principal e mais excelente do Novo Testamento, e o mais puro evangelion, isto é, as boas novas a que chamamos Evangelho, e também uma luz e um caminho para penetrar em toda a Escritura". 

Em termos de ensino, Shaul mostrou que a Torá, boa e santa, faz as pessoas conhecerem a vontade de haShem, mas não lhes transmitiu a força para cumpri-la. Deu-lhes consciência de sua alienação e da necessidade que têm de socorro. Esse socorro, inteiramente gratuito, chegou através de Yeshua. E a humanidade, ferida pela alienação, é recriada em Yeshua, podendo agora viver em liberdade e justiça, segundo a vontade de haShem. 

Romanos tem como tema central a revelação da justiça de haShem e a universalidade da obra de Yeshua. E, se Romanos é o centro nevrálgico das Escrituras, o capítulo 8 é o coração da carta. 

O capítulo 8 de Romanos mostra que a lei foi, através do sacrifício de Yeshua, dominada pela graça. E a epístola de Romanos foi fundamental no processo vivenciado pela Reforma. A igreja que rompeu com o catolicismo romano, quer a reformada de Lutero, Calvino e Zwinglio, quer a revolucionária de anabatistas e inspiracionistas, entendeu que o apóstolo Paulo traçou na epístola aos judeus romanos o curso da vida cristã, mostrando que através da graça há vitória plena sobre a alienação. 

Shaul queria deixar claro que as propostas anteriores não tinham razão de ser, pois a obediência à lei nunca logrou êxito. Através de Yeshua, unido a Yeshua pela ruach hakadosh, aquele que crê está livre de sua alienação e pode iniciar uma vida de liberdade, dentro de uma nova lei, a lei da ruach hakadosh da vida no messias Yeshua. 

Os reformados radicais do século dezesseis, contextualizando os ensinamentos de Shaul, entenderam que não havia mais necessidades de obras para se alcançar a liberdade. O que a igreja católica romana proclamava, tanto no que concerne às indulgências, como às obrigações de caridade, estava fora do ensino do rabino nas epístolas aos romanos e aos gálatas, assim como no restante das Escrituras. 

Ainda hoje Romanos apresenta ensinamentos fundamentais para a comunidade de Yeshua: a alienação humana; sua luta interior, a gratuidade da liberdade, a eficácia da vida além da vida e o ser levantado de Yeshua. Mas também fala da justificação através da emunah e a adoção dos justos filhos. É a partir desta hermenêutica que Romanos pode ser interpretado. Teremos, então, uma melhor compreensão daquilo que o rabino Shaul chama da lei da ruach da vida no messias Yeshua e de sua importância no caminhar do cristão. Ah! Se você ainda não leu a carta do rabino Shaul/Paulo aos romanos, não perca tempo. Vale a pena. 

No evangelho de João, Yeshua fala aos judeus sobre a liberdade. Os judeus acreditavam ser livres porque eram descendentes de Abraham. Mas Yeshua apresentou a eles um novo critério de liberdade. 

Em primeiro lugar, os que haviam crido deveriam permanecer na palavra. Yeshua deixava claro que para ser livre não basta apenas crer, e necessário permanecer na palavra. Mas o que é isso? É continuar firme. É uma vida sincera. Permanecer é ter constância e viver Yeshua no dia a dia. 

Mas para ser livre é preciso também conhecer a verdade. E o que é conhecer? Significa permanecer, antes de qualquer coisa. Depois, então, e que se vai inteirar, descobrir. É a partir daí que caminhamos em direção à liberdade. E a liberdade passa a ser a vida distante da escravidão da alienação. Liberdade para Yeshua é viver livre da alienação, das materialidades deste mundo que amarram e impedem o movimento do espírito em nossas vidas. 

Precisamos descobrir o significado dessas duas palavras usadas por Yeshua, permanecer e conhecer. Permanecer na palavra, cumprindo-a, para assim conhecer a verdade. A partir daí seremos livres da alienação que escraviza e leva à ruína, à escravidão e à morte. Que Adonai lhe abençoe e você permaneça na palavra, conheça a verdade e seja livre no Espírito! Esta é a minha oração. 

