Negritude e memória: a lembrar os caídos
Jorge Pinheiro
João Alberto Silveira Freitas, 40 anos, foi espancado e morto por seguranças do supermercado Carrefour, em Porto Alegre (RS), na véspera do Dia da Consciência Negra. O soldador João Beto, como era conhecido pelos amigos, morava em uma comunidade na Vila Farrapos, zona norte da capital gaúcha. Casado, ele deixa a esposa, a cuidadora de idosos Milena Borges Alves, 43 anos, e quatro filhos.
“Saber-se negra é viver a experiência de ter sido massacrada em sua identidade, confundida em suas perspectivas, submetida a exigências, compelida a expectativas alienadas. Mas é também e, sobretudo, a experiência de comprometer-se a resgatar sua história e recriar-se em suas potencialidades”. Neusa Santos Souza, Tornar-se Negro, As Vicissitudes da Identidade do Negro Brasileiro em Ascensão Social, Rio de Janeiro, Graal, 1983, pp.17-18.
Há 12 anos, entre muitos e muitas, uma combatente também caiu. E aqui vamos nos lembrar dela, como um momento de memória e símbolo dos negros e negras desterradas, escravizadas e mortas pelo racismo.
Neusa Santos Souza, psiquiatra, ex-militante da Liga Operária, e colaboradora do caderno Afro/Latino-América da revista Versus suicidou-se dia 20 de dezembro de 2008, à tarde. Militante negra, autora de Tornar-se Negro, era doutora em medicina social e trabalhadora na área de saúde mental como clinica, terapeuta e professora universitária. Pessoa amada e admirada.
A Terra é sempre a tua negra algema
“Tu és o louco da imortal loucura,/ o louco da loucura mais suprema./ A Terra é sempre a tua negra algema,/ prende-te nela a extrema Desventura./ Mas essa mesma algema de amargura,/ Mas essa mesma Desventura extrema/ Faz que tu'alma suplicando gema/ E rebente em estrelas de ternura”. (“O assinalado”, Cruz e Souza, primeira e segunda estrofes).
Ao percorrer os caminhos das brasilidades ao longo dos últimos três séculos encontramos as raízes que explicam a miséria da nação. As bandeiras da emancipação, da democracia e da justiça social continuam urgentes hoje tanto quanto em épocas passadas. Hoje, passados 120 anos do decreto que reconheceu o direito do povo negro à liberdade, a ideologia do ocultamento ainda se faz presente.
Para se compreender a cultura afrobrasileira é importante entender a religiosidade africana dos orixás. Apesar, de sua diversidade regional, a matriz africana da religião dos orixás traduz, em seu conjunto, a cultura da família clânica, originária de um mesmo antepassado, que engloba vivos e mortos.
O orixá é o ancestral divinizado, que em vida estabeleceu vínculos que lhe garantiram controle sobre determinadas forças da natureza. O poder desse ancestral, após sua morte, pode encarnar, por um curto período, em um de seus descendentes através de possessão provocada. É interessante notar que a morte desses antepassados não acontecia de forma natural, mas em meio a acontecimentos que envolviam paixão ou ira.
Nesse momento de crise emocional provocado por cólera e outros sentimentos violentos, sofriam metamorfoses, seus corpos eram consumidos pela paixão, restando deles apenas o poder. Mas, para que esse poder pudesse ser apropriado por seus descendentes, era necessário que membros da família enterrassem um vaso no chão, com cerca de três quartos de sua altura. Nesse vaso recolheriam o poder do orixá, que passaria a receber oferendas e o sangue de holocaustos. Esse culto unia homens e mulheres ao orixá, e suas emanações eram representadas por uma pedra, um seixo de rio ou por símbolos como ferramentas ou arco e flechas. Assim, o poder do orixá só se tornava perceptível através da incorporação, o que possibilitava ao orixá voltar à terra para receber provas de respeito dos que o evocavam.
Nos cultos ao ancestral, ao incorporar-se o orixá recebia sua personalidade de volta com qualidades e defeitos, gostos, tendências, caráter agradável ou agressivo. Durante as cerimônias, os orixás dançavam com seus descendentes, ouviam suas queixas, resolviam desavenças e consolavam seus infortúnios. Dessa maneira, o mundo dos orixás não estava distante do fiel, nem era superior.
Em religiosidades na África, os orixás estavam ligados às comunidades e às nações e os cultos eram regionais e mesmo nacionais. Os cultos eram assegurados pelos sacerdotes, e os demais membros da família ou comunidade não tinham outros deveres senão o de contribuir com a manutenção e custeio do culto, podendo participar nos cantos, danças e festas que acompanhavam as celebrações. Deviam, porém, respeitar as proibições alimentares e outras ligadas ao culto do seu orixá.
Com o tráfico de escravos, os orixás foram trazidos para o Brasil com seus descendentes e permaneceram ligados às famílias que vieram para cá ou aqui se formaram. E os sacerdotes dos orixás passaram a manter o culto para essas famílias e comunidades.
Hoje, embora os não afrodescendentes não possam reivindicar laços de sangue com os orixás, podem existir afinidades que favorecem o culto. Afrodescendentes e não afrodescendentes, para os sacerdotes dos cultos aos orixás, têm arquétipos comuns, como a virilidade, feminilidade, sensualidade, independência ou desejo de expiação, que correspondem àqueles de um orixá. E, assim, essa religiosidade ancestral passou a ocupar seu espaço nos terreiros e comunidades de descendência negra, marcando presença definitiva na multiculturalidade brasileira.
O trabalho para a morte
Joaquim Nabuco foi o primeiro brasileiro a apresentar uma visão globalizadora da formação histórica e do papel da africanidade no Brasil. E o fez numa pequena obra de propaganda: O Abolicionismo. Nela, ele mostrou que a escravidão, que durou três séculos, não constituía um fenômeno a mais, de modo que deveria ser analisado em igualdade de condições com a monocultura e a grande propriedade agrária.
Para Nabuco, foi a escravidão que formou o Brasil como nação. Ela é a instituição que ilumina a compreensão do passado. E é a partir dela que se definiram entre nós a economia, a organização social, a estrutura de classes, o Estado, o poder político e a própria cultura. A escravidão foi a protagonista por excelência da história brasileira. O autoritarismo tão típico da elite, a dificuldade na construção da cidadania e a exclusão social estão intimamente ligadas a esses trezentos e setenta anos de escravidão e são as heranças trágicas da brasilidade. Assim, a escravidão gerou miséria e exclusão.
