jeudi 26 septembre 2024

Uma religião em extinção?

  

PROTESTANTE

Uma religião em extinção?

Jorge Pinheiro




 


 


 

Dedico aos jovens protestantes

que querem fazer a diferença neste mundão brasileiro.

 

 


 

Sumário

 

 

 

O teu nome é santo

1. Amigos ou amantes

2. Uma utopia do humano

3. O estado da existência

 

Venha o teu reino

4. Os sentidos do quadrívio

5. Ética e hermenêutica

6. Há que ler o desejo

 

Dá-nos o alimento

7. A revolução permanente

8. Um Jesus marginal

9. Existência e teologia

 

Perdoa as ofensas

10. A ação protestante

11. O fenômeno religioso

 

Livra-nos do mal

12. A centralidade do Cristo

 

 

 

 

 


 

 

 

 

 

 

São oito horas e cinquenta minutos da manhã de segunda-feira, dia dois de outubro de dois mil e dezoito. É importante marcar o dia e a hora, mas também o lugar. Moro em Montpellier, uma cidade que eu amo, no sul da França. Estou ao computador, com o terraço de minha casa à frente. Lá fora venta e a temperatura desse outono que se inicia é de dezesseis graus, embora a sensação térmica seja de quatorze graus. Ainda não está frio, mas este mistral, que hoje deve chegar a trinta e sete quilômetros por hora, faz toda a diferença e baixa a sensação térmica. Bem, convém dizer que o clima é mediterrâneo, com verões bem secos e as deliciosas brisas marinhas.

 

Dá para notar que eu gosto da cidade. Montpellier, como disse antes, está localizada no sul da França, na região de Languedoc-Roussillon, a dez quilômetros do Mar Mediterrâneo. Tem cerca de duzentos e cinquenta mil habitantes, é o oitavo município mais populoso da França. O que para mim é uma agradável cidade pequena para média em termos brasileiros. O seu clima mediterrânico é caracterizado por verões muito secos e pela presença de refrescantes brisas marinhas. E aqui estou eu conversando com você -- velho, conforme disse Gramsci, porque nasci numa idade velha.

 

Bem, mas aqui, no correr dessa conversa, vamos falar sobre nosso viver protestante e nosso mandato cultural. São temas e questões que trabalhei durante anos, em aulas, palestras e, inclusive, textos que apareceram em artigos e livros. Agora retorno a eles em novo contexto. Afinal, Antônio Gouvêa Mendonça, estudioso referência do protestantismo brasileiro, já falecido, disse:

 

O velho protestantismo está cada vez mais distanciado dos novos movimentos de lastro cristão. Não se pode mais ignorar as significativas diferenças que há entre eles, sob pena de cometer equívocos nos resultados das pesquisas. O pesquisador atual não pode furtar-se ao, às vezes, penoso labor de precisar classificações e conceitos. É preciso que distinga bem, ao estudar qualquer novo movimento religioso, o limite exato em que o velho protestantismo deixa de estar presente. Quando seus princípios básicos de liberdade – a justificação pela fé, a sola scriptura, o livre exame e o sacerdócio universal dos crentes – não estiverem presentes ou se apresentarem obscurecidos por outras práticas religiosas, não há mais protestantismo”.

 

E esta constatação de Mendonça nos levou ao título deste livro: Protestante ... esta é uma religião em extinção? Vamos pensar juntos se esta é uma realidade ou não. Uma boa leitura.

 


 

 

 

 

 

Pai nosso, que estás no céu, que todos

reconheçam que o teu nome é santo

 

 

 

Vamos falar sobre nosso viver protestante e nosso mandato cultural começando por pensar a espiritualidade, que por extensão é religiosidade e conhecimento humano, pessoal, mas também universal, que traduz maneiras de busca do transcendente. A distância entre a fé e a cultura, nessa nossa leitura hermenêutica, é pequena e possibilita a compreensão de que no ser humano não está presente apenas o físico e material. Os seres humanos criamos nossos próprios universos de significação. É nas culturas que vamos encontrar o ato e a forma de nossas expressões humanas como seres históricos. O primeiro momento desta reflexão filosófica, mas também teológica, sobre as culturas, seus encontros e desencontros, consiste em ver que, seja no ato de surgimento, seja na forma de atuação, a unidade dessas culturas só pode ser pensada em oposição ao fluxo do tempo e à dispersão da geografia onde as experiências se situaram.

 

Quando o fenômeno protestante brasileiro explodiu no Brasil, a partir dos anos 1950, a intelectualidade acadêmica encontrava-se desarmada para analisar e entender o que estava a acontecer. Isto porque suas bases situavam-se no século dezenove e nas primeiras décadas do século vinte. É verdade que os grandes processos da revolução protestante já tinham acontecido no mundo, a começar pela Reforma na Europa, com seus desdobramentos continentais nos Estados Unidos.

 

Conhecemos as dificuldades e limitações de Marx para entender o fenômeno religioso como fundante de contextos e novas relações dentro de determinada sociedade. Durkheim embora tenha caminhado no sentido de entender estruturalmente o fenômeno religioso, construindo conceitos e parâmetros a partir das religiões antigas, ditas primitivas, e não monoteístas, formatou leituras que até hoje são recitadas como compreensões definitivas sobre o fenômeno religioso, as estruturas dessas instituições e a relação entre líderes e fiéis.

 

 

1.

 

 

Depois que o marxismo degenerado pela burocracia estalinista entrou em crise, fato notório nas universidades europeias, Weber foi tirado do ostracismo e passou a ser reconhecido, assim como todo o historicismo alemão. Ora, se partimos daqueles que influenciaram o historicismo de Weber, em especial Ritschl e Troeltsch, vemos que eles consideravam o fenômeno protestante que estudavam como típico ao Ocidente e, mais ainda, europeu. Dessa maneira, Weber entendeu o calvinismo como base para a expansão do capitalismo nos Estados Unidos, principalmente.

 

Assim, o que poderiam fazer os intelectuais acadêmicos brasileiros diante da explosão do fenômeno protestante no Brasil a partir dos anos 1950? Ora, voltar aos pais da sociologia. E assim foi. E a explosão desse protestantismo, que traduziu de forma peculiar a diversidade das culturas brasileiras, passou a ser analisado como efeito de causas como a migração, a urbanização e a ruptura com a estrutura agrária e patriarcal.

 

Mas, com a débâcle daquele marxismo estalinista, que desabou com o muro de Berlim, nos anos 1980, e com o boom neoliberal que varreu o mundo, nossos intelectuais trouxeram o neoliberalismo travestido de espírito crítico para dentro da casa e passaram a ver o fenômeno protestante no Brasil apenas como um subproduto do mercado capitalista.

 

Donde, as idéias de mercado e seus componentes se transformaram em conceitos da sociologia e instrumentos de análise para o fenômeno religioso. Vendo dessa maneira o fenômeno protestante, a academia reduziu o fenômeno, jogou fora todas as experiências anteriores que ajudaram a construir o Ocidente protestante e criou outro conceito, o de trânsito religioso. E tudo que passou a acontecer no Brasil virou trânsito religioso. Mas, e antes em outras regiões do planeta? Foi o trânsito religioso que mudou a cara da Alemanha, dos países nórdicos ou mesmo da Inglaterra e Estados Unidos?

 

Por que lá podemos utilizar o conceito de conversão trabalhado por Weber e por que não aqui? Sabemos, claro que sabemos, que as condições e culturas são diferentes. Mas, em relação ao fenômeno protestante, culturalmente brasileiro, que chamamos de evangelicalismo, duas componentes dificultam a análise: o preconceito diante de algo que impacta e desnorteia o mundo acadêmico e a limitação de suas bases teóricas.

 

Definidos assim os limites necessários, afirmamos a importância de Marx, Durkheim e Weber para todos aqueles que se dedicam ao estudo da religião. Mas, nessa conversa queremos recorrer a alguns escritos, em especial de Paul Tillich, amigo de caminhada. Desejamos, dessa maneira, conversar sobre o protestantismo e suas correlações com o evangelho social e o mandato protestante.

 

Sabemos e temos visto que o pensamento religioso não pode agir com uma força igual em todo momento e em toda comunidade. Sempre vai depender da situação social. Podemos dizer que as culturas e os valores compartilhados são essenciais para se fazer a leitura das religiosidades. Em condições dinâmicas, em que as vivências e textos foram construídos por múltiplas e variadas possibilidades, leituras monolíticas, ainda que polares, falharão na geração da criatividade necessária para atravessar as possibilidades que se abrem a cada momento. Por isso, as diversidades são importantes. O pensamento que não comporta multiplicidade pode ser um fator para a crise de parte das leituras realizadas sobre as relações das diversidades. É a partir daí, que vamos trabalhar com uma teologia da existência, que procura correlacionar as complexidades dos encontros, num caminho aberto, mas nunca completado.

 

E Roland Barthes nos pergunta: “Dizem-me: esse gênero de amor não é viável. Mas como avaliar a viabilidade? Por que o que é viável é um bem? Por que durar é melhor que inflamar?”

 

Aqui, esta pergunta nos remete à razão da filosofia e à uma questão: por que os filósofos relacionam o ser jovem com a ingenuidade? Por que consideram que na juventude filosofamos sem saber o que fazemos, que não possuímos a fúria da velhice que procura nominar os conceitos. Agora velhos, quando nos perguntam o que é a filosofia, meio lentamente balbuciamos, é a arte de fabricar, ou melhor, de inventar conceitos.

 

Em sala de aula dizemos que a palavra filosofia pode ser entendida como amizade pela sabedoria. Mas será mesmo uma amizade? Ortega defendeu a importância da amizade como objeto de reflexão filosófica, e aí entram todos aqueles que reivindicam para ela a descentralização do sujeito e a tarefa de criar novas políticas do imaginar. Ortega projeta a amizade no contexto de uma ordem subjetiva, além da metáfora familiar aonde estes temas são reconhecidos e despolitizados. Politizar a amizade é uma tarefa a ser assumida pela filosofia. E nós diríamos partindo de Foucault, que a filosofia seria uma mudança nas molduras do pensamento, modificação dos valores estabelecidos. Ou seja, é aquela práxis, agir e pensar, que fazemos para pensar diferente. Para tornarmo-nos diferentes do que somos.


Mas voltemos à ideia do amigo: aí percebemos que a amizade possibilita uma relação da pessoa com os conceitos, e que a condição para o exercício do pensamento é que tanto a pessoa como o conceito sejam vitais um para o outro. Mas, quando uma relação se torna vital para a existência de duas pessoas, dizemos estas estão apaixonadas. Não apenas amigas, são amantes. Donde a questão: somos amigos ou amantes da filosofia?

 

Ora, o amor é esta maneira de se unir com o outro. Ser um com ele. Platão, em O Banquete, afirma que o amor é a principal motivação da filosofia, descobrindo assim o lugar central deste conceito. Seria aspiração ao belo, ao bom, ao absoluto. Mas sabemos que é também possessivo, que persegue o outro como um objeto a ser devorado. Aliás, o próprio Platão disse que o amante ama o amado como o lobo ama o cordeiro. Mas o amor também liberta do sofrimento e conduz a alma ao banquete divino. Donde, ao se falar em espiritualidade, o amor só pode ser satisfeito pela ascese, para além do que é belo e bom. Assim, uma amizade só pode ser o final de um grande amor, nunca o início. As amizades que desembocam no amor, sempre foram amor.

 

E partindo dessa premissa podemos dizer o que é a filosofia. Ou seja, das duas idéias, amigo e amante, podemos inferir novos conceitos. Podemos dizer que o filósofo é ele próprio conceito em potência e, a partir daí, que a filosofia deixa de ser apenas arte de fabricar conceitos, passando a ser o método que utilizamos para criar conceitos. Mas quando falamos em criar conceitos estamos falando em definir idéias. Assim, definir um conceito é delimitar fronteiras. Geralmente a definição faz-se pelo gênero próximo e pela diferença específica.

 

Os conceitos não nos esperam feitos, como corpos celestes. Não há céu para os conceitos. Eles devem ser criados, e não seriam nada sem a assinatura daqueles que os criam. Nietzsche definiu a tarefa da filosofia quando escreveu que os filósofos não devem contentar-se em aceitar os conceitos que lhes são dados, é necessário que fabriquem novos.  

 

Mas não podemos nos esquecer que os conceitos, assim como nós, são criações que acontecem num tempo e numa geografia. São culturais. Por isso, a filosofia não é apenas ... contemplação, reflexão, opiniões, mas perguntas sobre a essência e/ ou a existência, que precisam ser explicadas. E aqui entra a teologia, que tem como tarefa maior responder às perguntas levantadas pela filosofia. Por isso ambas andam juntas, num diálogo permanente.

 

Conhecer-se a si mesmo, fazer como se nada fosse evidente, espantar-se: por estes caminhos faz-se filosofia, mas isso ainda não garante muita coisa, pois os conceitos por serem culturais estão limitados no tempo e espaço. Não há exclusividade na criação de um conceito. Embora esta seja a função da filosofia, fazer perguntas sobre questões que não têm respostas, a teologia procura responder a tais questões, embora estas também sejam culturais e acontecem nos diferentes tempos e espaços. Filosofia e teologia conversam no caminhar da vida e quando olhamos lá no final da estrada, ambas desapareceram ... mas no lusco fusco da noite deixaram uma pequena luz, como a do vagalume, a nos dizer: siga-nos.

 

Amigo/ amante, amante/ amigo, é um caminho ou uma provação manter este tipo de relação com o conhecimento que buscamos? Utilizando estes argumentos e retomando às denominações propostas do amigo e amante, filosofia e teologia abrem o caminho do conhecimento. Na verdade, o filósofo, mais do que um sedutor é alguém seduzido pelo conhecimento que busca. Finge que é amigo, mas de fato é um amante que não consegue distanciar-se de seu objeto de paixão. E, nesta irrupção da paixão, o teólogo dá a mão ao filósofo para que este não se torne um rival de seus próprios conceitos. Por isso, no caminhar, na maturidade e nas criações da velhice, temos de fato uma profunda amizade. 

 

A natureza gosta de ocultar-se , por isso, remonta às origens da humanidade a busca por soluções para os problemas referentes à natureza, sua origem, o modo como se comporta, as transformações que nela se verificam e seu caráter de continuidade. Estes questionamentos levaram, em uma primeira instância, ao surgimento de mitos, ilustrações dos fenômenos da natureza.

 

A passagem dos mitos para a razão aconteceu, primeiramente, na Grécia Antiga, por volta de seiscentos anos antes de Cristo. Cem anos antes, Homero e Hesíodo tinham feito um apanhado da mitologia grega. Os pioneiros da filosofia criticaram a semelhança dos deuses com os humanos, mencionando que talvez os mitos fossem pura imaginação dos homens. Estas críticas associadas à nova estruturação política e social da Grécia, a de cidades-estados, nas quais os cidadãos podiam discutir temas sociais e filosóficos, pois todo o trabalho braçal era desempenhado por escravos, propiciaram o desenvolvimento de uma maneira de explicar o mundo, não mais através do mito, mas pelo bem maior de que dispõe o filósofo: a razão. Entretanto, apesar das críticas dos primeiros filósofos à concepção mítica do mundo, a filosofia não se caracteriza por uma ruptura radical com a religião, mas sim por um fluxo gradual a partir desta.

 

Como a nova ordem política permitiu aos cidadãos gregos esse encontro de idéias, que se defrontavam e provocavam nas pessoas a necessidade de um esforço intelectual mais intenso, seguiram-se, em sua esteira, as concepções referentes à natureza. Dos mitos restaram os rituais religiosos, os mistérios das seitas, e a enorme influência de toda uma história da qual permaneceram rastros. Olhando para a natureza, o ser humano viu que existia a necessidade de prolongar sua experiência intelectual até seus domínios. Era preciso buscar respostas na razão, no confronto de raciocínios, na formulação e refutação de teses.  Existe, pois, um vínculo forte entre a sociedade e a natureza. Antes, ambas estavam reunidas sob o véu dos mitos. Ao separar-se uma da outra, os cidadãos gregos serviram-se do mesmo modelo de pensamento para ordená-las. Nem poderia ser diferente, não faria o menor sentido um povo adotar um regime democrático, onde a divulgação e o debate de idéias eram essenciais, se permanecessem agarrados aos mitos no que concernem as explicações cosmogônicas.

 

Como paradigma sagrado de compreensão, o mito era um saber que, interpretando a origem do universo, dos deuses, dos homens e suas instituições, enfim, de toda e qualquer realidade, fundamentavam e estruturavam a vida individual e coletiva da comunidade.

 

No caso da Grécia antiga, sabemos da riqueza, em número e formas, que apresentava o conjunto de seus mitos. É discutível se, na experiência grega, a filosofia apareceu como uma ruptura ou como uma continuação do pensamento mítico. Por um lado, ela rompeu com o mito no que diz respeito ao modo de investigar: se podemos descrever a experiência mítica como uma cosmogonia, uma criação ou recriação religiosa da origem do mundo, a filosofia aparece como uma cosmologia, uma apreensão do mundo através do logos.

 
Os mitos gregos tanto no mundo antigo como na modernidade foram amplamente utilizados por artistas. E a utilização histórica e artística de elementos pictóricos de mitos gregos não significa em nada uma volta à mitologia. Tal questão situa-se no campo da estética mais do que no campo da ética.

 

A cultura grega apresentou uma leitura mítica do destino, que traduzia a maneira de pensar e viver do helenismo. Na sua época, por razões apologéticas, o apóstolo Paulo apresentou um conceito de destino que resgatava e transcendia o conceito vétero-testamentário de aliança. Entre os gregos, a religião e o culto de mistérios traduziam uma luta contra o destino, numa tentativa de colocar-se acima dele. A origem dos cultos de mistério não pode ser entendida quando os separamos dos mitos.

 

Para o ser humano helênico a luta com o destino era inevitável porque o destino tinha qualidades demoníacas. Era um poder sagrado e destrutivo. Envolvia o ser humano numa culpa permanente. Os cultos de mistério, dessa forma, ofereciam uma purificação das mãos de deuses que manipulando o destino excluíam do ser humano qualquer possibilidade de liberdade.

 

Assim, também a filosofia helênica, através do conhecimento, procurava elevar o ser humano à transcendência, despojando-o dos objetivos e formas da vida imediata, para lançá-lo através da abstração em direção ao ser puro. O mundo helênico era um mundo de culpa e castigo trágico e um profundo pessimismo atravessava todo o conhecimento, desde Anaximandro, passando por Pitágoras, Demócrito, Sócrates, Platão e Aristóteles.

 

Diante desse destino trágico, a filosofia helênica precisava dar a mão à teologia. Não podia caminhar sozinha. Ameaçado por um destino demoníaco, o mundo helênico ansiava por um destino salvador, necessitava não somente de liberdade, mas também de graça.

 

O cristianismo é a vitória sobre a idéia da força trágica da matéria eterna, traduz a idéia de que o mundo é uma criação divina. É a vitória da crença na perfeição do ser em todos seus aspectos sobre o medo trágico e a matéria que resiste hostil ao divino. É a negação radical do caráter demoníaco da existência em si. Dá à existência um valor essencialmente positivo e valoriza os acontecimentos da ordem temporal. Com o cristianismo, ao contrário do que pensava Anaximandro, a ordem do tempo não leva apenas ao transitório e perecível, mas também à possibilidade de algo totalmente novo, um propósito e um fim que dá pleno significado à vida humana.

 

No cristianismo o tempo triunfa sobre o espaço. O caráter irreversível do kairós substitui o tempo cíclico, transitório e perecível do pensamento helênico. A partir desse momento, destino outorga graça, que traz salvação no tempo e na história. O mundo helênico e sua interpretação da vida foram superados e com eles, a religião, os mitos e os cultos de mistério.

 

Antes, a filosofia buscava desesperadamente a revelação, agora a revelação apodera-se da filosofia dando origem à teologia. Assim, a teologia jogou fora o destino demoníaco e por extensão a metafísica helenística e se apropriou de suas formas lógicas e de seus conteúdos empíricos. O transitório e perecível da filosofia helenística não teve importância na formação do pensamento ocidental, mas sim a idéia da criação divina do mundo e a fé numa providência divina, através da salvação que se constrói historicamente e acontece no kairós. E isso já não é helenismo, mas teológica cristã.    

 

Hoje a globalização excludente é mitologia que consome o mundo. E diante dela devemos fazer o mesmo que fizeram os cristãos dos primeiros séculos. Assumir o comissionamento que nos foi entregue. É necessário proferir um não ao tempo presente. E nessa crítica, o fundamental é envolver-se na situação histórica concreta, ter a coragem de decidir e colocar-se sob julgamento, ao nível do particular.

 

O cristão deve olhar o mundo com atenção. E a luta dos povos em diáspora deve sensibilizar os intelectuais que fazem parte do corpo da igreja, pois estamos vivendo uma era de kairós, e as utopias dos povos em diáspora são partes do clamor contra a opressão. Não é correto classificar as utopias dos povos em diáspora como simples conflito racial e religioso, ou como problema localizado em regiões distantes do globo. Ao contrário, hoje estamos vendo um clamor global do desterrado e excluído. As utopias de liberdade dos povos em diáspora não serão revoltas raciais e religiosas se estivermos interessados em praticar a fraternidade cristã.

 

Porém, pregou-se, por muito tempo, um cristianismo vazio de fraternidade, que não significava mais que o desejo de que os povos aceitassem passivamente o seu destino colonial. As nações industriais do Ocidente subjugaram culturas, nações e povos por razões econômicas. Essas ações de saques internacionais golpearam os continentes e são os responsáveis pelo baixo padrão de vida que prevalece em todo o mundo chamado subdesenvolvido.

 

Nosso comissionamento, dentro da visão paulina, deve traduzir o pensamento cristão palestino de destino, ou seja, de estar proposto para algo sublime, no sentido de que os limites estão dados de antemão, da lei transcendente na qual está imbricada o conceito de liberdade. Assim, estar predestinado também implica numa trindade conceitual: o estar predestinado está sujeito à liberdade; estar predestinado significa que a liberdade também está sujeita à lei; estar predestinado significa que liberdade e lei são interdependentes e complementares.

 

Analisando o conceito cristão palestino de destino ou estar predestinado, exposto por Paulo em sua carta aos romanos, podemos dizer que a liberdade humana está ligada às leis universais, de tal forma que liberdade e leis se encontram intrinsecamente entrelaçadas. Aqui Paulo trabalha com um conceito judaico, de que lei é imposição de limites, que faz parte da revelação, que se expressa pela primeira vez como criação de Deus. Mas para Paulo, se o mal é uma probabilidade que surge da correlação lei/graça, o julgamento era inerente a tudo na criação, mas também a liberdade.

 

Assim, a certeza de que o estar predestinado é divino e não demoníaco e tem um significado realizador e não destruidor é peça-chave do pensamento paulino, que coloca o logos acima do destino. Ao fazer isso, Paulo está dizendo que a compreensão do estar predestinado não está ao alcance do ser humano, nem pode ser submetido aos processos do pensamento humano. Mas esse logos eterno se reflete através de nossos pensamentos, embora não exista um ato do pensamento sem a secreta premissa de sua verdade incondicional. Mas a verdade incondicional não está ao nosso alcance. Em nós humanos há sempre um elemento de aventura e risco em cada enunciado da verdade. Mas, mesmo assim, devemos correr este risco, sabendo que este é o único modo que a verdade pode ser revelada a seres finitos e históricos.

 

Quando mantemos relação com o logos eterno e deixamos de temer a ameaça do destino demoníaco, aceitamos o lugar que cabe ao estar predestinado em nosso pensamento. Podemos reconhecer que desde o princípio esteve submetido ao estar predestinado e que o nosso pensamento sempre desejou livrar-se dele, mas nunca conseguiu. Tarefa teológica da maior importância, na análise cristã do estar predestinado é saber relacionar logos e kairós. O logos deve envolver e dominar as leis universais, a plenitude do tempo, a verdade e o estar predestinado da existência. A separação entre logos e existência chegou ao fim. O logos alcançou a existência, penetrou no tempo e no destino. E isso aconteceu não como algo extrínseco a ele próprio, mas porque é a expressão de seu próprio caráter intrínseco, sua liberdade.

 

É necessário, porém, entender que tanto a existência como o conhecimento humano estão submetidos ao destino e que o imutável e eterno reino da verdade só é acessível ao conhecimento liberto do destino: a revelação. Dessa maneira, ao contrário do que pensavam os gregos, todo ser humano possui uma potencialidade própria, enquanto ser, para realizar seu estar predestinado. Quanto maior a potencialidade do ser – que cresce à medida que é envolvido e dominado pelo logos – mais profundamente está implicado seu conhecimento no estar predestinado.