A Confissão de fé valdense, de 1554, dizia: Cremos que há um só Deus, que é espírito – o criador de todas as coisas – o de tudo, que é sobre tudo, e por tudo e em tudo; o qual deve ser adorado em espírito e em verdade – do qual dependemos continuamente, e a quem rendemos louvor por nossa vida, alimento, abrigo, saúde, enfermidade, prosperidade, e adversidade. Nós O amamos por ser a fonte de toda bondade; e O reverenciamos pois é o ser sublime, que sonda e prova os corações dos filhos dos homens. 

A palavra de haShem nos ensina que o único Adonai vivo e verdadeiro é ruach pessoal, eterna, infinita e imutável. Adonai é ruach, e por isso os que o adoram devem adorá-lo em espírito e em verdade. “Escute, povo de Israel! O haShem, e somente o haShem, é o nosso Adonai”. 

Só existe um Adonai, o pai e criador de todas as coisas. E existe somente um senhor de nossa humanidade, Yeshua, por meio de quem todas as coisas foram criadas e por meio de quem nós existimos. É, existe um só Adonai e uma só pessoa que une Adonai com os seres humanos, o ser humano Yeshua, que deu a sua vida para que todos fiquem livres de sua alienação. Esta foi a prova, dada no tempo certo, de que Adonai quer que todos sejam libertos. 

Adonai é onipotente, onisciente e onipresente. Adonai disse: Eu sou quem sou. E disse ainda: Você dirá o seguinte: “Eu sou me enviou a vocês. Eu sou o haShem, o Santo Adonai de vocês, o criador de Israel e o seu rei. 

Ao Rei eterno, imortal e invisível, o único Adonai, a ele sejam dadas a honra e a glória, para todo o sempre! Amém!. 

Adonai é perfeito em santidade, justiça, verdade e amor. Portanto, orem assim disse o rabino de Nazaré: Pai nosso, que estás no céu, que todos reconheçam que o teu nome é santo. O haShem diz: Eu sou o haShem e não mudo. É por isso que vocês, os descendentes de Jacó, não foram destruídos. Tudo de bom que recebemos e tudo o que é perfeito vêm do céu, vêm de haShem, o criador das luzes do céu. Ele não muda, nem varia de posição, o que causaria a escuridão. 

Adonai é o criador, sustentador, redentor, juiz e senhor da história e do universo, que governa pelo seu poder, dispondo de todas as coisas, de acordo com o seu eterno propósito e graça. No começo Adonai criou os céus e a terra. 

Quando Abrão tinha noventa e nove anos, Adonai apareceu a ele e disse: Eu sou o Adonai todo-poderoso. Viva uma vida de comunhão comigo e seja obediente a mim em tudo. 

Não há outro Adonai como tu, ó HaShem! Quem é santo e majestoso como tu? Quem pode fazer os milagres e as maravilhas que fazes? Estendeste a mão direita, e a terra engoliu os que nos perseguiam. Por causa do teu amor tu guiaste o povo que libertaste; com o teu grande poder tu os levaste para a tua terra santa. Os povos ouviram falar do que fizeste e estão tremendo de medo. 

Adonai é infinito em santidade e em todas as demais perfeições. Adonai, que fez o mundo e tudo o que nele existe, é o senhor do céu e da terra e não mora em templos feitos por seres humanos. E também não precisa que façam nada por ele, pois é ele mesmo quem dá a todos vida, respiração e tudo mais. De um só homem ele criou todas as raças humanas para viverem na terra. Antes de criar os povos, Adonai marcou para eles os lugares onde iriam morar e quanto tempo ficariam lá. “ 

O Altíssimo, o santo Adonai, o Adonai que vive para sempre, diz: Eu moro num lugar alto e sagrado, mas moro também com os humildes e os aflitos, para dar esperança aos humildes e aos aflitos, novas forças. 

Agora, vocês que têm juízo, me escutem. Será que Adonai faria alguma coisa errada? Será que o Todo-Poderoso cometeria uma injustiça? 

Adonai é triuno. O eterno Adonai se revela como pai, filho e ruach hakadosh. Yeshua veio de Nazaré, uma pequena cidade da região da Galileia e foi batizado por João Batista no rio Jordão. No momento em que estava saindo da água, Yeshua viu o céu se abrir e a ruach de haShem descer como uma pomba sobre ele. E do céu veio uma voz, que disse: Tu és o meu filho querido e me dás muita alegria. Portanto, vão a todos os povos do mundo e façam com que sejam meus seguidores, batizando esses seguidores beShem haav vehaben veruach hakodesh. Que a graça do Yeshua, o amor de haShem e a presença da ruach hakadosh estejam com todos vocês! 