Devemos entender que nossas culturas são relacionais, o que significa que as relações entre as classes aparecem de forma difusa, sobre a base de relações sociais aparentemente pouco intervencionistas diante de uma sociedade civil incipiente, onde a interação entre o público e o privado se figura flexível e amorfa. Por isso, nessas culturas, as relações dentro das classes e, muitas vezes, entre elas se mostram mais gratificantes do que os motivos e fins que deram origem a essas relações. Em nossas culturas relacionais, os códigos devem ser entendidos a partir de uma chave dupla: é necessário partir das matrizes antropológicas, mas não se podem esquecer as pressões globalizadoras. E as matrizes antropológicas foram construídas a partir da polaridade de dois mundos e de duas realidades que têm suas origens com a escravidão: a casa, enquanto dimensão social permeada de valores, de espaços exclusivos e lugar moral, e a rua, enquanto movimento, trabalho, tripalium.
O tripalium deu origem à palavra trabalho. Era um instrumento de três piquetes usado para fixar animais quando se pretendia fazer intervenções veterinárias ou marcá-los a ferro. Foi utilizado pelos romanos, depois na Idade Média e posteriormente importado pelos colonizadores portugueses. Era utilizado nas fazendas brasileiras para conter os escravos quando castigados ou marcados a fogo. Essa situação traduz a relação existente entre senhores e escravos. A afirmação antropológica do padre Antonil, nosso primeiro economista, em 1711, de que “o Brasil é um inferno para os negros, um purgatório para os brancos e um paraíso para os mulatos” não é uma constatação biológica. Era um inferno para os negros porque para estes não havia esperança a não ser a morte, geralmente prematura. Para os portugueses era o purgatório porque esses acreditavam na possibilidade de fazer fortuna e voltar a Portugal. Em meio a tanta desgraça, era um paraíso para os mulatos porque estes, já livres da escravidão, podiam transitar entre brancos e negros, crescendo em importância social pelo papel mediador que lhes era confiado.
Assim, o paraíso aqui é definido como resultante de um relacionamento cultural. Locus do mulato ou mulo, animal ambíguo, híbrido, incapaz de reproduzir-se enquanto tal. Apesar da grosseria racista do termo, serão estes homens e mulheres mestiços que aqui romperão a dualidade cultural, tão típica das comunidades calvinistas da outra América.
A expressão mulato, racista e colonialista, levou à expressão pardo, que foi adotada oficialmente no censo do ano de 1872 com o intuito de contabilizar de forma separada os negros cativos, não importando se africanos ou descendentes, dos negros nascidos livres ou alforriados, não importando se negros ou descendentes. E o termo entrou para a linguagem oficial, associada à identidade mestiça, mas não necessariamente associada à afrodescendência.
Assim, com a construção da multicultura afrobrasileira e com os afrodescendentes dá-se momentos de sínteses que traduzem culturas relacionais. Ótimo exemplo é Macunaíma, um herói sem nenhum caráter, de Mário de Andrade. Nos países de cultura protestante, burguesa, o negativo é o que está no meio. Aqui, o que está no meio é a virtude.
Antonio Manzatto ao analisar a antropologia dos personagens amadianos, diz que Jorge Amado vai além do regionalismo e realiza uma síntese das identidades do brasileiro: extrapola os marcos estéticos da literatura, para formalizar as bases das culturas relacionais brasilíndias e afrobrasileiras, embora não faça a crítica do que se esconde atrás e por baixo da aparente cordialidade do brasileiro. As culturas relacionais escondem a injustiça social e a opressão sexual. Afirmamos que o Brasil foi formado por matrizes culturais: brancos, índios e negros, o que filtrado pelas culturas relacionais leva a uma ilusão, a uma mentira, como se brancos, índios e negros tivessem optado pela construção do país. A verdade é que portugueses brancos e aristocráticos exterminaram indígenas e escravizaram negros. Mas dessa maceração de povos, etnias, cores e culturas surgiram as brasilidades presentes em cada canto deste país, com riquezas particulares, diversidades que formam a multiculturalidade afrobrasileira.
A vida como utopia
Claude Lévi-Strauss em O cru e o cozido nos leva a conhecer, por meio de uma abordagem estruturalista, como foi determinante no desenvolvimento da humanidade a passagem da alimentação crua para a cozida. A partir do título de inspiração culinária, Lévi-Strauss refere-se às exigências do corpo e aos laços elementares que o ser humano mantém com o mundo. Através da oposição aparentemente trivial entre o cru e o cozido, apresenta a força lógica de uma mitologia da cozinha, tal como concebida pelos indígenas sul-americanos. Depois, traz a tona as propriedades gerais do pensamento mítico, onde descobrimos uma filosofia da sociedade e do espírito. E é interessante que este pensamento mítico vai empapar a multicultura relacional brasileira.
No Brasil há códigos relacionais que traduzem equivalência entre comida e sexualidade, que têm como fundamento o prazer, e apresenta novos parâmetros para cru e cozido, que relaciona alimento, comida e sexo. Para a multicultura brasileira, alimento é o que mantém os seres vivos, a comida, aquilo que dá prazer, e o sexo é sempre um tipo de comida. O alimento é geral e universal, mas a comida dá identidade e, como conseqüência, quem come tem o controle. O alimento cru por excelência é a salada, algo de pouco sabor, sem maiores atrativos, diferente da comida que é bem cozida, como papa ou pirão. O alimento é aquilo que é difícil de engolir, já a comida é arroz com feijão, uma das sínteses das brasilidades. Herdeiros que somos das culturas das várias comunidades indígenas e de angolanos, benguelas, jejes, nagôs e outras, onde o cuidado pela preservação da vida da comunidade cabia à mulher, na multicultura afrobrasileira é ela quem faz a mistura e quem dá a comida. Por isso, para Amado, mulher é dona Flor, moquequeira, articuladora de temperos, de cama e mesa. Ou Gabriela, de cravo e canela.
Na multicultura relacional afrobrasileira, o tempo vivido disputa com tempo lembrado. O tempo vivido é a rua, o movimento, é o tripalium. O tempo lembrado é o sonho, é o que foi e que deveria continua a ser. O tempo vivido é o suor e o cansaço. E a festa é a ruptura do tempo vivido. É o momento em que o corpo deixa de ser gasto pelo tripalium e é gasto pelo prazer. Talvez por isso, o maior acontecimento relacional da afrobrasilidade é o carnaval. É o momento do contrário. Troca-se o dia pela noite, a casa pela rua. A regra é o excesso. Não é uma festa de máscaras, mas de fantasias. É uma leitura da liberdade considerada fim das regras e convenções. Vive-se o fim da miséria, o fim da escravidão, o fim do pelourinho. É a utopia socialista em versão afrobrasileira, onde todos somos iguais diante da possibilidade do prazer.
