vendredi 12 juin 2020

Homenagem ao Prof. Dr. Jorge Pinheiro





Homenagem da Faculdade Teológica Batista de São Paulo ao professor Dr. Jorge Pinheiro dos Santos

A comunhão na criação de Deus e nossa responsabilidade cristã

Pr. Jorge Pinheiro
Primeira parte

Os relatos bíblicos descrevem a criação do céu e da terra, obra do Eterno, através da indicação “e o Espírito de Deus se movia por cima da água” (Gn 1.2). Isto quer dizer que o Espírito divino é Pessoa criadora e presença do Eterno, tendo sido a criação uma realidade formatada por Ele. E é o mesmo Espírito quem clama pela liberdade redentora da criação escravizada.

“Um dia o próprio Universo ficará livre do poder destruidor que o mantém escravo e tomará parte na gloriosa liberdade dos filhos de Deus. Pois sabemos que até agora o Universo todo geme e sofre como uma mulher que está em trabalho de parto” (Rm 8.21-22).


O Espírito é o poder atuante do Criador e a força de vida das criaturas. O Espírito é a fonte da vida. Por isso, tudo o que existe e vive manifesta a presença dele. Ele transforma a comunhão com o Pai e o Filho na comunhão da criação, na qual todas as criaturas, cada qual a seu modo, se comunicam com Deus. A existência, a vida e os relacionamentos estão firmados no Espírito, “pois nele vivemos, nos movemos e existimos” (At 17.28).

Assim, a partir da comunhão trinitária, o ser humano faz parte da criação e é dependente dela. Vive dentro de um contexto de interdependência com a criação. Desde o início, nosso futuro está ligado ao solo, à água e ao ar. Deus nos coloca junto e com a natureza para trabalhar essa mesma natureza (Gn 2.15). Não haveria falta (2.8-9) se soubermos administrar. Dependemos do solo e dele recebemos o nosso sustento. Pertencemos a este mundo criado e é ele que fornece a base para nossa existência. A vida começa e se orienta sob o cuidado de Deus.

“Ó Senhor, tu tens feito tantas coisas e foi com sabedoria que as fizeste. A terra está cheia das tuas criaturas” (Sl 104.24).

“Todos esses animais dependem de ti, esperando que lhes dês alimento no tempo certo. Tu dás a comida, e eles comem e ficam satisfeitos. Quando escondes o rosto, ficam com medo; se cortas a respiração que lhes dás, eles morrem e voltam ao pó de onde saíram. Porém, quando lhes dás o sopro de vida, eles nascem; e assim dás vida nova à terra” (Sl 104.27-30).

Hoje, pensamos que o mundo é um objeto para nossa exploração, em vez de sujeito para a glorificação de Deus. Em grande parte, ignoramos as necessidades de outras formas de vida. Essa atitude utilitarista de ver e agir é pecado, é uma falta de respeito para com o Espírito de Deus.

O desafio do cuidado amoroso


É Deus quem dá e quem sustenta a vida de todo o universo. Sua preocupação por atender às necessidades básicas (comer, beber e vestir) não se restringe ao ser humano, mas se estende a toda a natureza, refletida nos pássaros e nas flores do campo.

“É Deus quem veste a erva do campo, que hoje dá flor e amanhã desaparece, queimada no forno. Então é claro que ele vestirá também vocês, que têm uma fé tão pequena!” (Mt 6.30).

O universo inteiro depende do cuidado amoroso de Deus, que não descuida de nenhuma criatura. Os lírios, por exemplo, caracterizados por sua fragilidade e vida curta, são vestidos de tal modo que nem Salomão usava roupas tão bonitas como essas flores. (Mt 6,29).


Criação significa que tudo é completamente obra de Deus. Deus é o autor de tudo, o Deus pessoal e salvífico, que se revelou como puro amor. Toda a realidade brota da pura iniciativa deste amor divino, puro dom gratuito.


Mas, o ser humano faz parte da criação, depende dela e é seu cuidador. O ser humano, como o restante da criação, foi criado “de acordo com a sua espécie” (Gn 1.24 e 25), só que à imagem e semelhança de Deus (Gn 1.26-27). A imagem de Deus é elaborada em termos do domínio administrativo que o ser humano teria sobre o resto da criação. O ser humano foi criado à imagem de Deus, não somente por sua liberdade e direito à escolha, mas também pela postura que assume diante da criação, uma postura de soberania em amor e comunhão, que deve refletir a soberania de Deus (Gn 1.26-28). O ser humano não foi criado apenas para realizar uma administração espiritual, mas foi criado para ordenar a criação.

