jeudi 28 août 2014

Os trotskistas e o PT

Notas políticas de Antenor da Conceição
  
Quem sabe... Talvez essas notas sirvam para os camaradas, futuramente. Ou mesmo para mim, quando a memória fraquejar. Quem sabe... Maquiavel escreveu para o príncipe, eu escrevo para os camaradas.

Em primeiro lugar, proponho que se faça a discussão sobre a relação entre a construção do partido revolucionário e o Partido dos Trabalhadores. E proponho um critério metodológico.



As duas bases fundamentais de qualquer pensamento lógico dialético são dadas pela relação correta ou não que se faça entre estrutura e gênese. Ao contrário do estruturalismo, que se fortaleceu violentamente após o Maio de 1968, dizemos que a essência de um objeto ou de um fenômeno está na estrutura, mas predomina na gênese, que não dá somente o que é, mas também o que vai ser. Definir a essência de um fenômeno apenas pela estrutura é um erro esquerdista, e definir a essência pela dinâmica é cair no oportunismo ou no direitismo. Mas é da correlação desses dois conceitos lógicos que podemos tirar conclusões corretas.

De uma forma geral, mas cuidadosa, já que qualquer generalização seria um erro, dizemos que a dinâmica nos dá a estratégia e a estrutura nos dá as táticas, tanto as gerais, como as imediatas, para chegarmos à estratégia.


Explicamos isso, que parece complicado, com aquela piada do “tijolo e do Mandel”. Quando Mandel diz “lá vem o tijolo” a sua preocupação se prende à estrutura, ao tijolo, e não dá resposta ao movimento. Ou seja, não responde ao “lá vem”. E exatamente por não responder à dinâmica sofre uma fratura exposta.

Ora, nós partimos da estrutura, mas para chegar à dinâmica. Nós partimos do que temos, da estrutura, que é uma Convergência Socialista frágil, com divergências internas, mas que existe tanto ao nível da sociedade, como da luta de classes. Mas, ao falarmos da sociedade em que vivemos, da luta de classes, já estamos falando da dinâmica. Ou seja, estamos falando do “lá vem”. Lá vem a abertura política, lá vem a democracia burguesa, lá vem a reorganização partidária, lá vem burgueses, pelegos, estalinistas querendo acaudilhar o movimento de massas, operário e sindical. E?


Se não entendemos o “lá vem” não temos respostas para o “como baixar a cabeça para que esse tijolo chamado democracia não esmague nossos miolos”. Se entendermos o “lá vem” vamos nos preocupar com a estratégia, ou seja, com o porquê construir um partido bolchevique. Mas essa estratégia não terá base real se esquecermos a dinâmica, a vida real e diária da luta de classes, incluídos aí os dois fenômenos mais importantes desses dois últimos anos, o movimento sindical independente e sua expressão político-partidária, o Partido dos Trabalhadores.

Para chegarmos à meta estratégica é necessário voltar ao ponto de partida. É necessário voltar ao partido frouxo, com uma direção frágil e sem política e é exatamente a partir dessa estrutura, que é o que temos, que veremos como e quais as táticas que implementaremos para chegar àquela estratégia determinada pela dinâmica.


O trotskismo ao nível da lógica concreta fez um aporte teórico importante, que é o conceito de programa de transição. Ou seja, entre dois extremos, o real imediato e o real possível, o determinante serão aquelas táticas que tomando elementos da realidade, às vezes aparentemente secundários, se transformam em imprescindíveis. Ou seja, entre o real imediato e o real possível é necessário construir uma ponte, que é um programa, que é uma teoria, e que se tornará um real imediato superior através da própria práxis. Parece difícil, mas não é.

Vejamos. Hoje temos um partido frágil, dividido. Assim como está, este partido serve para pouco e nenhuma época. Também não serve para voltar ao passado: ser um partido que anteriormente respondia a outra dinâmica, quando se vivia uma época sem democracia, de clandestinidade e o nosso trabalho era fazer propaganda política.