Esses códigos das afrobrasilidades caminham ao lado da questão racial. A solução relacional para a injustiça social foi a miscigenação e para a opressão sexual, o sincretismo. A oposição entre as culturas latinas, as culturas indígenas e as culturas negras não se tornaram irreconciliáveis, mas deram origem a uma diversidade de sínteses, à multicultura popular afrobrasileira. Essa multicultura mestiça é entendida como a maneira do afrobrasileiro viver a vida, seu gosto pela festa, pela música, pela dança, pela comida e pelo sexo. Mostra uma forma de viver em que a vida não é algo acabado e definido, mas que se vai construindo no concreto do cotidiano vivido. Essa é uma característica muito especial da multicultura afrobrasileira, na qual a vida tem de ser reelaborada a cada dia. Não são formas multiculturais fixas, mas vão-se modificando conforme se vai vivendo. Esses dados são fundamentais para se entender a questão da identidade do afrobrasileiro. Sua identidade não existe como algo dado. Também a identidade vai sendo construída e os elementos externos e as pressões mais novas, isto é, globalizadoras vão sendo deglutidas e vividas no hoje que se vive.
O concreto e imediato da vida do afrobrasileiro o leva a ser pessoa relacional. Mais do que estar situado diante das coisas e da natureza, o realizar-se do afrobrasileiro como pessoa dá-se através do relacionar-se. Assim, não se considera prisioneiro do destino, das forças das coisas ou da natureza. É um ser que procura aliados, quer para a realização de seus prazeres, quer para enfrentar os desafios impostos por elementos ou realidades alheias a seu cotidiano. A essa procura de alianças, o afrobrasileiro chama de amizade e companheirismo. E se ele pode relacionar-se com seus pares, também o pode fazer com a transcendência. Para o afrobrasileiro, o relacionar-se com o transcendente jamais significa uma negação do humano. Daí a intimidade que aparenta ter com a divindade. E as religiosidades afrobrasileiras, que nasceram do sincretismo, são mais do que um mecanismo de adaptação de desterrados e escravizados ao meio urbano. Essas religiosidades são fruto das transformações que ocorreram no país.
Dessa maneira, tanto o ideal de liberdade como outras características do afrobrasileiro traduzem uma profunda dimensão coletiva. O que não elimina ou massacra sua pessoalidade, mas, na maioria dos casos, lhe permite reafirmá-la. E o massacre de sua identidade não acontece porque o afrobrasileiro é coletivo e comunitário, mas porque não sobrevaloriza as estruturas sociais. Ao desprezar as estruturas, ao negar qualquer redução ao papel de simples engrenagem, reafirma a amizade e a solidariedade como formadoras do coletivo. Para ele, a liberdade, a amizade e a solidariedade acontecem na comunidade. É difícil imaginar o afrobrasileiro solitário. Ao contrário, a imagem cultural e social que temos dele, e que toda a multicultura popular reflete, é a do homem e mulher cercados de amigos, conhecidos e parentes. A sua religiosidade é sempre coletiva. E sua espiritualidade tem matiz comunitário, quer falemos da umbanda ou do pentecostalismo popular.
Para o afrobrasileiro, a religião não pode ser vivida individualmente. A idéia de que a religião é questão de foro íntimo é uma abstração branca, calvinista ou tridentina. Ao contrário, na multicultura afrobrasileira todos discutem a religião do outro, opinam e querem vê-lo junto na mesma comunidade. E em relação às festas não poderia ser diferente. E festa implica comida, música e dança. Em condições normais, o afrobrasileiro não come, nem bebe sozinho. A comunidade é o espaço onde sua pessoalidade e criatividade atingem os níveis mais altos.
Razões geográficas, históricas e raciais, nos últimos três séculos, levaram ao mergulho no desconhecido e plasmaram no afrobrasileiro essa atração pela aventura e pelo risco. O afrobrasileiro ama o desafio, não como futuro planejado, mas como espaço para a criatividade. Para ele, desafio é sempre se lançar à aventura da ruptura de regras, é dizer não às convenções e sobreviver pela coragem. Quando enfrenta esses desafios, que vai da sobrevivência no trapézio da economia informal ao transformar-se em Mané Garrincha nos gramados do mundo, está de fato modelando sua identidade. Não teme mergulhar nos desafios da cultura branca e mundializada.
Aventura implica a possibilidade do fracasso. E fracasso faz parte do risco. Mas ao viver a dialética desse movimento, o afrobrasileiro constrói sua identidade, ainda que a um preço muito alto. Na verdade, é fazendo assim que ele sente-se livre e dá asas à sua criatividade, sem se preocupar com a construção do futuro. E se não fosse assim não estaríamos diante do afrobrasileiro. A dificuldade em globalizar o afrobrasileiro repousa aí: na cosmovisão de que a vida humana deve ser entendida como aventura e risco. Como algo que não pode ser planejado, organizado, dimensionado, mas vivido. Dessa maneira, viver é estar aberto ao novo, ao desafio, ao que ainda não foi vivido, nem mesmo se planejou viver. A ação antropológica do afrobrasileiro nasce da possibilidade de escolher a vida1 que sonha viver, que ele tem liberdade para escolher viver.
Vivemos as aventuras e as possibilidades da utopia. Neusa, talvez exaurida por tantas lutas, escolheu o momento de retirar-se delas. Caiu uma mulher negra que lutou o seu combate! João Beto foi massacrado pelo racismo. Símbolos destes povos desterrados, escravizados ontem e hoje, permanece o sonho negro da liberdade: o resgate da história, cidadania e plenos direitos.
mardi 24 mai 2022
Negritude e memória
samedi 21 mai 2022
Na montanha com Moisés
Êxodo 19. 16-25.
“ Na manhã do terceiro dia houve trovoadas e relâmpagos, uma nuvem escura apareceu no monte, e ouviu-se um som muito forte de trombeta. E todo o povo que estava no acampamento tremeu de medo. Moisés os levou para fora do acampamento a fim de se encontrarem com Deus, e eles ficaram parados ao pé do monte. Todo o monte Sinai soltava fumaça, pois o SENHOR havia descido sobre ele no meio do fogo. A fumaça subia como se fosse a fumaça de uma fornalha, e todo o povo tremia muito. O som da trombeta foi ficando cada vez mais forte. Moisés falou, e Deus respondeu no barulho do trovão. O SENHOR desceu no alto do monte Sinai e chamou Moisés para que fosse até lá. Moisés subiu, e o SENHOR lhe disse: —Desça e avise ao povo que não passe os limites para chegar perto a fim de me ver. Se passarem, muitos deles morrerão. Avise também os sacerdotes que eles devem se purificar a fim de poderem chegar perto de mim. Se não se purificarem, eu os matarei. Moisés disse a Deus, o SENHOR: —O povo não poderá subir o monte, pois tu nos mandaste respeitar este monte como lugar sagrado e mandaste também marcar limites em volta dele. Então o SENHOR respondeu: —Desça e depois volte com Arão. Porém os sacerdotes e o povo não devem passar os limites a fim de subir até o lugar onde estou. Se fizerem isso, eu os matarei. Aí Moisés desceu até o lugar onde o povo estava e contou o que Deus tinha dito".