“No entanto, fizeste o ser humano inferior somente a ti mesmo e lhe deste a glória e a honra de um rei. Tu lhe deste poder sobre tudo o que criaste; tu puseste todas as coisas debaixo do domínio dele: as ovelhas e o gado e os animais selvagens também; os pássaros e os peixes e todos os seres que vivem no mar” (Sl 8.5-6).

Essa administração humana sobre a criação nós chamamos de mandato cultural. Ser criado à imagem de Deus é ser responsável pelo planeta e por todas as formas de vida!


A soberania humana implica responsabilidade para preservar a ordem que Deus criou e promover a existência de todos os seus elementos. Tal soberania não implica em liberdade para roubar, matar e destruir. Os seres humanos são mordomos de Deus, responsáveis diante dele e cuja primeira tarefa é assegurar a permanência e equilíbrio da criação.

Segunda parte


A preocupação divina com a salvação espiritual não é alheia da sua preocupação pelo bem-estar da sua criação material. A criação é o primeiro dos atos salvadores de Deus.

“Mas tu, ó Deus, tens sido o nosso Rei desde o princípio e nos salvaste muitas vezes. Com o teu grande poder, dividiste o Mar e esmagaste as cabeças dos monstros marinhos. Esmagaste as cabeças do monstro Leviatã e deste o seu corpo para os animais do deserto comerem. Fizeste com que corressem fontes e riachos e secaste grandes rios. Criaste o dia e a noite, puseste o sol, a lua e as estrelas nos seus lugares. Marcaste os limites da terra e fizeste o verão e o inverno” (Sl 74.12-17).

Por isso, não devemos conceber a participação do ser humano no mundo como opcional, nem como secundária sua missão na salvação de vidas. Desde o início, a criação fazia parte do plano salvador de Deus. A conversão de seres humanos não é o último dos atos salvadores de Deus, mas o estabelecimento de novos céus e nova terra, ou seja, uma nova criação (Ap 21.1), a libertação da própria criação em si (Rm 8.20-22).


Até o fim, a criação fará parte do plano salvador de Deus. A mesma graça de Deus que se manifestou em Cristo, também se manifestou na criação.

“Deus falou muitas vezes e de muitas maneiras aos nossos antepassados, mas nestes últimos tempos ele nos falou por meio do seu Filho. Foi ele quem Deus escolheu para possuir todas as coisas e foi por meio dele que Deus criou o Universo. O Filho brilha com o brilho da glória de Deus e é a perfeita semelhança do próprio Deus. Ele sustenta o Universo com a sua palavra poderosa. E, depois de ter purificado os seres humanos dos seus pecados, sentou-se no céu, do lado direito de Deus, o Todo-Poderoso” (Hb 1.1-3).

E a graça do Eterno manifesta alcançará o seu propósito de submeter a Cristo todas as coisas.

“Por isso Deus deu a Jesus a mais alta honra e pôs nele o nome que é o mais importante de todos os nomes, para que, em homenagem ao nome de Jesus, todas as criaturas no céu, na terra e no mundo dos mortos, caiam de joelhos e declarem abertamente que Jesus Cristo é o Senhor, para a glória de Deus, o Pai”. (Fp 2.9-11).

“As Escrituras Sagradas dizem: Deus pôs todas as coisas debaixo do domínio dele. É claro que dentro das palavras “todas as coisas” não está o próprio Deus, que põe tudo debaixo do domínio de Cristo. Mas, quando tudo for dominado por Cristo, então o próprio Cristo, que é o Filho, se colocará debaixo do domínio de Deus, que pôs todas as coisas debaixo do domínio dele. Então Deus reinará completamente sobre tudo” (1Co 15.27-28).

Assim podemos dizer que existe uma eco-teologia bíblica, que envolve o uso responsável e sustentável dos recursos da criação de Deus e a transformação das dimensões culturais, econômicas, morais, intelectuais e políticas da vida. Isto inclui a recuperação de um sentido bíblico de mordomia, que implica em administração e cuidado responsável. Da mesma maneira, o conceito bíblico de descanso semanal recorda que se deve por limites às atividades de produção e ao consumo. Assim, devemos usar a riqueza e o poder no serviço dos demais. É um compromisso de trabalhar para libertar os ricos da escravidão ao dinheiro e ao poder, e possibilitar aos que têm menos obter acesso à dignidade e às oportunidades de desenvolvimento. A esperança de tesouros no céu nos livra da tirania de Mamon. E fazendo assim estaremos compreendendo o sentido maior do cuidado da natureza e da vida criada pelo Eterno.