O humano não pode se contentar apenas em não fazer o mal, não matar, não cometer adultério, não roubar, não mentir, mas deve fazer o bem. Deve se comprometer com a construção do bem. A resposta de Yeshua ao jovem rico é clara: Se você quer ser perfeito, vá, venda tudo o que tem, e dê o dinheiro aos pobres, e assim você terá riquezas no céu. Depois venha e me siga. 

Imaginamos que uma sociedade justa é aquela que respeita a dignidade humana e, por isso, cumpre os mandamentos de haShem. Até mesmo os ateus, se forem homens e mulheres de bem, deveriam respeitar os mandamentos. Mas, o humano está desafiado a levar em conta as exigências da ética do Sermão da Montanha, que apresenta: 

A universalidade do amor: Amem os seus inimigos e orem pelos que perseguem vocês. Portanto, todo humano deve ir além do que a sociedade propõe e faz. 

A confiança na providência: Não fiquem preocupados, perguntando: onde é que vamos arranjar comida? Ou, onde é que vamos arranjar bebida? Ou, onde é que vamos arranjar roupas. O humano justo sabe que Adonai é o senhor da história, Adonai provedor, e age conforme essa convicção. 

Ir além do que é exigido: Se alguém processar você para tomar a sua túnica, deixe que leve também a capa. O humano deve ser capaz de ir além do que a lei obriga, deve pautar-se pelas leis da caridade, da solidariedade e da fraternidade nas relações com as pessoas. A lei não pode nos obrigar a amar os outros, mas nós devemos amá-los, mesmo que sejam adversários. E em nome desse amor devemos fazer aquilo que habitualmente o mundo secular não faz. 

Quando pensamos no messias, pensamos na pessoa de Yeshua e em sua obra. E no ministério terreno de Yeshua há uma realidade que é central, a cruz. E quando pensamos na cruz vemos que o ministério do Calvário é a prova concreta do amor do pai, ao entregar seu filho. 

Somos justificados pela cruz de Yeshua, e por isso vemos as coisas como elas são, ou seja, entendemos que o perdão de nossas alienações não é fruto de uma contabilidade espiritual. Aliás, o profeta Miquéias já perguntara: O que eu levarei quando for adorar ao Adonai eterno? O que eu oferecerei ao Adonai altíssimo? A cruz de Yeshua é algo inusitado, que precisa acontecer nas nossas vidas para por fim a ira de haShem e derrotar de uma vez por todas os nossos inimigos: o mundo, a materialidade e o adversário. Somente Adonai pode fazer estas coisas e por um ponto final na separação de homens e mulheres, reconciliando-nos consigo, fazendo-nos confiar nele e receber os benefícios da sua vitória. A chave para compreendermos a emunah da cruz de Yeshua está no fato de que não damos nada a Adonai, mas é Adonai quem nos dá algo, o perdão e a vida eterna. 

Quem é justificado, torna-se justo diante de Adonai. E quem é justo foi justificado, e este não é um acontecimento de um momento, passageiro, mas o decreto de uma aliança eterna. Uma vez justificados, justos para sempre, apesar de todos os desafios e trombadas da materialidade. 

O rabino Shaul disse que devemos considerar-nos mortos para a alienação, para o distanciamento e para a separação, mas vivos para Adonai, por estarmos unidos com Yeshua. A compreensão sobre o ministério da cruz está no entendimento de que ele tornou-se o que nós éramos, para que nos tornássemos o que ele quer que sejamos. Adonai torna-se humano, vive a nossa experiência, sofre e morre na cruz, envolto em nossas alienações, sentindo a condenação da ira de haShem para que o poder da alienação, da ira, da morte e do inferno sejam vencidos através da ressurreição e sua vida vitoriosa seja comunicada a nós. 