Mas o real imediato é esse desgraçado partido frágil e dividido. O real possível é o partido bolchevique de massas, que precisamos construir se, de fato, quisermos dar uma resposta ao movimento ascendente das massas, às reivindicações e insatisfações operárias e populares e, mais do que isso, se quisermos criar as condições para um dia nos colocarmos como alternativa de poder. Para isso precisamos de uma teoria, de um programa que defina as táticas gerais necessárias para chegarmos ao partido revolucionário. Eis a questão, qual será a ponte, ou quais serão as medidas que tomaremos? Mas antes de falar nas medidas, temos que estar de olho no futuro, com o pé no presente.

E agora vamos falar de táticas gerais, ou seja, da ponte, ou de como baixar a cabeça diante do tijolo que vem.


O surgimento do movimento sindical independente a nível nacional, assim como sua expressão superestrutural e político-partidária, o Partido dos Trabalhadores, é um fenômeno que deve nortear nossa tática geral, já que é o fenômeno mais importante que a realidade nos deu nos dois últimos anos. O movimento sindical independente e o Partido dos Trabalhadores é o caminho em direção às massas mobilizadas, e à possibilidade de construir direções dentro do movimento, reconhecidas pelo próprio movimento. Não é a reprodução do que fizemos em 1978 com a Convergência Socialista, porque agora estamos trabalhando com algo maior, que tem sua própria dinâmica. Poderemos quando muito ser co-autores do crime.

O movimento independente dos trabalhadores é a tática mais geral. O Partido dos Trabalhadores é uma tática dentro dessa tática geral. Dependendo da situação do movimento de massas, da reorganização partidária e da força e posicionamento de outros setores da esquerda, o Partido dos Trabalhadores poderá transformar-se em síntese desse fenômeno que é o movimento independente dos trabalhadores.




Mas é necessário entender uma coisa: os sindicalistas e trabalhadores estão dando um salto na história do Brasil, logicamente cheio de contradições. O que para nós, ao nível da teoria pode ser simples, para eles é uma construção que custou anos de experiências. Nesse sentido, nossa tática imediata em relação ao movimento dos trabalhadores e ao Partido dos Trabalhadores é somar forças. Devemos levar em conta que os trabalhadores estão chegando ao PT a partir do trabalho sindical. Dessa maneira, é uma arte saber combinar as coisas. Saber ser paciente em relação ao trabalho específico, sem fazer uma confusão por causa de erros táticos em relação à política sindical. O fundamental é o trabalho sobre e junto com o movimento e nosso fortalecimento nele e no Partido dos Trabalhadores. Exatamente por isso, às vezes, teremos que ser pacientes em relação ao específico, para poder conversar sobre o que é fundamental. Mas, dialeticamente, quanto melhor sindicalistas nós formos, mais confiança teremos entre os companheiros.

Mas é necessário, também, levar em conta as características particulares, subjetivas, psicológicas, desse líder sindical com quem estamos trabalhando. Se ele é personalista, o que é muito comum em agitadores e dirigentes do movimento de massas, devemos evitar parecer que estamos competindo com ele. Devemos sempre evitar as discussões mais duras e violentas em público.  


Um texto antigo de Antenor da Conceição – agosto de 1980.

   






Reflexões sobre a construção histórica do Partido dos Trabalhadores

Teologia e política (3)
Reflexões sobre a construção histórica do Partido dos Trabalhadores
Jorge Pinheiro

Terceira parte
Algumas questões teóricas sobre o movimento de massas

A palavra massa, para Paul Tillich [Masse et Esprit, Études de philosophie de la masse [1], transformou-se em slogan político e social. Expressão esta que conota superioridade e idolatria. Por isso, quando se deseja discutir seriamente o conceito massa é necessário definir seus contornos e esfriar um pouco a fervura do slogan [2].