L’image contient peut-être : ciel, océan, crépuscule, plein air, eau et nature


Sabedoria: componentes, funções e resultantes

I Reis 3.5-15
5. Naquela noite, o Senhor Deus apareceu num sonho a Salomão e perguntou: —O que você quer que eu lhe dê? 6. Ele respondeu: —Tu sempre mostraste grande amor por Davi, meu pai, teu servo, e ele era bom, fiel e honesto para contigo. Tu continuaste a mostrar a ele o teu grande e constante amor e lhe deste um filho que hoje governa no lugar dele. 7. Ó Senhor Deus, tu deixaste que eu ficasse como rei no lugar do meu pai, embora eu seja muito jovem e não saiba governar. 8. Aqui estou eu no meio do povo que escolheste para ser teu, um povo que é tão numeroso, que nem pode ser contado. 9. Portanto, dá-me sabedoria para que eu possa (1) governar o teu povo com justiça e (2) saber a diferença entre o bem e o mal. Se não for assim, como é que eu poderei governar este teu grande povo? 10. Deus gostou de Salomão ter pedido isso 11. e disse: —Já que você pediu sabedoria para governar com justiça, em vez de pedir vida longa, ou riquezas, ou a morte dos seus inimigos, 12. eu darei o que você pediu. Darei a você sabedoria e inteligência, como ninguém teve antes de você, nem terá depois. 13. Mas lhe darei também o que não pediu: durante toda a sua vida, você terá riquezas e honras, mais do que qualquer outro rei. 14. E, se você me obedecer e guardar as minhas leis e os meus mandamentos, como fez Davi, o seu pai, eu lhe darei uma vida longa. 15. Quando acordou, Salomão compreendeu que Deus havia falado com ele no sonho. Então foi para Jerusalém, ficou diante da arca da aliança e apresentou a Deus ofertas de paz e sacrifícios que foram completamente queimados. Depois deu uma festa para todas as autoridades.

Os dois componentes da Sabedoria

1. Consciência da miserabilidade humana. Reconhecimento da dimensão transcendente.

Provérbios 1.7
Para ser sábio, é preciso primeiro temer a Deus, o SENHOR. Os tolos desprezam a sabedoria e não querem aprender.

2. Consciência das necessidades da temporalidade. Reconhecimento da dimensão espaço-temporal da realidade.

Salmos 90.12
Faze com que saibamos como são poucos os dias da nossa vida (ensina-nos a contar os nossos dias) para que tenhamos um coração sábio.

Funções de uma práxis de sabedoria

Funções ético-sociais
A busca da justiça
Discernimento para escolher entre o que é bem e o que é mal

Funções técnico-científicas
Uso das técnicas, dos conhecimentos científicos e da inteligência para transformação da realidade espaço-temporal.

Resultantes da práxis de sabedoria

Justiça
Provérbios 12.17 Quando a verdade é dita, a justiça é feita; mas a mentira produz a injustiça.

Solidariedade
Provérbios 27.9
Assim como os perfumes alegram a vida, a amizade sincera dá ânimo para viver.

Alegria
Provérbios 15.23
Saber dar uma resposta é uma alegria. Como é boa a palavra certa na hora certa!

Conversa com um homem sábio, José Comblin.


mardi 9 juin 2020

A lei do Espírito da Vida



A LEI DO ESPÍRITO DA VIDA


POR

JORGE PINHEIRO

SÃO PAULO, NOVEMBRO DE 1995



Portanto, não existe mais condenação para aqueles que estão em Cristo Jesus. A Lei do Espírito da vida em Cristo Jesus te libertou da lei do pecado e da morte. De fato - coisa impossível à Lei, porque enfraquecida pela carne - Deus, enviando o seu próprio Filho numa carne semelhante à do pecado e em vista do pecado, condenou o pecado na carne, a fim de que o preceito da Lei se cumprisse em nós que não vivemos segundo a carne, mas segundo o espírito. Com efeito, os que vivem segundo a carne desejam as coisas da carne, e os que vivem segundo o espírito, as coisas que são do espírito.