A emunah na obra de Yeshua na cruz tem que ser algo real nas nossas vidas e não uma constatação meramente racional, pois Yeshua morreu sentindo em si mesmo e em sua consciência a agonia da separação última de haShem. Esta é uma concepção radical sobre a cruz, que deve nos levar a uma reflexão sobre a realidade fundamental da obra de Yeshua em nós e por nós, sem a qual jamais poderíamos receber o poder da vida e da salvação de haShem. Em todo momento novo da vida, pense: Agora que fomos aceitos por Adonai, por meio da fé, temos paz com Ele por intermédio de Yeshua, o nosso Senhor. 

O amor é o ponto mais alto na vida humana. E domínio próprio é obediência e, por isso, tem base no amor, na graça e nas bênçãos da presença de haShem na vida, na intimidade e nos relacionamentos. Yeshua disse que a pessoa que o ama obedeceria aos seus mandamentos. No que tange ao amor, domínio próprio é controle sobre si mesmo, sobre a ambição desmedida, os caprichos, a luxúria e as tentações. É o amor que resiste e persiste. 

O domínio próprio é uma manifestação da ruach hakadosh, definido na capacidade de controlar tendências e impulsos, superando as fraquezas. O domínio próprio está relacionado com a prudência, como característica da pessoa guiada pelo Espírito. O que é demonstrado por um comportamento sábio e equilibrado. 

O rabino alerta: continuem trabalhando com respeito e temor a Adonai para completar a libertação de vocês. Pois Adonai está sempre agindo em vocês para que obedeçam à vontade dele, tanto no pensamento como nas ações. Diz também que todo atleta que está treinando aguenta exercícios duros. E ao falar sobre sua experiência de vida, conta que corria direto para a linha de chegada a fim de conseguir o prêmio da vitória. E Tiago, irmão do rabino de Nazaré, como que completa o pensamento de Paulo, ao dizer que quem tem domínio sobre seus desejos e paixões, receberá como prêmio a vida que Adonai promete aos que o amam. 

Assim, o fruto da ruach hakadosh aponta o amor como o ponto mais alto na vida humana e nos obriga ao amor ao próximo. O amor aqui é ágape e significa querer o bem para as pessoas sem desejar nada em troca. Por isso, Shaul diz que o amor une perfeitamente todas as coisas. Mas não haverá união, nem perfeição se caprichos e paixões controlarem o nosso viver e os nossos relacionamentos. Aqui a palavra haShem quer dizer a ruach. E onde a ruach do HaShem está presente, aí existe liberdade. 

Em seu devocional “A imitação de Jesus”, Thomas à Kempis faz a seguinte oração: “Peço-vos, ó meu benigníssimo Deus! Preservai-me dos cuidados desta vida, para que não me embarace demasiadamente neles; das muitas necessidades do corpo, para que não me escravize a sensualidade; e de todas as perturbações da alma, para que não me desalente sob o peso das angústias. Não falo das coisas que a vaidade humana busca tão empenhadamente, mas das misérias que, pela maldição comum de todos os mortais, penosamente oprimem a alma de vosso servo, e a impedem de elevar-se à liberdade perfeita do Espírito”. 

“Ó meu Deus, doçura inefável! Convertei em amargura toda consolação carnal, que me aparta do amor das coisas eternas e me fascina pelo encanto de um prazer momentâneo. Não me vença, Adonai meu, não me vença a carne e o sangue; não me seduza o mundo, com sua glória passageira; não me faça cair o demônio, com sua astúcia. Dai-me força para resistir, paciência para sofrer, constância para perseverar. Dai-me, em lugar de todas as consolações do mundo, a suavíssima unção do vosso Espírito e, em lugar do amor terrestre, infundi-me o amor de vosso nome!” 

Onde está a ruach do haShem há liberdade. Mas que liberdade é essa, de que fala o rabino Shaul e Thomas à Kempis? É a liberdade de fazer a escolha certa, de deixar de lado a carne e o sangue, a escravidão às muitas exigências do corpo, às seduções do mundo. Escolher a liberdade do Espírito é deixar-se escolher pelo espírito. É escolher o amor do pai, a obediência do filho e a santidade do espírito. Tais escolhas na emunah renovam a vida e vencem a materialidade do mundo. 