Segundo Tillich, há dois conceitos de massa, um formal e outro material, o primeiro de ordem psicológica e sociológica e o segundo de ordem histórica e social [3]. Em termos formais, a massa consiste numa associação de pessoas que, na associação, deixam de ser indivíduos. Sua individualidade se perde e ele se submete à coletividade. A pessoa se torna um átomo, desprovido de suas qualidades, seu movimento próprio, e se transforma em pura quantidade subordinada ao movimento da massa. Através da psicologia das massas pode-se ver como a alma perde sua forma individualizada uma vez que toma a forma da massa e como o indivíduo entra em contradição com ele próprio, já que é um átomo da massa ou um ser bem singularizado. [4]

Tillich considera que no movimento psíquico da massa alguns elementos se separam e se isolam, adquirindo eficiências por eles próprios. Isto porque um indivíduo é o resultado de uma longa evolução interior e sua alma está ligada a milhares de liames à vida da alma em sua totalidade, que assim torna-se autônoma [5]. Na massa, as forças de inibição, de reflexão e de matizações caducam. Tudo se transforma. Assim, podemos resumir essas transformações em duas leis. A lei da imediaticidade, segundo a qual a massa não reflete, mas é. Ela tem uma existência objetiva, não subjetiva como afirmou Hegel, ela é em si, não para si [6].

A massa não sabe porque ela faz aquilo que faz. Quando acede a ela própria é sempre através de certos indivíduos, um orador ou chefe. A massa é imediata, vive inteiramente o presente, sem ligações com o passado ou o futuro, sem lembranças ou reflexões. Suas motivações são irracionais. Mas para Tillich, a lei da imediaticidade explica o desabrochar dos instintos biológicos imediatos, que estavam inibidos. Também mostra a existência de um princípio espiritual imediato que se faz presente, que pode ser traduzido como o abandono ao instinto do momento em direção à disponibilidade da revelação espiritual do presente, revelação de uma espiritualidade subjetiva impura [7].

Ou seja, a irracionalidade das motivações pode dirigir ao irracional de baixo, à demência, ou ao irracional de cima, à novidade criadora. A outra lei da psicologia das massas, segundo Tillich, é a lei da amplificação. Se a vida espiritual do indivíduo perde suas inibições, se tal fato se repete em cada indivíduo presente, como num alternador, o vivido por um, suscita em outro experiência idêntica, porque a massa vivencia ela própria o ser massa.  Essa lei nos leva a dois aspectos da vida da alma, o aspecto emocional e o aspecto intelectual.

Em todo movimento da massa podemos observar a força do entusiasmo, a amplificação das paixões, da coragem, que podem levar ao seu sacrifício e destruição. Do lado intelectual, a lei da amplificação age de forma mais discreta, porque o processo de reflexão não convém à massa por causa de sua complexidade [8]. De certo ponto de vista, explica Tillich, o indivíduo está mais alerta que a massa, mas a massa pode se elevar bem acima das consciências subjetivas, com suas intuições mais simples, mas também maiores e também com sua clarividência disso, que prepara o espírito objetivo no momento presente [9]. A amplificação pode levar ao monumental e ao heroísmo, mas também ao demoníaco e à destruição. E as intuições da massa podem se conformar ao espírito ou lhe ser refratário[10]

As leis da psicologia das massas são leis naturais, afirma Tillich. Elas são sempre válidas e necessárias onde uma pluralidade se encontra reunida. Elas têm valor para todos os estamentos sociais, para um grupo de marginais, assim como para uma assembléia de nobres. Com ironia superior, elas regem uma reunião de convencidos individualistas, assim como explicam o sentimento de superioridade existente na palavra massa, quando usado como slogan [11]. Segundo Paul Tillich, no conceito material de massa, a essência de um grupo de homens determinado é ser essencialmente formado conforme a psicologia das massas [12].