Romanos 8:1-5

Ουδεν αρα νυν κατακριμα τοις εν Χριστω Ιησου. ο γαρ νομος του πνευματος της ζωης εν Χριστω Ιησου ηλευθερωσεν σε απο του νομου της αμαρτιας  και του θανατου. το γαρ  αδυνατον του νομου εν ω ησθενει δια της σαρκος, ο θεος τον εαυτου υιον πεμψας εν ομοιωματι σαρκος αμαρτιας και  περι αμαρτιας κατεκρινεν την αμαρτιαν εν τη σαρκι, ινα το δικαιωμα του νομον πληρωθη εν ημιν τοις μη κατα σαρκα περιπατουσιν αλλα κατα πνευμα. οι γαρ κατα σαρκα οντες τα της σαρκος φρονουσιν, οι δε κατα πνευμα τα του πνευματος.

ΠΡΟΣ ΠΟΜΑΙΟΥΣ 8:1−5

ÍNDICE ANALÍTICO


Capítulo 1     A Liberdade Cristã

Capítulo 2     Não Há Nenhuma Condenação

Capítulo 3     Paulo, Servo de Jesus

Capítulo 4     O Coração das Escrituras

Capítulo 5     Pela Graça, Dom de Deus




CAPÍTULO 1 

A LIBERDADE CRISTÃ

(O princípio do contexto)


Tecnicamente, temos aqui dois blocos de textos: um maior, que é o capítulo 8 inteiro, cuja temática é a da vida cristã sob a lei do Espírito; e um bloco menor, que vai do versículo 1 ao 11, e que trata especificamente da vida emancipada por esta lei do Espírito.


O texto em análise está dentro desses dois blocos, que nos dão a linha de pensamento do autor: uma sequência de análises sobre a vida emancipada (vs.1-11); a vida exaltada (12-17); a vida esperançosa (18-30); e a vida exultante (31-39). Dessa maneira, "neste capítulo, o apóstolo traça o curso da vida cristã, na qual a graça triunfa sobre a lei, e os crentes experimentam livramento do pecado".


A epístola de Paulo, como um todo, enfoca três blocos temáticos: do capítulo 1 ao 8, fala da justificação pela fé; do capítulo 9 ao 11, discute a exclusão temporal dos judeus e a inclusão dos gentios ao povo de Deus; e do capítulo 12 ao 16, exortações práticas.


Ao analisar a justificação, mostra que a salvação do homem repousa fundamentalmente sobre a fé, proveniente da graça de Cristo e não na lei de Moisés. Essa misericórdia de Deus não depende da lei, porque o homem, em sua natureza pecaminosa, não tem como responder efetivamente às exigências da lei, que expressa a santidade de Deus. Assim, a graça provem de Cristo, que no seu amor e sacrifício, perdoa os pecados dos homens. A liberdade da vida cristã, liberdade diante da lei, não depende do próprio homem, nem do que ele possa fazer, mas daquilo que Cristo já fez por ele.


Há uma outra epístola de Paulo, que também trata dessa relacão lei versus graça, que é a carta escrita aos Gálatas, onde o capítulo correlato a Romanos 8 é Gálatas 5. Ali, o apóstolo escreve sobre a justificação pela fé, falando da liberdade cristã.


Sem dúvida, a análise de Paulo parte de elementos vetero-testamentários, que descreve no capítulo 4 de Romanos, ao explicar que a promessa feita a Abraão teve por base a fé, já que ainda era incircunciso e não tinha a lei, enquanto formalização apresentada a Moisés.


A passagem analisada encaixa-se perfeitamente não somente na linha geral de pensamento do autor, mas dentro do ensinamento bíblico como um todo.


CAPÍTULO 2 

NÃO HÁ NENHUMA CONDENAÇÃO

(O princípio gramático-literário)


O texto que estamos analisando está inserido numa epístola, forma literária específica, amplamente utilizada pelos apóstolos e pela igreja primitiva. No capítulo que segue, analisaremos com mais detalhes esta forma literária, inserindo-a no contexto histórico de gregos e romanos durante o primeiro século da era cristã.


A epístola aos Romanos é uma carta de difícil compreensão. Isto porque Paulo tinha o costume de escrever intercalando um pensamento central com várias digressões, tornando complexa a conexão das idéias expostas. Outra dificuldade é o próprio tema, já que o apóstolo estava tratando de um assunto eletrizante para a época, mas hoje aceito pela totalidade cristã: os gentios podem ou não tornarem-se cristãos sem serem prosélitos dos judeus? 