 

Nosso destino, que aqui deve ser entendido como missão, é servir ao logos, num novo kairós, que emerge das crises e desafios de nossos dias. Quanto mais profundamente entendermos nosso destino, no sentido de prokeimai, em grego estar colocado, ser proposto, e o de nossa sociedade, tanto mais livres seremos. Então, nosso trabalho será pleno de força e verdade.

 

Diante da mitologia da globalização excludente, nosso comissionamento permanece o mesmo dos primeiros cristãos: levar a graça de Cristo a um mundo em crise, imerso em culpa e destino trágico.

 

O cristianismo é uma fé racional e objetiva que brota do caráter e das promessas de Deus. É uma confiança racional, porque nasce da reflexão e leva à constatação de que Deus é digno de crédito. Mas, de maneira nenhuma, lança fora a vontade, a afetividade, a personalidade, as ações, obras e experiências humanas enquanto componentes e realidades da fé.

 

Teologicamente, fé é conhecimento. Depende de uma opção da pessoa e é um estado do coração. Mas devemos dizer que a fé é um dever e, portanto, a vontade está incluída. Que é graça entregue pelo Espírito, e sendo graça não está limitada ao intelecto. Que dá glória a Deus e não se dá glória a Deus só com a razão, já que envolve toda a personalidade humana. A fé expressa-se em termos de afeto, ora receber inclui afeto, implica assim em engajamento de afetividades. Já a falta de fé está ligada a uma disposição moral, ou seja, a incredulidade é um estado do coração, não é um erro enquanto abordagem meramente racional.

 

Se não houver arrependimento não há fé verdadeira. João, o batista, pregava o batismo do arrependimento. E sem regeneração também não há fé. Isso foi o que Jesus explicou a Nicodemos.

 

Assim, a idéia de que o cristianismo tem base no mito nasce do desconhecimento do que significa a fé, enquanto processo que inclui coração e mente, arrependimento e regeneração. O processo da fé enquanto conhecimento está ligado à obediência, que em última instância é disposição positiva do coração, enquanto totalidade da personalidade, arrependimento e regeneração de vida. E isto está longe da mitologia.

 

Vejamos um exemplo histórico. Entre 171 e 169 antes de Cristo, Antíoco IV Epífanes, rei selêucida, enviou tropas a Jerusalém, ordenou a abolição da lei judaica e iniciou uma violenta política repressiva. Mandou construir em Jerusalém uma cidadela para abrigar uma guarnição pagã, levantou no templo um altar com uma estátua de Zeus olímpico e em dezembro de 167 a.C. iniciou sacrifícios de acordo com o ritual grego. Os capítulos 6 e 7 de 2Macabeus relatam casos de judeus torturados pelo governo por se recusarem a comer carne de porco e a fazer sacrifícios a baal shamaim (Zeus). As perseguições do início da década de 170 a.C. falam dos primeiros mártires da história: homens e mulheres que preferiam a morte a violar os preceitos de sua fé. O que tem o Eterno, criador dos céus e da terra, com baal shamaim, o Zeus olímpico? Nada.

 

A filosofia apreende a realidade através do questionamento teórico, trabalhando, a partir de uma visão geral da totalidade, do real, com separações e aproximações de idéias, dinâmica própria da razão, que estrutura o modo de pensamento que se tornou predominante no Ocidente. Por outro lado, a filosofia tem em comum com a teologia a sua questão: ambas nascem como modos de interpretar a origem (arché) do real. É neste sentido que o teólogo é também amante da sabedoria, e, de algum modo, filósofo: pois a revelação é sempre extraordinária.


A proposição de um problema dialético está relacionada à solução de um mistério ou enigma. Mas ambas são explicitadas enquanto opostos. Entende-se, pois, que o racionalismo é um ato contínuo à subjetividade, isto é, são etapas sucessivas de um processo. Não é sensato desprezar a revelação como ponto de partida para a ideação mais racional. A revelação é ponto de partida. A pergunta que se impõe é saber como revelação e pensamento racional se combinam. Sem dúvida, podemos perceber uma relação entre a revelação cosmológica de Gênesis Um e as cosmologias dos filósofos, ou mesmo de pensadores como Einstein.

 

Em termos gerais, a razão é o exercício de procurar e avaliar argumentos antes de aceitar como bom o que penso saber. É a faculdade capaz de estabelecer ou captar as relações que fazem com que as coisas dependam umas das outras, e sejam constituídas de uma determinada forma e não de outra. Ao organizar as notícias, os estudos ou as experiências, aceitamos algumas à espera de melhores argumentos. E rejeitamos outras, tentando ligar as crenças entre si com alguma harmonia. Assim, podemos dizer que o ser humano é despertado pela revelação em direção à razão e ao pensamento científico.


A Grécia era organizada em um sistema de cidades-estados, as polis, que possuíam, como características principais: autarquia, isto é, cada cidade grega possuía suas próprias leis e poderes para sua autogestão; democracia, sistema de governo que promovia igual participação dos cidadãos; a instituição de uma esfera pública, contraposta à privada.


Esta vida pública dava-se nas livres discussões em praça pública, a ágora, fazendo com que todo assunto relativo à comunidade, deliberações políticas, conhecimentos, bem como todo saber técnico ou artístico, estivesse sujeito à discussão ou ao plebiscito.


Este sistema levou a um apogeu do poder da palavra/ do logos como elemento capaz de convencer, de criar realidade. A força da persuasão pela palavra/ pelo logos era, na experiência da polis, o meio de exercer comando e domínio sobre os outros cidadãos. O âmbito de uma tal organização era o do debate, da discussão, da argumentação.

 

O chamado milagre do surgimento do pensamento científico entre os gregos foi fruto de uma organização social e política propícia, ocorrida em todos os planos do mundo grego, religiosa, política, social e intelectual. Com a queda dos regimes inspirados no Oriente, nos quais os reis-sacerdotes detinham o poder político e religioso, houve um período de certa obscuridade do povo grego, onde lentamente foi sendo preparada essa nova ordenação. Além disso, o mundo passa a ser mais humano. A principal característica dessa ordem pode ser percebida no campo da política, onde desaparece a figura do rei-sacerdote para que surjam as cidades/ estado, muitas alicerçadas sobre regimes democráticos.

 

Como a nova ordem política permite aos cidadãos esse encontro de idéias, que se defrontam e provocam nos homens a necessidade de um esforço intelectual mais intenso, segue-se, em sua esteira, as concepções referentes à natureza. Olhando para a natureza, o filósofo vê que existe a necessidade de prolongar sua nova experiência intelectual até seus domínios. É preciso buscar respostas na razão, no confronto de raciocínios, na formulação e refutação de teses.  Existe pois um vínculo forte entre cultura e a natureza. Assim, a filosofia é criação da polis, no sentido de que é deste contexto social e político que a filosofia retira seu poder de argumentação e reflexão, utilizando a palavra/ o logos como meio para buscar a verdade.

 

Dentre as inúmeras transformações que surgem com a polis, a mais importante é a extraordinária preeminência da palavra/ do logos sobre todos os outros instrumentos de poder.

 

A palavra passa a ser a fonte para o debate, discussão e reflexão, sendo ela, ou melhor, o seu uso de forma mais persuasiva, que irá definir o orador vencedor dos embates dialéticos, ou seja, a partir das normas corretas para o debate. Todas as questões de interesse geral passam a ser submetidas à arte da oratória e as decisões são as conclusões dos debates. A política se torna a arte do domínio da linguagem. Com a popularidade dos debates a polis se fundamenta na pluralidade das manifestações e dos interesses comuns.

 

 

2.

 

 

O que podemos aprender daí? Bem, nunca se falou tanto sobre cidadania como nos últimos anos. Mas afinal, o que é cidadania? Podemos dizer que é uma qualidade, a de ser cidadão. E cidadão é a pessoa que está no gozo dos direitos civis e políticos de um estado, ou no desempenho de seus deveres para com o estado.

 

No sentido etimológico da palavra, cidadão deriva da palavra civita, que em latim significa cidade, e que tem seu correlato grego na palavra políticos – aquele que habita na cidade. No sentido ateniense do termo, cidadania é o direito da pessoa em participar das decisões nos destinos da cidade através da ecclesia, que é uma reunião daqueles que foram chamados de dentro para fora, que acontecia na ágora, a praça pública, onde se deliberava de comum acordo sobre como devia funcionar a cidade. Dentro desta concepção surge a democracia grega, onde somente dez por cento da população determinavam os destinos de toda a cidade, já que estavam excluídos os artesãos, os escravos e as mulheres.  

 

Mas, hoje, em teoria, as coisas são diferentes, vejamos por exemplo o preâmbulo da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.

 

“Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembleia Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias, promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte Constituição da República Federativa do Brasil.

 

Título I -- Dos Princípios Fundamentais. 

 

Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: I - a soberania; II - a cidadania; III - a dignidade da pessoa humana; IV - os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa; V - o pluralismo político. Parágrafo único. Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição.

 

Art. 2º São Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário.

 

Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: I - construir uma sociedade livre, justa e solidária; II - garantir o desenvolvimento nacional; III - erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.

 

Art. 4º A República Federativa do Brasil rege-se nas suas relações internacionais pelos seguintes princípios: I - independência nacional; II - prevalência dos direitos humanos; III - autodeterminação dos povos; IV - não-intervenção; V - igualdade entre os Estados; VI - defesa da paz; VII - solução pacífica dos conflitos; VIII - repúdio ao terrorismo e ao racismo; IX - cooperação entre os povos para o progresso da humanidade; X - concessão de asilo político.

 

Parágrafo único. A República Federativa do Brasil buscará a integração econômica, política, social e cultural dos povos da América Latina, visando à formação de uma comunidade latino-americana de nações”.

 

A cidadania traz uma profunda transformação, já que ao tornar comuns os elementos de uma cultura, levamos os mesmos à crítica e à controvérsia. Todos os elementos estão expostos a interpretações diversas e a debates apaixonados. Já não era possível se impor só por prestígio pessoal ou religioso ... deve haver o convencimento pela dialética.

 

A palavra constituiu-se no instrumento da vida política. Sua vertente escrita traz em si a possibilidade de uma completa divulgação do conhecimento. A informação torna-se pública. O saber deve tornar-se igualmente público, deixando de estar restrito aos magistrados ou sacerdotes. Após divulgadas, as idéias deverão ser submetidas ao debate político e à aceitação popular.

 

Com a consolidação da importância da palavra, o saber passa a ser um bem público. Não foi sem resistência que esse percurso foi seguido. A popularização do saber, antes inacessível, foi questionada. Houve uma articulação para que a revelação chegasse ao povo, mas não fosse objeto de exame, mas não deixasse de ser um mistério. O protestantismo nascido com a Reforma confrontou tais articulações e a liberdade de consciência produziu um salto no desenvolvimento humano.

 

Assim através da história, a filosofia sempre se encontrou numa posição ambígua: tinha que encarar a revelação e procurar a razão do debate político. Com isso, as discussões são cada vez mais importantes, afetando um maior número de pessoas, já que a filosofia precisa falar a pessoas livres. Mas como cada vez mais a filosofia coloca questões e a teologia, sua parceira de caminhada, procura responder a tais questões, nesse encontro, neste confronto, podemos dizer que a teologia se faz cultural, existencial, humana.

 

Por isso, quando dizemos que fazemos uma teologia da cultura, existencial e humana, estamos dizendo que nosso primeiro referencial é a pessoa. Nesse sentido, ao analisar as relações entre os pensamentos da diversidade brasileira devemos partir de uma fenomenologia política que leve em conta questões como a origem do pensamento político e religioso dos brasis, dos povos africanos trazidos para cá e dos lusitanos. É a partir daí, dessas plasticidades em choque e construção, que devemos trazer à tona os elementos não reflexivos desses pensamentos e analisar como eles se relacionaram num momento novo, mas desconhecido.

 

E a questão da pessoa, aí imbricada, leva-nos a uma antropologia existencial. Ora, a questão existencial é traspassada aqui pela dimensão de profundidade da vida de brasis e afros, escravizados e mercadoria e, de outro, por elementos da cultura lusa, católica e contra reformadora, que eram, também, dimensão de profundidade. Ao resgatarmos a metáfora tillichiana, dimensão de profundidade, estamos dizendo que a fé católica contra reformadora e as religiosidades de brasis e afros apontavam na direção daquilo que era incondicional para lusos e para brasis e afros, respectivamente. Assim, num sentido amplo, a fé lusa era preocupação fundante que se manifestava em todas as funções criativas de vida e relacionamentos, mas também a cultura de brasis e depois de afros cumpriu papel idêntico em relação à vida e relacionamentos desses povos.

 

Pensar os choques e construções do Brasil nos leva à pergunta sobre um desencontro civilizatório. Nem sempre é necessário perguntar-se pelos rastros de um fenômeno histórico, mas, quando não temos respostas para uma realidade que se apresenta nova, então é necessário sair atrás desses rastros: é, então, necessário procurar por tais rastros do pensamento político-religioso nas pessoas e nas comunidades.

 

Sem uma utopia do humano, de suas forças e tensões, não se pode dizer nada sobre as fundações políticas do pensamento e do ser religioso. Sem uma teoria do humano não se pode construir uma teoria das orientações políticas e religiosas. Mas os brasis e afros, e aqui estamos falando das culturas brasis e africanas, são pessoas e, por isso, seres divididos. Não importa saber onde termina a mata e onde começa o brasilíndio, não importa que a passagem entre continente africano e afrobrasileiros se tenha feito através de transições ou por saltos. O importante é que, em determinado momento, a diferença ficou clara.

 

Os brasilíndios e os afrobrasileiros têm consciência de si mesmo, distinguem-se da mata e do continente africano enquanto seres que se desdobram, tornando-se pessoas da multiculturalidade brasileira, conscientes de si mesmos. A mata e também o continente africano ignora essa divisão, por isso os brasis e afros não são uma combinação de partes autônomas, tais como mata e continente africano e corpos escravizados, mas seres fendidos enquanto unidade. Essas determinações gerais levam a algumas considerações no que se refere aos brasilíndios e afrobrasileiros, negam qualquer dedução das culturas brasilíndias e afrobrasileiras enquanto puro movimento reflexo frente ao luso que escraviza, mercadeja e mata.

 

E porque os pensamentos políticos e religiosos vêm do ser humano enquanto unidade, a relação entre brasis, afros e lusos está enraizada no ser que são. É por isso que não se pode entender essas correlações entre pensamentos e culturas sem contextualizar seus enraizamentos no seres humanos enquanto seres imbricados a pulsões e interesses, constrangimentos e aspirações constituintes do humano. Mas também é impossível separar brasis, afros e lusos de suas consciências, ou ver cada um deles como simples subproduto de suas origens enquanto brasis, afros e lusos.

 

A consciência estrutura o ser enquanto ser social, em cada um de seus elementos, inclusive as sensações pulsantes mais simples. Mas, quando se tenta desfazer laços, passa-se ao largo da primeira e mais importante característica daquilo que é humano, de que há uma consciência inadequada ao ser, uma falsa consciência, que, no entanto, não invalida a unidade do ser e da consciência. Isso porque não é possível haver falsa consciência quando o que é designado não é conhecido.

 

A consciência ajustada é uma consciência que emerge da pessoa e ao mesmo tempo a determina. Não pode ser uma coisa sem ser a outra, porque o humano é uma unidade na divisão, e dessa unidade nascem as raízes do pensamento político e religioso. O ser humano, quer seja o brasil, afro ou luso, se encontra enquanto realidade dada, assim como seu ambiente.

 

O desafio para quem analisa símbolos, quer ideológicos, quer utópicos, é o próprio exercício da leitura. O desejo de conservar a linguagem, como ela se nos apresenta numa primeira leitura, pode levar a uma solução oposta àquela que se pretende. Considerar o simbólico como desprovido de relevância é, em última instância, separar ideologia e utopia. Um exame da ideologia e da utopia, afirma Ricoeur, revela duas características comuns aos dois fenômenos.

 

Em primeiro lugar, ambos estão no ponto mais alto dos fenômenos ambíguos. Cada um tem um lado negativo e um lado positivo, construtivo e um destrutivo, uma  dimensão constitutiva e uma dimensão patológica. Em segundo lugar, têm em comum que em ambos o aspecto patológico vem em primeiro lugar, o que nos leva a proceder de forma regressiva, a partir da superfície das coisas. Assim, quando uma tradição passa a ser apenas um conjunto fechado costumamos dizer que compreendemos a referida tradição. Mas ao fazer isso, na verdade, eliminamos a possibilidade de ir além da superfície de tal tradição e restaurar seu emaranhado de intenções. Mas, logicamente, uma leitura tem como ponto de partida e exige como garantia a compreensão do primeiro discurso.

 

Sim, ao olhar brasis, afros e lusos nos vemos diante da pergunta sobre um desencontro civilizatório. Nem sempre é necessário perguntar-se pelos rastros de um fenômeno histórico, mas, quando não temos respostas para uma realidade que se apresenta nova, então é necessário sair atrás desses rastros: é, então, necessário procurar por tais rastros do pensamento político-religioso nas pessoas e nas comunidades. O que sem dúvida é uma construção complexa.

 

Edgar Morin se pergunta: o que é complexidade? E diz que, à primeira vista, é um fenômeno quantitativo, uma quantidade extrema de interações e interferências num grande número de unidades. Mas a complexidade não é apenas a quantidade de unidades e interações que desafiam nossa capacidade de cálculo: inclui incertezas, indeterminações, fenômenos aleatórios. Por isso, a complexidade tem sempre um sentido de acaso.

 

Nas leituras dos encontros e desencontros entre lusos, brasis e afros, os sentidos da palavra complexidade são fundantes, pois remetem à diversidade, elementos, conjuntos, fatos e circunstâncias que têm nexo entre si, mas também em que estão presentes o imprevisível, no sentido de que compreensões e resultados são incertos, pois aí estão sistemas ordenados e aleatórios, combinando ordem e desordem: donde a presença do acaso. E caos, conceito que sempre aparece quando se discute a complexidade, aqui deve ser entendido como vazio que propicia a geração do mundo.

 

Na construção dessa leitura, vemos que complexidade e caos são aqueles comportamentos não previsíveis que aparecem nas relações entre os franceses e os tupinambás. Dessa maneira, leituras sobre as relações entre lusos e brasis e afros, que partam da complexidade e do caos de tais encontros e desencontros, remetem às equações não lineares que regeram a plantação da colônia portuguesa em terra brasil, onde alterações no valor de parâmetros geraram mudanças significativas no projeto luso.

 

O fato é que lusos, brasis e afros eram adaptativos, suas regras de comportamento mudavam à medida que eram confrontados com realidades antes desconhecidas. Na verdade, esse novo mundo português não é aquele representado pela metáfora de uma máquina. As coisas são mais do que a soma de suas partes. Equilíbrio é morte. Causas são efeitos e efeitos são causas.

 

 

3.

 

 

A partir de Tillich, entendemos que o estado da existência é o estado da alienação. Ou seja, o ser humano se encontra alienado do fundamento do seu ser, dos outros seres humanos e de si mesmo. E essa alienação é fruto da ruptura com o mundo ideal da criação, da natureza perfeita, o que dá origem à consciência. Mas é importante entender a relação entre alienação e a comunidade humana, tribal ou não. Para Tillich, uma comunidade é uma estrutura de poder, onde existe conflito potencial ou real, mesmo que exista ação solidária da comunidade como um todo. Na comunidade não necessariamente existe culpa coletiva, mas existe destino universal e todos participam desse destino. E o destino se acha inseparavelmente unido à escravidão e liberdade, e nele é experimentado fracasso e conquista.

 

Em acontecimentos caóticos não lineares, como é o caso da experiência vivida nas terras brasis, causas e efeitos desaparecem pela amplificação da retroalimentação que transforma variações em consequências trágicas. O que acontece não é passível de ser plenamente conhecido, de imediato. Donde a importância de uma leitura da complexidade para que se possa compreender a relação entre a simbologia do acontecimento e a interpretação de suas expressões.

 

Numa abordagem teológica da cultura, a questão da origem é fundamental para o estudo dos brasis, dos afros e dos lusos e suas leituras da alienação, pois posiciona o mal em condições e momentos diferentes. A relação origem versus mal sublinha a alienação humana como estado da existência, o que permite a leitura do que são as pessoas quando confrontadas com o desafio da escravidão e da liberdade existencial. Quando no uso da liberdade está contida a possibilidade de oposição ao definido e nomeado. A alienação, pois, consiste nisso, na decisão autônoma dos brasis, dos afros e mesmo dos lusos de distanciarem-se da ordem e do estabelecido. Esse deslocamento, de ruptura com suas origens, levou brasis, afros e lusos a buscarem novos centros de suas vontades e de seus fazeres, produzindo distanciamento das origens, mas consciências dependentes dessas existências em construção. Nesse sentido, tais rupturas, tais distanciamentos, geraram encontros, e aí se colocaram possibilidades de bem e mal.

 

Assim, aqueles males eram a corrupção da liberdade de brasis, afros e lusos por eles próprios na diversidade das relações. Colocaram-se em estado servidão, deixaram-se dominar por suas próprias paixões. Assim, o entendimento do mal enquanto alienação e abertura à perda de liberdade forneceu elementos para a construção de novas espiritualidades, já que o mal remetia à própria liberdade.

 

Bem, tais leituras são complexas e amplas e têm como finalidade abrir horizontes, já que as interpretações calcadas num aparato de retroalimentação negativo levaram a leituras formais das dogmáticas cristãs e a acreditar que os lusos, expostos às novas realidades, caminharam na direção correta pela correção de seus desvios do plano traçado. À luz da complexidade hermenêutica o quadro é mais complicado: as interpretações de origem medieval estavam corretas para leituras ligadas às rotinas da formalidade isolada, mas no que tange à produção criativa de conhecimento, que respondesse às necessidades das relações sociais no Novo Mundo, como entre lusos, brasis e afros, elas se mostraram tragicamente limitadas. Os resultados não desejados de suas ações não podem ser plotados porque a estrutura do sistema religioso católico contra reformador, amaciado pela realidade da sexualidade do opressor, entre outras realidades, tornou o futuro impossível de ser controlado. O corolário é que o dogma viável não é algo que é o resultado de um intento prévio de um intérprete visionário. Ao invés disso, emerge das múltiplas possibilidades lançadas por várias dinâmicas em colisão entre a vida humana e a tradição. Assim, os estudiosos das origens das culturas brasileiras precisam se pensar jardineiros, que ao invés de intencionarem devem trabalhar possibilidades.

 

Isto porque, estamos diante da ausência de horizontes: não há razão autônoma. Assim, é o caso de se perguntar: é possível existir algum contato com a chamada realidade hermenêutica quando lusos, afros e brasis, conscientemente ou não, criaram possibilidades de mundo onde foram mais reais que o real, quando o encontro multicultural glosou a uniformidade?    

 

A identidade da pesquisa dessas origens não pode ser encarada como uma forma de ser plena e apriorística, mas como realidade relacional. Ou seja, na pesquisa se entrecruzam questões de identidades culturais e comunitárias, o que acaba por revelar uma dimensão estrangeira, a manifestação de um, dois ou três outros. Na medida em que há constante busca identitária, o confronto com esses um, dois ou três outros supõe sempre uma comparação, explícita ou implícita, e se integra naquilo que serão as representações dos outros.

 

Queremos agora dar um mergulho num texto a partir de uma antiga hermenêutica, aquela do quadrívio e os desafios hermenêuticos que nos coloca.

 

“Ó Deus, oramos por tua Igreja, que está vivendo hoje em meio às perplexidades de constantes mudanças e se encontra diante de um novo e grande trabalho. Lembramo-nos com gratidão de como ela nos nutriu no começo de nossa vida espiritual, das tarefas que ela nos deu para que ficássemos mais fortes, da influência que recebemos das pessoas que ela reúne e do poder constante do bem que ela exerce. Quando a comparamos com todas as outras instituições, nós nos alegramos, porque não há nenhuma outra que se iguale a ela. Mas quando a julgamos com a mente de seu Mestre, nos curvamos com piedade e contrição. Batiza-a novamente no Espírito de Jesus! Permite que ela renasça, ainda que para isso tenha de passar pelas dores de parto do arrependimento e da humilhação. Dá-lhe sensibilidade maior para seus deveres, compaixão mais intensa pelo sofrimento e lealdade total para com a vontade de Deus. (...) Dá-lhe força para aceitar a causa do povo e para reconhecer nas suas mãos, que tateiam em busca da liberdade e da luz, as mãos feridas de Cristo. Ordena que ela pare de procurar sua própria vida, para que ela não a perca. Dá-lhe coragem para se dedicar à humanidade, e, como o Senhor crucificado, que ela possa andar pelo caminho da cruz em direção a uma glória mais alta”. Oração pela igreja, Walter Rauschenbusch.