Por isso, no sentido histórico do termo, a massa, quer sejam classes ou ordens, raças ou círculos, partilha do destino de ser excluído de toda formação espiritual individual. Vemos, então, que para Tillich a imediaticidade da massa faz com que desabroche nela instintos biológicos que estavam inibidos no indivíduo, o que traz à tona um princípio espiritual imediato: a disponibilidade à revelação espiritual do momento presente.

Essa imediaticidade é o que leva a massa ao irracional de baixo, à demência, ou ao irracional de cima, à novidade criadora. Ao lado da imediaticidade, os aspectos emocional e intelectual são amplificados. As forças do entusiasmo e da coragem são amplificadas de tal modo que podem levá-la ao sacrifício e destruição. Assim, a massa se eleva acima das consciências individuais com intuições simples, mas com clarividência disso. Este processo prepara o espírito objetivo  no momento presente. Quando objetivamente a massa vive esse processo de espiritualização, nela,  religião e cultura se misturam. A esse primeiro momento de evolução da massa Tillich chama de massa mística.

No contexto geral de uma análise do socialismo, não se pode deixar de levar em conta que a evolução histórica dá nascimento a diferentes tipos de massa, conforme o modelo de desenvolvimento das relações entre religião e cultura. [13] O primeiro estado consiste em uma unidade onde os dois ainda não se distinguem. Uma segunda etapa é marcada pela autonomia da cultura: assim, ela se diferencia mais e mais da religião, a ponto de gerar a secularidade moderna. Mas esta ruptura e separação são catastróficas tanto para a cultura como para a religião. E serão então superadas pela etapa final da teonomia, caracterizada pela presença de conteúdo religioso em todas as formas autônomas da cultura [14].

Podemos facilmente reconhecer os elementos desse esquema na descrição que Tillich faz dos diferentes tipos de massa. A massa mística corresponde à religião de origem: é a fusão dos indivíduos numa única comunidade que engloba tudo. Vem em seguida a etapa da autonomia, onde os indivíduos se diferenciam cada vez mais da comunidade de origem, até tornarem-se completamente independentes e separados. Mas ainda é massa sem forma e cultura, que não se colocou em movimento e caminhou para um estado de individualização. Essa é o estado de massa técnica ou mecânica, característico da moderna sociedade industrializada [15].

A partir daí surge a perspectiva de uma etapa final onde a massa e a individualidade pessoal formarão uma nova união, uma síntese nova, chamada massa orgânica, que corresponderá ao ideal da teonomia. Logicamente, nem sempre se caminhará em direção a este ideal: mas o tempo histórico que orienta nessa direção é o da massa dinâmica [16]. Dessa maneira, para Tillich, a massa dinâmica é sempre revolucionária, não unicamente no sentido político do termo – inclusive este é o sentido menos freqüente --, mas sempre em um sentido de fé espiritual e social. É necessário que ela seja revolucionária, porque o sentido de seu movimento é precisamente ir além do estado de massa e todas as formas que são responsáveis por este regulamento [17].

Assim, para Tillich o movimento da massa dinâmica parte da massa mecânica e é essencialmente um movimento de libertação: o movimento da massa dinâmica parte da massa mecânica, já existente ou em perigo de aparecer, e visa a supressão da massa, visa à massa orgânica, não importando que esse começo seja ou não atendido[18]

Vemos aqui que Tillich tem uma compreensão diferente daquela de Gramsci, que entende a vanguarda enquanto intelectualidade orgânica, mas não vê a massa em processo dinâmico que pode levar ao surgimento de uma massa orgânica. Sem desejar fazer um confronto entre os dois pensadores, tocamos apenas no ponto que metodologicamente nos interessa: a vanguarda não se limita ao militante ou intelectual, é um processo maior que tem na massa orgânica uma dupla ação, de liderança da sociedade e de transformação da situação-limite. 