Em Romanos 8:1-5, encontramos cinco verbos fundamentais para a compreensão do que o autor está expondo. São eles: (1) ηλευθερωσεν (ελευθεροω, ωσω, ηλευθωρωσα): o oposto ao estado de escravidão, receber alforria, não estar sujeito a uma obrigação, livrar, libertar. "Te libertou", variantes: "me libertou", "nos libertou". É um aoristo passado, isto significa que a ação foi plenamente realizada, mas segue vigente no presente. (2) κατεκρινεν (κατακρινω, −κρινω, −εκρινα, κεκριμαι, −εκριθην): penalidade imposta por condenação judicial, servidão penal, condenar. Também é um aoristo passado. (3) πληρωθη (πληροω, −ωσω, −σα, κα, μαι, θην): encho, aterro, encho a ponto de transbordar, dou plenitude, cumpro. (4) περιπατουσιν (περιπατεω, −ησω, περιπατησα, −πεπαρτηκα): ando, vivo, dirijo minha vida. (5) φρονουσιν (φρονεω, −ησω): penso, ter a mente controlada por, ter como hábito de pensamento, inclinar-se.


Desses verbos, dois são antônimos (receber alforria versus condenado judicialmente) e levam à oposição que o autor quer mostrar entre a lei do Espírito da vida e a lei do pecado e da morte. Assim, ao regime do pecado, Paulo opõe o novo regime do Espírito (cf. 3:27+), e diz que em nós transborda o espírito da lei. Esse preceito da lei (δικαιωμα του νομου, que pode ser traduzido como "o que é justo / o que é bom na lei"), cujo cumprimento só é possível pela união com Cristo através da fé, tem sua tradução no mandamento do amor (cf. 13:10, Gl 5:14 e Mt 22:40). Isto porque, não vivemos segundo a carne (μη κατα σαρκα περιπατουσιν), mas andamos no Espírito, ou seja, temos a mente controlada pelo Espírito (αλλα κατα πνευμα).


É interessante notar que a palavra lei (νομος, ου) aparece 70 vezes no texto de Romanos e sempre tem uma das três conotações: (a) revelação de Deus e de sua santidade, (b) foi dada para esclarecer o que é pecado, e (c) existe para orientar a vida daquele que crê.


Da mesma maneira, a palavra carne (σαρξ, σαρκος) é sempre utilizada em Romanos com um dos quatro sentidos: (a) natureza humana fraca (6:19), (b) natureza velha do cristão (7:18), (c) natureza humana de Cristo (8:3), (d) e natureza humana não regenerada (8:8).


O capítulo 8 de Romanos nos apresenta a operação do Espírito Santo, entendida nos versículos 4, 5, 6 e 10, como aquele que comunica a vida. No versículo 2, como aquele que dá liberdade. E no versículo 26, como aquele que intercede pelos crentes junto ao Pai.


É interessante notar que o texto original de Romanos 8, em grego, começa com dois advérbios intercalados por uma partícula ilativa (Ουδεν αρα νυν), que poderíamos traduzir assim: "Atualmente, por isso, nada em absoluto..." pode condenar aqueles que estão em Cristo Jesus. 


Essa partícula ilativa (αρα), que é um conectivo, nos leva ao capítulo 7, onde o Paulo mostra que lei e pecado não são sinônimos. E que há uma grande diferença entre a natureza da lei e a natureza humana. Entre o que é Espírito e o que é carnal. O corpo, com os membros que o compõem (7:24) interessa a Paulo enquanto instrumento da vida moral. Submetido à tirania da carne (7:5), ao pecado e à morte (6:12+; 7:23), Paulo clama: quem me livrará? E dá "graças a Deus, por Jesus Cristo, nosso Senhor" (7:25). É a partir desse clímax, que o apóstolo dá sequência ao texto, informando que "por isso", "hoje", "nada em absoluto" pode condenar os que estão em Jesus Cristo.


CAPÍTULO 3 
PAULO, SERVO DE JESUS

(O princípio histórico)


No mundo de gregos e romanos, as cartas particulares tinham em média, cerca de noventa palavras. Já os textos literários, como os de Sêneca, por exemplo, tinham em média duzentas palavras. As epístolas de Paulo, no entanto, eram bem maiores. A menor delas, dirigida a Filemon, tem 335 palavras, e a maior, enviada a igreja de Roma, 7.101 palavras. Assim, podemos dizer que o apóstolo Paulo criou um novo gênero literário, a epístola, maior que as cartas e os textos literários comuns à época, de conteúdo teológico explícito, e dirigida a comunidade específica.


Quase sempre, as cartas eram ditadas a um escriba profissional, chamado amanuense, que usava uma espécie de taquigrafia durante o ditado rápido. Depois, o amanuense burilava o texto, e o autor, finalmente, editava a carta. Na carta de Paulo aos Romanos seu amanuense foi Tércio (Rm. 16:22).