 

Ao percorrer os caminhos da brasilidade, ao longo dos últimos cinco séculos, podemos encontrar as raízes que explicam a miséria da nação. As bandeiras da emancipação, da democracia e da justiça social continuam presentes hoje com tanta força como em épocas passadas. Essas bandeiras, sociais e políticas, traduzem a fragilidade do cristianismo no Brasil, que no correr das últimas décadas parece ter crescido muito, mas pouco tem feito em relação aos excluídos e miseráveis.

 

No entanto, essas bandeiras emancipatórias são indissociáveis do cristianismo e da ética do amor cristão. E precisam ser vividas, enquanto tradução do cristianismo que professamos.

 

Ética cristã e democracia não são excludentes. Ao contrário, se completam e precisam ser vividas na Igreja e na denominação, se desejamos fazer a diferença, fazer com que o significado histórico do projeto protestante marque nossa presença no futuro da nação.

 

Jesus respondeu:

-- Um homem ia descendo de Jerusalém para Jericó. No caminho alguns ladrões o assaltaram, tiraram a sua roupa, bateram nele e o deixaram quase morto. Por acaso um sacerdote estava descendo por aquele mesmo caminho. Quando viu o homem, passou pelo outro lado da estrada. Também um levita passou por ali. Olhou e também foi embora pelo outro lado da estrada. Mas um samaritano estava viajando por aquele caminho e chegou até ali. Quando viu o homem, ficou com muita pena dele. Chegou perto e fez curativos, pondo azeite e vinho nas feridas. Depois disso, colocou o homem no seu próprio animal e o levou  para uma pensão, onde cuidou dele. No dia seguinte, entregou duas moedas de prata ao dono da pensão, dizendo:

-- Tome conta dele. Na volta, quando eu passar por aqui, pagarei o que você gastar a mais com ele.

Então Jesus perguntou ao professor da Lei:

-- Na sua opinião, qual desses três foi o próximo do homem assaltado?

-- Aquele que o socorreu – respondeu o professor da Lei.

-- Pois vá e faça a mesma coisa – disse Jesus. Evangelho de Lucas 10.30-37.


 

 

 

 

 

 

Venha o teu Reino. Que a tua vontade

seja feita aqui na terra como é feita no céu!

 

 

 

Eis um pensar teórico produzido pela hermenêutica patrística, que chegou ao seu momento mais alto com a lectio scolastica e lectio divina da escolástica de Tomás de Aquino. Essa hermenêutica que ficou conhecida como quadrivium, parte da compreensão de que o texto ensina os fatos, a alegoria projeta em direção à teologia, o sentido ético mostra o que se deve fazer e o sentido escatológico aponta para o que tende a ser.

 

Quadrivium é uma palavra latina derivada da junção de duas outras: quattuor, que significa quatro, e via, que quer dizer caminho. Temos assim, quatro vias, quatro sentidos, quatro caminhos. É então encruzilhada em forma de + e, por extensão, lugar frequentado, praça pública. Mas quadrívio é também hermenêutica.

 

O sentido primeiro ou sentido literal do quadrívio apresenta fatos e acontecimentos. O sentido simbólico traduz verdades teológicas do texto percebido primeiramente em seu sentido literal. O sentido ético diz respeito àquilo que o crente deve fazer. E por último, o sentido escatológico aponta para os fins últimos.

 

 

4.

 

 

Esses quatro sentidos formam um processo, que vão num crescendo, embora cada um dependa do outro. Assim, é preciso guardar-se da simplificação das categorias. Quando a exegese é fraca e desprezamos o sentido literal, o sentido simbólico que leva ao teológico tende a descolar-se da realidade produzindo conclusões disparatadas. E se não entendermos o sentido teológico, da mesma maneira, o fazer ético deixa de ser objetivo e prático. Por fim, quando não vivemos o sentido ético, o escatológico passa a ser um sonho, ou um pesadelo, por não ter relação com a vida cristã.

 

A tomada de decisão na vida pessoal e social é uma exigência constante. Vivemos sob um bombardeio de encruzilhadas. Quando possuímos desejo de mudança, advindo dos erros cometidos, postura e atos mudam a vida até aqui levada. Invertem-se então os papéis. De qualquer maneira, é incontestável o defrontar-se com a necessidade de solucionar difíceis questões no correr de nossa vida.

 

Nossas perplexidades diante das circunstâncias e do mundo têm sempre solução na encruzilhada da cruz, que nos apresentam caminhos novos a percorrer. Mas o sentido desse caminhar é desafiador.

 

A encruzilhada surge quando precisamos percorrer os quatro caminhos que nos levam à mudança: a escolha de opções, a renúncia da indiferença, a renúncia do status quo e a escolha da pessoa.

 

O primeiro caminho é o da opção ou a via das opções. É preciso ter em mente que a partir do momento em que tomamos esse caminho, temos as opções práticas de escolha para a decisão. Quando estamos diante de um desafio, estamos também diante de alternativas de escolha, quer seja uma só ou várias. Toda opção exige liberdade de escolha, preferência, tomada de decisão. Por isso é tão difícil.

 

Diante da indecisão, temos de escolher dentre as opções a que melhor soluciona o desafio que se levanta diante de nós. Quando entendemos isso, já demos o primeiro passo no caminho das opções. E esse primeiro passo é um progresso. Quando tomamos uma decisão é preciso refletir até que ponto ela é inquestionável. Quando descobrimos sua incontestabilidade as dificuldades tornam-se mais fáceis de serem resolvidas, porque temos a convicção de que a melhor opção já foi tomada. Mas ainda faltam caminhos a percorrer.

 

O segundo caminho é o da renúncia à indiferença. Renúncia a tomar posições é uma tentação presente em nossas vidas. É algo demoníaco e só se justifica em casos não vitais e passíveis de aprazamento. Muitas vezes, renunciamos à tomada de decisão quando ela nos parece traumática, não cabível ou impossível à primeira vista, assim protelamos porque nos traz um aparente conforto. Mas, na maioria dos casos, este é o pior caminho. Através dele ignoramos a decisão e optamos pela indiferença: fingimos que a decisão não se refere a nós e preferimos não enxergá-la. Normalmente, quando ignorarmos a decisão, a situação tende a se complicar ainda mais. Além, é claro, da possibilidade de sermos considerados covardes e irresponsáveis por aqueles que nos observam.

 

Ao escolhermos a via da renúncia à indiferença, procuramos mudar o cenário da decisão a fim de mudar paralelamente as opções de escolha. Ao percebermos que as opções disponíveis não bastam ou não nos atende de maneira satisfatória, procuramos uma mudança nas premissas que estabeleceram a decisão. E é esta situação que nos leva ao terceiro caminho.

 

O terceiro caminho é o da renúncia ao status quo. Quando trilhamos o caminho das opções e avançamos através da renúncia à indiferença somos, muitas vezes, desafiados a fazer um terceiro caminho: percorrer a via da resignação da dignidade de posições aparentemente inquestionáveis. Renúncia aos privilégios do status quo é isso... sacrifício para que possamos superar circunstâncias e tomar decisões.

 

O quarto caminho é a escolha da pessoa. Quando nos deparamos com circunstâncias adversas, é fundamental que a escolha de opções e nossas renúncias nos levem à pessoa. É claro que os fatores externos precisam ser levados em conta, a mudança dos paradigmas pessoais é prioritária, mas se permanecermos neles como únicas bases para nossa escolha, o futuro será implacável. A criatura humana, imagem de Deus, ser consciente de si mesmo, senhor dos seus atos e, por isso, responsável por eles, é o quarto momento do quadrívio. Mas, esta pessoa é também unidade social que se expressa no agrupamento humano organizado. No caminhar, o caminhante faz o caminho. E esta é uma questão radical.

 

É isso que Jesus nos ensina nesta belíssima parábola do Bom Samaritano. E é por isso que ele finaliza a história dizendo:

-- Vá e faça a mesma coisa.

 

O cristianismo é em sua essência uma experiência transcendente ao nível da materialidade humana, uma experiência que acontece em todos os tempos e em todas as situações e é em si mesma independente de formas sociais e econômicas. Nesse sentido, o cristianismo não pode ser identificado com um tipo determinado de organização social, em detrimento de seu caráter transcendente e universal.

 

Mas, ao mesmo tempo, o cristianismo é portador de poder e oferece à humanidade uma mensagem de vida, de conhecimento e de verdade, tanto para a pessoa como particularidade, como para a sociedade como um todo. Exatamente por isso, apresenta-se como capenga toda forma de cristianismo que se fecha na pura interioridade.

 

Também não se pode dizer que o cristianismo é um movimento que mecanicamente parte da interioridade em direção à exterioridade, apropriando-se de formas culturais ou simplesmente passando ao largo delas. Na verdade, dá forma às expressões culturais e, concomitantemente, toma novas formas a partir delas.

 

A ética do amor solidário, translúcida no texto de Lucas, leva o cristianismo a ter uma postura crítica diante da ordem social que se apoia na opressão e na exclusão social.

 

O amor solidário faz a crítica da ordem social que está erigida sobre o egoísmo político e econômico, e proclama a necessidade de uma nova postura, na qual o sentido de comunidade seja o fundamento da organização social.

 

Essa ética denuncia o egoísmo pessoal e social, assim como as estruturas que mantêm e favorecem esse egoísmo, e que, em última instância, levam à exclusão de grandes parcelas de pessoas em nosso País e em todo mundo. A solidariedade cristã, ao contrário, propõe uma parceria onde a alegria não seja fruto do lucro, mas do próprio trabalho.

 

Da mesma maneira, a ética do amor cristão condena o egoísmo de grupo, quando fechamos nossa comunidade de fé entre quatro paredes, para não ver, sentir e sofrer com a exclusão e a miséria de homens e mulheres, que para nós são apenas paisagens dos cenários urbano e rural.

 

A ética do amor solidário condena o egoísmo que justifica a violência e o abandono. E, ao contrário, prega a submissão à idéia do direito à cidadania, à vida e à construção de uma consciência comunitária.

 

Não somos os primeiros cristãos a viver tempos difíceis. A igreja no correr de sua história viveu tempos terríveis. Mas agora, no terceiro milênio da história cristã, somos mais uma vez desafiados. E tendemos a oscilar entre dois perigos: a  desesperança, ou seja, viver como se Cristo nunca fosse voltar, ou esperar o clímax iminente da história humana. Em ambos os casos, caímos numa cilada, que é virar às costas para a realidade social.

 

É impressionante notar, que o Brasil ocupa um lugar de destaque em população protestante evangélica em todo o mundo. O que deveria ter um significado estratégico para a causa da justiça social. Mas para que isso aconteça é necessário uma compreensão da ética protestante em relação próximo.

 

Omissão e indiferença, esses dois inimigos ameaçam o evangelho de Cristo. O primeiro deixa o amor ao próximo para depois, e o segundo está tão ausente que nem o próximo consegue enxergar. Por isso, precisamos desenvolver uma teologia que mostre às nossas igrejas que não existe cristianismo pleno sem compromisso social.

 

O amor cristão parte da compreensão de Deus. Ele é o Deus da justiça, é o Deus da misericórdia. Os cristãos em comunidade formam a igreja e ela é o corpo de Cristo na terra. É através da comunidade cristã que se dá o exercício terreno da graça de Deus.

 

Definida a necessidade de uma teologia e ética do amor, que é em essência solidário, somos levados a estudar a viabilidade da prática dessa atividade cristã.

 

É importante ficar claro que nossa responsabilidade social deve levar em conta dois princípios: a justiça e a paz. Está claro que toda decisão a favor da justiça exige não somente uma decisiva postura cristã, mas coragem para renunciarmos ao status quo.

 

Posicionar-se no Brasil de hoje, a partir de uma ética do amor solidário, implica em entender uma contradição essencial, que muito possivelmente só poderá ser resolvida no longo prazo: vivemos num país onde imperam a herança do autoritarismo colonial escravista, a ética da casa grande & senzala, e uma moral da sensualidade absoluta, a moral do “não existe pecado do lado de baixo do Equador / vamos fazer um pecado rasgado, suado, a todo vapor”.

 

Mas aqui é necessário perguntar: onde mora o pecado? Os anabatistas não batizavam seus filhos pequenos. Se houvesse benefício no batismo infantil, as crianças anabatistas estariam perdidas. Mas eles não estavam nem aí. Por que? A razão dos anabatistas recusarem o batismo às crianças é que para eles, só quem tem consciência do bem e do mal e erra o alvo.

 

E Paulo, o apóstolo, diz que todos erramos o alvo: é preciso de regenerar-se em Cristo, e ser justificado pela graça, através da fé. Mas para os anabatistas, as crianças pequenas não se enquadram nessa compreensão: mesmo quando cometem erros, o fazem sem consciência de bem e mal. É por isso que anabatistas e alguns dos seus companheiros de estrada afirmam que todas as crianças estão salvas, todas elas, porque ao não ter consciência moral de bem e mal em suas vidas estão cobertas pelo sacrifício vicário do Cristo.

 

E voltamos à pergunta: onde mora o pecado. A compreensão ordinária apresenta Adão, o cara que veio da terra, e Eva, a mulher que é vida, defenestrados da floresta por Deus, senhor do bem e do mal. Bem, defenestrados é um exagero, porque lançados pela janela seria impossível, porque floresta não tem janela. Mas a palavra defenestrados traduz bem o ato de violência e serve como ilustração sobre a apreciação que o senso comum faz da saída do casal do Éden. Para quem não sabe, o rio Jauaperi é o coração da Amazônia e está lá, uma reserva com animais incríveis, vegetação exuberante e igarapés que deixaram Adão e Eva deslumbrados.

 

Mas há aqui uma função Eva. William Blake, poeta do início do século XIX, escreveu sobre a importância da leitura simbólica de determinados textos da Bíblia, a fim de se encontrar neles joias que estão escondidas sob a literalidade do texto. Essa compreensão parte da constatação de que o pensamento humano não é construído apenas de racionalidade, mas é correlato às experiências do conhecimento intuitivo e transcendente, que dá sentido e significado à vida.

 

Daí que se há uma leitura literalista de Gênesis e da criação que consideram Adão e Eva figuras históricas, ancestrais da espécie humana, não podemos esquecer que há uma rica simbologia no texto.

 

Há alguns anos, a historiadora Elaine Pagels voltou-se para a leitura de Gênesis por razões inusitadas. Ela estava em Cartum, no Sudão, numa discussão com o então ministro do Exterior sudanês, membro da tribo Dinka, que tinha escrito um livro sobre as histórias ancestrais de seu povo. Então, ele lhe disse que a história da criação dos dinkas traduzem a cultura de parte do Sudão, não somente religiosa, mas também social e política.

 

Era assim porque remontava às origens do humano em busca por soluções para os problemas referentes à natureza, sua origem, o modo como esta cultura se comportava, as transformações que nela se verificavam e seu caráter de continuidade. Estes questionamentos levaram ao surgimento desses relatos ancestrais, formas pictóricas para a explicação dos fenômenos – em geral da natureza, mas também da origem e razão do humano. Daí que os relatos ancestrais formataram as culturas dos povos antigos.

 

Depois da conversa, Pagels leu na revista "Time" que leitores contestaram um artigo que falava da mudança de costumes nos Estados Unidos. Algumas dessas cartas mencionavam a história de Adão e Eva, como Deus criara o primeiro casal humano, e a importância disso para o comportamento estadunidense hoje. Estimulada por sua conversa com o líder sudanês, ela constatou que os povos, mesmo aqueles que não acreditavam literalmente no relato da criação, precisavam retornar a ele como padrão de referência, quando confrontados com os desafios dos seus valores.

 

Pagels considerou que, como as estórias de outras culturas, o relato de Gênesis abordava questões fundamentais. Os dinkas e os americanos, do norte, do centro e do sul, não seriam assim tão diferentes. Por isso, por que não olhar para os relatos da criação, quando se procura respostas a perguntas como: existe uma finalidade para a existência humana? Por que sofremos? Por que morremos?

 

Os debates intelectuais nos anos 1990 levantaram questões que o pensador Stephan A. Hoeller chamou de “Fator Gênesis”. No segundo semestre de 1996, palestras e discussões realizadas no Manhattan Theological Seminary, lideradas pelo rabino Visotzky Burton, virou série de televisão dedicado ao livro do Gênesis.

 

E Bill Moyers foi um dos teólogos a propor que diante da modernidade que se esvai, cheia de desafios para a civilização ocidental, de efervescência religiosa com poucas definições, não faz sentido procurar a saída lá na frente, mas voltar ao livro que começou a coisa toda. E, assim, católicos, protestantes e judeus, e também agnósticos, budistas, hindus e muçulmanos, participaram dos debates de Bill Moyers.

 

E as escrituras não-canônicas do vale de Nag Hammadi, no Egito, enriqueceram os debates. A biblioteca de Nag Hammadi é uma coleção de textos não-canônicos, que cobre do surgimento do cristianismo até o Concílio de Niceia, em 325. Descoberta no Alto Egito, próximo à cidade de Nag Hammadi, em 1945, a biblioteca contem textos de cinquenta e dois tratados, três trabalhos pertencentes ao Corpus Hermeticum e uma  tradução parcial de A República de Platão.

 

Segundo James M. Robinson, na sua obra The Nag Hammadi Library in English, os códices pertenceram ao monastério de São Pacômio e foram enterrados depois que o bispo Atanásio de Alexandria foi condenado pelo uso de versões não-canônicas dos testamentos em suas Cartas Festivas de 367. Após o Concílio de Niceia, monges tomaram os livros e os esconderam em potes de barro nas cavernas de Djebel El-Tarif.  Ali ficaram por mais de 1500 anos. Os textos nos códices estão escritos em copta, embora sejam traduções do grego. O mais conhecido deles é o Evangelho de Tomé, cujo único texto completo está na Biblioteca de Nag Hammadi. Atualmente, todos os códices estão no Museu Copta do Cairo.

 

Os cristãos que escreveram as escrituras de Nag Hammadi não leram os relatos do Gênesis como fatos históricos, mas como relatos ancestrais com sentidos a serem traduzidos. Para eles, Adão e Eva não eram figuras históricas, mas representações dos padrões existenciais do humano. Adão era a personificação dramática da psique, a alma, enquanto Eva personificava o pneuma, o espírito. Mas ambos eram igualmente, corpo, matéria. Alma traduzia as funções emocionais, de pensamento e da personalidade, enquanto o espírito representava a capacidade humana para a consciência existencial.

 

Assim, Adão era a representação do self menor, o ego da psicologia profunda, e Eva representaria a função transcendental, ou o “eu superior’. Obviamente, Eva, então, era superior a Adão, ao invés de inferior.

 

A superioridade de Eva e seu poder numinoso ficaria evidente por ter exercido o papel de despertadora de Adão. Em sono profundo, Adão teria sido despertado por Eva, a libertadora. Enquanto a Eva da versão tradicional a representação gnóstica parte de um princípio espiritual, Assim, não teria emergido fisicamente do corpo de Adão, mas brotado das profundezas do inconsciente de um Adão sonolento. E foi assim que nasceu a consciência crítica, que aponta para a liberdade. O texto não-canônico de João [Gnostic Apocryphon of John] fala dessa Eva.

 

“Entrei no calabouço que é a prisão do corpo. E falei: ‘Aquele que ouve, deixe-o surgir do sono profundo’. E então Adão acordou, chorou e derramou lágrimas. Depois limpou as lágrimas amargas, e perguntou: ‘Quem é aquela que chama o meu nome, e onde está essa esperança que vem a mim, estando eu na cadeia desta prisão?’ E ela falou assim: ‘Eu sou a pronoia da luz, sou o pensamento do espírito. Levanta, lembra e siga a sua raiz. E cuidado com o sono profundo’”.

 

Outra escritura da mesma coleção, “Sobre a Origem do Mundo” [On the Origin of the World], expande a reflexão do tema. Aqui a Eva ancestral cujo nome é Hawah em hebraico e Zoe, em grego, que significa a-vida, é apresentada como filha e mensageira da Sophia divina, a hipóstase feminina da divindade.

 

Sophia, sabedoria do Eterno, envia Zoe, a vida, como instrutora, a fim de levantar Adão, que se encontrava espiritualmente adormecido. A finalidade era fazer com que aqueles que fossem gerados por ele pudessem ser libertos existencialmente. Quando Eva viu seu companheiro, que era parecido com ela, mas que dormia, sentiu pena dele, e exclamou: “Adão, vive! Levante-se sobre a terra!” Ao clamor de Eva, Adão abriu os olhos e levantou-se. Quando ele a viu disse: “Você vai ser chamada de ‘Hawah, a-vida’, porque é a mãe dos humanos”.

 

Tillich fez uma interpretação semelhante: entendeu que a alienação traduz simbolicamente a situação humana. A alienação é despertada para a realidade da existência através da consciência crítica e transformadora. Nesse sentido, sem a função Eva, de despertamento para a vida e para a consciência, não haveria a construção da espécie humana.

 

Donde, a teoria do pecado original seria uma maneira transversa de ver a estória humana e flui em direção a um mar grande, uma outra teoria, a do estado de degradação da humanidade. Considera que a natureza humana foi corrompida por um erro original e que todo o humano está em estado de pecado porque é descendência de Adão e Eva. Às vezes, chamado de “o primeiro pecado”, “ou pecado de Adão” ou “o pecado dos pais”, a teoria toma formas diferentes na pluralidade do pensamento cristão, o que leva o pecado original a ser descrito de diferentes maneiras, indo da simples deficiência, como um aleijão, do tropismo ao pecado, de que somos flores do mal, o que pode ou não excluir qualquer idéia a priori de culpa, até a idéia de natureza degenerada e de culpa coletiva. Estas concepções levam a significados na teologia da essencialização do humano, particularmente em relação à graça e ao livre arbítrio.

 

Parece que Ettore Scola tinha razão, teríamos sido condenados a viver em um muquifo? Homem, mulher, filhos e parentes, amontoados? E até com a ou o amante junto, a brilhar na meia luz mortiça? A teoria do pecado original parte de algumas referências das escrituras judaico-cristãs, as epístolas de Paulo aos romanos e aos coríntios e uma passagem do Salmo 51. Mas a primeira exposição sistemática sobre a condenação ao barraco foi proposta por Agostinho de Hipona, no século quarto.


É importante notar, porém, que o referido texto fundante do relato, não apresenta menção ao "pecado original". E a palavra Adão, o da-terra, tem uma dualidade de sentido, primeiro enquanto pessoa do sexo masculino, mas também como agrupamento, espécie. Jean-Michel Maldamé (Péché originel, péché d'Adam et péché du monde) ao analisar este duplo aspecto da universalidade do texto bíblico diz que Adão deve ser considerado como o pai de todos, uma personalidade coletiva que representa a humanidade..


Grande parte do pensamento rabínico não concorda com a visão da danação de origem, que se reproduz ad aeternum. Ao contrário, a considera uma perversão da leitura cristã. E tal compreensão também está ausente no Corão, embora não seja visto assim por todos os muçulmanos. O certo é que para Maomé, Adão é o pai comum dos humanos e o primeiro profeta do Islã.


A formalização do conceito, entre os cristãos do medievo, partiu de Agostinho, em sua leitura da epístola aos romanos, feita na época em que combatia o monge celta Pelágio, que via a criação e a existência como convite ao belo, puro e bom, mesmo depois do casal de índios ter deixado o Éden.


Agostinho, pateando nas pegadas de Orígenes, a partir do neoplatonismo, procurou responder a algumas questões: por que o mal existe? Por que a morte existe? E deu uma resposta instrumental, ao citar o apóstolo quando disse que se por um Adão o errar o alvo entrou no cosmo, e com o pecado a corrupção, assim a corrupção passou a toda a humanidade porque todo mundo erra.


O texto escrito à comunidade de fé de Roma fala do erro de Adão como a ofensa de uma pessoa, não dogmatiza o ato, como Agostinho se sentiu obrigado a fazê-lo, numa leitura sem paralelo com o texto de Gênesis.