Uma tal visão abre perspectivas interessantes na análise e compreensão de diferentes situações históricas, em especial do momento vivido pelo Brasil no final dos anos 1970. A questão da transformação da sociedade, a luta pela democratização e a formação do Partido dos Trabalhadores são compreendidos melhor através do caminho metodológico construído por Paul Tillich em seus escritos socialistas. E como ele afirmou, todas as questões convergem para uma mesma resposta: a humanidade deve ter origem nas profundezas de um novo conteúdo, onde será superada a oposição entre massa e personalidade. Onde um novo conteúdo será produto da graça e do destino. [19]



[1] Publicado em Berlim e Frankfurt por Edições da Comunidade Operária, em 1922, e mais tarde em Christianisme et Socialisme, Écrits socialistes allemands (1919-1931), Les Éditions du Cerf, Éditions Labor et Fides, Les Presses de L’Université Laval, 1992, pp. 48-112.
[2] Idem, op.cit., p. 75.
[3] Idem, op.cit., p. 75.
[4] Idem, op.cit., p. 76.
[5] Idem, op.cit., p. 76.
[6] Idem, op.cit., p. 76.
[7] Idem, op.cit., p. 76.
[8] Idem, op.cit., p. 77.
[9] Idem, op.cit., p. 77.
[10] Idem, op.cit., p. 77.
[11] Idem, op.cit., p. 77.
[12] Idem, op.cit., p. 77.
[13] Jean Richard, Introduction au Tillich Socialiste, La masse prolétarienne, in Paul Tillich, Christianisme et Socialisme, Écrits socialistes allemands (1919-1931), Les Éditions du Cerf, Éditions Labor et Fides, Les Presses de L’Université Laval, 1992, p. XLI.
[14] Idem, op.cit., p.XLI.
[15] Idem, op.cit., pp. XLI-XLII.
[16] Idem, op.cit., p. XLII.
[17] Idem, op.cit., p. XLV.
[18] Paul Tillich, Masse et Esprit in Christianisme et Socialisme, Écrits socialistes allemands (1919-1931), Les Éditions du Cerf, Éditions Labor et Fides, Les Presses de L’Université Laval, 1992, p. 81.
[19] Idem, op. cit., p.72.

mercredi 27 août 2014

Religião e existencialismo cristão

O punhal de Abrãao e Sören Kierkegaard

Jorge Pinheiro



”Quando chegaram ao local que Deus havia indicado, Abraão fez um altar e arrumou a lenha em cima dele. Depois amarrou Isaque e o colocou no altar, em cima da lenha. Em seguida pegou o punhal para matá-lo". Gênesis 22.9-10.

Eis um dos textos mais desnorteadores do Antigo Testamento, Abraão, em obediência a Deus, se prepara para sacrificar seu filho. Neste artigo vamos fazer a leitura deste texto a partir de um ensaio teológico, "Temor e tremor", escrito por Sören Kierkegaard, em 1843. 

Sören Kierkegaard, dinamarquês (1813-1855), é fundador da teologia da existência. Ele recusou o ideal de um saber intelectual e universal, defendido por Hegel, e mostrou o caráter voluntário e singular da vida cristã, que se consubstancia no ato de fé.

Kierkegaard foi conhecedor dos clássicos. Amou a música e a literatura, a filosofia clássica e moderna. Fruto dessa paixão construiu uma teologia da existência que teve o objetivo de confrontar idéias e experiências à luz do cristianismo.