Quando escreveu sua epístola aos Romanos, Paulo era um cristão maduro. Tinha mais de cinquenta anos e 25 anos de conversão. Estava ansioso para ministrar nessa igreja, que já era conhecida no mundo cristão (1:8), e por isso escreveu a carta que deveria preparar sua futura visita (15:14-17). Foi escrita em Corinto, possivelmente no ano 58 d.C., quando Paulo estava levantando um coleta para os irmãos da Palestina. Partiu, então, para Jerusalém para entregar o dinheiro. Lá é preso, e acabará sendo levado à Roma, mas como prisioneiro.

CAPÍTULO 4 

O CORAÇÃO DAS ESCRITURAS

(O princípio teológico)


Para muitos teólogos, que vão de Orígenes a Barth, a carta do apóstolo Paulo aos Romanos é o ponto alto das Escrituras. Ela sedimentou a fé de Agostinho e a Reforma de Lutero. Calvino, por exemplo, considerava que quem entendesse Romanos estaria com a porta aberta para a compreensão de toda a Bíblia. E Tyndale também diz algo parecido, ao afirmar que Romanos é "a parte principal e mais excelente do Novo Testamento, e o mais puro Evangelion, isto é, as boas novas a que chamamos Evangelho, e também uma luz e um caminho para penetrar em toda a Escritura".


Em termos de doutrina, Paulo em Romanos mostra que a Lei de Moisés, em si boa e santa (7:12), fez o homem conhecer a vontade de Deus, mas não lhe transmitiu a força para cumpri-la. Deu-lhe consciência de seu pecado e da necessidade que tem de socorro (3:20, 7:7-13). Esse socorro, inteiramente gratuito, chegou através de Jesus. E a humanidade, morta no pecado, é recriada em Cristo (5:12-21), podendo agora viver em liberdade e justiça, segundo a vontade de Deus (8:1-4).


Romanos tem como tema central a revelação da justiça de Deus e a universalidade da obra de Cristo. E, se Romanos é o centro nevrálgico das Escrituras, o capítulo 8 é o coração de Romanos.


CAPÍTULO 5 

PELA GRAÇA, DOM DE DEUS

(Aplicando os princípios)



O capítulo 8 de Romanos mostra que a lei foi, através do sacrifício de Cristo, dominada pela graça. Como vimos neste estudo, a epístola de Romanos é fundamental no processo vivenciado pela Reforma. A igreja que rompe com o catolicismo romano, quer a reformada de Lutero, Calvino e Zwinglio, quer a revolucionária de anabatistas e inspiracionistas, entende que o apóstolo Paulo traça na epístola aos Romanos o curso da vida cristã, mostrando que através da graça há vitória plena sobre o pecado.


Paulo queria deixar claro que as propostas judaizantes não tinham razão de ser, pois a obediência à lei nunca logrou êxito. Através de Cristo, unido a Cristo pelo Espírito, aquele que crê está absolvido de seus pecados e pode iniciar uma vida de liberdade, dentro de uma nova lei, a lei do Espírito da vida em Jesus Cristo.


O que os cristãos do século XVI entendiam, contextualizando os ensinamentos de Paulo, é de não havia mais necessidades de obras e penitências para se alcançar a salvação. O que a Igreja Católica Romana proclamava, tanto no que concerne às indulgências, como às obrigações de caridade, estava fora da doutrina cristã pregada por Paulo nas epístolas aos Romanos e Gálatas, assim como no restante das Escrituras.


Ainda hoje Romanos apresenta ensinamentos fundamentais para a igreja de Cristo: a pecaminosidade do homem (1:18-3:30); sua desesperada luta interior (7:14-25), a gratuidade da salvação (3:21-24), a eficácia da morte e ressureição de Cristo (4:23-25, 5:6-11, 6:3-11), a justificação pela fé (5:1-2) e nossa adoção como filhos (8:14-17).


É a partir desta hermenêutica, delineada nos vários passos apresentados neste trabalho, que o trecho de Romanos 8:1-5 deve ser interpretado. Teremos, então, uma melhor compreensão daquilo que o apóstolo Paulo chama de "a lei do Espírito da vida em Jesus Cristo" e de sua importância no caminhar do cristão.

Jorge Pinheiro

São Paulo, 30 de novembro de 1995.


BIBLIOGRAFIA


Davidson, A. M.,O Novo Comentário da Bíblia, Edições Vida Nova, São Paulo, 1994.

Davis, John D., Dicionário da Bíblia, Casa Publicadora Batista, Rio de Janeiro, 1978.