É uma experiência que não abandona aqueles que a experimentaram realmente: é a liberdade que leva do medo à confiança, que faz reviver a esperança, que traduz o amor à vida. A liberdade no espírito leva a uma vida criativa. Significa ultrapassar os limites da realidade determinada pelo passado e buscar as possibilidades que não se realizaram. É liberdade que livra da força do mal, da lei das obras e do poder da morte: que leva a uma comunhão direta e eterna com Adonai. Essa é da liberdade no espírito. 

Que os caros leitores e caríssimas leitoras vivam plenamente esta liberdade. Pois, esta mundialização de caos e crise não pode receber o espírito da liberdade porque não o pode ver, nem conhecer. Mas, vocês o conhecem porque Ele está com vocês e vive em vocês.






samedi 2 avril 2022

Um reformador marginal

Que o vento da justiça sopre sobre você, que a paz seja como riachos de águas, e que o fogo do amor traga alegria!


Jorge Pinheiro, PhD

Kadish, vida, morte e reino

Fonte Editorial, 2018


Um reformador marginal 

Somos desafiados, ao ler os textos da Nova Aliança, a buscar as bases judaico-cristãs da política social de Jesus. E aqui faremos isso a partir do texto de Lucas ... 

E, chegando a Nazaré, onde fora criado, entrou num dia de sábado, segundo o seu costume, na sinagoga, e levantou-se para ler. E foi-lhe dado o livro do profeta Isaías; e, quando abriu o livro, achou o lugar em que estava escrito: O Espírito do Senhor é sobre mim, pois que me ungiu para evangelizar os pobres. Enviou-me a curar os quebrantados de coração, a pregar liberdade aos cativos, e restauração da vista aos cegos, a pôr em liberdade os oprimidos, a anunciar o ano aceitável do Senhor. E, cerrando o livro, e tornando-o a dar ao ministro, assentou-se. E os olhos de todos na sinagoga estavam fitos nele. Então começou a dizer-lhes: Hoje se cumpriu esta escritura em vossos ouvidos. E todos lhe davam testemunho, e se maravilhavam das palavras de graça que saíam da sua boca. E diziam: Não é este o filho de José? E ele lhes disse: Sem dúvida me direis este provérbio: Médico, cura-te a ti mesmo; faze também aqui na tua pátria tudo que ouvimos ter sido feito em Cafarnaum. E disse: Em verdade vos digo que nenhum profeta é bem recebido na sua pátria. Em verdade vos digo que muitas viúvas existiam em Israel nos dias de Elias, quando o céu se cerrou por três anos e seis meses, de sorte que em toda a terra houve grande fome. E a nenhuma delas foi enviado Elias, senão a Sarepta de Sidom, a uma mulher viúva. E muitos leprosos havia em Israel no tempo do profeta Eliseu, e nenhum deles foi purificado, senão Naamã, o siro. E todos, na sinagoga, ouvindo estas coisas, se encheram de ira. E, levantando-se, o expulsaram da cidade, e o levaram até ao cume do monte em que a cidade deles estava edificada, para dali o precipitarem. Ele, porém, passando pelo meio deles, retirou-se. (4.16-30). 

... e tomaremos como referenciais a Ben Witherington III e John Howard Yoder. 

Witherington III analisa a marginalidade social de Jesus a partir das realidades expressas pela hierarquia sacerdotal da época em relação a ele. Ao não ter pai conhecido e reconhecido não tinha direito a um nome. Por isso, era visto como alguém de genealogia desconhecida. E o fato de ser nomeado homem de Nazaré, oriundo de uma vila de camponeses e artesãos, pouco conhecida e afastada das rotas comerciais, fazia com que sua identidade geográfica também o desclassificasse como possível figura messiânica. 

Assim, genealogia e geografia faziam dele um judeu socialmente à margem, que, por suas origens, não merecia crédito. Mas, esse homem-sem-nome, esse homem-sem-terra santa iniciou suas atividades de maneira no mínimo inusitada na sinagoga de Nazaré, conforme descreve Lucas. 

Segundo Yoder, na época, não havia nas sinagogas uma leitura dos profetas regularmente prescrita. E o fato de essa passagem não estar presente nos lecionários conhecidos posteriormente, tende a indicar que Jesus a escolheu de propósito. Morris, afirma que essa hipótese corrobora a afirmação de Lucas: “abrindo o livro, achou o lugar onde estava escrito”. Aqui dois detalhes merecem ser realçados: primeiro, é a única referência clara nos Evangelhos de que Jesus sabia ler. E, segundo, por que, ao ler Isaías 61.1-2, ele omitiu uma frase, curar os contritos de coração e acrescentou outra, libertar os oprimidos, que está em Isaías 58.6? Na verdade, utilizou os textos que considerou mais úteis à exposição de sua plataforma político social. 