Sua teologia baseou-se em conhecimento e experiências sentimentais. A partir de problemas pessoais procurou explicação para a existência. Não se contentou em analisar o conteúdo da consciência e daí construir uma teologia da existência. Relacionou conhecimento e experiências e estabeleceu entre elas uma dialética. É através da dialética que percebe as experiências da existência: estética, ética e experiência da fé. [1]


[1] Kierkegaard. Filosofia Contemporânea, Curso de Teologia, UMESP, 2o. Semestre de 2000. Site: http://existencialismo.sites.uol.com.br/index.htm

Fonte: Jorge Pinheiro & Naira Pinheiro, Ciências da Religião para hoje, São Paulo, Fonte Editorial, 2014. Trecho do capítulo 10 do livro.

lundi 25 août 2014

A política no reinar de Cristo

Jorge Pinheiro

Neste tempo de campanha e eleições, o país corre o risco de ser envolvido numa maré emocional, que leva aos extremos e ao ódio. Mas, política não deve ser feita assim. A administração, direção e organização de comunidades não se faz com as emoções à flor da pele, não é pensando em vendeta, não é odiando o adversário do momento, transformado em inimigo que deve ser varrido da face da terra, que se deve fazer política, que se pode falar em atividade de pessoas cidadãs. Essa leitura de ódio não constrói um país, mas divide e impossibilita o abraço solidário de um povo.

Quando a política é feita desta forma: com violência de ações e palavras, com vontade de destruir e matar, o irmão se distância do irmão e perdemos o sentido de nação e povo. Mas nós que temos a mente de Cristo devemos chamar a um jeito outro de fazer política, entendendo que o reino de César não deve estar acima do reinar de Cristo.

E esta política que constrói, que não mata, que não odeia, que possibilita ações diretas ou indiretas de governo, nasce fácil nos corações e dirige nosso fazer e nossas mentes quando o reinar de Cristo está presente nas vidas.

Dentro da unidade universal do reinar de Cristo encontra-se o princípio protestante enquanto evento fundante do cristianismo. É o princípio protestante que retira da imagem humana de Jesus tudo que nela poderia nela ser materializado como idolatria, por sua facticidade histórica. É por meio do símbolo da cruz que desaparecem as particularidades e o finito do evento Jesus, dando lugar ao significado presente do Cristo. 

O paradoxo do aparecimento do Cristo na existência sem a deformação da existência é uma interpretação radical do símbolo da cruz que salva nossa adoração do homem Jesus do significado da idolatria de se permanecer na adoração de um objeto histórico e por isso limitado, finito, enclausurado num espaço e tempo passados. O princípio protestante, lido sob tal perspectiva, apresenta a cruz como presente e fim, como revelação e eschaton que remetem ao kairós.

Mas, o protestantismo não abandona a unidade universal da substância, que mantém e possibilita o resgate do sentido do Eterno nas profundezas do humano. Na aridez do “deo dixit”, da palavra que se resume na ética do texto, as profundezas da interioridade humana podem ser esquecidas e perder seu vigor teológico. Por isso, a relevância do kerigma cristão deve andar em aliança com o reconhecimento da presença daquele que é Eterno, mas se expressa na cultura e nas dobraduras da secularidade. É a partir dessa compreensão que devemos entender o fazer política no reinar de César.

O conceito de política solidária pode então ser visto como definição de um processo de essencialização, já que o significado da vida, existencial e pessoal passa a consistir na expansão, nas culturas e vidas, da presença essencial do Eterno. A política solidária é latente antes do encontro com a presença central e fundante do Cristo, mas torna-se manifesta depois desse encontro. E é esse processo de essencialização da cultura e da vida, onde Cristo é centro e fundamento do fazer e pensar a política, que possibilita a política como fruto do ágape solidário que aponta para o kairós de Cristo. Fazer política, a partir desse processo de essencialização da cultura e da vida, é a via para a construção de uma sociedade solidária – plena de alegria, justiça e paz. 