Dobson, John H., Aprenda o Grego do Novo Testamento, CPAD, Rio de Janeiro, 1994.

Gundry, Robert H., Panorama do Novo Testamento, Edições Vida Nova, São Paulo, 1991.

Halley, H. H., Manual Bíblico, Edições Vida Nova, São Paulo, 1993.

Pollock, John, O Apóstolo, Vida, São Paulo, 1994.

Rega, Lourenço Stelio, Noções do Grego Bíblico, Edições Vida Nova, São Paulo, 1993.

Taylor, W.C., Dicionário do Novo Testamento Grego, JUERP, Rio de Janeiro, 1991.

The Greek New Testament, United Bible Societies, USA, 1994.

Vanoye, Francis, Usos da Linguagem - Problemas e Técnicas na Produção Oral e Escrita, Martins Fontes Editora, São Paulo, 1979.

Virkler, Henry A., Hermenêutica - Princípios e Processos de Interpretação Bíblica, Vida, São Paulo, 1994.




mercredi 3 juin 2020

A vida, uma leitura radical

Um dos temas centrais da mídia, hoje, é a violência. Tal fato nos leva a pensar e a viver como se a vida não tivesse a menor importância ou valor. E em nome de doutrinas, políticas e religiões, gentes são transformadas em bombas humanas, assassinos seriais, legais ou não, que espalham a dor, o sofrimento e a morte. Nesse clima de ódio e violência, é importante dizer que a primeira filosofia das Escrituras hebraicas, e posteriormente cristãs, construída para o ser humano no bojo da filosofia da criação, é a filosofia da vida.

O Eterno fez o humano como semelhante, cheio de parecença, para ser como Ele e com Ele, para curtir o mundão criado, fazer sexo, ter filhos, produzir criativamente. E O Eterno contou isso aos humanos e um dia isso foi registrado lá em Bereshit, o livro primeiro das Escrituras. E é interessante que quem registrou a história que ouviu dos antepassados disse que O Eterno curtiu a beça tudo aquilo. Achou genial o que tinha feito, tanto que deu por terminado o seu trabalho e foi descansar.

As histórias se multiplicam. Há histórias que falam da importância da vida nas Escrituras hebraicas, e há histórias sobre a vida e sua singularidade nas tradições de gentes e povos. Na tradição judaica, conta-se que quando os escravos fugiram do Egito com os soldados egípcios correndo atrás deles e já estavam atravessando o Mar Vermelho, anjos resolveram cantar um hino de gratidão a O Eterno, mas o Eterno não permitiu e disse: Eu criei o ser humano, cada um deles é minha criação, como poderei cantar se muitos vão se afogar neste mar? Eis a universalidade da vida: fomos criados por O Eterno, todos somos parecença, quer escravos hebreus ou soldados egípcios. A filosofia entende isso: a vida é direito universal porque O Eterno ama a pessoa, todas as pessoas -- foram feitas por Ele e têm o jeitão dele.

Nesse sentido, a partir da filosofia da vida podemos dizer que não há diferença entre judeu e grego, cada pessoa ocupa um lugar especial no coração de O Eterno, para Ele é como se todos fôssemos únicos.

O respeito pela vida de cada um e de todos e a negação do ódio e da violência: direcionam a filosofia da vida. Criar e educar pessoas traduz-se em ensinar, em primeiro lugar, que quem destrói uma única vida destrói todas e a própria criação. E quem cuida e salva uma única vida salva o mundo. Cuidar e salvar pessoas é semear a paz para que ela reine entre os seres humanos. Para que ninguém possa dizer: o meu pai é maior do que o teu pai.

Voltando ao primeiro livro das Escrituras hebraicas, vemos que ele se descreve como o livro da história humana. E é interessante o que esse livro fala da criação e da história do primeiro casal: Da-terra e A-vida. Este é sentido dos nomes Hadam e Hawah. A construção dessas duas pessoas, Da-terra e A-vida, ao se dar no final do processo de surgimento do universo, mostra o valor que têm para O Eterno: são menores, aparentemente pequenos, mas valem muito, pesam tanto quanto todo o universo. A história humana é a história de uma pessoa, de duas pessoas, de todas as pessoas.

E será que eu posso fazer da minha mulher, escrav? Ou, em outras palavras, posso explorá-la? Não, não posso. Será que posso fazer dos meus pais, escravos. Ou, em outras palavras, posso explorá-los? Não, não posso. Será que posso fazer de meus filhos escravos. Ou, em outras palavras, posso explorá-los? Não, não posso. E por quê? Porque devo amar o humano como semelhante, como igual. Esteja ele ao lado ou distante, é sempre próximo. Este princípio é fundamental na filosofia da vida. As relações humanas implicam em reciprocidade, deve levar ao companheirismo, ao fundamento de origem: Da-terra e A-vida estão por trás de toda a humanidade.