Toda a comunidade viveu a mesma experiência que Moisés teve no Sinai, mas não subiu ao monte.
1. Por que subir era importante?
1.1. Subir em hebraico é “alah”, que significa ascender, ir para cima.
1.2. Também pode significar oferecer, quando se refere a um sacrifício.
1.3. E a palavra “aliyah”, que é derivada da palavra “alah”, significa retornar das terras da dispersão ou subir o monte Sião.
Dessa maneira, subir é:
1.4 Retornar das terras da dispersão
1.5 Dirigir-se ao monte santo de Deus
1.6 Oferecer um sacrifício agradável a Ele.
E isso é muito importante.
2. Deus descia até o povo para ensiná-lo. Na sua misericórdia, Deus descia até o alto do monte...
2.1 Para se relacionar com o seu povo;
2.2 Para ensinar à comunidade como se relacionar com Ele,
2.3 Para ensiná-la a viver melhor com seus semelhantes.
Mas Deus é santo...
3. Por isso, apesar de descer até o alto do monte, definia os limites do relacionamento da comunidade para com Ele.
3.1 O motivo dessa separação é a santidade de Deus.
3.2 Mas Jesus quebrou as barreiras da separação.
3.3 Cristo possibilita à comunidade entrar no interior do véu, ou seja, subir a montanha como Moisés fez. Ou, como diz o escritor da carta aos hebreus:
“Essa esperança mantém segura e firme a nossa vida, assim como a âncora mantém seguro o barco. Ela passa pela cortina do templo do céu e entra no Lugar Santíssimo celestial”. Hebreus 6.19.
Para pensar
Somos chamados a subir a montanha. Chamados a deixar a vida de confusão. Viver uma nova vida, agradável a Ele. Ouvir diretamente suas palavras. Mas atenção: Moisés subiu para descer. Assim, somos chamados a subir, mas subir para depois descer. E a gente desce para ficar no nível daqueles que estão em baixo a fim de que também eles deixem as terras da dispersão, ofereçam uma vida agradável a Deus e conheçam as boas novas da salvação.
mercredi 11 mai 2022
Fraqueza e força, os desafios
Quem é fraco numa crise é realmente fraco. Este provérbio está dividido em três momentos. Primeiro fala daquele que é rafah. Palavra hebraica pode ser traduzida por afundar, relaxar, deixar cair, estar desalentado, mostrar-se frouxo. Na verdade, quem se mostra frouxo, fica desalentado, deixa cair a bola, relaxa e afunda.
Luc 9:57-62
En ce temps-là,
en cours de route, un homme dit à Jésus :
« Je te suivrai partout où tu iras. »
Jésus lui déclara :
« Les renards ont des terriers,
les oiseaux du ciel ont des nids ;
mais le Fils de l’homme
n’a pas d’endroit où reposer la tête. »
Il dit à un autre :
« Suis-moi. »
L’homme répondit :
« Seigneur, permets-moi d’aller d’abord enterrer mon père. »
Mais Jésus répliqua :
« Laisse les morts enterrer leurs morts.
Toi, pars, et annonce le règne de Dieu. »
Un autre encore lui dit :
« Je te suivrai, Seigneur ;
mais laisse-moi d’abord faire mes adieux
aux gens de ma maison. »
Jésus lui répondit :
« Quiconque met la main à la charrue,
puis regarde en arrière,
n’est pas fait pour le royaume de Dieu. »
vendredi 6 mai 2022
Marxismo e fé
Gramsci e Tillich, mestres de fronteira
Jorge Pinheiro, PhD
“A democracia não acredita na harmonia natural, mas crê possível submeter a natureza à razão. Ela crê numa harmonia metafísica, que se instaura necessariamente do processo histórico”. Paul Tillich, “Écrits contre les nazis”.
Quando pensamos no Brasil e, por extensão, na América Latina, nos vemos obrigados a pensar a teologia social como alavanca para transformações que confrontem as estruturas de classe que mantêm o status quo deste capitalismo neo-liberal, gerador de excluídos de bens e direitos. Dessa maneira, entendemos a teologia social como geradora de ações culturais, políticas e sociais, desencadeadas pela comunidade de fé consciente e crítica, com vistas à transformação radical, a fim de produzir mudanças estruturais no regime e construir uma nova ordem social tanto brasileira, como latino-americana. A teologia social tem, dessa maneira, como parceira organizações não-eclesiásticas, partidos e organismos de classe de trabalhadores e solidários. E tais ações fazem desta teologia social práxis que leva o cristianismo para além da comunidade de fé, que a faz confrontar desigualdades, exploração e miséria. Tal teologia social terá de confrontar e enfrentar, assim, a oposição dos inimigos da justiça, paz e alegria do povo.
Por isso, este diálogo entre Antonio Gramsci (1891-1937, o mais importante pensador marxista italiano) e Paul Tillich (1886-1965, o mais importante teólogo alemão do século 20) ganha importância. E nos possibilita caminhar para a teologia social que, levando em conta as assimetrias, mas também as aproximações do pensar político dos dois pensadores, apresenta novas propostas de uma existência social e libertária.
Gramsci e Tillich têm muito em comum. Ambos foram militantes políticos e fundamentaram parte de suas concepções em Karl Marx. Por isso, consideramos importante ver que aproximações e assimetrias existem em suas elaborações teóricas. Cristianismo, democracia e vida são temas que atravessam seus estudos, e que aqui vamos confrontar. Desejamos, dessa maneira, acrescentar elementos novos numa discussão cada vez mais acirrada: ainda é possível a construção de regimes que favoreçam a plenitude do sentido da vida?
Nos últimos anos, como fruto da crise da esquerda mundial, mas também como fruto da instalação de governos nacionalistas no continente, a partir dos anos 1980, renasceu a busca pela reflexão de pensadores marxianos. Assim, em várias universidades brasileiras e latino-americanas, Antonio Gramsci, por exemplo, passou a ser estudado como nunca fora antes.