Paulo disse que sua formação intelectual aconteceu aos pés de Gamaliel, ou seja, que ele era um fariseu. E por ser fariseu, usou a hermenêutica, middot, ensinada pelos perushim, fariseus. A leitura tipológica era uma regra dessa hermenêutica. O princípio é: o gesto dos pais é um espelho para o filho. Em outras palavras, a experiência de tudo o que foi vivido pelos patriarcas, incluindo Adão, vai acontecer aos seus descendentes.


Paulo aplica este método em 1Coríntios 10,  que é um midrash baseado em Números 20.8. Este é um processo hermenêutico presente no ditado rabínico: a história não se repete, gagueja.


Agostinho chamou a ação do casal de pecado de origem. Para explicá-lo disse que se transmitia a todos os humanos, por geração, herdada como defeito. E seguiu as pegadas do preconceito contra a sexualidade humana, tão denegrida pelos estoicos. Tal interpretação choca-se com o texto de Gênesis, que fala da árvore como do "conhecimento do bem e do mal", expressão que traduz a idéia de consciência diante das alternativas da existência, que faz do humano sapiens e o separa do restante do reino animal. 

 

O emparelhamento do "pecado de origem" com as relações sexuais produziram uma rica e trágica mitologia cristã, incluído aí a idéia da maçã, para uns, e da vagina como abertura para o inferno, para outros. Mas só podemos falar de consciência diante do bem e do mal, a partir de Gênesis 3.7-13, que descreve a compreensão da incompletude existencial, que diante dos limites, dos quais a morte é o maior, lança o humano a sonhar com a imortalidade.


A presença da teoria do pecado de origem nas denominações cristãs foi sendo consolidada com o correr dos séculos. A teoria agostiniana teve influência em quase toda a teologia ocidental. No segundo Concílio de Orange, quando a liberdade de ação e pensamento de Pelágio foi condenada, parte da doutrina de Agostinho recebeu aprovação oficial. Mas o design da predestinação rígida foi rejeitado. Tal tentativa católica de criar um equilíbrio do agostinianismo esbarrou posteriormente na leitura reformada, que levou às últimas consequências a interpretação trágica do pecado de origem.


Os cristãos orientais, assim como os anabatistas no Ocidente, preferiram uma abordagem diferente para a questão da graça e do errar o alvo, apoiando-se na idéia de theosis, isto é, na busca da união com o Eterno, que foi chamada também de processo de santificação e glorificação. Os dois grupos se reconhecem mais nas teses de João Cassiano do que nas de Agostinho. Por isso, são considerados semi-pelagianos. Entendido aqui que o semi-pelagianismo, teoria que se desenvolveu no sul da Gália, no século quinto, por João Cassiano, Vicente de Lerins e Salvian de Marselha, traduz uma reflexão teológica onde o ser humano não é visto como mestre de sua salvação, mas que esta, dom gratuito de Deus, deve repousar sobre a resposta positiva do humano consciente de seu afastamento de Deus. Nesta leitura, há uma distinção entre o começo da fé, o abrir-se ao chamado de Deus, enquanto ato da vontade livre, e o progresso da fé, obra divina de santificação do humano redimido.


O magistério católico formatou o ensinamento sobre a transmissão do pecado de origem com as críticas de Agostinho a Pelágio e, depois no século dezesseis, opondo-se à Reforma protestante. Tal formatação não significou a inclusão de todas as idéias de Agostinho, já que condenou as idéias agostinianas presentes na teologia reformada e também no pensamento jansenista.


Assim o Catecismo da Igreja Católica descreve o pecado de Adão: "O homem, tentado pelo diabo, deixou morrer em seu coração a confiança em seu Criador e, abusando de sua liberdade, desobedeceu ao mandamento de Deus".


Dessa maneira, o catolicismo diz que por seu pecado Adão, como o primeiro homem, perdeu a santidade e a justiça originais que havia recebido de Deus não só para si mas para todos os seres humanos. E que em sua progênie, Adão e Eva transmitiram a natureza humana ferida por seu primeiro pecado, portanto, privada da santidade e da justiça originais. A essa privação os católicos chamam de pecado original. 


O catecismo diz ainda que o pecado original é chamado de "pecado" de modo analógico: é um pecado "contraído" e não "cometido", um estado e não um ato. Este estado é transmitido para a raça humana por "propagação", não por "geração", como proposto por Agostinho, que abriu a porta para a suspeita sobre a sexualidade. O Catecismo diz que não podemos especificar o modo como isso de deu.


Assim, a espécie humana seria em Adão um corpo doente. Por esta unidade da humanidade todos os homens estão implicados no pecado de Adão, como todos estão envolvidos na justiça de Cristo. Para o Magistério católico, vencer o pecado de origem é possível graças a ressurreição de Cristo. "A vitória sobre o pecado conquistada por Cristo nos deu situação melhor do que aquilo que o pecado tinha tirado". A situação humana é descrita como se segue:


"Embora específica para cada um (Concílio de Trento: DS 1513), o pecado original traduz em cada descendente de Adão o caráter de falta pessoal. É a privação da santidade e da justiça original, mas a natureza humana não está totalmente corrompida: ela é ferida em suas próprias forças naturais, sujeitos à ignorância, do sofrimento e do domínio do morte, e inclinada ao pecado -- esta inclinação para o mal é a concupiscência. O Batismo, dando vida à graça de Cristo, apaga o pecado original e retorna o homem a Deus, mas as consequências para a natureza, enfraquecida e inclinada ao mal, persistem no homem e no apelo à guerra espiritual".


E diante disso, apresentaram uma explicação especial para o dogma da conceição de Maria, posição única porque teria recebido antecipadamente os frutos da ressurreição de seu filho: "A Virgem Maria foi, desde o primeiro instante da sua concepção, por uma graça e favor singular de Deus Todo-Poderoso, em vista dos méritos de Jesus Cristo, o Salvador do gênero humano, preservada imune de toda mancha do pecado original", conforme afirmou o papa Pio IX, na bula Ineffabilis Deus, que proclamou o dogma.

 
A teologia ortodoxa também emprega a expressão pecado original, apesar de não usar o sentido proposto pelo catolicismo ocidental. Adere ao ensino dos pais da Igreja Oriental, de que o pecado do primeiro homem, com todas as consequências e a punição que sofreu, é hereditário à espécie humana. Uma vez que cada ser humano é descendente do primeiro homem, ninguém está isento da marca do pecado, mesmo que tal pecado tenha acontecido para que um dia todos possam viver sem pecado.


E assim tem sido desde o primeiro pecado do primeiro nascido. Este pecado tem passado, com todas as suas consequências, a todos os descendentes naturais de Adão, disse Cirilo de Alexandria.


Os ortodoxos mantiveram-se relativamente afastados dos debates ocidentais sobre a questão do pecado original, e tomaram uma posição de equilíbrio em alguns aspectos. Reconheceram que o pecado de Adão teve consequências para o cosmo, mas rejeitaram qualquer noção de culpa coletiva. Além disso, excluíram a ideia de que a natureza humana é tão corrupta que é incapaz de exercer livre arbítrio, ou seja, conforme as teorias da predestinação particular e da corrupção total defendida por João Calvino.


Em relação à transmissão do pecado original, os ortodoxos afirmaram que a transmissão do pecado original pela hereditariedade natural traduz unidade da natureza humana, na consubstanciação de todos os humanos, que estão unidos pela natureza em uma entidade mística. E isto porque a natureza humana é única e indivisível o que faz com que a transmissão do pecado desde o primogênito de toda a raça humana seja compreensível: "a partir de uma raiz, a doença se espalhou para toda a árvore. Adão é a raiz que viu a corrupção”. (Cirilo de Alexandria, fonte citada).


Outra questão a ser levantada, ao ler Gênesis 3, é se podemos falar pecado no sentido agostiniano, pois Paulo no seu texto aos romanos apresenta a lei como limite dinâmico entre o bem e o mal.


Vejamos esta questão. Ao invés de, por que a corrupção?, vamos perguntar por que o mal? Ora, as escrituras judaico-cristãs nos dizem que os pais comeram uvas verdes e as crianças tiveram seus dentes embotados (Ezequiel 18.2) e que Deus é zeloso e repreende os erros dos pais nas gerações que se seguem (Deuteronômio 5.9). Então, parece haver uma sequência no fazer humano, seja ela biológica ou cultural e, por isso, também há uma cobrança de Deus diante da repetição dos erros antigos pelas novas gerações. Ou seja, o mal perpassa a existência humana.   


Agostinho relacionou este mal à sexualidade, mas Gênesis apresenta a alienação/mal como afastamento do Eterno. É interessante ver que as escrituras judaicas dizem que morre quem peca, e que o filho não herda a falha do pai, nem a culpa do pai cai sobre o filho, pois a justiça ficará sobre o justo e a impiedade do ímpio sobre ele próprio. (Ezequiel 18.20). 


Portanto, a transmissão de fatores genéticos existe no sentido biológico, natural, assim como a transmissão cultural enquanto gaguejar da história, mas não há transmissão da danação espiritual fora da escolha e ação humanas. O que é um paradoxo diante dos textos do parágrafo anterior, mas mostra culpa e pecado, presentes em Gênesis 4.7, não como falha e imposição hereditária, mas como escolha ética, que fundamenta a agir livre.

 

“Se bem fizeres, não é certo que serás aceito? E se não fizeres bem, o pecado jaz à porta, e sobre ti será o seu desejo, mas sobre ele deves dominar”. (Gn 4.7)


Só um detalhe: nada nos diz que o casal de índios era imortal. Tudo indica exatamente o contrário. Estão vai a pergunta: como a morte pode ser o castigo de Deus diante do exercício de liberdade presente em Gênesis 3.13?


E vemos que Deus, depois do ato de distanciamento, deste “o meu caminho eu mesmo traço”, não resolveu destruí-los. Na verdade, cheio de cuidados, costurou roupas de pele, pois Adão e Eva tiveram seus olhos abertos e viram que estavam nus. Assim, a preocupação do texto não está no pecado de origem, mas em outro lugar.

 

Duas questões devem ser levadas em conta na leitura: 1. o casal foi defenestrado da floresta ou deixou para trás a natureza de onde brotou? 2. O casal de índios fez algo que os animais não fazem, que a natureza não faz, agiu de forma livre. Donde a pergunta retorna: o casal foi defenestrado por que usou tal prerrogativa e teve que arcar com as consequências de deixar a floresta? Ou a alienação, o distanciamento, rompeu com sua condição existencial natural e fez dele homo sapiens sapiens, que tem metalinguagem, pensa seus próprios pensamentos e a projeção de seu agir?


A alienação tende a levar à úbere, conceito que traduz a idéia de algo fértil, fecundo, luxuriante, de uma pessoa da qual emana alguma coisa útil e vantajosa, mas que paradoxalmente é cheia de confiança em excesso, de orgulho, ou mesmo de insolência contra Deus. O apóstolo Tiago descreve o processo da alienação que dá origem à úbere e segue em direção à corrupção, da seguinte maneira: primeiro se deseja o que não deveria ser desejado. Mergulhado no emaranhado do desejo mal pensado, caminha-se na direção de sua realização, erra-se, então, o alvo existencial, o que leva à corrupção (Tg 1.14-15).


Ou como disse Deus a Caim, o-lança: se você tivesse feito o que é certo, estaria sorrindo, mas você agiu mal e, por isso, lehatati está na porta, querendo saltar em cima de você. Ele quer dominá-lo, mas você precisa vencê-lo. (Gn 4:7) 

 

Adão e Eva antes do distanciamento não tinham desenvolvido o pensamento hipotético-dedutivo. Metaforicamente, viam em preto e branco. Não eram inocentes no sentido de um recém-nascido, mas sua compreensão de mundo repousava sobre o pensamento lógico-formal. Deus cuidava deles e se fazia presente na vida deles (Gênesis 2.15-17; 3.8-10; Eclesiastes 7.29). O casal no ato do distanciamento não sabia que estava a construir a consciência humana, porém, a partir da separação e da úbere percebeu que não era natureza e isso é constatado quando pensa a sua existência e se vê desnudo.

 

De forma desigual e combinada, na dialética afastamento/ aproximação, ao deixar a natureza para trás, tem início a construção do pensar humano. Torna-se homo sapiens sapiens, faz metalinguagem, pensa seu pensamento e as construções do seu agir. Faz sua primeira experiência existencial e deixa a floresta. No ato abre a vereda do caminhar humano, e no engatinhar pleno de úbere perde o colo quente e tem início a difícil experiência da liberdade (Gênesis 3; Romanos 5.12-19; Efésios 2.12; Romanos 3.23). Deixa o útero, nasce para a compreensão moral do fazer bem e do malfazer e passa a necessitar do exercício diário da livre escolha. Mas é esse caminho, que se por um lado traduz distanciamento, por outro possibilita a reaproximação, o reencontro, já num outro nível, naquele da escolha consciente, quando exclama como o apóstolo da dúvida... meu Senhor e meu Deus!

 

Do lado oposto ao casal que deixa a floresta, entendemos que o uso ególatra de bens e posses, a corrupção, a discriminação social e a depravação só produzem miséria e sofrimentos. Não dizemos que a pessoa está impossibilitada de criar e produzir coisas boas e belas, mas que esta ação é efêmera. Assim, temos um ser ambíguo, que produz uma cultura também ambígua, por vezes plena de beleza e criatividade, mas também maligna e destruidora.

 

Nossa atuação no campo social implica em entendermos a realidade cultural e optarmos por trilhar a via dolorosa das opções, das renúncias e do encontro com nosso próximo.

 

Só assim, a construção de uma ética do amor solidário produzirá frutos eternos, que florescerão através dos anos para a honra e a glória do nosso Senhor. Por isso, não falamos de um momento, mas de um processo, que crescerá conforme cresça também a consciência ética dos batistas, de que fomos chamados pelo Cristo para desenvolver uma tarefa histórica, juntos com os setores éticos da sociedade, que é o de transformar o Brasil num país onde todos tenham acesso a cidadania, à justiça e às condições dignas de vida.


A multicultura brasileira, fruto direto da escravidão, tem um caráter mágico, fortemente empapado no maravilhoso. Isto se dá porque o dia-a-dia da pessoa brasileira está ligado à busca da transcendência. Nesse sentido, o elemento que vai além e ultrapassa o concreto do dia-a-dia do brasileiro é o transcendente.


Essa presença do maravilhoso caldeia toda a malha relacional, indo do brasileiro simples e pobre ao sofisticado e rico. No entanto, é preciso entender que o maravilhoso relacional da cultura brasileira não nasceu de um processo pacífico, mas violento, do choque entre o universo transcendental de brancos e a matriz sacralizadora da natureza, de índios e negros. A contra-Reforma católica produziu genocídio indígena e escravidão negra, macerando o universo religioso de povos e nacionalidades. Mas nós batistas não ficamos longe disso, já que assimilamos e aceitamos como paisagem cultural a exclusão resultante da escravidão.


A recuperação da história dos povos indígenas e do povo negro realizada enquanto tradição e cultura ligam-se à necessidade de conscientização da identidade brasileira. Aquele que esquece nega o esquecido, reprimindo ou suprimindo. A identidade está imbricada à memória. Evocar a memória é convocar e provocar, é transformar.


Dessa maneira, conhecendo e reconhecendo o negativo da cultura relacional brasileira, que se traduz na tentativa de esconder as injustiças sociais, podemos resgatar o que ela construiu de positivo. Afirmar a cultura à qual pertencemos é o primeiro passo para construir uma teologia batista que responda às necessidades da pessoa brasileira, compreender a identidade desse povo e a sua busca de felicidade e transcendência.

 

Fruto dessa cultura relacional e da presença evangélica estamos presenciando em nosso País a descoberta da realidade da vida espiritual e da dimensão religiosa.

 

Diante disso, sugerimos a formulação de uma prática que deve partir de duas tarefas: uma de negação e outra de afirmação:

 

A negação consiste em realizar a crítica da tendência à privatização da igreja. O Iluminismo rompeu a unidade entre existência religiosa e existência social. Por isso, a igreja acabou por refugiar-se na esfera do privado. Privatizou a mensagem da salvação e reduziu o exercício da fé à pessoa separada da vida social e do mundo em que vive. Para a consciência batista, determinada por essa teologia, as realidades social e política têm apenas uma existência efêmera. As categorias que essa teologia utiliza para explicar a mensagem cristã são as categorias do íntimo, do privado, do não social, do não político.

 

E a afirmação consiste em desenvolver as implicações sociais da mensagem cristã. Não se trata de dar as costas ao problema levantado pelo Iluminismo, mas em responder teologicamente aos desafios, assumindo a tarefa de desenvolver uma nova relação entre teoria e prática. A Igreja pode e deve fazê-lo, pois as promessas escatológicas da tradição bíblica, de liberdade, de paz, de justiça e de reconciliação, não constituem um horizonte vazio na expectativa cristã, mas têm uma dimensão política, que é preciso fazer valer na sua função crítica do processo histórico-social.


Assim, na elaboração de uma prática protestante, à comunidade cristã cabe a tarefa de proclamar o evangelho da salvação, exercendo função crítica diante da sociedade. A igreja pode e deve assumir essa tarefa. Esta tarefa deve ser exercida na defesa da pessoa e de sua pessoalidade -- que não podem ser vistas como paisagens de um cenário -- e na mobilização do poder crítico do amor que está no centro da tradição cristã.

 

A função crítica dos protestantes frente à miséria e exclusão produzirá repercussões na própria igreja: promoverá uma nova consciência no interior da igreja e criará uma transformação das relações da igreja com a sociedade.

 

Mas, se deve haver uma ação para fora, deve também haver uma ação para dentro. Isto porque, herdamos em nossas relações sociais, religiosas e comunitárias o padrão autoritário. Tal padrão nos leva a transformar, conscientes ou não, a democracia em discurso ideológico, sem tradução prática com o conjunto da denominação, que não tem como eleger democraticamente, por voto direto e universal, os executivos de nossas empresas, definir mandatos, propor programas e apresentar candidaturas, chapas e programas para essas empresas e suas gestões. Reproduzimos assim o padrão autoritário, impossibilitando que jovens participem dele, que a criatividade e gente melhor capacitada participem do processo democrático da gestão e governo da denominação e suas empresas.  

 

Por isso, podemos dizer que a ética do amor, democracia e transparência não são excludentes. Ao contrário, se complementam e precisam ser vividas também nas empresas da denominação, se desejamos fazer a diferença, fazer com que o significado histórico do projeto batista marque presença no futuro da nação.

 

Afinal, quando nos deparamos com circunstâncias adversas, é fundamental que a escolha de opções e nossas renúncias nos levem à pessoa. É claro que os fatores externos precisam ser levados em conta, a mudança dos paradigmas pessoais é prioritária, mas se permanecermos neles como únicas bases para nossa escolha, o futuro será implacável. A criatura humana, imagem de Deus, ser consciente de si mesmo, senhor dos seus atos e, por isso, responsável por eles, é o momento especial do quadrívio. Mas, esta pessoa é também unidade social que se expressa no agrupamento humano, protestante ou não. No caminhar, o caminhante faz o caminho. E esta é uma questão radical.

 

É isso que Jesus nos ensina na parábola do bom samaritano. E é isso que ele enfatiza ao dizer:

-- Vá e faça a mesma coisa.

 

 

5.

 

 

Até aqui relacionamos protestantismo, ética e hermenêutica. Mas quando pensamos hermenêutica vemos que ideologia e utopia são passíveis de transformação civilizadora, em que, no caso que estudamos, o relacionamento de lusos, afros e brasis traduziu um momento de complexidade sem precedentes, em que as coisas mudaram mais rapidamente que suas habilidades de compreender. Para Ricoeur, a ideologia traduz sempre um processo de distorção através do qual a pessoa ou comunidade define sua situação, mas sem conhecer ou reconhecer, de fato, tal situação. Assim, por exemplo, a ideologia pode refletir a situação social de uma pessoa, sem que ela tenha plena consciência dela. Mas esse processo de ocultamento também produz conforto. Da mesma forma, o conceito de utopia é considerado como representando uma espécie de sonho social que não apresenta os passos necessários para a sua realização. Mas, nesse processo de construção do imaginário social, ambos conceitos apresentam lados positivos e negativos, e a polaridade ou a tensão entre eles são características estruturais fundantes para a compreensão da cultura e suas leituras.

 

Devemos resistir à tentação de procurar respostas simples para esses relacionamentos, pois o que parece ser força interpretativa pode transformar-se em fraqueza que nos deixa abandonados à mercê da sorte. Diante disso, será possível distinguir entre ideologia e fé na relação das comunidades analisadas, se a utopia do imaginário construiu a nova realidade? Bem, como lusos, afros e brasis viveram num mundo em processo de equilíbrio instável, para entendê-lo devemos ir às margens daquele sistema.

 

A partir da complexidade vemos o fenômeno da interpretação como marginal e emergente. Não está fixo, porque a complexidade é móvel, momentânea e o momento marginal de seu aparecimento é inevitavelmente complexo. E aqui devemos nos lembrar que uma situação de complexidade sempre aparece como confusão e dificuldade. Longe de ser um estado, esse momento emergente deve reconstituir o fluxo de tempo, enquanto impulso que mantém o texto em movimento. É interessante que a palavra momento derive da ideia de impulso em latim, mostrando movimento como sendo também impulso. Embora represente um ponto simples, o momento é inerentemente complexo. Seus limites não podem ser firmemente estabelecidos, porque sempre estão trocando de modos, que dão fluidez ao momento. Nessa leitura estamos sob o domínio do intermediário.

 

O Novo Mundo de lusos, afros e brasis não é transparente porque não temos a informação adequada e necessária para estabelecer leis. Assim, a completude da operação desse encontro de mundos é inacessível. A partir dessa compreensão de caos e complexidade, duas razões podem ser destacadas na abordagem.

 

Primeiro, devemos entender que as tradições culturais e religiosas são sistemas abertos. E, segundo, que as estruturas e os sistemas das tradições envolvem relações que não podem ser entendidas apenas em termos de modelos lineares de causalidade. É impossível medir as condições iniciais com precisão para determinar as relações causais desse período colonial. Então, a imprevisibilidade é inevitável. Ao contrário dos sistemas lineares, nos quais causas e efeitos são proporcionais, aqui a avaliação é complexa, porque o período se auto-alimentou da vida de seus partícipes nos últimos quatro séculos e meio e tal recorrência gerou causas que tiveram efeitos desproporcionados.

 

Uma leitura da complexidade está menos interessada em estabelecer a fuga ou o caos determinado, pois oscila entre ordem e caos. O momento de complexidade é o ponto no qual sistemas organizados emergem para criar novos padrões de coerência e estruturas de relação. Assim, a percepção da complexidade pode ser utilizada para iluminar as questões da correlação entre lusos, afros e brasis, isso porque a possibilidade da vida, que faz a travessia de um regime equilibrado de ordem e caos, é o que há de comum entre os processos complexos.

 

A situação dentro de uma rede que envolve trocas de diferentes tipos, econômicas, religiosas, simbólicas, constitui relações de particularidade: se torna o que é em virtude de sua situação dentro de redes complexas. Mas as redes não estão fechadas e estáveis, mas abertas. Então, a subjetividade nunca é um produto acabado, está em mudança porque as redes dentro das quais se inscreve estão em permanente mudança.  

 

E os rastros que deixamos e seguimos podem se apresentar de diferentes modos. Um dos problemas como percebemos a utopia da colônia portuguesa é que não está separada da maneira como percebemos as revelações chegadas a nós. Assim, podemos ressaltar um aspecto da dogmática católica dos lusos: Deus é onisciente e o que está acontecendo é porque ele nos escolheu para isso. Temos então a economia da representação católica que faz as leituras das revelações brasis e afros a partir de operações dentro de estruturas de referência que reivindicam para si o referir-se ao outro e são estruturas de ego-referência que usam o outro para a conformação de uma leitura de dominação.

 

No esforço para afiançar a identidade entre intérprete e texto e estabelecer sua presença, o hermeneuta descobre diferença e ausência. Embora lute para negar isso, essa é a realidade. A procura pela presença em autoconsciência conduz à descoberta da ausência. A autoafirmação e a negação provam estar ligadas indivisivelmente. E, assim, o intérprete se faz caminhante e o texto, viagem. Por isso, a viagem de volta ao ato de interpretar é uma viagem perigosa, pois na representação o texto é quebrado e aberto. A quebra do texto é registrada pela travessia. A travessia é, em geral, a abertura do texto à exterioridade, à relação enigmática de um interior atravessado pela externalidade. A ausência sempre está presente e o exterior é sempre isto: morte. O presente vivo sempre é marcado pela morte. E essa morte é a não conservação que assombra a presença e dentro do caminho da travessia se inscreve uma cruz que marca o local do desaparecimento do texto.