O uso que fez de termos políticos, como reino e evangelho, mostram que tal seletividade tinha uma finalidade: falar de uma promessa política de intervenção social alternativa àquelas dos poderes presentes na época. Assim, se lermos o texto apresentado por Jesus, numa perspectiva rabínica, estamos diante de uma recorrência às promessas do jubileu, quando as injustiças acumuladas durante anos deveriam ser sanadas. A fala daquele homem de identidade questionada não afirmava que a Palestina seria resgatada na escala temporal, mas que deveria entrar na vida palestina o impacto solidário do ano sabático. 

Da mesma maneira, o reino vindouro surgia enquanto compreensão profética do ano sabático. Nesse sentido, o sábado da semana ampliava-se no sábado dos anos, onde o sétimo deveria ser de descanso e reforma, já que restaurava o que tinha sido exaurido, natureza e pessoas. Essa coleção de regulamentos presente em Levítico concernia ao direito de propriedade da posse da terra e de pessoas, que constituíam a base da riqueza. O propósito era fixar limites ao direito de posse, já que toda propriedade, natureza e pessoas, pertenceria a Adonai. Assim, ninguém poderia possuir a natureza e as pessoas de forma permanente, pois tal direito pertencia a Adonai. E o ciclo de sete anos sabáticos desaguava no quinquagésimo ano, o jubileu messiânico, que só vai aparecer de novo em toda a Primeira Aliança apenas em Números. Mas, Jeremias falou de uma reforma social na Jerusalém sitiada, quando Zedequias proclamou a liberdade dos escravos hebreus. Da mesma maneira, em Isaías encontramos a reforma como parte da visão profética. Nesse sentido, a reforma do jubileu apontava para a reestruturação econômica e sócio-política das relações entre os povos da Palestina. 

É interessante que Flávio Josefo tenha afirmado anos depois da presença de Jesus em Nazaré, que “não existe um único hebreu que, mesmo hoje em dia, não obedeça à legislação referente ao ano sabático como se Moshe estivesse presente para puni-lo por infrações, e isso mesmo em casos que uma violação passaria despercebida”. 

Apesar da afirmação de Josefo, sabemos que um enquadramento econômico e social a partir das disposições de Levítico 25, o que incluía inclusive a redistribuição da propriedade, nunca foi literalmente vivido entre os judeus. Por isso, coube a um sem-terra prometida levantar o discurso do ano da libertação. 

A proposta de reforma do Jesus marginal era a anunciação profética da entrada em vigor de uma era nova, caso os ouvintes aceitassem a notícia. Não estava a se referir a um evento histórico, mas reafirmava uma esperança conhecida de seus ouvintes: a da reforma econômica e sócio-política que deveria mudar as relações entre os povos palestinos. 

E aquele homem de genealogia desconhecida e geografia marginal colocou a centralidade da reforma sobre ele próprio ao afirmar que naquele momento, na sinagoga de Nazaré, a promessa profética se cumpria. E é isso que Lucas vai mostrar na sequência de seu evangelho: o reformador marginal era o messias prometido. 

vendredi 25 mars 2022

É possível dialogar?

Antropologia e religião

Jorge Pinheiro

Prof. Dr em Ciências da Religião



É possível dialogar?



Como encarar o debate religioso? Devemos nos fechar em definições doutrinárias e declarar que todo diálogo inter-religioso leva ao sincretismo e dissolve nossas crenças e fé? É possível o diálogo, reconhecendo diferenças e mantendo cada qual sua identidade religiosa? Para pensar essas questões, vamos fazer uma releitura do texto de José Maria da Silva. A identidade no mundo das religiões, análise desde um olhar localizado [Revista de Estudos da Religião, 2001, no. 4, pp. 14-26].


Mas antes vejamos alguns pressupostos metodológicos que podem nos ajudar a nortear o estudo da questão da identidade religiosa versus desafio do diálogo inter-religioso.