Ora, a busca pelo pensamento de Gramsci situa-se nesse contexto de garimpagem do marxismo de fronteira, dito não-ortodoxo. Aqui, nos interessa pensar Gramsci em correlação com um filósofo, nada ortodoxo, Paul Tillich. Aliás, o pensamento social de Tillich foi durante muito tempo desconhecido no Brasil, apesar de ter trabalhado quase duas décadas sobre questões políticas analisadas a partir do que ele chamou de socialismo religioso.
Gostaríamos de começar essa discussão com uma idéia exposta por Tillich, de que a busca pelo sentido pleno de vida, que ele vai chamar de socialismo, traduz um anseio que brota da consciência crítica, transformadora, num mundo autônomo e racional. Assim, tal substância profética, ou seja, a consciência crítica e transformadora, se exprime na práxis e, por isso, a relação entre profecia e racionalidade é essencial.
Como a linguagem tillichiana é teofilosófica, ao lê-lo nos vemos na obrigação de traduzi-lo. Assim, o que significariam as expressões profético e profecia? Tillich parte de uma compreensão peculiar do profetismo vétero-testamentário. Vê nele, tanto um clamor, como uma ação, um movimento em prol da justiça, da paz e da alegria, que dariam conteúdo, seriam a essência da religião de Israel e, por extensão, do cristianismo e da Reforma protestante. Por isso, movimento profético é práxis de crítica social, que na modernidade levou à racionalidade e à autonomia. Mas, para Tillich, justiça, paz e alegria, ou seja, socialismo, implica em correlação permanente e necessária entre consciência crítica e racionalidade na autonomia. Assim colocada a questão, vemos que Tillich se afasta das correntes socialistas que repousam exclusivamente no racionalismo, em especial do stalinismo, como daquelas correntes que veem a possibilidade de uma expansão crescente da autonomia, via democracia. É essa preocupação de Tillich em correlacionar razão e autonomia que possibilita esse diálogo crítico com Gramsci.
De Gramsci podemos dizer que recriou a linguagem da tradição marxiana e codificou teoricamente seus conceitos, ao falar de estado regulado, filosofia da práxis, grupo social, hegemonia, sociedade civil, estado ampliado, intelectual orgânico e moderno Príncipe. Mas, neste texto, nos interessa analisar suas idéias sobre o cristianismo, o intelectual e a democracia.
Marx partiu do fato de que o pensamento judaico/cristão torna o ser humano estranho a si mesmo e desdobra o mundo em um mundo imaginário. Por isso, considerava que o trabalho do teórico consiste em dissolver o imaginário judaico/cristão em sua base terrena. Vai dizer, então, que Feuerbach não percebe que, findo o trabalho da crítica da herança judaico/cristã, o principal ainda está por fazer. O fato de que a base terrena se separe de si mesma e se estabeleça nas nuvens, como reino independente, só pode ser explicado pela dissociação interna e pela contradição dessa base terrena consigo mesma.
O que deve, portanto, ser feito antes de qualquer coisa é compreendê-la em sua contradição e depois remover essa contradição. Assim, por exemplo, após descobrir que a família terrena é o segredo da Sagrada Família, é a família terrena que deve ser criticada teoricamente e revolucionada. Marx explica a fé cristã por meio das contradições da sociedade e de suas dissociações, que induzem o ser humano a projetar fora do mundo, em um paraíso, a realidade na qual desejaria viver. Mas como afirma Lucio Lombardo Radice, na quarta tese sobre Feuerbach, Marx afirma de modo explícito que a forma judaico/cristã reflete um conteúdo histórico. Por estar impotente, o ser humano imagina uma potência divina, por estar abandonado cria uma providência.
Gramsci verá o pensamento de Marx como herdeiro de dois movimentos culturais, a Reforma protestante e a Revolução francesa. Ou como nos diz Hugues Portelli, a filosofia da práxis pressupõe um passado cultural, o Renascimento, a Reforma, a filosofia alemã, a revolução francesa, o liberalismo laico e o historicismo. Ou seja, a filosofia da práxis é o coroamento do movimento de reforma intelectual e moral e por isso está imbricada à Reforma protestante e a Revolução francesa.
Marx pode, então, ser entendido como desenvolvimento que se dá a partir de três correntes da Reforma protestante: a luterana que legou Hegel, a calvinista que legou Ricardo e a economia clássica, e a huguenote que criou o jacobinismo. A estas fontes originais, Gramsci bebeu da tradição cultural italiana, principalmente de Maquiavel, e também de Croce que deu continuidade ao historicismo alemão.
Dessa forma, para Gramsci, a Reforma foi não somente uma reforma ao nível da economia, filosofia e política, mas também uma revolução cultural, no sentido de que procurou forjar uma nova humanidade. Para Gramsci a consciência religiosa cristã, que se traduziu em revolução cultural no século 16, teve um caráter de suma importância na construção do pensamento contemporâneo. Ou, nas suas palavras, a partir do rústico intelectual da Reforma, e está falando de Lutero, passando pela filosofia clássica alemã e pelo vasto movimento cultural nasceu o mundo moderno.
Podemos dizer que Gramsci, no que se refere ao cristianismo, faz uma ponte entre Émile Durkheim e Max Weber. Durkheim considera a religião a partir da idéia de vínculo social. A religião constituiria uma comunidade moral na os adeptos comungam um mesmo ideal. A palavra chave aí é solidariedade. E a solidariedade leva a uma memória coletiva, que organiza lembranças, ritualiza a crença. Os estudos de Durkheim sobre as sociedades têm o intuito de dar rumo a sua análise na qual a divisão do trabalho foi anteriormente sua preocupação central. Mais tarde, o diálogo com a antropologia será privilegiado e o universo da religião será pensado como consciência coletiva, abordagem que ele estende ao entendimento da nação, enquanto todo no qual os indivíduos partilham a mesma memória coletiva.
Weber trabalha em sentido diferente. O cristianismo é instituição, é igreja, que atua como empresa de salvação das almas. É necessário, então, conhecer os meandros de sua doutrina, a organização de seu clero e a disputa entre visões e interesses distintos no quadro das crenças religiosas. Daí a atenção que dá ao pensamento divergente, as rupturas no interior de uma mesma ordem ideológica, e sua política com o poder de Estado.
Assim, Durkheim busca o que une e Weber realça o que separa. Mas Gramsci está interessado nas duas dimensões, no que une e no que divide. O cristianismo, para ele, é uma concepção de mundo que elabora versões sobre a realidade, o que possibilita aos fiéis atuar segundo determinada ética, mas também os une no interior da mesma comunidade. Essa idéia atravessa as páginas dos Cadernos do cárcere, sintetizada na afirmação de que o catolicismo é o intelectual orgânico da Idade Média.