 

Os caminhantes necessitam compreender o que é a ideologia da imagem, e como pode ser usada para prover uma interface mais íntima entre o que é humano e a relatividade hermenêutica, e como dados sensoriais se transformam em experiência real. No entanto, o fundamental é analisar a representação que se coloca por trás da ideologia e dentro da estrutura. Pode-se dizer que tudo que o intérprete faz é simulação. Assim, a realidade da ideologia, que poderia ser um novo paradigma, se torna uma metáfora. É um conceito estranho e provocante, com certo senso de aventura. Essa compreensão da hermenêutica leva a uma totalidade estrutural na qual tudo está dentro e tem seu próprio outro. Assim, alteridade e diferença são componentes essenciais do ato de caminhar, e a relação entre alteridade e diferença é, em última instância, ato de fazer a travessia do texto.

   

Por isso, a leitura das origens tem valor na construção do caminhante. Quando tais leituras resistem a esse papel, quando se recusam a serem usadas ou consumidas, tais territorialidades são invadidas e suas alteridades colonizadas. Dessa maneira, a ideologia que as leituras das origens nos oferecem terminam sendo reaos. Prometem a realidade, que deixa de ser metáfora, e se transforma em criação verdadeira. Nesse sentido, a ideologia deixa de ser metáfora e se faz metafísica.

 

A leitura mundializada dos textos de origens criou uma perspectiva do que são os textos lusos e católicos sobre a colonização portuguesa e sobre os brasis e afros. Ou seja, estamos diante da recorrência da teoria da complexidade. Se a perspectiva anterior era a divisão, a perspectiva da leitura mundializada é a integração forçada. Esses processos de mundialização criaram uma cultura de leitura cuja lógica complexa e dinâmica só agora começamos a entender. O contraste entre grades e teias clarifica a transição do sistema anterior para o da cultura em rede. O sistema anterior nasceu para manter a estabilidade através de relações complexas e situações que deveriam ser simplificadas em termos de grades com oposições precisas. Essas eram leituras em que as paredes pareciam prover segurança. Paredes e grades, porém, não oferecem nenhuma proteção diante da possibilidade de se criar teias. Assim, as paredes se desmoronam. Novas estruturas deslocam o velho, embora isso não signifique a aparição imediata do novo. Nessa situação, as oposições estruturais que tinham formado o pensamento hermenêutico se desfazem e o equilíbrio de forças desaparece. Considerando que as paredes dividiam e traduziam um esforço para impor ordem e controlar, teias relacionam o emaranhado dos mundos, transformando conexões nas quais nenhum caminhante está no controle. Como proliferam conexões, a mudança se acelera, trazendo tudo à extremidade do caos.

 

Intérpretes oscilaram entre enfatizar ideologia e utopia. Alguns tentaram afirmar a ideologia diante da degradação da realização humana, e outros procuraram estabelecer a utopia como afirmação dos valores humanos. E nós nos perguntamos: o que a alternativa ideologia versus utopia omite? Na verdade, ideologia e utopia nos falam do imaginário social, que é formador da realidade social. Assim, a imaginação cultural, ao operar como força construtiva, mas também destruidora, confirma a situação vivida. Então, surge a pergunta: como gerar um desenvolvimento do pensamento crítico. Temos hoje um instrumental fabuloso, mas ao mesmo tempo há uma paralisia ao nível prático do pensamento crítico.

 

Estamos mais desmobilizados hoje do que no passado, disse Ricoeur. Por que? Depende da educação e das condições sociais. Os efeitos negativos do desenvolvimento do pensamento critico tiveram origem em nichos em grande parte oriundos da Europa e Estados Unidos, que fragmentaram o pensamento, dividindo-o em áreas menores. Por isso, é necessário aumentar a coragem pratica e partir para a coragem de fazer. Ousar agir. Romper todo o tipo de passividade. A crítica mexe com nossas emoções, sentimentos e nos obriga a uma nova imaginação. Essa imaginação acontece dentro das diferentes culturas, mas tem como motor nossas emoções. Partir das imagens, ou seja, da própria imaginação. Mas prefiro dizer, partir dos símbolos. O que me permite fazer a crítica da política e da religião. E isso nos leva a compreender o status da imaginação, hoje. Por exemplo, no passado histórico e remoto tivemos a imaginação profética, que criou as bases do monoteísmo. Modernamente tivemos a imaginação do racionalismo e depois outras, como a imaginação marxista. E foram e são essas imaginações que possibilitaram as críticas radicais da modernidade e do século vinte. A força do pensamento critico é essa capacidade da imaginação de sistematizar a emancipação daquilo que está dado e formalizado pela tradição. Ou seja, temos sempre que enfrentar resistências de todos os tipos, nas indiferentes áreas. A imaginação crítica está sempre aberta, mas necessita de coragem para se construir como pensamento, e também enquanto ação transformadora.

 

O sistema capitalista, o marketing, a mídia, mas também a maneira de gerar riquezas e possuir são o grande entrave para a imaginação crítica. É importante pensar este capitalismo dependente, que tem marketing e as fake news como projeto de controle do pensamento. Ou seja, de controle do imaginário. Tal imaginação escravizada não tem poder crítico, é a razão que degenera. E mesmo a razão simbólica, daí gerada, não é imaginação crítica.

 

A tarefa do intérprete, para Paul Ricoeur, na crítica das ideologias é desmascarar os interesses que impedem a realização da pessoa e pautar a construção da linguagem sem limite e coação. Jürgen Habermas, filósofo fundador da hermenêutica crítica das ideologias, e citado por Ricoeur, apresenta três interesses como constitutivos das ciências: o interesse técnico, baseado nas ciências empírico-analíticas; o interesse prático, que constrói a esfera da comunicação a partir das ciências histórico-hermenêuticas; e o interesse pela emancipação, constituído pelas ciências sociais críticas. A partir daí deve partir a hermenêutica histórico-crítica, mas, sem dúvida, é o interesse pela liberdade que funciona nela como mola propulsora. Assim, a crítica das ideologias situa-se na base de atuação das ciências histórico-hermenêuticas, ou seja, a comunicação. É no reconhecimento desse espaço que se constitui a idéia reguladora da conversa livre da dominação. Ora, a comunicação é uma herança cultural da humanidade, uma tradição, que é criada e recriada pela interpretação. O ideal da comunicação nada mais é do que uma antecipação, que depende da hermenêutica mesmo para ser anunciada como tal. Ou como disse Habermas: “Não podemos antecipar simplesmente no vazio, um dos lugares da exemplificação do ideal da comunicação é justamente nossa capacidade de vencer a distância cultural na interpretação das obras recebidas do passado. É bem provável que quem não é capaz de reinterpretar seu passado, também não seja capaz de projetar concretamente seu interesse pela emancipação”.

 

Parafraseando Martin Heidegger, quando fala dos poetas, podemos dizer que os intérpretes são os vigias da casa do ser, daquilo que somos, são os vigias da linguagem. Por isso, as interpretações são as ações de vigiar a casa do ser, mas não são o ser. Interpretar não é explicar nem analisar, é conduzir à conversa poética, onde o real se manifesta na sua verdade dialógica. A interpretação não substitui a obra da ancestralidade, possibilita a conversa. O intérprete não salvaguarda o mundo que a obra da ancestralidade abre, mas salvaguarda a abertura de mundo. Salvaguardar a abertura de mundo manifesta a obra da ancestralidade como vigor de ter sido no vir-a-ser do porvir. A interpretação da ancestralidade é acontecer, que não se propõe, criticamente, como a única verdadeira.

 

Nesse sentido, podemos dizer que a hermenêutica é um olhar que aborda a dificuldade de compreender. Classicamente, o texto, que foi escolhido para sua primeira abordagem. Mas daí vem a pergunta: precisamos de profissionais da interpretação, alguém que nos apresenta uma elevação como fio condutor? Ou é melhor falar de aproximação epistemológica, diante do espaço que se apresenta problemático. O texto não, sem dúvida, não é o melhor condutor para se estudar a problemática do espaço. A problemática do espaço se dá em regimes diferentes, espacialidade cultura, religiosa, social. Isto porque o espaço tem uma caráter familiar. Todos partimos da familiaridade do espaço, sem dificuldade, sem problema. Temos sempre uma compreensão imediata, mas é necessário encarar de frente o espaço, pois ele se faz problemático a partir de experiências diferentes, pois a espacialidade do próprio corpo e a espacialidade das coisas são coisas correlatas e têm efeitos sobre a especialidade das coisas. Leva a uma confrontação do próprio corpo. Especialidade, espacialidade, as coisas estão próximas, segundo suas originalidades primeiras. E o caráter da familiaridade é surpreendente, é homologia entre o corpo e as coisas. Donde: quando o espaço das coisas exige interpretação? Vivemos a espacialidade das coisas como algo além de nós. Donde a imaginação dos espaços íntimos, por exemplo, da casa, da família. São espaços poetizados: centro quente e periferia fria. Donde a problemática da especialidade nos leva às emoções, porque a pessoa deixa de ser centro de referência. O que exige uma pesquisa dessa problemática do eu que perdeu a orientação. Donde é necessária reorientar a interpretação, para trazer à tona o caráter problemático das coisas.

 

É verdade, somos pessoa e ambiente a partir das situações. Donde cognição é isso, é construir o caminho dessa relação pessoa e ambiente.  E imaginação significa ampliar, guardar as coisas, mas construir analogias, criar conceitos que traduzem toda a riqueza que apresenta um novo horizonte, transformação estética da espacialidade. É uma nova forma de sentir. Posso citar como exemplo, o parque Güell de Gaudí em Barcelona, ou Deus e o Diabo na terra do Sol, de Glauber Rocha. Temos aí a dimensão social do espaço. Nesse caso podemos dizer que habitar o espaço é construir uma correlação entre viver e construir, gera uma arquitetura, um pensar antes, que circula a coisa para possibilitar o habitar.

 

Assim, a referência normatiza e normaliza o espaço anteriormente criativo, o que nos leva à necessidade de deixar o espaço habilitado e conhecer a natureza selvagem. Mas somos sempre atraídos a voltar ao espaço habitado em detrimento do espaço natural. É o que leva a uma hermenêutica da natureza, e aqui estamos pensando na floresta amazônica e a imensidão ecológica do Brasil, que se faz necessária pois o desafio é presente quando estamos diante da natureza ou mesmo pensamos nela. Há uma essência evanescente na natureza. Ela parece permanente, mas ela é fugaz. Ela muda, se transforma, quando nos aproximamos, quando tentamos pegá-la.

 

Esses fenômenos explicam a polaridade entre ideologia e utopia e como se relacionam com os diferentes descompassos do imaginário social, sinalizando que os aspectos positivos e negativos dos dois conceitos devem ser entendidos como em permanente relação mútua. Como vimos, Ricoeur considera ideologia e utopia fenômenos que correlacionam termos ambíguos. Ambos têm aspectos negativos e aspectos positivos, um papel negativo e um papel positivo, uma dimensão constitutiva e uma dimensão patológica. E a segunda questão em comum, tanto na ideologia como na utopia, é que o aspecto patológico aparece primeiro, o que faz com que, ao partir da superfície do fenômeno, se proceda de forma regressiva. Mas é o caso de perguntar: além do aspecto patológico, há um elemento correlacional que vaga entre a dialética de cada um e de ambos? Esse elemento poderia não ser nem ideologia, nem utopia? Esse elemento abre o espaço-tempo das culturas hegemônicas dos brasis e africanos diante do catolicismo em expansão, diferenças diferentes e dois outros outros, que subvertem as reflexões de polaridades. Tal espaço-tempo nos leva a um modo de pensar que nos mantém abertos a uma diferença que não se pode controlar. Isso significa falar dos limites, uma parapráxis que resiste ao fechamento da leitura ideológica, que simplifica o mundo, e da leitura utópica, que santifica o mundo.

 

Nem a não declaração da leitura ideológica, nem a declaração positiva da leitura utópica criam espaços através dos quais tal espaço-tempo pode ser olhado como afirmação de alteridade e diferença sem fim. Tais questões mostram as falhas das leituras totalizantes. Ou, como disse Nietzsche, a crença dos metafísicos é a crença nas oposições de valores. Nem aos mais cuidadosos entre eles ocorreu duvidar aqui, no limiar, onde mais era necessário: mesmo quando tinham jurado duvidar de tudo. Pois é possível duvidar, primeiro, que existam absolutamente opostos. E, segundo, que as oposições sejam mais que avaliações de fachada, perspectivas provisórias, vistas de um ângulo, de baixo para cima, talvez. Assim, as leituras totalizantes se expõem enquanto relações amarradas às presenças possíveis de uma ideologia real e estruturas culturais de dominação.

 

Os textos lusos de origem e as revelações de brasis e afros precisam ser desenredados e nada decifrado. A estrutura pode ser percebida, desenrolada como a linha das meias em todos os pontos e níveis, mas nada haverá debaixo disso: o espaço da escrita é para ser percorrido, não violado. Dessa maneira, os textos de origem, ao recusarem aceitar determinado segredo, transformam-se em atividade última, atividade essa revolucionária posto que a recusa de fixar sentidos é, afinal, a recusa da hipótese de razão, ciência e lei. Assim, o fim do fundamento hermenêutico é seguido pela morte do tema autônomo. O desaparecimento de um requer o desaparecimento do outro. Mas o fundamento não desapareceu simplesmente, ele foi lançado fora.

 

Esta é a questão: o fundamento não morreu, tornou-se humano. Pois uma das coisas que precisam ser pensadas nesse contexto é a leitura mundializada dos textos. É o caso de perguntar qual será o impacto das novas hermenêuticas na noção tradicional do textos? Outra questão é a relação entre espaço e identidade, entre viagem e viajante, já que a geografia e a cultura são fundamentais para o caminhante, enquanto mediação simbólica. Parte do processo de leitura mundializada é seguramente a mundialização dos textos e o fluxo livre deles através de redes no mundo inteiro, pois já não estão restritos aos limites luso-brasileiros.  

 

Infelizmente não se fala do ato hermenêutico propriamente, quando caminhantes livres, usuários dessa viagem, rompem com a geografia produzindo uma desterritorialização, que coloca de lado a relação entre lugar físico e identidade entre viagem e viajante e de outro a noção de espaço simbólico. Da mesma maneira, por serem usuários, ao esquecerem o lugar primário das comunidades, a identidade entre viagem e viajante pode ser trocada do lugar físico para um espaço ideológico, criando um tipo diferente de configuração hermenêutica. E esse espaço ideológico mediado pelas tecnologias cresce em importância. Os processos de desterritorialização não são totalmente negativos. Se o caminhante livre olha a partir da leitura mundializada e compreende as lutas hermenêuticas presentes no mundo da leitura do texto, o esforço para retificar o choque territorial pode ser positivo, pois uma das oportunidades é criar um espaço para a troca de informações. E isso é muito importante para caminhantes livres que podem entrar nesse espaço para apresentar modos construtivos e criativos.

 

O desafio é repensar ideologia e utopia de tal modo que possamos imaginar estruturas hermenêuticas não totalizantes, que possam criar possibilidades para conexão e cooperação, que reconhecem a necessidade e a inevitabilidade de interconexões sem ter estruturas repressivas. Uma análise que procura explorar a natureza da mudança histórica pode ter problemas para avançar quando perde a possibilidade de desenvolver uma visão abrangente. A incompatibilidade entre a ideologia e a utopia não pode ser entendida como extremos radicais. Quando se procede assim, perdemos a compreensão da possibilidade das mudanças históricas. A ideologia é, em última análise, um sistema de ideias que se torna obsoleto, porque não supera a realidade presente. Já as utopias são benéficas na medida em que contribuem para a internalização das mudanças.

 

Por isso, diz Ricoeur, nessa relação falamos de “juízo de conveniência”, ou seja, maneira de resolver o problema de incompatibilidade entre ideologia e utopia: uma espécie de acordo, fruto da capacidade de avaliar o que é apropriado em uma determinada situação. Se é impossível romper o círculo ideologia/utopia, o conceito de conveniência pode nos remeter à ideia de um círculo em espiral. A metáfora teias traduz outra compreensão do círculo ideologia/utopia, processo em que os espaços vazios são tempos de utopia que atravessam os espaços ideológicos. Pensar teias cria a possibilidade para superar o impasse no qual nos achamos na relação entre hermenêuticas e as leituras mundializadas, produtos do pensamento luso católico contra reformador sobre a colônia portuguesa em terras brasis e os relacionamentos entre lusos, afros e brasis. Esse é o terreno que precisa ser explorado.

 

Na leitura transversa dos relacionamentos entre lusos, afros e brasis, suas ideologias e utopias, utilizamos o caminho da correlação tillichiana, como forma de aproximação de nosso objeto. O método da correlação relaciona polos, o discurso e a interpretação desse discurso, que deve levar em conta a situação daqueles a quem ela se destina. Situação, aqui, são as formas culturais, éticas e políticas através das quais as pessoas e grupos exprimem as suas interpretações da existência. Nesse sentido, o método da correlação possibilita que perguntas venham à tona, que haja individuação das respostas, permitindo travessias correlatas às perguntas colocadas pela própria existência.

 

Ler pressupõe algum grau de entendimento não contido no que se lê. E decifrar não é função meramente visual. É necessário recorrer a algo mais, acionar uma rede de neurônios para dar sentido ao conjunto de letras e espaços em branco. Assim, cabe ao escritor fornecer o nível de informação necessário para que o leitor possa atravessar a mensagem.

 

 

6.

 

 

Atravessar o texto, arrancar dele significações, é um desafio que não se resume a ato pessoal, nem se restringe a um curto período de anos. É nosso pressuposto que o texto de origem apresenta mais conteúdos do que é perceptível numa primeira leitura. Aqui há uma dialeticidade que permanece no equilíbrio de seus contrários, sem solução ou síntese. A necessidade histórica de atravessar nasce daí, desse processo construtivo entre ideologia e utopia. Em relação ao texto, a tarefa do viajante consiste na explicitação da mensagem através de um raciocínio dirigido e sistematizado. As conclusões nada acrescentam às ideologias e utopias presentes no texto, pois estavam contidas ali: embora sejam novas para o viajante. Em si não são diferentes, porque estavam gravadas no subsolo do texto, que foi atravessado. Mas por ser obra antiga, de época de transição, as interpretações não se esgotam. Cada novo corte no texto aprofunda travessias, mas sempre é possível avançar. As interpretações se sucedem no tempo, mas se situam no mesmo locus.

 

Cabe ao viajante reconstruir a realidade sociocultural em que o texto foi construído, caminhando por um labirinto de indagações e respostas até um porto seguro. Exatamente por isso, partimos do pressuposto de que os textos de origem possibilitam um rico diálogo, que permitem reconstruções das ideologias e utopias de lusos, afros e brasis. Por essa razão, tais estudos devem partir dos próprios textos, sabendo que quando falamos de textos nos referimos apenas a um lado da questão, a manifestação de lusos definidos, e nos esquecemos de que estamos diante de um diálogo, pois todo texto implica em interação, na existência de um outro personagem, o viajante, que não somente escuta e lê, mas vive.

 

Mas vejamos essa questão da existência a partir da leitura. Ou, como disse Freud, “há que ler o desejo: sem terra, sem pátria e sem objeto, ele vaga por um deserto, cujas trilhas conduzem o leitor à experiência limite mais-além do que aparece na imagem”. Betty Fuks.

 

O fazer da existência vale a pena. A eternidade aprecia esse bem-fazer humano, que tem seu próprio tempo, que integra a existência de cada ser na história dos fazeres humanos. É por isso que Gênesis, o primeiro texto na Torá, apresenta um ponto zero. O tempo zero vai do entardecer à meia-noite. É quando o sol desilumina o nosso espaço de forma gradual. O tempo do não-ser não é uma fratura do tempo, é tempo da história. Qohelet, o sábio, não contempla a passagem do tempo, mas a vinda do tempo. O tempo significa nada ou pouco para o eterno, mas há um sentido de tempo para o humano. A conclusão de Qohelet é que temos de ser no tempo para dar valor à eternidade que brota do nada do não-ser. E a partir de Qohelet vamos a Paulo de Tarso.

 

“Você está falando de bens materiais, de coisa frágil. Se você tem certeza de que esses bens ficarão sempre com você, fique com eles sem partilhar com ninguém. Mas se você não é o senhor absoluto deles, se tudo que você tem depende mais da sorte do que de você mesmo, por que este apego a eles?”. 

 

Fuks conta que Freud, um dia depois do sepultamento do pai, sonhou com um cartaz onde estava escrito: “Pede-se fechar os olhos”. Mais tarde, em carta a Fliess, o pai da psicanálise falou dos sentidos subjetivos da frase: “era parte da minha autoanálise, minha reação diante da morte de meu pai, vale dizer, diante da perda mais terrível na vida de um homem”. 

 

Não vou entrar nos detalhes das leituras que o próprio Freud fez da frase que apareceu em seu sonho. Diria ao leitor que vale a pena ler Freud e a Judeidade. Pretendo aqui levantar uma proposta de Fuks: “há que ler o desejo: sem terra, sem pátria e sem objeto, ele vaga por um deserto, cujas trilhas conduzem o leitor à experiência limite mais-além do que aparece na imagem”. É a partir dessa hermenêutica, que vamos ler trechos do final da primeira carta de Paulo aos Coríntios.

 

“... Foi sepultado e foi despertado do sono no terceiro dia, de acordo com o escrito”.

 

A frase acima, e a continuação do texto, é uma das mais importantes sobre a egeiro e anástasis, duas expressões gregas não substancialmente diferentes, que sintetizam a teologia da anástase dos cristãos do primeiro século. As traduções posteriores, e creio que dificilmente poderiam ser diferentes, criaram um padrão de imagem que dificultam a experiência do ir além. Por isso, fomos obrigados antes da tradução transversa fazer a desconstrução histórico-filosófica da anástase.

 

As leituras da anástasis e egeiró remontam a Homero e ao grego antigo e com seus sentidos correlatos axanástasis, anhistémi e anazaó, que podem ser traduzidas por “ficar de pé”, “ser levantado” e “voltar à vida”, foram fundamentais para a construção do conceito anástase, amplamente utilizado pelas ciências do espírito. Mas é com Platão, na literatura filosófica, que vamos encontrar um debate fundamental para a teologia da anástase, quando apresenta a alma enquanto semelhança do divino e o corpo enquanto semelhança do que é físico e temporário.

 

Platão, em Fédon, num diálogo entre Sócrates e seus amigos defendeu a idéia da imortalidade da alma. Sócrates foi condenado à morte por envenenamento, mas não teve medo, por crer ser a alma imortal. Para Platão, as almas possuem semelhanças com as formas, que são realidades eternas por trás do mundo físico, natural. Nesse sentido, para Platão, o corpo morre, mas a alma não. Ele parte do padrão cíclico da natureza, frio/ quente/ frio, noite/ dia/ noite. Assim, os mortos despertam numa nova vida depois da morte: caso contrário, a vida desapareceria.

 

E dirá através de Sócrates em Fédon: “... perguntemos a nós mesmos se acreditamos que a morte seja alguma coisa? (...) Que não será senão a separação entre a alma e o corpo? Morrer, então, consistirá em apartar-se da alma o corpo, ficando este reduzido a si mesmo e, por outro lado, em libertar-se do corpo a alma e isolar-se em si mesma? Ou será a morte outra coisa? (...) Considera agora, meu caro, se pensas como eu. Estou certo de que desse modo ficaremos conhecendo melhor o que nos propomos investigar. És de opinião que seja próprio do filósofo esforçar-se para a aquisição dos pretensos prazeres, tal como comer e beber?”

 

Paulo conhecia a discussão filosófica grega acerca da anástase, já que isso se evidencia em seus escritos, principalmente no trecho que estamos analisando, mas é certo que construiu seu conceito também levando em conta a tradição judaica, acrescentando novidades ao debate teológico. Existem referências ao ser trazido de volta à vida nas escrituras hebraico-judaicas. Mas a preocupação judaica era existencial, como vimos em Qohelet. Mais do que remeter a um futuro distante, embora tais leituras estejam presentes na teologia de alguns profetas, as histórias de anástase relacionadas aos profetas Elias e Eliseu falam do aqui e agora. Aliás, este último, mesmo de depois de morto, trouxe à vida um defunto que foi jogado sobre sua ossada. Ao tocar os ossos de Eliseu, o morto ficou vivo de novo e se levantou. Esse caminho será a novidade da compreensão cristã/ helênica da anástase.