samedi 23 août 2014

Uma palavra aos protestantes

Jorge Pinheiro


O protestantismo e sua ética solidária abrem caminho para uma compreensão da história e dos movimentos políticos e ideológicos do século passado na América Latina. Falar de ética do protestantismo remete ao clamor contra a idolatria social e traduz um posicionamento crítico, que propõe julgamento e transformação da realidade. Tal movimento contra a barbárie histórica é tarefa que inclui as comunidades de fé, que em sua ação social devem elaborar uma mensagem de esperança para o mundo dos excluídos. Nesse contexto, o século vinte na América Latina abriu os caminhos da liberdade, mas fez-se inseguro dentro de sua própria autonomia, pois se por um lado as comunidades de fé, confissões e denominações protestantes de conjunto tentaram romper a insegurança da sociedade ocidental o fizeram favorecendo a submissão à hierarquia e à tradição. Mas a liberdade experimentada pelas comunidades não pode ser esquecida, nem abandonada, por isso, aqueles que militaram no protestantismo e aprenderam a protestar não querem mais se submeter à hierarquia e à tradição.

O conceito protestante de barbárie histórica traduz aquelas realidades e momentos de ameaça à existência, quando os direitos e seguranças são questionados, e está intimamente ligado ao clamor contra a idolatria social. Esse posicionamento crítico de julgamento e transformação da realidade parte da compreensão de que a vida em liberdade só é possível através da realização da justiça. Por isso, é difícil separar ética protestante e crítica social.

Ao construir uma leitura da ética do protestantismo na América Latina, apresentamos o conceito de barbárie histórica, que explica desde um ponto de vista filosófico como realidades e estruturas colocam em risco a existência humana, e como diante dessa ameaça é necessária a proclamação da vida. A esta proclamação da vida e a este protesto contra aquilo que fere a essência do ser humano chamamos clamor protestante.

Ao levar em conta o momento histórico vivido pela América Latina nos seus anos de chumbo, tanto em relação ao esmagamento dos direitos civis e democráticos, quanto em relação às perspectivas de construção de futuro, esses anos foram momentos especiais e possibilitaram a expressão de propostas e alternativas sociais. Foi um tempo carregado de tensão, de possibilidades e qualitativo e rico de conteúdo. Por isso, dizemos que foi um tempo de kairós, de viva consciência da história e foi a partir dela que segmentos da sociedade brasileira e latino-americana procuraram elaborar uma filosofia consciente da história.

Ao analisar o surgimento do protestantismo devemos levar em conta aspectos históricos do final do medievo e os movimentos ideológicos que se estruturam a partir da revolução protestante no século dezesseis. Tal metodologia é relevante para a compreensão do contexto a partir do qual se construiu a própria ética protestante, já que em termos filosóficos a revolução que começou na Alemanha e se espraiou pela Europa fez um chamado a um posicionamento transcendente, de resistência ao impacto da catástrofe histórica na Europa. A necessidade de resistência e transformação exortava às comunidades de fé, recém surgidas em meio à convulsão social, a elaborar uma mensagem de esperança para o mundo simples.

Nesse contexto, o ser humano pós-medieval surge como livre, mas ainda estava inseguro em sua liberdade. Tal situação fez com que setores institucionalizados das comunidades de fé levantassem a necessidade de uma volta ao passado, fazendo o discurso da emancipação da autonomia, e retorno à submissão à hierarquia e à tradição. Mas a liberdade já tinha sido experimentada e, por isso, sua tendência era à expansão.

Ora, a existência humana estava a elevar-se ao cume do que vivera até aquele momento em sua dimensão de liberdade. O ser humano se libertava das cadeias da necessidade natural imperiosamente presentes na Idade Média. Tornava-se consciente e adquiria liberdade de questionar a si próprio, seu ambiente, de questionar a verdade e o bem e de decidir a seu respeito. Entretanto, havia nessa liberdade certa falta de liberdade, pois implica em descobrir a importância de decidir por si próprio.