Partindo de uma leitura do contexto europeu medieval, Gramsci estudou o papel dos intelectuais católicos: seu cosmopolitismo, incentivado pelo poder de Roma, em política à fragmentação do poder feudal e sua intolerância diante do pensamento divergente que ameaça a unidade da Igreja. Mas, na qualidade de orgânico, o catolicismo funcionaria como cimento cultural entre diferentes setores de uma sociedade hierárquica. Assim, o catolicismo integra o que se encontra separado por lutas de interesses e discordâncias doutrinárias. O catolicismo, no entanto, é parte de uma superestrutura mais ampla, a ideologia. É uma cosmovisão, tem valor cognitivo, interpreta o mundo ético, orienta a ação, e constrói uma moral que baliza a solidariedade dos fiéis. As ideologias possuem potencialidades diferentes destas, por isso Gramsci faz distinção entre filosofia e cristianismo católico, e entre cristianismo católico e senso comum, mas, ainda assim, todas as ideologias podem ser pensadas a partir dessa mesma matriz teórica.
Dessa maneira, as análises de Gramsci rompem com a tradição marxiana, já que a ideologia, mas do que falsa consciência é entendida como elemento cognitivo, concepção de mundo que brota da vida social. Para ele, como concepção de mundo, o cristianismo não seria alienante, mas deve ser entendido como ideologia presente na história. Exemplo disso foi o catolicismo, que possuía valor positivo, era orgânico, e construiu vínculo social entre as classes e os grupos sociais. Mas, no correr da Idade Média perdeu essa positividade, ao perder sua função de solidariedade, e passou a atuar como força reativa diante das mudanças.
E se Gramsci se mantém marxiano no que se refere à crítica da transcendência e, por extensão, da natureza humana, a conclusão que se impõe é que não há sociedade sem ideologia. Gramsci prepara, assim, o caminho para outros teóricos do pensamento marxiano, como Althusser e seu "animal ideológico", e Lévi-Strauss e seu "animal simbólico".
Mas Tillich teve uma compreensão diferente daquela de Gramsci, que entende a vanguarda enquanto intelectualidade orgânica, mas não vê o movimento de massas em processo dinâmico que pode levar ao surgimento de uma massa orgânica. Há uma divergência entre os dois pensadores: a crítica intelectual não se limita ao intelectual orgânico, é um processo maior que gera a massa orgânica, com dupla ação: de liderança da sociedade e de transformação da situação-limite.
Na perspectiva tillichiana, a passagem da heteronomia à autonomia se deu através de ciclos que atravessaram épocas. Assim, os movimentos dinâmicos das massas estão presentes nos movimentos religiosos do jovem cristianismo, no movimento político da migração dos povos, no movimento religioso da Reforma, no movimento anabatista e no movimento solidário. Embora esses movimentos possam ser encontrados em diversas épocas, estão presentes em diferentes esferas da cultura, mas sempre como movimentos de liberdade: as massas dinâmicas são parteiras de escravos, de povos, de trabalhadores.
Por isso, segundo Tillich, não podemos ver o pensamento de Marx como algo que já se esgotou, se nos propomos a fazer a crítica consciente e transformadora, pois a justiça não é justificativa ideológica das democracias, nem idealismo progressivo ou sistema de harmonia autônoma. A busca incondicional da justiça dentro do espírito da crítica profética e com os métodos do marxismo transcende o mundo. Mas até que ponto a metodologia marxiana e uma conquista do poder político poderiam dar sentido à vida? Só se a busca incondicional da justiça levar em conta que a corrupção também está localizada nas profundezas do coração humano.
O teólogo da vida deve entender que as forças demoníacas da injustiça e da vontade de poder jamais serão plenamente erradicadas da cena histórica. Precisa compreender que a corrupção da situação humana tem raízes mais profundas do que as estruturas históricas e sociológicas. Estão encravadas nas profundezas do coração humano. Por isso, explica Tillich, como Kierkegaard, Marx fala da situação alienada na estrutura social da sociedade burguesa. Empregava a palavra alienação (entfremdung) não do ponto de vista individual, mas social. Segundo Hegel essa alienação significa a incursão do espírito absoluto na natureza, distanciando-se de si mesmo. Para Kierkegaard era a queda do homem, a transição, por meio de um salto, da inocência para o conhecimento e para a tragédia. Para Marx era a estrutura da sociedade capitalista.
Por isso, a regeneração da humanidade não é possível apenas mediante mudanças políticas, mas requer mudanças na atitude das pessoas em favor da vida. De todas as maneiras, para Tillich e para Gramsci há uma busca comum de respostas entre aquele que encarna o espírito crítico e a ação consciente do intelectual orgânico. Ou como diz Gramsci, se a política entre intelectuais e povo, dirigentes e dirigidos, governantes e governados, é dada por adesão orgânica, onde a paixão torna-se compreensão e saber, é então que a política se faz representação. E aí se produz o intercâmbio de elementos entre governados e governantes, entre dirigidos e dirigentes. E é aí onde se realiza a vida social. Cria-se então o bloco histórico.
Para Gramsci, o intelectual quando representa determinada comunidade têm função superestrutural, ou seja, cultural, mas, apesar de sua organicidade, precisa exercer autonomia em política às pressões sociais que sofre. É dessa postura que nasce a força crítica e a compreensão de que diante da realidade há alternativas diferentes daquelas expressas pelo poder.
A partir de Tillich e Gramsci podemos dizer que o princípio da crítica intelectual é expressão humana e verbal do incondicionado, e resgata a tradição do profetismo bíblico, que possuía uma concepção unitária do fato e procurava a síntese entre política e ética. O profetismo era ao mesmo tempo revolucionário, mesmo quando voltado para o passado, e conservador, mesmo quando impulsionado pela paixão do porvir. Nada fazia sem invocar a tradição, no entanto, sua mensagem eram os novos tempos. Os profetas sabiam servir-se do passado para as necessidades do presente. Todos pareciam ter algo em comum: uma atitude realista. A pregação do futuro não constituía o essencial de seus clamores; era antes, o fruto e o resultado final de um conhecimento aprofundado no mundo adjacente, da atualidade e do passado. Ora, essa função profética está presente na compreensão crítica de Gramsci e de Tillich do intelectual orgânico.
Mas, não podemos esquecer que para Tillich há limites para a ação do intelectual, pois a razão não é global. Ao contrário, cada criação do espírito é necessariamente afetada pelos limites da situação que a viu nascer. O espírito está sempre ligado a uma classe. No espírito está implícita uma situação particular de luta, de dominação ou de opressão, que conforma a própria consciência. Entendido assim, o espírito não é universalmente o mesmo em cada pessoa, exprime um ser social particular. A passagem à cultura não se faz simplesmente pela transmissão de bens culturais universais, mas pela formação inculcada por uma sociedade e uma situação de lutas determinadas, em meio a obras que exprimem ou exprimiram no passado esta possibilidade humana particular.