As Escrituras hebraicas nos falam da obrigação de amar o estrangeiro, ou seja, aquele que nos parece totalmente diferente. Esse é o princípio da paz entre os povos. Por isso, a filosofia da vida propõe que a paz prevaleça, seja formulada como lei a obrigação de cuidar e proteger os diferentes e as minorias. Este é o sentido maior da justiça.

Assim, se perguntarem: um homem pode explorar pai, mãe, mulher, filhos? Sabemos que a resposta é não. E de novo a pergunta: um homem pode explorar aquele que é diferente dele por credo, raça, sexo ou sob qualquer outro aspecto? Muitos acharão que sim. Mas quando tenho em minha frente uma pessoa, tenho um igual e, por mais diferente que seja, é meu irmão. Ser justo é reconhecer a liberdade dele, seus direitos e cuidar para que tenha uma vida digna, como humano que é.

O respeito e o cuidado por tudo aquilo que é humano, pelo ser, por sua terra e vida, é filosofia radical, que nasce da compreensão de que somos semelhantes, cheios de parecença com O Eterno. A imagem está em um, em dois, em todas as pessoas.

... quem não está na janela ... quem não pode vir à janela?
... o cuidado pela vida é sempre radical ...



dimanche 31 mai 2020

Quem nos alimenta?

No universo existem dois modos de se viver – ter o coração quente e a cabeça fria ou fazer para ver no que vai dar. Ora, não fazer dá trabalho ao contrário do que a gente pensa, e é por isso que todos somos atraídos pelo fazer. Donde inativo, inativo, ninguém é e muito menos gosta de ser taxado assim. E esses modos de fazer, nós chamamos de funções do ser, que variam conforme cada um, e acabam virando meta da vida.

Mas, ainda ao contrário do se pensa, quem faz, quem faz acaba acorrentado e por estar acorrentado torna-se inativo, pois coração e cabeça giram ao redor do que faz, do que se faz.

Mas o coração quente e a cabeça fria colocam as coisas nos seus devidos lugares. Não basta o coração quente, não basta a cabeça fria, mas juntas colocam desejos e fazeres no caminho da alegria, da justiça e da paz. Repare bem, fazer é necessário, afinal todos temos que comer, mas fazer também faz das gentes, gente. E ao fazer assim, juntos, com o coração quente, o desejo do coração solitário fica de lado, e nasce a alegria do trabalho comum. E é assim que nasce a abundância certa. É assim que nós multiplicamos e produzimos para os pequenos, os grandes, os experientes e para a própria natureza, que sempre nos chama à permuta.

E quem nos alimenta? São os deuses? Não. É o acordo solidário entre gentes e natureza, que sempre quer trocar, permutar com todos. Afinal é assim que ela vive. Ou, como diziam os antigos, animais e vegetais vivem na terra, vivem das terras, os frutos dos animais e dos vegetais são geradas pelo hálito quente da terra, mãe e útero, e pela água fria do céu, mas também pelo suor de todos nós, que é fazer e alegria.

E quem com o coração quente e a cabeça fria participa do ciclo da vida, curte os segundos deliciado e cheio de prazer, vive. Encontrou a alegria, é feliz em seu coração, e não despreza o trabalho, mas o faz com todas as forças do seu ser.

Repare, aqui há a experiência de um velho que atravessou décadas, em todo trabalho há um segredo escondido, mas este só se revela quando chega ao coração e às mãos das gentes. Pode parecer, aparecer como de um só, individual, mas quando todos sentam e juntos participam da ceia com alegria, o que era individual, na aparência, realizou a obra do fazer, atingiu o objetivo maior e o segredo se revela a todos. Assim nasce o com panus, o companheirismo solidário que faz de um, todos, do fraco, forte, e do forte de coração quente, amigo e irmão.

Shlomo, que quer dizer pacífico em hebraico e que traduzimos por Salomão, foi rei de Israel. Seu reinado está contado no Livro dos Reis. Era filho de Davi com Bate-Seba e, segundo a tradição, foi o terceiro rei de Israel, governando quarenta anos, de 966 a 926 antes de Yeshua.



Fonte: Jorge Pinheiro, Kaddish, vida, morte e reino,
São Paulo, Fonte Editorial, 2018, pp. 357-358.

vendredi 29 mai 2020