O ato de decidir faz parte da inevitabilidade da liberdade, e cria uma inquietude na existência. É no ato da decisão que a existência se sente ameaçada. Isso porque somos confrontados com a exigência de escolher o bem e de realizá-lo, na mesma medida em que isso pode ou não ser alcançado. No protestantismo, o ser humano, enquanto dimensão espiritual carrega uma ruptura, uma alienação, que também se manifesta na sociedade. Não é possível fugir dessa exigência, e quando a enfrentamos nunca nos sentimos absolutamente seguros. Estamos, então, diante da possibilidade da barbárie, de uma situação histórica limite, onde os direitos e seguranças que construímos são questionados e as possibilidades apresentam limites. Na filosofia protestante, tal processo leva ao conceito de justificação, pois a graça da vida em todas as suas dimensões descarta o direito de qualquer autoridade, institucional ou não, exigir a aceitação de uma crença correta, definitiva. Assim, a devoção à verdade é suprema somente quando é devoção a Deus, por isso, existe um elemento sagrado na própria dúvida, mesmo quando esta se refere ao Deus e às religiões.

Na verdade, se Deus é a verdade, ele é a base e não o objeto das questões a seu respeito. Nesse sentido, qualquer lealdade à verdade seria sempre protestante, mesmo quando acaba constatando a falta de verdade. Assim, no protestantismo, o divino se faz presente na dúvida e o ateísmo pode se dirigir ao incondicional; pode ser uma forma de fé na verdade, pois a consciência da falta de sentido é uma presença paradoxal do sentido que há na falta de sentido. Assim na filosofia protestante, a justificação nasce não da certeza, mas da dúvida que leva ao movimento e à ação. E a atitude antagônica à justificação, é o cinismo que imobiliza. Por isso, o conceito barbárie se traduz como ameaça final à existência e é o diferencial do protestantismo. Nasce em torno da justificação pela fé, da vida em liberdade que traduz a aceitação da exigência incondicional de realizar a verdade e fazer o bem. Enfrentar a possibilidade da barbárie significa julgar e transformar, e essa é a diferença entre a ética protestante e aquelas que fazem a defesa da hierarquia e da tradição.

Sem uma relação universal entre protestantismo e ética solidária não se pode construir uma noção de vocação da pessoa. Ou seja, não se pode fundar uma ética protestante apenas sobre o terreno da pessoalidade. Mas é importante entender que não existe uma única interpretação da globalidade, por isso a ética protestante não é uma grandeza estática, mas se realiza de forma dinâmica na existência. A ética protestante não subscreve nem a construção de uma ética social absoluta, nem uma construção de tipo racionalista. Ou seja, toda compreensão da globalidade e toda ética real são concretas, pois toda globalidade se situa num momento temporal determinado, pleno, que a filosofia protestante chama kairós. E a universalidade do kairós comporta riscos concretos, não se move num universal abstrato, separado do tempo e da situação atual. Assim, o que é válido para a pessoa se expressa enquanto consciência ética geral também para a comunidade.

Exatamente por isso, toda realidade global comporta dois aspectos: aquele que a leva à sua particularidade de origem, ao seu fundamento, e um outro que, a partir da particularidade, a remete à universalidade. Assim, a realização da globalidade se orienta na direção a ela própria, exprime o que lhe próprio, suas solidariedades no plano formal e sua finitude. Por isso, a filosofia protestante diz que a ética transporta ao Deus Eterno e à vida, que são o bem e o bom da existência.

Jorge Pinheiro é Pós-Doutor em Ciências da Religião pela Universidade Metodista de São Paulo (2011) e pela Universidade Presbiteriana Mackenzie (2008), Doutor em Ciências da Religião pela Universidade Metodista de São Paulo (2006), Mestre em Ciências da Religião pela Universidade Metodista de São Paulo (2001) e Graduado em Teologia pela Faculdade Teológica Batista de São Paulo (2001). É professor de tempo integral na Faculdade Teológica Batista de São Paulo e Jornalista Profissional. Atua na área de Ciências da Religião, com especialização nas relações entre religião e política, e filosofia, teologia e cristianismo.