Numa leitura cristã protestante, Tillich considerou a busca pelo sentido pleno de vida produto do desenvolvimento econômico e espiritual, que preparou e se impõe com a Renascença, a Reforma e o surgimento do capitalismo. Visão compartida por Gramsci. Assim, a busca pelo sentido pleno de vida surge em oposição à cultura autoritária e unitária da Idade Média, sedimenta suas bases nas criações culturais dos últimos séculos, e só pode ser compreendida a partir desta evolução: sua permanência está ligada a esse desenvolvimento. Mas não devemos esquecer, porém, que foi do interior do cristianismo que brotaram as idéias modernas de justiça.
Para a construção de seu pensamento, Gramsci foge das construções ontológicas, e analisa a sociedade como conjunto de forças, imersas na história e marcada por interesses diversos. Podemos ver isso quando em carta à sua cunhada Tatiana Schucht. de dezembro de 1931, expõe seu conceito de Estado ampliado:
“Eu amplio muito a noção de intelectual e não me limito à noção corrente que se refere aos grandes intelectuais. Esse estudo leva também a certas determinações do conceito de Estado, que habitualmente é entendido como sociedade política (ou ditadura, ou aparelho coercitivo para adequar a massa popular a um tipo de produção e a economia a um dado momento); e não como equilíbrio entre a sociedade política e sociedade civil (ou hegemonia de um grupo social sobre a inteira sociedade nacional, exercidas através de organizações ditas privadas, como a igreja, os sindicatos, as escolas, etc.)”.
Ora, em geopolítica, hegemonia significa a supremacia de uma nação sobre outras, seja por sua presença militar, de coerção, seja pela presença política e cultural. Mas na política, o conceito formulado por Gramsci descreve a dominação ideológica de uma classe sobre outra, no caso da burguesia sobre os trabalhadores.
Em Gramsci não é possível o domínio bruto de uma classe sobre as demais, a não ser nas ditaduras, ou seja, no Estado-coerção. Mas uma classe dominante para ser dirigente deve articular um bloco de alianças e obter o consenso passivo das classes e camadas dirigidas. Nessa busca de alianças, necessárias, a classe dominante sacrifica parte dos seus interesses materiais imediatos, vai além do horizonte corporativo, com a finalidade de construir uma hegemonia ética e política.
Ao estudar os mecanismos de construção desta hegemonia, Gramsci chega a um conceito fundamental na sua teoria política, a saber, o conceito de Estado ampliado. O Estado moderno na Europa analisada por Gramsci não seria, para ele, apenas instrumento de força a serviço da classe dominante, mas força revestida de consenso, ou seja, combinaria coerção e hegemonia. O Estado ampliado pode, então, ser entendido como sociedade política mais sociedade civil. E, nas sociedades de tipo ocidental, a hegemonia, que se decide nas inúmeras instâncias e mediações da sociedade civil, não pode ser ignorada pelos grupos sociais subalternos que aspiram a modificar sua condição e a dirigir o conjunto da sociedade.
O sentido de progresso civilizatório que a teoria gramsciana implica, reside no fato de que todo o movimento deve acontecer no sentido de uma absorção do Estado político pela sociedade civil, com o predomínio crescente de elementos de autogoverno e autoconsciência. A partir dessa teorização, Gramsci formula nos Cadernos do cárcere uma crítica ao stalinismo, a partir dos traços de hipertrofia do Estado soviético, que chama de estatolatria, considerando que tal estado de ditadura sem hegemonia não subsistiria por muito tempo.
Assim o Estado se compõe de dois segmentos distintos, porém atuando com o mesmo objetivo, que é o de manter e reproduzir a dominação da classe hegemônica: a sociedade política, estado-coerção, a qual é formada pelos mecanismos que garantam o monopólio da força pela classe dominante, burocracia executiva e policial-militar; e a sociedade civil, formada pelo conjunto das organizações responsáveis pela elaboração e difusão das ideologias, composta pelo sistema escolar, Igreja, sindicatos, partidos políticos, organizações profissionais, organizações culturais: meios de comunicação e de massa.
E aqui merecem destaque os meios de comunicação, pois para sua época estavam ainda em sua fase embrionária, e a televisão nem sequer fazia parte dos projetos futuros. Isto só seria possível no início da década de 1950. É exatamente através dos meios de comunicação da alta modernidade, que se dá a canalização da direção intelectual e moral, difundindo as ideologias da classe hegemônica vigente.
Assim, o Estado é a sociedade política gramsciana. E esta sociedade civil representa a nova determinação apresentada por Gramsci. Esta sociedade civil assume crescente dimensão no começo do século vinte, com os partidos de massa, sindicatos de trabalhadores e outras formas de organizações sociais. É após seu desenvolvimento histórico que a sociedade civil pôde ser capturada teoricamente. Antes disso, o estado-coerção era muito superior em sua base material para se permitir tal percepção.
O que chama a atenção no modelo do Estado ampliado, desde o Leviatã de Hobbes até Marx, é o sentido unitário do Estado. Ou seja, até Marx, o Estado era entendido como algo diferente da sociedade civil, que seria extinto quando se extinguisse a divisão de classes dentro da sociedade, uma vez que era esta divisão que produzia a necessidade do Estado.
Em Gramsci, porém, quando agrega a sociedade civil ao Estado-coerção, nada fica de fora do Estado. Este todo, entretanto, não é homogêneo, é rico em contradições e é mantido pelo tecido hegemônico que a cada momento histórico é recriado em processo permanente de renovação.
Assim, a luta pela construção de uma sociedade plena de sentido de vida, torna-se mais complexa e difícil do que imaginava Marx. Não basta ser classe dominante, tem que ser também classe hegemônica, dirigente. Desta forma, o campo da luta entre as classes se amplia. E a democracia necessária ao sentido pleno de vida será construída pelo bloco histórico hegemônico. Neste momento, a sociedade civil terá atingido uma base material superior a base material do Estado-coerção, atingindo o que Gramsci chama de sociedade regulada.
Com a gradativa absorção da sociedade política pela sociedade civil, que atua através dos seus aparelhos de hegemonia, o estado-coerção será substituído pelo estado-ético. E esta figura remanescente do estado-coerção, torna mais factível o modelo social voltado para a democracia de bens e direitos e menos utópico em política ao que planejara Marx.