 

“Somos arautos de que o ungido foi levantado do meio dos mortos: como alguns podem dizer que não há o ser erguido dos mortos? E, se não há o despertar do sono da morte, também o ungido não foi levantado. E se o ungido não foi levantado, é inútil o que falamos e também inútil a nossa crença. Somos então testemunhas falsas, porque anunciamos que Deus ergueu o ungido. Mas se ele não foi levantado, os mortos também não são erguidos. E se os mortos não são erguidos, o ungido também não o foi. E, se o ungido não foi erguido, a nossa crença é inútil e vocês continuam a vagar sem destino. E os que foram colocados para dormir no ungido estão destruídos”.

 

Outras fontes de Paulo foram o profeta Daniel e outras literaturas intertestamentárias, que trabalharam com a idéia de “despertar subitamente do sono”. Chifflot e De Vaux situam o livro de Daniel no período helênico por entender que é uma edição de antigos fragmentos do período babilônico, compilados, organizados e contextualizados ao momento histórico descrito no capítulo onze. Nesse capítulo, as guerras entre lágidas e selêucidas, assim como as investidas de Antíoco IV Epífanes contra Jerusalém e o templo são narradas com riquezas de detalhes. Ao contrário do que acontece nos livros proféticos anteriores, aqui o autor cita fatos aparentemente insignificantes, querendo demonstrar que é uma testemunha ocular da história. Dessa maneira, a edição que conhecemos do livro de Daniel deve ser situada no período da grande perseguição de Antíoco IV Epífanes, possivelmente entre os anos de 167 e 164 a.C., segundo Chifflot e De Vaux, já citados. A partir desse enquadramento, os capítulos 7 a 12 de Daniel, enquanto edição são chamados de “vaticinia ex eventu”, dado que o texto é contemporâneo aos acontecimentos descritos. Esses capítulos expressam a reação contra a helenização da Judéia e das perseguições em curso, mas, paradoxalmente, uma forma de pensamento afetado pela civilização helênica.

 

A partir da segunda metade do livro, o autor trabalha sobre dois temas registrados na primeira metade: que o judeu deve ser fiel a Deus em meio à tentação e à provação; e que Deus defende o servo leal que prefere morrer a violar os mandamentos. Nos seis capítulos finais, o sábio (ou grupo de sábios, cujos escritos foram compilados por um redator) retoma o conteúdo das visões que teve em relação à profanação do templo, em 167 a.C., e o erguimento da “abominação desoladora”.

 

Durante o período helênico idéias novas afloraram em meio à vida judaica, entre elas a esperança da recompensa escatológica apresentada pelas profecias apocalípticas, como em 2Macabeus 7, Daniel 12:2-3 e o Escrito de Damasco 4:4, que se traduzem concretamente na anástase.

 

Assim, os elementos novos da compreensão paulina da anástase já aparecem delineados no profeta Daniel: “Muitos dos que dormem no pó da terra despertarão, uns para a vida eterna, e outros para vergonha e horror eterno. Os que forem sábios, pois, resplandecerão como o fulgor do firmamento; e os que a muitos conduzirem à justiça, como as estrelas, sempre e eternamente”. Paulo, porém, somará um componente existencial à compreensão de Daniel, dirá que a morte, o maior de todos os odiados pela espécie humana, será privada de força.

 

“Caso o ungido só sirva para esta vida, somos as pessoas mais dignas de lástima. Mas o ungido foi levantado dentre os mortos e foi o primeiro fruto dos que foram colocados para dormir. Porque se a morte chegou pela humanidade, também o ungido dará à luz nova vida. Como morre a espécie, no ungido ela recebe vida. E isso acontece numa ordem: o ungido é o primeiro fruto, depois os que pertencem ao ungido, quando ele aparecer. E veremos o limite, quando o ungido entregar o reino a Deus e Pai, e tornar inoperante o império, os poderes e os exércitos. Convém que seja rei até derrubar os odiados por terra. O último odiado a ser privado de força é a morte, porque o resto já foi colocado debaixo de seus pés”.

 

É interessante que Paulo em seu texto sobre a anástase cita o dramaturgo, filósofo e poeta grego Menandro (342-291 a.C.), que num verso disse: “as más companhias corrompem os bons costumes”. E voltando ao Misantropo: “insisto que, enquanto você é dono deles, você deve usá-los como um homem de bem, ajudando os outros, fazendo felizes tantas pessoas quantas você puder! Isto é que não morre, e se um dia você for golpeado pela má sorte você receberá de volta o mesmo que tiver dado. Um amigo certo é muito melhor que riquezas incertas, que você mantém enterradas”. Tudo indica que Paulo gostava de teatro e de comédias.

 

Que Paulo recorreu à tradição profética fica claro quando cita o profeta Oséias literalmente: “eu os remirei do poder do inferno e os resgatarei da morte? Onde estão ó morte as tuas pragas? Onde está ó morte a tua destruição?”. Mas há uma correlação entre Platão e a tradição hebraico-judaica, que pode ser lida nesta carta de Paulo. Isto porque, como afirma Fuks, o leitor desconstrói, pois ler não é repetir o texto: é um modo de criação e de transformação. Por isso, digo que ler é um ato de anástase. E Paulo trabalhou de forma brilhante o termo, tanto nas suas leituras e estudos, como na reconstrução do próprio conceito.

 

“Que farão os que se batizam pelos mortos, se os mortos não são chamados de volta à vida? Por que se batizam então pelos mortos? Por que estamos a cada hora em perigo? Protesto contra a morte de cada dia. Eu me glorio por vocês, no ungido Iesous a quem pertencemos. Combati em Éfeso contra animais ferozes, mas o que significa isso, se os mortos não podem ressurgir? Comamos e bebamos, porque amanhã morreremos. Mas não vamos nos enganar: as más companhias corrompem os bons costumes”.

 

Na sequência da tradição hebraico-judaica, ou como diz Fuks, “os antigos hebreus não estavam trabalhados, como nós, pela necessidade de abstração, de síntese e de precisão na análise conceitual do real, herança dos gregos”, Paulo está preocupado com o corpo, com a vida.

 

“Mas alguém pode perguntar: como os mortos são trazidos à vida? E com que corpo? Estúpido! O que se semeia não tem vida, está morto. E, quando se semeia, não é semeado o corpo que há de nascer, mas o grão, como de trigo ou qualquer outra semente. Deus dá o corpo como quiser, e a cada semente o corpo que deve ter. Nem toda a carne é uma mesma carne, há carne humana, de animais terrestres, de peixes, de aves. E há corpos celestes e corpos terrestres, uma é a dignidade dos celestes e outra a dos terrestres. Diferente é o esplendor do sol do esplendor da lua e das estrelas. Porque uma estrela difere em brilho de outra estrela. Assim também o ser levantado dentre os mortos. Semeia-se o corpo perecível; levantará sem corrupção. Semeia-se na desgraça, será levantado em excelência. Semeia-se em debilidade, será erguido vigoroso. Semeia-se corpo controlado pela psiquê, ressuscitará corpo espiritual. Se há corpo controlado pela psiquê , também há corpo espiritual”.

 

Para Paulo, anástase leva à uma teologia da existência que nasce do corpo. Mas, não é simplesmente ter de volta a vida do corpo material, tanto que em certo momento Paulus diz que “deveremos ser a imagem do homem do céu”.

 

“Assim também está escrito: o primeiro ser humano, terrestre, foi feito ser-que-deseja, o futuro humano será um espírito-cheio-de-vida. Mas o que não é espiritual vem primeiro, é o natural, depois vem o espiritual. O primeiro ser humano, da terra, é terreno; o segundo humano, a quem pertencemos, é celestial. Como é o da terra, assim são os terrestres. E como é o celeste, assim são os celestiais. E, como somos a imagem do terreno, assim seremos também a imagem do celestial”.

 

O pensamento grego, platônico, está presente na anástase paulina, já que a eternidade não é construída em cima da carne e do sangue. Vemos aqui a dualidade entre a realidade física e o mundo das formas. O dualismo metafísico de Paulo admite aqui duas substâncias que regem o ser humano, no mundo natural, a psiquê, e no mundo pós-anástase, o pneuma. E dois princípios, nesse sentido bem próximo a Platão, o bem e o mal.

 

“E agora digo que a carne e o sangue não podem herdar o reino de Deus, nem a corrupção herdar a eternidade. Digo um mistério: nem todos vamos adormecer, mas seremos transformados. Num momento, num abrir e fechar de olhos, ante a última trombeta, porque a trombeta soará, os mortos serão levantados incorruptíveis, e seremos transformados. Convém que o corrompido seja tornado eterno, e o que é mortal seja tornado imortal. E, quando o que é corruptível se vestir de eternidade, e o que é mortal for transformado em imortal, então será cumprida a palavra que está escrita: a morte foi conquistada definitivamente. Onde está, ó morte, a tua picada? Onde está, ó inferno, a tua vitória? Ora, a picada da morte é o desviar-se do caminho da honra e da justiça, e a força do erro é a lei. Mas a alegria que Deus dá é a vitória por Iesous, o ungido, a quem pertencemos. Sejam firmes e persistentes, abundantes no serviço daquele a quem pertencemos, conscientes de que o trabalho árduo e duro não é desprezado por aquele a quem pertencemos”.

 

Caso voltemos à análise do conceito anástase no capítulo 15 da primeira carta aos Coríntios, tomando como ponto de partida o desafio de Fuks: “há que ler o desejo: sem terra, sem pátria e sem objeto, ele vaga por um deserto, cujas trilhas conduzem o leitor à experiência limite mais-além do que aparece na imagem”, vemos que Paulo traduziu para as novas gerações o desejo judaico-helênico, humano, da anástase: “Pede-se ser levantado”.

 

8. A questão antropocêntrica/ teológica no processo de travessia é determinante, nos leva a um processo desigual e combinado da leitura, em que elementos se sobrepõem e se complementam. Dentre eles, os mais fascinantes são as imbricações entre ideologia e utopia. A travessia do texto exige adequação histórica e linguística. Entretanto, esse conhecimento não demanda unicamente a apreensão de uma determinada realidade. Faz-se necessário que a realidade seja apreendida de determinada maneira, consoante a uma construção de análise e síntese. Como premissa fundante temos que reconhecer uma justaposição entre conhecimento intuitivo e conhecimento discursivo. O conhecimento intuitivo faz-se a partir das condições necessárias para que ele se processe, imediatamente, frente a uma determinada realidade, ao passo que o discursivo requer passar de algo conhecido, através de uma série de juízos, à apreensão do ainda não apreendido. Ao primeiro processo chamamos juízo sintético e ao segundo juízo analítico.

 

A travessia não se dá simplesmente como processo de adequação da mente do viajante ao novo que lhe é apresentado. Impõe-se que o novo, inerente ao processo cognoscitivo, tenha um sentido. Uma relação em que o viajante abre trilhas na mata da utopia e o novo se lhe apresenta como realidade ideológica. Dessa forma, a travessia não se processa entre realidades ahistóricas, mas em relação espacial e temporal, exigindo, para que a interação viajante/realidade se estabeleça, que haja algo maior, alguma coisa além, não causal, mas essencial. No processo da travessia, o viajante se encontra em construção, não é pleno senhor do processo. É um viajante colocado no tempo da medievalidade que finda e num espaço de experiências novas, que estabelece relação com a realidade que cerca o texto dentro do processo cognoscitivo enquanto dimensões históricas dos três agentes referidos.

 

Dizemos que o viajante do texto necessita de qualidades sem as quais os símbolos serão mortos, e o viajante morto para eles. Langer fala da simbolização como um ato essencial ao pensamento, anterior a ele, uma necessidade básica da mente. As sensações captadas pelos sentidos são transformadas em símbolos, ideias que servem para acumular informações de um jeito pré-raciocinativo, mas não pré-racional. Langer coloca o cérebro como transformador e a simbolização como o ponto de partida da intelecção. Os atos são, segundo ela, governados por representações, símbolos de várias espécies. Somente uma parte do comportamento do viajante é prática. O restante surge de uma necessidade interna de expressar essas representações sem a preocupação de satisfazer outras necessidades, exceto a própria ação do simbólico no cérebro.

 

Sendo, então, tal capacidade, o simbolizar, fundamental para o pensar e o agir, quais seriam as qualidades essenciais do viajante para que construa trilhas sobre o papel de um símbolo? Podemos partir de uma constatação empírica, a de que a viagem se apresenta através do simbólico, em níveis de complexidades crescentes, em que aquilo que é evidente só será visto no caminhar, com densidade na definição dos símbolos e no entendimento deles. Ou seja, qualquer viagem deve ser feita pelo viajante por inteiro e não utilizando apenas partes do que é, já que o símbolo faz-se ponte entre as partes visando a construção de uma totalidade maior.   

 

Na correlação, ato de rodear o texto, a viagem acontece ao redor dos símbolos e as travessias subjetivas atravessam o caminhar em todo o tempo.

 

Torna-se quase impossível a viagem sem entender a travessia através da empatia com o que se lê, enquanto atração pelas significações presentes no texto. Essa travessia empática traduz a atração que o viajante deve ter pelo texto, uma cumplicidade, um amor pelo diálogo a que foi chamado. Essa correlação empática no diálogo está na atitude de colocar o texto como momento de uma viagem que extrapola limites, indo além do momento, atravessando a História. Esse choque empático diante da significação deslumbra o viajante, criando curiosidade e deslumbramento.

 

Compreendemos tal postura e acreditamos que nenhum viajante deixará de levar tal fenômeno em conta, mas a tarefa da travessia está desafiada a equilibrar-se entre a compreensão desse deslumbramento e a análise dos componentes simbólicos do texto, responsáveis pela construção do destino, lá atrás, de huguenotes e tupinambás, já que tal simbolismo visa manter a ligação com a totalidade de processos históricos e transistóricos.  

 

Compreendemos, assim, que os signos presentes são representações construídas pelas religiosidades de lusos, afros e brasis, que expuseram os estados mentais de suas comunidades presentes na colônia portuguesa em terras brasis. A viagem traduz a totalidade da leitura. Esse processo se perpetua através da manutenção dos signos por operações mentais e materiais, conectando os viajantes às culturas de fé e apontando sempre em direção a um processo histórico e transistórico. Essa terra do Brasil, no processo, se realiza no tempo presente enquanto expressão ideológica, que possibilita a construção da consciência do viajante. Permite que o viajante, ao participar daquela comunidade, ultrapasse a si mesmo, quando pensa, quando age no caminhar da viagem, quando desfruta das sensações de integração. É um ato através do qual a comunidade huguenote toma forma e existe, por meio de movimentos exteriores, de significações, pois o caminhar domina o viajante e a comunidade de fé huguenote é sua fonte. Há nesse processo um imbricamento de forças, concepções pessoais e ideologias. Essa é a forma pela qual se abre ao viajante, através de bases conceituais e da vida das comunidades. Assim, para que apareça a consciência de tais comunidades é preciso que se produza uma síntese das consciências particulares, que desencadeia uma multiplicidade de ideias, sentimentos e significações.  

 

Todo esse processo está localizado num tempo, com dias e momentos religiosos definidos, e num espaço, numa geografia delimitada à colônia portuguesa em terras brasis. Tais definições permitem que a viagem produza um acúmulo de imagens, por uma associação de ideias e sentimentos, o que subordina o viajante às ações religiosas das referidas comunidades. De todas as maneiras, permanece o ato pessoal do viajante. Essa experiência tão intensa traduz um ponto de vista positivo, de poder subjetivo. É a travessia empática presente no processo.

 

Mas se falamos de empatia, há uma segunda travessia nessa construção, é a espiritualidade do viajante, compreendida como entendimento que o leva a sentir o que está além do símbolo. E aqui relacionamos símbolo e estrutura, construindo uma estrutura simbólica,  por funcionar como reorganização estrutural ao nível do psiquismo. Essa reorganização estrutural possibilita a edificação de processos orgânicos, do psiquismo e do pensamento, atuando sobre o inconsciente. Ou seja, atua sobre a função simbólica, e por extensão sobre a fonte da história de lusos, afros e brasis e suas ideologias.

 

E as travessias da empatia e da espiritualidade nos levam a falar da razão, que analisa, ordena e reconstrói, noutro nível, o símbolo, mas o faz a partir da empatia e da fé. A travessia da razão cumpre a tarefa de examinar os símbolos num processo de correlação daquilo que está em cima e daquilo que está embaixo. Mas não pode fazer isso se a empatia não tiver lembrado tal relação, se a espiritualidade não tiver chamado à cena o que estava oculto. Só então a razão, indo além do discurso, se tornará analógica e o símbolo poderá ser interpretado.  

 

Ao entrarmos na semiologia descobrimos trilhas que procuram romper com a força das comunidades presentes nos textos, favorecendo os processos simbólicos, entendidos como visões que interpretam o mundo. Mas um dos problemas é a definição de símbolo. Poderíamos dizer que o símbolo permite a fusão de ideias e imagens, e que por isso poderia ser interpretado de muitos modos, por ser uma forma dinâmica de pensamento, que coloca as ideias em movimento e as mantém nesse movimento. Se for assim, o símbolo é passível de interpretação, mas não de solução. Ou seja, o símbolo é uma representação expressiva de algo que em si mesmo está além da esfera da expressão e comunicação, uma realidade escondida e inexpressível.

 

Essa definição de símbolo nos remete ao signo, sinal ou marca, categoria que pode ser subdividida em uma complexa série de associações, em geral de caráter emocional. Nessas definições podemos ver a ideia de polivalência dos símbolos, que funcionariam como tijolos numa construção, como conjunto de classificações cognoscitivas que estabeleceriam a ordem no universo, mas também dispositivos capazes de despertar e canalizar emoções.

 

Apesar da importância dos símbolos, as culturas lusas, afros e brasis ocuparam seus espaços como fator emergente que possibilita a centralidade do ser luso, do ser afro, do ser brasil, que têm a oportunidade de se expressarem no diálogo. O ser luso, o ser afro e o ser brasil são as matrizes simbólicas de suas comunidades. Essa compreensão nos leva da ideia de diálogo à ideia de conversa, em que não temos apenas luso e católico, afro e culturas africanas, brasil e culturas brasis, mas a novidade que foi aberta com a conversa. Nesse contexto, os símbolos passam a ser estudados a partir daquele que chama à conversa, quer pessoa, quer comunidade. Temos então a ideia de símbolos multivocais, ou seja, passíveis de significações, mas ancorados numa nova estrutura, a partir de canais de comunicação expressos na relação entre luso/catolicismo, afro/culturas africanas, brasil/culturas brasis, representações que traduzem a ordem temporal da estrutura.

 

Essa nova compreensão da estrutura como trindade simbólica nos remete àquele que abre a conversa a partir de sua manifestação. Nesse sentido, a palavra civilizatória, agora texto de origem, sintetiza essa manifestação e, por isso, deve ser entendida como elemento que possibilita as travessias da empatia, da espiritualidade, da razão e da cultura.

 

Essas travessias subjetivas fundamentam a natureza genética da viagem, que se encontra em constante devir. Dessa maneira, ideologia e utopia estão intimamente ligadas à viagem, enquanto palavra civilizatória e construção histórica e social. Assim, compreendemos que, dependendo da utilização de determinado objeto ou realidade, o brasil conhece de determinada forma e no processo pode construir conceitos diferentes a partir de um objeto ou realidade anteriores. Podemos inferir ao que isso conduz. As ancestralidades civilizadoras de lusos, afros e brasis estão ligadas à vida dos lusos, afros e brasis, já que será tal experiência que agregará valor ao objeto ou realidade conhecidos e vividos. Dessa maneira, as universalidades transcendem a partir da própria experiência de vida.

 

Mas ainda não definimos a importância da ideologia e da utopia dentro do processo do mundo mágico das ancestralidades. Se a ancestralidade é histórica, é importante notar que a própria ancestralidade age sobre a vida, sobre a historicidade. E mais do que isso, ao se definir a historicidade mudamos o próprio meio onde vivemos e atuamos. Dessa forma, a ancestralidade cria processos de idealizações, escalas de valores, normas e condicionamentos. E é aí que reside a problemática da ancestralidade enquanto conhecimento: como a partir da ancestralidade civilizadora podemos conhecer seu propósito e dar um sentido ao mundo que nos cerca?

 

A verdade da ancestralidade civilizadora é a ideologia que uma determinada realidade tem para a comunidade. Há uma construção ideológica, quando a experiência civilizadora produz uma interação entre a pessoa e a ancestralidade, sem que essa experiência necessariamente influa no processo discursivo de conhecimento. Mas mesmo nesse caso a pessoa não abandona ou perde sua formação. Não deixa de ser aquilo que é: pessoa inserida na cultura. Mesmo quando esse processo dá-se em um nível superior, instantaneamente, sem elaboração discursiva, ele ou ela está condicionado pela historicidade ideológica. E dentro dessa condicionante sempre se processa a interação pessoa/realidade. Aqui, sentimentos e afetividades, que geralmente passam despercebidos, são realçados. Isso porque, nesse momento específico, determinada realidade passa a ter ideologia. E nesse caso o conhecimento da ancestralidade civilizadora faz da pessoa ser utópico. Assim, a ancestralidade civilizadora dá a ele ou ela uma ideologia. O luso, afro ou brasil, enquanto pessoa e comunidade, através da ancestralidade civilizadora, passa a estar dotado de ideologia, mas ao mesmo tempo esse conhecimento, essa ideologia dada, não se dá sem história, mas dentro das limitações de sua própria obediência. Podemos, então, concluir que a partir da ancestralidade civilizadora a pessoa é significante ideológico na construção da comunidade, pois através do conhecimento da ancestralidade civilizadora é ele ou ela quem historicamente pode modificar causas e efeitos, imprimindo ao processo nova direção.

 

Mas como se processa a relação entre ideologia e utopia, quer no caso isolado da interação entre luso e realidade, quer no caso de todo o processo simbólico da ancestralidade civilizadora? Se dentro do conhecimento da ancestralidade o luso é significante ideológico, podemos, então, ver que a escala de valores do sistema ético, oferecido pela ancestralidade à comunidade, é parte integrante de conteúdos utópicos dados ao mundo luso pela própria ancestralidade civilizadora. Donde, dentro de uma correlação ideologia-utopia existem elementos dinâmicos de transformação.

 

Um outro exemplo: a mata é o mundo do brasil. Nesse sentido, aí ele constrói seu habitat. Dessa forma, através da ideologia dada pelo brasil à natureza, enquanto domínio e expansão, dentro de uma ideologia de utilização que lhe empresta, atua sobre ela, produzindo cultura e transformação. Partimos da compreensão de que a cultura integra aptidões, costumes, crenças, hábitos, instituições, e como a ancestralidade, se faz presente na comunidade.

 

Existem e entendimento duas ordens de fatos ligados à teologia da cultura: uma que diz respeito ao que construímos a partir de ideologias e utopias, e outra que diz respeito ao universo onde vivemos enquanto membros de uma comunidade. O viajante, armado de um caminhar teológico, procura fazer na ordem da cultura trilhas através das necessidades fundamentais e das necessidades cujas origens estão nas ideologias e nas utopias e, por isso, idênticas no seio da espécie homo sapiens. Ao viajante que se faz teólogo da cultura, interessa o geral, mas não pode esquecer as modulações, diferentes segundo as comunidades e as épocas, que se impuseram a uma matéria-prima, por definição, sempre idêntica e presente em todos os lugares.

 

Para o viajante, um dos centros de discussão é a linguagem, pois ela faz a ponte entre as características e necessidades estruturais do homo sapiens e o fato cultural. É uma característica, uma aptidão que vem da tradição externa, mas ao mesmo tempo é instrumento essencial, o meio privilegiado que dá possibilidade à realização do homo sapiens. Mas, ao mesmo tempo em que é manifestação da ordem cultural e, nesse sentido, manifestação histórica, permite o estabelecimento de um relacionamento entre a pessoa e sua historicidade.

 

No entanto, o uso da linguagem é mais complexo quando se trata da espiritualidade do que em relação a outras formas estéticas, já que usa e combina não somente elementos fornecidos pela linguagem propriamente dita, mas também elementos brutos, que estariam no plano da natureza, mas não culturalizados.

 

A ancestralidade civilizadora não pode ser identificada apenas como expressão daquilo que é ancestral, nem somente com os estados que provoca. Cada estado de consciência subjetiva tem algo de pessoal e momentâneo que o torna inapreensível e incomunicável em seu conjunto, mas a ancestralidade está destinada a servir de intermediária entre a pessoa e sua cultura.