A ciência, e em especial a lingüística, trabalha com o conceito de paradigma. Um paradigma é um modelo, um padrão, um protótipo. É um conjunto de unidades suscetíveis de pesquisa baseada em realizações científicas passadas, que aparecem num mesmo contexto e que são comutáveis e mutuamente exclusivas. No paradigma, as unidades têm, pelo menos, um traço em comum -- forma, valor ou ambos -- que as relaciona, possibilitando conjuntos abertos ou fechados, segundo a natureza das unidades. No primeiro caso, quando essas unidades são formais, temos um paradigma que possibilita a tradução da realidade e, no segundo caso, quando são unidades de valor, temos um paradigma que sistematiza o conhecimento.


Mas há um outro dado importante: em cada época, há paradigmas dominantes, ou seja, aqueles a partir dos quais as pesquisas se realizam, comprometidas com determinadas regras e padrões.


Mas, nenhum paradigma é eterno. Ele pode ser quebrado. Nesse sentido, há quebra do paradigma quando uma visão que transforma a compreensão da realidade, dá a ela nova forma e dimensão, determinando uma releitura da verdade.


Segundo Thomas Kuhn [As estrutura das revoluções científicas, São Paulo, Perspectiva, 1976, p. 38], “para ser aceita como paradigma, uma teoria deve parecer melhor que suas competidoras, mas não precisa (e de fato isso nunca acontece) explicar todos os fatos com os quais pode ser confrontada”. A quebra de paradigma, em última instância, significa mudança da imaginação científica e não um dado a mais numa estrutura de idéias já existente.  


No campo da religião cristã são três os paradigmas geralmente considerados: (1) exclusivismo ou visão eclesiocêntrica; (2) inclusivismo ou visão cristocêntrica; (3) pluralismo ou visão teocêntrica.


O catolicismo romano tem um axioma, formatado por Orígenes, Cipriano e Agostinho – “extra eclesiam nulla salus” -- e retomado pelo Concílio de Florença (1442), que caracteriza esse exclusivismo eclesiocêntrico. Ao dizer, “fora da igreja não há salvação”, o catolicismo romano está afirmando a fé católica é privativa, restrita e incompatível com qualquer outra fé, mesmo cristã. E isto é assim por direito divino entregue à essa igreja, que por assim dizer não tem concorrentes em qualquer outra expressão religiosa. 


No campo cristão protestante, tal espírito ou sistema de exclusão é traduzido na idéia de que “fora do cristianismo não existe salvação”, conforme expõe John Hick [A metáfora do Deus encarnado, Petrópolis, Vozes, 2000, pp. 13-14]. 


Geralmente, o exclusivismo eclesiocêntrico, quer católico, quer protestante, parte de uma interpretação tautológica da revelação, que se baseia no literalismo mítico. Mas, se parte daí, leva também à demonização da diferença, que aparece sempre como heresia ou doutrina sem fundamento e que, por isso, não merece crédito ou atenção. Assim, o que é diferente é sempre execrado, maldito, anátema.


O paradigma que se coloca no outro extremo é o do pluralismo teocêntrico, que parte da revolução copernicana, segundo a qual a realidade não é um todo orgânico, mas é composta de uma pluralidade de entidades independentes, quer materiais, quer espirituais. Ou seja, assim como os planetas giram ao redor do sol, todas as expressões religiosas estão voltadas para Deus.


Este paradigma dissolve a identidade religiosa, negando a qualidade daquilo que é particular a toda expressão religiosa, daquilo que a faz idêntica a ela própria. Ao diluir e até mesmo negar esse conjunto dos caracteres próprios à determinada religião, leva à conclusão de que todas são iguais, ou cumprem iguais funções, já que todas giram ao redor de Deus. 


Mas ao apoiar-se na revolução copernicana, o pluralismo teocêntrico traz para o campo das religiões um problema que não existe em outros campos científicos. Aqui, a afirmação de que todas as religiões são iguais não pode ser constatada pelo exame dos fatos. Ou melhor, a única solução possível seria analisar a fé em cada uma delas. Mas ainda esta solução não seria tão empírica como parece, pois a fé religiosa, por ser exclusiva, só é aceita por aqueles que comungam dela. 