Nesta concepção de Estado, as democracias ocidentais possibilitariam o sentido pleno de vida. Mas fica uma questão: se a supremacia da sociedade civil se dará pelo consenso contra a coerção, onde fica o conceito de luta de classes, momento celular do pensamento marxiano?
Na verdade, para Gramsci a extinção da coerção do estado se dará pela absorção deste pelo estado-ético, ou seja, pela sociedade civil. Esta sociedade civil está inserida no estado ampliado e, por isso, não se pode falar de extinção do estado, mas de uma reorganização do estado onde um de seus componentes, está atrofiado por disfunção ou necessidade, já que os conflitos passaram a ser administrados pela base material do consenso.
Há, porém, dois níveis superestruturais nas sociedades democráticas: o estado ampliado, que é a sociedade civil, ou o conjunto dos aparelhos privados de hegemonia; e a sociedade política, ou o estado no sentido restrito do termo, composto pelos organismos de coerção do aparelho burocrático-militar de dominação política.
Nesse espaço a sociedade civil como espaço do domínio da ideologia, portador material da hegemonia, encontra a possibilidade de legitimidade, de consenso, através dos aparelhos privados de hegemonia que propagam valores ideológicos.
Assim, o conceito de estado ampliado procura apreender a configuração de forças sociais e políticas resultantes dos estados ocidentais do século vinte, idéia que confronta a proposta de Trotsky de revolução permanente a partir da concepção de hegemonia civil. Tal proposta-conceito parte da idéia de guerra de posição, que exige uma frente de combate no campo cultural, unida às frentes econômicas e políticas para a conquista da hegemonia pelas classes subalternas. A fórmula hegemonia civil propõe a participação das maiorias sociais nos aparelhos privados de hegemonia (sindicatos, partidos, escolas, igrejas, imprensa), que constituem as trincheiras de luta para obter posições de direção no governo da sociedade.
A proposta de extinção do estado, no entanto, nunca é plena, pois sempre restará o governo para cuidar da sociedade civil. É claro que se entendermos assim podemos dizer que na distinção de função entre as pessoas que governam e as que vivem a vida da sociedade de consenso está presente ainda a dominação entre as classes e, portanto, os restos da coerção do Estado se farão presentes.
Em Gramsci está presente uma utopia que atravessou todo pensamento solidário: sonhar com o bom selvagem de Rousseau, em oposição ao homem é o lobo do homem de Hobbes. Esse Estado ético é uma idealização do ser humano, que poderia viabilizar a construção de uma sociedade ética, igualitária e justa.
Mas, mesmo questionando Gramsci, podemos utilizar seus conceitos de estado ampliado e de hegemonia civil como estruturas de pensamento válidas para a análise social, não como proposta da utopia solidário, mas como ferramenta para delimitar e compreender o desenvolvimento das sociedades ocidentais contemporâneas, principalmente aquelas que se propõem democráticas.
A busca pelo sentido pleno de vida e os movimentos de liberdade sempre estiveram ligados, mas isso não significa que não existem tensões entre o momento universal e o momento particular. O momento universal pode formular exigências que ameaçam absorver o momento particular. A busca pelo sentido pleno de vida se tornará, então, uma idéia geral, desprovida de raízes sociais e perderá sua força histórica. Este é o perigo de uma luta pela justiça restrita à intelectualidade. Esse perigo provém da situação burguesa e de seu pensamento político particular, que procura elaborar uma ordem social fundada sobre a justiça, mas deixando de lado a situação proletária real. Seja qual for o valor que se atribua a esta tentativa, ela não será de fato justiça social. A luta contra o intelectualismo utópico se apoia sobre a ligação indissolúvel que Marx viu entre sentido pleno de vida e proletariado, que não pode ser quebrada por essa harmonia metafísica proposta pela globalidade burguesa.
Para Paul Tillich existe na esfera política uma política entre razão e autonomia. Toda estrutura política pressupõe poder e um grupo que o assume. Mas um grupo de poder é também um conglomerado de interesses opostos a outras unidades de interesses e sempre necessita uma correção. A democracia está justificada e é necessária na medida em que é um sistema que incorpora correções contra o uso errôneo da razão política. Assim, a teologia e a política não são realidades estanques, porque as raízes do pensamento político não são apenas pensamentos. Teologia e política, no mundo ocidental, estão imbricados, mas não existem sem a necessidade de correção, ou seja, da democracia.
Tal compreensão da realidade ocidental no pós-guerra levou Tillich a se debruçar sobre projetos que tiveram início ainda na sua fase alemã, como a sua reflexão sobre a cultura. Mas a maioria de seus companheiros, que esperavam a realização da vida social plena de sentido, diante do visível abandono dos direitos civis e humanos, assim como a descoberta da existência de Gulags nos países comunistas, se desiludiu. Ou como publicou mais tarde – veja, Paul Tillich, Teologia protestante nos séculos dezenove e vinte:
“O movimento marxista não foi capaz de se criticar por causa da estrutura em que caiu, transformando-se no que chamamos agora de stalinismo. Dessa maneira, todas as coisas em favor das quais os grupos originais tanto lutaram acabaram sendo reprimidas e esquecidas. Em nosso século vinte temos tido a ocasião de melhor perceber a trágica realidade da alienação humana no campo social”.
Tal política comunista fez com que Tillich, que não se considerava um utópico, constatasse que o amanhecer de uma nova era criativa se distanciava da humanidade. Assim, alertou para o perigo, a partir da experiência stalinista de que, em nome da busca pelo sentido pleno de vida, sociedades mergulhassem no totalitarismo, já que não aceitavam a pluralidade de partidos políticos e as liberdades civis, que ele e os socialistas-religiosos defendiam. Mas é interessante ver que descartava qualquer possibilidade de hegemonia permanente, quer por parte do bloco soviético, quer por parte do bloco ocidental, ao dizer que novos centros de poder podem aparecer levando à separação ou à transformação radical do todo. Isto porque o poder inicia sempre uma nova luta, e o período de determinado império mundial será tão limitado quanto foi o período de paz”.
E afirmou que um mundo sem as dinâmicas do poder, sem a tragédia da vida e da história não é o Reino, nem a finalidade do ser humano, pois o fim está limitado à eternidade e nenhuma imaginação pode atingir o eterno. Mas as antecipações fragmentárias são possíveis. Assim, falar de teologia da existência significa entender que a busca pela incondicionalidade da justiça e, por extensão, da paz e alegria, traduz a defesa do sentido último do significado profundo das raízes do humano e que, no mundo contemporâneo, diante do trovejar dos canhões e da ameaça à existência, deve levantar-se como voz profética de um mundo novo.