 

A linguagem enquanto representação da ancestralidade civilizadora no mundo sensível, sem nenhuma restrição, é acessível à percepção. Mas, ainda assim, não podemos reduzir a ancestralidade civilizadora à linguagem, pois acontece que a ancestralidade civilizadora, deslocando-se no espaço e no tempo, muda de aspecto e reformata conteúdos. A linguagem da ancestralidade traduz na maioria das vezes apenas a utopia, que na consciência da cultura corresponde a uma significação, dada pelo que tem de comum os estados subjetivos provocados pela linguagem nos membros da comunidade.

 

Além desse núcleo central, pertencente à consciência, há em todo ato de percepção da ancestralidade elementos psíquicos subjetivos, que podem ser entendidos como fatores associativos de percepção emocional e estética. Tais elementos subjetivos podem, por sua vez, ser objetivados, mas somente na medida em que sua qualidade geral ou sua quantidade são determinadas pelo núcleo central, situado na consciência da comunidade. Quanto às diferenças qualitativas, é evidente que a quantidade de representações e emoções subjetivas é mais considerável numa ancestralidade em construção do que naquela que já foi conscientizada coletivamente. O primeiro momento da construção da ancestralidade deixa a cargo o imaginar quase toda a contextura do tema, enquanto que a ancestralidade conscientizada pela comunidade suprime quase por completo a liberdade de suas associações subjetivas pela enunciação concisa.

 

É dessa maneira que, indiretamente, através do núcleo pertencente à consciência, que os conteúdos subjetivos do estado psíquico perceptor adquirem um caráter objetivamente semiológico, similar ao que têm as significações acessórias de uma palavra. Ao negarmos a relação existente entre a ancestralidade civilizadora e um estado psíquico subjetivo rejeitamos a realidade estética da ancestralidade. Sem esses conteúdos, emocional e estético, a ancestralidade pode no máximo atingir uma objetivação indireta na qualidade de significação acessória potencial. Porém, não podemos dizer que esses conteúdos, emocional e estético, fazem necessariamente parte da percepção da ancestralidade, mas, sem dúvida, no processo progressivo da ancestralidade há épocas em que esses conteúdos tendem a reforçá-la, assim com há outras épocas em que perdem força ou mesmo, aparentemente, desaparecem.

 


 

 

 

 

 

 

Dá-nos hoje o alimento que precisamos

 

 

 

Mas voltemos a uma questão que já tocamos lá atrás. Uma das questões que nos perguntamos quando relacionamos cidade e a crescente força da religiosidade evangélica é se, de fato, esta religiosidade outorga sentido às massas urbanas. Na verdade, expoentes da teologia protestante como Paul Tillich, consideram que o ser humano é um ser potencialmente espiritual, e que essa espiritualidade tende a se expressar de diferentes formas de religiosidades. E essas religiosidades nos grandes centros brasileiros ocupam um espaço privilegiado.

 

Ora, se a espiritualidade é a dimensão da profundidade do espírito humano, na urbanidade brasileira essa busca, por várias razões, é incrementada e direcionada ao protestantismo. Basta ver que no Brasil urbano a comunidade evangélica cresceu 61,45% em dez anos (IBGE, 2012). Estudos da Escola Nacional de Ciências Estatísticas consideram que é possível que em 15 anos o Brasil não tenha mais a maioria da população católica.

 

Assim, se a população brasileira urbana é religiosa, essa religiosidade foi catalisada pelo permanente processo de evangelização protestante/ evangélica dos últimos cento e cinquenta anos.

 

 

7.

 

 

A espiritualidade traduzida nas religiosidades das cidades da alta modernidade está presente em todas as ações do espírito humano, na cultura, na educação, na ética e na política. Por isso, cada vez mais expoentes das comunidades se pronunciam publicamente sobre questões que antes pertenciam estritamente a esfera civil não-religiosa.

 

De forma geral, numa leitura antropológica judaico-cristã, podemos dizer que espiritualidade é aquela relação da pessoa com a transcendência. Nesse sentido, a espiritualidade é a totalidade da vida. A religião, por sua vez, traduz a dimensão dessa espiritualidade. As experiências humanas com o que é sagrado envolvem escolha, disciplina e prática e levam o ser humano às experiências religiosas, porque a religião traduz o que é sagrado para a vida da pessoa. Dessa forma, a espiritualidade tende a ser traduzida na religiosidade, mas na globalidade de forma mais contundente enquanto fenômeno urbano.

 

Em relação à realidade brasileira percebemos no cristianismo mais diversidade confessional do que religiosa. Oitenta e nove por cento dos brasileiros confessam ser cristãos, e esta espiritualidade está presente no desejo de justiça social e solidariedade. Diante dessa espiritualidade cristã invisível, podemos dizer que quase todos os brasileiros são cristãos em alguma medida. Tomemos como exemplo a igreja católica, que não pode ser analisada como uma, pois abriga diferentes manifestações de religiosidade. Além dessa pluralidade católica, há centenas de igrejas evangélicas que incluem as protestantes históricas de migração e missão, as pentecostais históricas e as neopentecostais. Quanto utilizamos a expressão evangélico consideramos que o protestantismo virou brasileiro, miscigenando-se com as tradições afro-brasileiras, brasilíndias e católicas. E assim surgiu esse evangelicalismo conservador e integrista que conhecemos. É nesse sentido que entendemos as variáveis pentecostais e neopentecostais, que hoje estão distantes do protestantismo reformado e histórico.  

 

Em razão disso podemos dizer que enquanto fenômeno urbano a religiosidade evangélica é fator de agregação e desagregação. Podemos, até explicitar essa dualidade com um exemplo recente. Durante a redemocratização brasileira, nos anos pós-ditadura militar, evangélicos e suas comunidades se dividiram enquanto forças reformistas e forças reativas. Assim, as religiosidades evangélicas são desagregadoras quando se ligam à corrupção, ao clientelismo e às benesses. Mas agregam quando defendem a vida como valor incondicional humano. Com isso, constatamos que as religiosidades evangélicas podem ser uma coisa ou outra ou mesmo, enquanto comunidades, dialeticamente ambas. Essas são marcas da história do ocaso protestante e da expansão evangélica recente. Mas, é claro que seria um erro uniformizar a atuação dos evangélicos. O certo é que evangélicos, em nome dos fundamentos e virtualidades das doutrinas de suas comunidades, confrontam a laicidade no Brasil.

 

Vejamos, para entender melhor esta questão, como o cristianismo católico e protestante responderam às revoluções que se abriram a partir da Revolução francesa. E Vidler nos ajuda, pois suas pesquisas cobrem o período que vai do final do século dezoito até as primeiras décadas do século vinte. Focaliza o impacto da revolução social, que deu origem ao Estado moderno na Europa e Inglaterra, sobre as igrejas católica e protestante.

 

Para o pensamento conservador católico romano, a revolução francesa significou uma profunda derrota. Na verdade, durante seu pontificado o papa Pio VI fez tudo para impedir o surgimento de uma nova ordem social na Europa. Mas, com a vitória da revolução, em 1789, tropas francesas ocuparam Roma, proclamaram a República, que vai ter vida curta, e prenderam Pio VI.

 

Napoleão Bonaparte, porém, direciona a revolução para seu período de expansão e procura abrir o diálogo com Roma. O papado é restaurado e, em 1804, Napoleão convida o papa Pio VII para coroá-lo. O papa aceita, mas durante a cerimônia, como demonstração de força, o próprio Napoleão coloca a coroa sobre sua cabeça.

 

Posteriormente, Napoleão e seu exército atacam Roma. Ele é excomungado, assim como seu exército. Somente, em 1814, o papado mais uma vez é restaurado. Napoleão tinha sido derrotado pela marinha britânica e seus inimigos levantam-se contra ele em toda a Europa. Pio VII perdoa Napoleão e intercede por ele junto aos governos europeus. Napoleão é desterrado para a ilha de Santa Helena.

 

Em oposição ao pensamento absolutista, levanta-se o teólogo Félicité Robert de Lamennais, que alerta o papado para a necessidade de reivindicar em toda a Europa liberdade política e liberdade de imprensa. Lamennais torna-se um grande amigo do papa Gregório XVI e a igreja católica parece convencida de que deve romper seu conservadorismo e sua aliança com os governos absolutistas europeus. Mas, Lamennais aproxima-se dos liberais, produzindo um endurecimento político por parte de Gregório XVI.

 

No ano de 1846, Pio IX torna-se papa. Fará o mais longo pontificado da história de igreja (1846-1878). Em 1849, é proclamada a República Romana. Em 1970, a igreja católica perde suas terras na Itália, na Alemanha e outros países da Europa. É interessante notar que durante o pontificado de Pio IX a igreja católica encontra-se profundamente debilitada. E é exatamente durante esse período que alguns dogmas tornam-se doutrina católica. Em 1854, a igreja aprova o dogma da imaculada conceição de Maria. E, em 19 de julho de 1870, no I Concílio Vaticano, que tinha tido início no ano anterior, é promulgado o dogma da infabilidade papal (ex cathedra).

 

Durante o pontificado de Leão XIII (1878-1903), que sucedeu a Pio IX, os católicos são proibidos de votar nas eleições da República italiana. A Europa vive momentos de conflitos trabalhistas, com fortalecimento dos sindicatos anarquistas (IWW) e socialistas (II Internacional dos Trabalhadores). Diante da polarização de classes, Leão XIII produz a encíclica Rerum Novarum, que vem à luz no dia 15 de maio de 1891. O documento discute o relacionamento entre patrões e empregados e é a primeira tentativa da igreja, desde a revolução francesa, de adaptar-se aos novos tempos. Rerum Novarum, em latim, significa “sobre as coisas novas” e representa exatamente isso: uma reflexão católica sobre a questão social. Propõe que os ricos pratiquem a caridade, que os pobres não devem se deixar levar pelo ódio aos ricos, e que se criem sindicatos católicos. É interessante notar que, ao mesmo tempo, em que faz uma reflexão social, Leão XIII continua o combate contra as idéias liberais, que se traduzirá na publicação da encíclica Providentissimus Deus, defendendo a inerrância bíblica.

 

Pio X substitui Leão XIII e governará até o início da I Guerra Mundial. Seu pontificado será conservador. Excomungará teólogos católicos, que basearam seus estudos na crítica bíblica, como A. F. Loisy, George Tyrrel e Hermann Schell. Esses teólogos foram classificados de modernistas, por utilizarem métodos novos, com base na análise histórica e metodologia crítica.

 

Dessa maneira, da Revolução francesa até a Primeira Guerra Mundial, o catolicismo teve que enfrentar novas realidades econômicas, políticas e sociais. Durante esses anos, o catolicismo reafirmou seu conservadorismo. Assim, ao chegar ao século vinte, as diferenças entre católicos e protestantes tinham se aprofundado.

 

A revolução é um movimento social de transformação, mas pode gerar uma nova estabilidade oriunda dessa situação. Aliás, a era da revolução ainda continua e não mostra sinais de abrandamento. Tal situação levou muitos pensadores, revolucionários e homens de fé a considerarem que os dias da igreja estavam contados.

 

Assim, os principais elementos que caracterizaram esta época da história do cristianismo foram o surgimento de novas correntes de pensamento, a teologia de Schleiermacher, o sistema hegeliano, a obra de Kierkegaard e o cristianismo diante da história.

 

A industrialização e a urbanização causaram profundas mudanças na sociedade ocidental, tais como a ruptura da família expandida, o desprezo em relação aos valores do passado, confiança no progresso e grande esperança no futuro. Na verdade, Augusto Comte com sua teologia da religião positiva e Charles Darwin, com a teoria do evolucionismo ajudaram e alavancaram essa maneira de pensar.

 

Mas, para nós protestantes, George Wilhelm Friedrich Hegel (1770-1831) é uma referência fundante. Ele foi teólogo, professor e funcionário público do governo prussiano. Luterano conservador, desenvolveu um sistema de pensamento que acreditava englobar toda a realidade. Na verdade, razão para Hegel, e aqui ele entra em choque com o pensamento kantiano, é a própria realidade. “O que é racional existe, e o que existe é racional” afirma na Enciclopédia das Ciências Filosóficas em Compêndio, editada em 1817.

 

Hegel, a partir dessa visão de racional enquanto realidade cria um sistema onde procura chegar a essência do próprio conhecimento. E essa essência, para Hegel, será o método. Antepondo-se a Aristóteles, que desenvolvera o conceito de lógica formal, “uma coisa é aquilo que ela é e não outra”, Hegel mostra que “uma coisa é seu próprio movimento”.

 

Assim, uma flor não é aquilo que nós vemos, mas o seu movimento, que a faz flor. Conhecer a flor é conhecer a sua história, que se dá através de choques e oposições, que se realizam enquanto superação do momento anterior. É importante entender que para Hegel, oposição ou contradição, tese/antítese, não são polos que se negam ou se destroem, mas elementos que formam uma realidade nova (síntese). Apesar da importância do pensamento hegeliano para a construção de uma metodologia da história e da ciência, que será posteriormente desenvolvida pelos construtivistas do século vinte, Hegel erra em congelar a história. Declara que o cristianismo é a religião absoluta, porque é síntese, cujo tema central, para ele, é a relação entre Deus e o  homem, que tem como ponto culminante a encarnação. Considera a Trindade a culminação da idéia de Deus e separa o reino do Pai, enquanto Deus em-si, o reino do Filho, que é a criação, o mundo, enquanto espaço-tempo; e o reino do Espírito, que é Deus e a humanidade juntas, ou seja, a própria História.

 

Mas tal pensar filosófico, que influenciará o movimento protestante não parou aí. O socialismo utópico, herdeiro do movimento camponês europeu e do cristianismo revolucionário do séculos dezesseis e dezessete, com Karl Marx, discípulo Hegel, dá lugar a uma corrente socialista materialista que seu criador chamará de comunismo científico. Essa corrente de pensamento, atua junto aos sindicatos europeus e forma, aliada aos anarco-sindicalistas, a I Internacional dos Trabalhadores. Em 1848, Marx elabora o seu Manifesto do Partido Comunista, que será utilizado como programa da I Internacional. Marx desenvolve seu comunismo a partir do hegelianismo, propondo que a história seja analisada desde um ponto de vista da luta entre as classes. Para isso, baseia-se numa metodologia que chamará materialismo dialético, que é a dialética hegeliana isenta de seu conteúdo cristão, e materialismo histórico, que é a visão de que a história se desenvolve como luta permanente entre as classes sociais.

 

Mas aqui é necessário fazer uma nova leitura, teológica, da questão do materialismo. Há hoje um materialismo cristão, neste início do século vinte e um, que correlaciona compreensões e conceitos das escrituras judaico-cristãs, as experiências libertárias do cristianismo revolucionário do final da Idade Média, e as teologias surgidas no pós-Segunda Guerra Mundial, que dialogou com os pensamentos socialistas, marxistas ou não.

 

Historicamente, cristianismo e materialismo se posicionaram em campos antagônicos. Do lado cristão devido às leituras dos textos judaicos e cristãos definidas a partir dos dogmas das instituições, e do lado materialista por causa da negação da existência das realidades ditas não-materiais, tão fundamentais para as igrejas cristãs tradicionais. Apesar desses confrontos, hoje se considera que os dois campos nem sempre estiveram ou estão em oposição.

 

Foi a partir dos escritos de Josemaria Escrivá, um pensador católico espanhol, que o conceito foi apresentado numa leitura bem específica. Para ele, todas as realidades temporais têm um poder santificador e os cristãos podem encontrar Deus nas coisas mais materiais da vida cotidiana.

 

Pensador da tradição católica mais conservadora, este fundador da Opus Dei, criticou aqueles que apresentam o modo de vida cristão como algo exclusivamente espiritual, próprio de gente extraordinária, que permanece longe das coisas desprezíveis deste mundo.  E disse que o cristianismo que professa a ressurreição de toda a carne leva a um materialismo cristão legítimo.

 

Essas idéias foram tomadas pelo papa João Paulo II, que afirmou não existir nada que esteja fora do amor de Cristo e que dentro do rigor teológico não se pode dizer que há coisas boas, nobres, ou o seu contrário, que são exclusivamente profanas. Para João Paulo II, a Igreja Católica estaria hoje consciente de que serve uma redenção que diz respeito a todos os aspectos da existência humana, uma consciência que foi preparada por um desenvolvimento espiritual e intelectual gradual. E para ele, a mensagem de Escrivá contribuiu muito nesse sentido.

 

Mas, caminhando além do que disse Escrivá, podemos dizer o materialismo sempre esteve presente em correntes cristãs, e que ganhou força a partir das novas leituras teológicas construídas no século vinte. O que possibilitou um crescente diálogo com os pensamentos existencialistas, marxistas e neomarxistas de contestação da modernidade tardia. Hoje, podemos dizer que o materialismo cristão faz a crítica do individualismo, da sociedade de consumo e da globalidade excludente, propondo leituras que retornam aos sonhos igualitários dos cristianismos libertários de parte das igrejas do primeiro século e dos movimentos revolucionários do final da Idade Média.

 

Mas voltemos aos teólogos que marcaram estes dois últimos século. Friedrich Schleiermacher (1768-1834), será conhecido como o pai da teologia liberal, e responderá ao postulado kantiano de que a base da religião não é a razão, mas a ética. Assim, a partir do romantismo, Schleiermacher em seu “Discurso sobre a Religião Dirigido às Pessoas Cultas que a Desprezam” (1799), agrega que se a religião não tem por base a razão, também não se alicerça numa moral, mas no afeto. Chega a esta conclusão a partir de um desenvolvimento da doutrina da fé, já que afeto para ele era um sentimento que nos permite tomar consciência daquele que é a base de toda a existência. Este afeto levaria ao sentimento de dependência absoluta. O problema dessa visão é que Schleiermacher nega a importância dos fatos, e logicamente da própria história. Para ele, “os dados específicos não são artigos de fé”.

 

Contemporâneo de Schleiermacher, Soren Aabye Kierkegaard (1813-1855) vai olhar a religião a partir de seu lado sombrio. Cavaleiro solitário da fé cristã, como ele próprio se definiu, pessimista em termos filosóficos, parte de Schopenhauer e do pietismo, direcionando seu sofrimento existencial para uma superação na fé cristã. Torna-se um crítico da cristandade burguesa e acomodada do século dezenove. Defende a fé cristã como um risco, uma aventura, que necessariamente levará o homem à negação de si próprio. “Querem ter todos os bens e as vantagens do mundo e, ao mesmo tempo, ser testemunhas da verdade (...) isso não é apenas monstruoso, mas até impossível”. Declara ser sua missão “tornar difícil ser cristão”, e apresenta o cristianismo como questionamento da existência, donde a dor, a angústia, o desespero. Assim, torna-se fundador do existencialismo cristão, pois olha a vida como luta permanente, como luta por vir-a-ser.

 

Quatro outros teólogos vão refletir os grandes debates do século dezenove em suas teologias. Todos estão preocupados em situar o cristianismo diante do desafio da história.

 

Quem escreveu o Novo Testamento? E quando foi escrito? F. C. Baur (1792-1860) parte do sistema hegeliano, e procura definir a partir dele as questões de autoria e datação dos livros do Novo Testamento. Seus escritos vão influenciar profundamento o movimento da crítica bíblica e da alta crítica.

 

E quem foi Jesus, de fato? Adolph von Harnack (1851-1930) apresentou Jesus como um pensador humanista, preocupado em ensinar sobre a paternidade de Deus, a fraternidade universal, o valor infinito da alma humana e o mandamento do amor. Para Harnack, tudo o mais é fruto da ossificação do cristianismo, enquanto construtor de dogmas.

 

 

8.

 

 

Mas e onde entra o ser humano, o fiel cristão em tudo isso? Albrecht Ritschel (1822-1889) vai dizer que o cristianismo é uma questão de vida prática e moral, por isso é uma religião da comunidade cristã e não do individualismo. Sua teologia foi um dos pontos de partida para a teologia do Evangelho Social e influenciou um pastor batista que marcou o pensamento teológico do século vinte.

 

Walter Rauschenbush (1861-1918) foi este homem. Pastor batista, originário da Alemanha, atuou nos Estados Unidos, e levantou a questão do evangelho social, a partir de uma leitura que combina responsabilidade social e o socialismo utópico. Defendeu uma democracia econômica e política e propôs uma atuação através dos sindicatos.

 

E quando falamos de evangelho social somos desafiados, ao ler o Novo Testamento, a buscar as bases bíblicas da política social de Jesus. E aqui faremos isso a partir do texto de Lucas 4.14-30 e tomaremos como referenciais a Ben Witherington III e John Howard Yoder.

 

Witherington III analisa a marginalidade social de Jesus a partir das realidades expressas pela hierarquia sacerdotal da época em relação a ele. Ao não ter pai conhecido e reconhecido não tinha direito a um nome. Por isso, era visto como alguém de genealogia desconhecida. E o fato de ser nomeado homem de Nazaré, oriundo de uma vila de camponeses e artesãos, pouco conhecida e afastada das rotas comerciais, fazia com que sua identidade geográfica também o desclassificasse como possível figura messiânica.

 

Assim, genealogia e geografia faziam dele um judeu socialmente à margem, que, por suas origens, não merecia crédito. Mas, esse homem-sem-nome, esse homem-sem-terra santa iniciou suas atividades de maneira no mínimo inusitada na sinagoga de Nazaré, conforme descreve Lucas.

 

Segundo Yoder, na época, não havia nas sinagogas uma leitura dos profetas regularmente prescrita. E o fato de essa passagem não estar presente nos lecionários conhecidos posteriormente, tende a indicar que Jesus a escolheu de propósito. Morris, afirma que essa hipótese corrobora a afirmação de Lucas: “abrindo o livro, achou o lugar onde estava escrito”. Aqui dois detalhes merecem ser realçados: primeiro, é a única referência clara nos Evangelhos de que Jesus sabia ler. E, segundo, por que, ao ler Isaías 61.1-2, ele omitiu uma frase, curar os contritos de coração e acrescentou outra, libertar os oprimidos, que está em Isaías 58.6? Na verdade, utilizou os textos que considerou mais úteis à exposição de sua plataforma político social.

 

O uso que fez de termos políticos, como reino e evangelho, mostram que tal seletividade tinha uma finalidade: falar de uma promessa política de intervenção social alternativa àquelas dos poderes presentes na época. Assim, se lermos o texto apresentado por Jesus, numa perspectiva rabínica, estamos diante de uma recorrência às promessas do jubileu, quando as injustiças acumuladas durante anos deveriam ser sanadas. A fala daquele homem de identidade questionada não afirmava que a Palestina seria resgatada na escala temporal, mas que deveria entrar na vida palestina o impacto solidário do ano sabático.

 

Da mesma maneira, o Reino vindouro surgia enquanto compreensão profética do ano sabático. Nesse sentido, o sábado da semana ampliava-se no sábado dos anos, onde o sétimo deveria ser de descanso e reforma, já que restaurava o que tinha sido exaurido, natureza e pessoas. Essa coleção de regulamentos presente em Levítico 25.1-26.2 concernia ao direito de propriedade da posse da terra e de pessoas, que constituíam a base da riqueza. O propósito era fixar limites ao direito de posse, já que toda propriedade, natureza e pessoas, pertenceria a Deus. Assim, ninguém poderia possuir a natureza e as pessoas de forma permanente, pois tal direito pertencia a Deus. E o ciclo de sete anos sabáticos desaguava no quinquagésimo ano, o jubileu messiânico (Lv 25.8-24), que só vai aparecer de novo em todo o Antigo Testamento apenas em Números 36.4. Mas, Jeremias, no capítulo 34.8-17 falou de uma reforma social na Jerusalém sitiada, quando Zedequias proclamou a liberdade dos escravos hebreus. Da mesma maneira, em Isaías 58.6-12 encontramos a reforma como parte da visão profética. Nesse sentido, a reforma do jubileu apontava para a reestruturação econômica e sócio-política das relações entre os povos da Palestina.

 

É interessante que Flávio Josefo tenha afirmado anos depois da presença de Jesus em Nazaré, que “não existe um único hebreu que, mesmo hoje em dia, não obedeça à legislação referente ao ano sabático como se Moisés estivesse presente para puni-lo por infrações, e isso mesmo em casos que uma violação passaria despercebida”.

 

Apesar da afirmação de Josefo, sabemos que um enquadramento econômico e social a partir das disposições de Levítico 25, o que incluía inclusive a redistribuição da propriedade, nunca foi literalmente vivido entre os judeus. Por isso, coube a um sem-terra prometida levantar o discurso do ano da libertação.