A opção, como propõe teólogos como Hick, é a verificação escatológica, pois “até que a última curva não seja dobrada, nada se saberá de maneira definitiva”, conforme agrega José Maria da Silva [A identidade do mundo das religiões, análise desde um olhar localizado, artigo citado, p. 18]. Ou seja, para sabermos se a base paradigmática do pluralismo procede, quer dizer, que todas as religiões são iguais, temos que esperar o fim do mundo.  


Mas há um terceiro caminho, diferente do paradigma do exclusivismo eclesiocêntrico e diferente do paradigma do pluralismo teocêntrico. É esse paradigma é o inclusivismo cristocêntrico, que vê as religiões naturais como dado da revelação, ou seja, da universalidade salvífica do sacrifício de Cristo na cruz. Nesse sentido, todas elas, estão dentro do axioma apresentado por Paulo em Romanos 2.14-15: “Os não-judeus não têm a lei. Mas, quando fazem pela sua própria vontade o que a lei manda, eles são a sua própria lei, embora não tenham a lei. Eles mostram, pela sua maneira de agir, que têm a lei escrita no seu coração. A própria consciência deles mostra que isso é verdade, e os seus pensamentos, que às vezes os acusam e às vezes os defendem, também mostram isso”.


Nesse sentido, quando falamos de inclusivismo cristocêntrico, estamos falando da abrangência e envolvimento dos tempos da salvação na vida humana em particular e na vida da humanidade. Isto porque a salvação tem um tempo pretérito, conforme explica Paulo em II Tm 1.8-9: “Deus nos salvou e nos chamou para sermos o seu povo. Não foi por causa do que temos feito, mas porque este era o seu plano e por causa da sua graça. Ele nos deu essa graça por meio de Cristo Jesus, antes da criação do mundo”.  


Assim, a alienação e alvos errados dos seres humanos que sentiram a dor e tiveram consciência de sua miserabilidade, ou seja, que se arrependeram, foram perdoados através do sacrifício da cruz, conforme explica Paulo: “Deus ofereceu Cristo como sacrifício para que, pela sua morte na cruz, Cristo se tornasse o meio de as pessoas receberem o perdão dos seus pecados, pela fé nele. Deus quis mostrar com isso que ele é justo. No passado ele foi paciente e não castigou as pessoas por causa dos seus pecados; mas agora, pelo sacrifício de Cristo, Deus mostra que é justo. Assim ele é justo e aceita os que crêem em Jesus”.


Mas se a graça da cruz cobre aqueles que se arrependeram num tempo pretérito à cruz, enquanto perdão jurídico [Rm 5.9, Ef 1.7], acontece também no tempo presente [Tg 1.21, I Pe 1.9], enquanto tempo presente de liberdade [Lc 9.23+, Rm 5.10, Gl 5. 16, 25] e num tempo futuro [Rm 13.11], enquanto tempo de glória [Fp 3.20-21, Gl 1.4, I Pe 1.5, 3.20-21].


Dessa maneira, diferente dos paradigmas do exclusivismo eclesiocêntrico e do pluralismo teocêntrico, o paradigma do inclusivismo cristocêntrico possibilita o diálogo inter-religioso sem diluir nossa identidade cristã, protestante. Não nos isolamos, nem amaldiçoamos aqueles que são diferentes. Ao contrário, o conhecimento da diferença possibilita o diálogo e reafirma nossa identidade.


O paradigma do inclusivismo cristocêntrico afasta-se também do pluralismo teocêntrico e não diz que todas as religiões são iguais e nem diz que cumprem a mesma função salvífica. Não dilui nossa fé num emaranhado de crenças, mas a partir da manutenção de nossa identidade, vê que a expressão da revelação e do fator salvífico da cruz de Cristo, enquanto projeto redentor aconteceu fora do tempo e do espaço, na eternidade, e, por isso, possibilita a todos os seres humanos e à humanidade um encontro com o Criador.


Bem, todo paradigma implica em novidade da imaginação científica. É sempre um novo caminho para novas descobertas. É resposta para o desafio da pós-modernidade. Esbarramos todos os dias na diferença. Como vamos conviver e dialogar com essas diferenças? Talvez o paradigma do inclusivismo cristocêntrico nos ajude.


Em Cristo,

Do pastor e amigo,

Jorge Pinheiro.