 

A proposta de reforma do Jesus marginal era a anunciação profética da entrada em vigor de uma era nova, caso os ouvintes aceitassem a notícia. Não estava a se referir a um evento histórico, mas reafirmava uma esperança conhecida de seus ouvintes: a da reforma econômica e sócio-política que deveria mudar as relações entre os povos palestinos.

 

E aquele homem de genealogia desconhecida e geografia marginal colocou a centralidade da reforma sobre ele próprio ao afirmar que naquele momento, na sinagoga de Nazaré, a promessa profética se cumpria. E é isso que Lucas vai mostrar na sequência de seu Evangelho: o reformador marginal era o messias prometido.

 

Pensar o século vinte e um e a globalização significa, para mim, dialogar com Tillich. É ler seus textos ou algum deles como quem conversa com um companheiro e lá pelas tantas deixa a conversa girar ao redor da viagem. E aqui vamos fazer isso utilizando o seu texto “Significado histórico da filosofia existencial”.

 

Neste final da segunda década do novo milênio, vemos a vida ser vivida como se não tivesse valor. Vemos, em nome de políticas e religiões, gentes serem transformadas em assassinos seriais, legais ou não, e espalharem a dor, o sofrimento e a morte. Mas tal realidade atravessa a modernidade ocidental, no mínimo desde meados do século dezenove. E os filósofos da existência perceberam isso e procuraram refletir sobre essa situação-limite. Então, vamos triangular esta conversa, combinando filosofia, poesia e uma leitura existencial dos primeiros textos das escrituras hebraico-judaicas.

 

A partir de meados do século dezenove, o mundo passou a sofrer com o naturalismo e que confronta a liberdade da pessoa. Esse racionalismo analítico corrói as forças da vida e transforma tudo em objetos de cálculo e controle. Da mesma maneira, o humanismo secularizado separa as pessoas e o mundo do mistério da existência. Ou seja, o racionalismo e o humanismo secularizado possibilitaram a construção de um mundo novo, tecno-biológico, sem alma.

 

Diante disso, os filósofos e teólogos existencialistas enfrentaram a auto-alienação da vida. E o fizeram de forma apaixonada, por vezes paradoxais, e inclusive revolucionárias. Mas isso não os impediu de compreender a sociedade moderna e a dinâmica psicológica das pessoas, assim como a originalidade e a espontaneidade da vida. Interpretaram a existência e criaram instrumentos para uma nova leitura da revolução.

 

As  filosofia e teologia existenciais olharam o mundo, mas não gostaram do que viram. O que me leva a um poeta espanhol, Machado, que vai cantar para nós nessa viagem com Tillich.


“Todo pasa y todo queda, pero lo nuestro es pasar, pasar haciendo caminos, caminos sobre el mar. Nunca persequí la gloria, ni dejar en la memoria de los hombres mi canción; yo amo los mundos sutiles, ingrávidos y gentiles, como pompas de jabón. Me gusta verlos pintarse de sol y grana, volar bajo el cielo azul, temblar súbitamente y quebrarse… Nunca perseguí la gloria.”


Na alta-modernidade vive-se como se a vida não tivesse valor. E como estamos conversando, eu, você e Tillich, digo que as escrituras hebraico-judaicas também falam existencialmente do humano. Diz, lá na Torah, que o humano não é bom ou mal, mas que age a partir dessa polaridade. Tal situação aparece no diálogo que o Eterno tem com Qayin, O-lança. Diz que ele estava inclinado a fazer mal feito, que este mal-fazer estava diante dele como um animal feroz, mas que ele, O-lança, devia dominar o desejo de mal-fazer.


Essa conversa, de certa forma, apresenta um padrão humano, um jeitão para fazer. E nos relatos da saga humana tais histórias se multiplicaram. São contares que falam do tesão pela vida. E aqui vai uma que gosto muito. Conta-se que quando os escravos fugiram do Egito com os soldados egípcios correndo atrás deles e já estavam atravessando o Mar Vermelho, anjos resolveram cantar um hino de gratidão ao Eterno, mas este não permitiu e disse: Eu construí humano, cada um deles é minha criação, como poderei cantar se muitos vão se afogar neste mar? Eis a universalidade da existência: somos parecença do Eterno, quer escravos hebreus ou soldados egípcios. A teologia mais antiga entende isso: a vida é fazer universal. Mas nela se faz presente o “yetzer”.


A palavra “yetzer” vem da raiz “yzr”. Quando as escrituras hebraicas falam de inclinação capenga, significa moldar, propor-se. A idéia é que o humano é dirigido por suas inclinações, suas imaginações, sejam elas boas ou más. Nesse sentido, o humano é diferente dos animais. E é exatamente “yetzer” que, combinado à liberdade humana, possibilita a mudança de rumo.


E Tillich nos apresenta esse pensar existencial, num curto e preciso resumo da filosofia existencial. Diz ele, que para Schelling, a existência devia ser olhada através da experiência pessoal, da fé tradicional, embora interpretada racionalmente. Já para Kierkegaard era a experiência imediata da pessoa diante da eternidade, era fé pessoal, interpretada através de leituras dialéticas. Para Feuerbach, também era experiência humana, mas sensorial, que levava a uma doutrina do ser humano. E para Marx era a experiência humana determinada socialmente, no contexto de cada classe social.

 

Para Nietzsche era a experiência do ser humano, mas determinado biologicamente, o que levava à vontade de poder, numa expressão metafísica

da vida. Já Bergson entendia a existência como experiência da vitalidade, dinâmica, na existência temporal e criativa. E para Heidegger era a experiência do ser “preocupado” com o Ser, na existência vivida com cuidado, angústia e determinação.

 

Como podemos ver para estes pensadores a existência sempre se mostra ligada à experiência pessoal. E para os socialistas religiosos, cristãos ou judeus, é a experiência humana, pessoal, imediata, da existência histórica, embora expressa numa interpretação da história.

 

Dessa maneira, podemos dizer que para os socialistas religiosos cada caminho se entrelaça com outros caminhos, formam teias, e aí está a idéia de História quando vê a vida humana e a realidade presente e o kairós como estruturas abertas, que nascem desses caminhos. É o desafio existencial, ser natureza e transcender a ela, que leva o humano à possibilidade da revolução, ou seja, à construção da História.

 

E, de novo, Machado poetisa para nós.

 

“Caminante, son tus huellas el camino y nada más; caminante, no hay camino, se hace camino al andar. Al andar se hace camino y al volver la vista atrás se ve la senda que nunca se ha de volver a pisar. Caminante no hay camino sino estelas en la mar... Hace algún tiempo en ese lugar donde hoy los bosques se visten de espinos se oyó la voz de un poeta gritar Caminante no hay camino, se hace camino al andar... Golpe a golpe, verso a verso...”


Para o socialismo religioso, o respeito pelos caminhos e a negação do ódio e da violência deveriam direcionar o tesão pela vida. Criar pessoas seria, em primeiro lugar, ensinar, pois quem destrói uma vida destrói todas. E quem cuida de uma vida salva o mundo. Cuidar de pessoas é, então, semear a paz para que ela reine entre os humanos. Para o ninguém possa dizer: o meu pai é maior do que o teu pai.

 
E nessa leitura existencial, vemos que o primeiro livro das escrituras hebraicas se descreve como o livro da história humana. E é interessante o que esse livro fala da construção e da história do primeiro par humano: Da-terra e A-vida. Este é sentido dos nomes Adão e Eva. A construção dessas duas pessoas, Da-terra e A-vida, ao se dar no final do processo de surgimento do universo, mostra o valor que têm para o Eterno: são menores, aparentemente pequenos, mas têm valor, pesam. A história humana é a história de uma pessoa, de duas pessoas, de todas as pessoas.

 

O que nos remete mais uma vez, à exposição de Tillich sobre a filosofia existencial.

 

Os filósofos existencialistas procuraram o significado da vida além das teologias reavivadas e do positivismo. Rejeitaram o mundo alienado, com seus religiosos radicais e reacionários. Voltaram-se para a experiência imediata e para a subjetividade, não como oposta à objetividade, mas como a experiência viva. Voltaram-se para a realidade como é experimentada na experiência interior. Pensaram o ser criativo, além da distinção entre objetividade e subjetividade.


Nas escrituras hebraico-judaicas, a construção da história humana é sempre uma correlação entre o sofrimento e a coragem de optar pela liberdade. E este foi o desafio apresentado aos hebreus escravizados. Construir a história e optar pelo caminho da liberdade significava correr riscos, já que muitas vezes há segurança na escravidão. Mas, objetividade humana é ser humano, ver possibilidades nas escolhas humanas.

 

Quem considera tal leitura da vida como misticismo, deve considerar que tanto a filosofia quanto a teologia existenciais procuram reconquistar o sentido da vida confrontando as leituras eclesiásticas e positivistas que perderam o sentido da fé enquanto união com a profundidade da vida. Esse misticismo existencial é protestante, procura transcender a objetividade alienada e a subjetividade vazia. Assim, filosofia e teologia existenciais retornam à uma postura pré-cartesiana, quando não havia separação entre a essência da objetividade e o interior da subjetividade, quando Deus podia ser encontrado na alma humana.

 
O cuidado por tudo aquilo que é humano, por sua terra e vida, é decisão humana radical. Uma das linhas-força das teias de relações humanas presente nas escrituras hebraico-judaicas é a de caminho. Mais do que propor uma adoração ao Eterno, as escrituras falam de andar com ele. Daí a idéia de caminho. O ser humano é colocado a cada momento e a cada dia diante da exigência de exercer sua liberdade e escolher entre o fazer bem feito e o fazer mal feito.

 

Assim, em sua luta contra a falta de sentido da civilização tecnológica, estes pensadores deram ênfase à existência.  Um bom exemplo é Kierkegaard, que representa a ala protestante da teologia existencial, ao colocar as bases de uma psicologia dialética que contribuiu para uma leitura não racionalista e não mecanicista da natureza humana.

 

Mas e Marx? Podemos olhar o jovem Marx como pensador existencial, que se levantou contra a alienação no capitalismo, contra aquelas teorias que interpretam o mundo sem procurar transformá-lo, e contra a afirmação de que o conhecimento é independente da situação social. Como Kierkegaard, o jovem Marx anunciou o fim das filosofias e a busca da práxis revolucionária. Mas sua interpretação da história, sua doutrina da ideologia, e sua análise sociológica da economia, fizeram dele um filósofo, e eu diria um teólogo, que revolucionou o pensamento nos dois últimos séculos.

 

E como Marx, Nietzsche também fez o caminho da filosofia existencial, e mais uma vez eu diria da teologia existencial, ao atacar o niilismo europeu. Mas seu estilo fragmentado e profético, assim como sua paixão escatológica, fizeram que sofresse forte incompreensão. Marx nunca questionou a ciência natural, a teoria econômica ou a dialética, da mesma maneira Nietzsche relaciona lebensphilsophen, método científico e a ontologia da vida.

 

Mas não podemos nos esquecer de Heidegger, que voltou às preocupações de Kierkegaard e da filosofia existencial e, em particular, à psicologia dialética de Kierkegaard. Trabalhou sua compreensão de existência quando voltada para a filosofia e a experiência pessoal imediata. Nesse sentido sua teologia esteve profundamente influenciada por Kierkegaard. Mas a partir de Aristóteles e da lebensphilosophie, Heidegger faz da psicologia dialética ontologia. Rejeitou as implicações religiosas da atitude existencial, e as substituiu pela resolução não verificada do ser moderno trágico.

 

Assim a filosofia existencial oferece um quadro dramático: a polaridade entre a atitude existencial e expressão filosófica. Mas a teologia existencial, que caminha pari passo com ela, reage na teoria e na prática ao destino histórico demoníaco. Nesse sentido, para a teologia existencial a vida é o bem maior, o modelo de escolha. A escolha do bem-fazer então é esta: a vida, caminho que fica entre o crescimento e a decadência. E a linha-força do caminho da vida é o caminhar...

 
“Murió el poeta lejos del hogar. Le cubre el polvo de un país vecino. Al alejarse le vieron llorar. Caminante no hay camino, se hace camino al andar..." Golpe a golpe, verso a verso... Cuando el jilguero no puede cantar. Cuando el poeta es un peregrino, cuando de nada nos sirve rezar. "Caminante no hay camino,/ se hace camino al andar... Golpe a golpe, verso a verso.”

 

Eu leio com prazer cada um desses teólogos protestantes, mas não esqueço que a urbanização, fruto direto da industrialização, aliada ao movimento migratório e às novas correntes de pensamento, mudou a cara do mundo. Na Inglaterra e, principalmente, na América do Norte, esse fenômeno global, conhecido por secularização, destruiu a família ampla, e fortaleceu o individualismo e a miséria.

 

Na Inglaterra, tivemos homens como Samuel Taylor Coleridge (1772-1834) e Frederick Denison Maurice (1805-1872), que reorganizaram a Igreja Anglicana, depois de quase um século de rachaduras e cismas de todos os tipos. Reconhecendo o direito à liberdade religiosa, esses teólogos conseguiram reconstruir a igreja nacional na Inglaterra. No campo social, cristãos fortemente influenciados pelo pensamento socialista, que tiveram em Herbert Spencer, seu modelo maior, fizeram oposição ao cartismo, e construíram o movimento social cristão inglês. Saídos de dentro do anglicanismo, crentes como John Malcolm Ludlow (1821-1991), Charles Kingsley (1819-1875), F. D. Maurice e Thomas Hughes (1822-1896) lutaram pelo fim do escravidão, contra o trabalho infantil nas fábricas e pela jornada de 10 horas. Na verdade, reivindicaram uma ampla reforma social, que acabou por conquistar e transformar a Inglaterra.

 

Nos Estados Unidos, a reação cristã à mudança dos valores tradicionais traduziu-se em forma de missões de salvamento, como a Water Street Mission (1872), Chicago’s Pacific Garden (1877), NY Protestant Episcopal City Mission (1864) e outras, e através da pregação de um Evangelho Social, preocupado em recuperar os marginalizados pelo sistema e transformar com a ajuda do Estado os aspectos mais aviltantes do capitalismo selvagem da época. Expoentes desse pensamento foram Washington Gladden, ministro congregacional de Ohio, o escritor Charles Sheldon (“Em Seus Passos Que Faria Jesus?”) e o pastor batista Rauschenbusch.

 

A cooperação entre igrejas, assim como as associações religiosas, foram outra conquista desse século de novidades ao nível do pensamento. As ACMs (1851), a Christian Endeavor Society (1881), a Epworth Society e outras procuraram dar a juventude uma formação ética, social e religiosa. Sob a coordenação de Moody, surgiu em 1886 o Student Volunteer Movement, que tinha como finalidade recrutar jovens para o trabalho missionário, e que estava ligado a um organismo interdenominacional dirigido pelo John R. Mott (1865-1955). Nessa mesma época, começa a surgir um movimento ecumênico entre as igrejas históricas norte-americanas. Samuel S. Schmucker (1799-1873) escreve “Apelo Fraternal às Igrejas Americanas” e, anos mais tarde, é fundado o Federal Council of the Churches of Christ in America.

 

O século vinte vai trazer um novo problema para as igrejas cristãs norte-americanas, as duas guerras mundiais. Em 1914, as igrejas consideraram que a guerra contra a Alemanha era justa e que deviam fortalecer a moral nacional. A igreja norte-americana apoiou a declaração de guerra em 1917 e muitas delas transformaram-se em agências do governo. Com o final da guerra, o crescimento do nacionalismo, e as revelações da política beligerante implementada pelo governo dos EUA (denunciadas pelo Comitê Nye), a igreja tomou conhecimento do erro cometido. A partir daí haverá uma volta à defesa de políticas pacifistas por parte da igreja. Com a Segunda Guerra Mundial, a igreja norte-americana forneceu capelães para as forças armadas, esteve junto à Cruz Vermelha e, no pós-guerra, apoiou a reconstrução das igrejas irmãs na Europa.

 

Diante da revolução social e do pensamento científico, muitos foram os intelectuais que acreditaram estar assistindo a morte da igreja. Mas não foi isso que aconteceu. A igreja adaptou-se à nova época aberta pelas revoluções, a tal ponto que os cristãos do século vinte pouco se lembram do que foi pensado e realizado pelos cristãos do século dezenove.

 

E aqui devemos nos lembrar da práxis de dois homens que marcam o nosso protestantismo. O teólogo e pastor Dietrich Bonhoeffer (1906-1945) e o suíço-alemão Karl Barth (1886-1968). Bonhoeffer foi assassinado pelos nazistas. Karl Barth, aliado a Martin Niemoller, e a outros líderes da Igreja Confissional Alemã, em 1934, produziram a “Declaração de Barmem”, reafirmando a autoridade de Cristo na igreja, as Escrituras como autoridade para a fé a vida, e recusando-se a aceitar as reivindicações do Estado e sua supremacia sobre a vida religiosa das pessoas. Mais tarde, Barth seria o iniciador da neo-ortodoxia, que poderíamos traduzir como uma leitura kierkegaardiana do calvinismo. Apesar de sua crítica ao liberalismo, a neo-ortodoxia manteve a descontinuidade entre a história sagrada e a secular. Além de Barth, devemos citar Emil Brunner (1889-1966), Paul Tillich (1886-1965), Rudolf Bultmann (1884-1976), entre os grandes teólogos protestantes do século. E, entre os católicos, Pierre Teilhard de Chardin (1881-1955), que parte do vitalismo de Henri Bergson para uma teologia altamente influenciada pelo evolucionismo de Darwin.

 

Mas aqui, ao situar Tillich e olhar a política como ação de protesto contra a corrente, convém relacioná-lo com um pensador do século vinte, Antonio Gramsci, que influenciou a esquerda mundial, principalmente depois do fim do estalinismo.

 

 “A democracia não acredita na harmonia natural, mas crê possível submeter a natureza à razão. Ela crê numa harmonia metafísica, que se instaura necessariamente do processo histórico”. Paul Tillich, “Écrits contre les nazis”.

 

Quando pensamos no Brasil, e por extensão na América Latina, nos vemos obrigados a falar da teologia como alavanca para transformações que confrontem as estruturas de poder, que mantêm o status quo da mundialização do capitalismo, gerador de vítimas e de excluídos de bens e direitos. Dessa maneira, entendemos a teologia como geradora de ações culturais, políticas e sociais, desencadeadas pela comunidade de fé, consciente e crítica, com vistas à transformação radical, a fim de produzir mudanças estruturais no regime e construir uma nova ordem social tanto brasileira, como latinoamericana. A teologia tem, dessa maneira, como parceira organizações não-eclesiásticas, partidos e organismos de classe de trabalhadores. E tais ações fazem da teologia práxis que leva o cristianismo para além da comunidade de fé, que a faz confrontar desigualdades, exploração e miséria. Tal teologia terá de enfrentar, assim, a oposição dos inimigos da justiça, da paz e da alegria do povo.

 

O diálogo entre Antonio Gramsci e Paul Tillich possibilita rascunhar uma teologia da existência, ou seja, que levando em conta as assimetrias, mas também as aproximações das praxes políticas dos dois pensadores, construir uma teologia de liberdade social, pública, para brasileiros e latinoamericanos.  

 

Antonio Gramsci e Paul Tillich têm muito em comum. Ambos foram militantes políticos e fundamentaram parte de suas concepções em Karl Marx. Por isso, consideramos importante ver que aproximações e assimetrias existem em suas elaborações teóricas. Cristianismo, democracia, e vida são temas que atravessam seus estudos, e que aqui vamos confrontar. Desejamos, dessa maneira, acrescentar elementos novos numa discussão cada vez mais acirrada em nossa América Latina: ainda é possível a construção de regimes que favoreçam a plenitude do sentido da vida?

 

Nos últimos anos, como fruto da crise da esquerda mundial, mas também como fruto da instalação de governos nacionalistas no continente, renasceu a busca pela reflexão de pensadores marxianos. Assim, em várias universidades brasileiras, Antonio Gramsci, por exemplo, passou a ser estudado como nunca fora antes.

 

Ora, a busca pelo pensamento de Gramsci situa-se nesse contexto de garimpagem do marxismo marginal, dito também não-ortodoxo. Aqui, nos interessa pensar Gramsci em correlação com um filósofo, nada ortodoxo, Paul Tillich. Aliás, o pensamento social de Tillich é praticamente desconhecido no Brasil, apesar de ter trabalhado quase duas décadas sobre questões políticas analisadas a partir do que ele chamou de socialismo religioso.

 

Gostaríamos de começar essa discussão com uma idéia exposta por Tillich, de que a busca pelo sentido pleno de vida, que ele vai chamar de socialismo, traduz um anseio que brota da consciência crítica, transfomadora, num mundo autônomo e racional. Assim, tal substância profética, ou seja, a consciência crítica e transformadora, se exprime na praxe e, por isso, a relação entre profecia e racionalidade é essencial. 

 

Como a linguagem tillichiana é teológica, ao lê-lo nos vemos na obrigação de traduzi-lo. Assim, o que significariam as expressões profético e profecia? Tillich parte de uma compreensão peculiar do profetismo vétero-testamentário. Vê nele, tanto um clamor, como uma ação, um movimento em prol da justiça, da paz e da alegria, que dariam conteúdo, seriam a essência da religião de Israel e, por extensão, do cristianismo e da Reforma protestante. Por isso, movimento profético é praxe de crítica social, que na modernidade levou à racionalidade da autonomia. Mas, para Tillich, justiça, da paz e alegria, ou seja, socialismo, implica em correlação permanente e necessária entre consciência crítica e racionalidade na autonomia. Assim colocada a questão, vemos que Tillich se afasta das correntes socialistas que repousam exclusivamente no racionalismo, em especial do bolchevismo, como das correntes que vêem a possibilidade de uma expansão crescente da autonomia, via democracia. É essa preocupação de Tillich em correlacionar razão e autonomia que possibilita esse diálogo crítico com Gramsci.  

 

De Gramsci podemos dizer que recriou a linguagem da tradição marxiana e codificou teoricamente seus conceitos, ao falar de estado regulado, filosofia da práxis, grupo social, hegemonia, sociedade civil, estado ampliado, intelectual orgânico e moderno Príncipe. Mas, neste texto, nos interessa analisar suas idéias sobre o cristianismo, o intelectual e a democracia.

 

Marx partiu do fato de que o pensamento judaico/cristão torna o ser humano estranho a si mesmo e desdobra o mundo em um mundo imaginário. Por isso, considerava que o trabalho do teórico consiste em dissolver o imaginário judaico/cristão em sua base terrena. Vai dizer, então, que Feuerbach não percebe que, findo o trabalho da crítica da herança judaico/cristã, o principal ainda está por fazer. O fato de que a base terrena se separe de si mesma e se estabeleça nas nuvens, como reino independente, só pode ser explicado pela dissociação interna e pela contradição dessa base terrena consigo mesma.

 

O que deve, portanto, ser feito antes de qualquer coisa é compreendê-la em sua contradição e depois remover essa contradição. Assim, por exemplo, após descobrir que a família terrena é o segredo da Sagrada Família, é a família terrena que deve ser criticada teoricamente e revolucionada. Marx explica a fé cristã por meio das contradições da sociedade humana e de suas dissociações, que induzem o ser humano a projetar fora do mundo, em um paraíso, a realidade na qual desejaria viver. Mas como afirma Radice, na quarta tese sobre Feuerbach, Marx afirma de modo explícito que a forma judaico/cristã reflete um conteúdo histórico. Por estar impotente, o ser humano imagina uma potência divina, por estar abandonado cria uma providência.

 

Gramsci verá o pensamento de Marx como herdeiro de dois movimentos culturais, a Reforma protestante e a Revolução francesa:

 

"A filosofia da práxis pressupõe todo este passado cultural, o Renascimento e a Reforma, a filosofia alemã e a revolução francesa, o liberalismo laico e o historicismo; em suma, o que está na base de toda concepção moderna da vida. A filosofia da práxis é o coroamento de todo movimento de reforma intelectual e moral, dialetizado no contraste entre cultura popular e alta cultura. Ela corresponde ao nexo Reforma protestante mais Revolução francesa: trata-se de uma filosofia que é também uma política e uma política que é também uma filosofia". 

 

E por isso dirá que "a religião cristã (...) foi e continua a ser uma necessidade, uma forma necessária de racionalidade do mundo e da vida".  

 

Marx pode, então, ser entendido como desenvolvimento que se dá a partir de três correntes da Reforma protestante: a luterana que legou Hegel, a calvinista que legou Ricardo e a economia clássica, e a huguenote que criou o jacobinismo.

 

"A estas três fontes originais, Gramsci tenta ligar a tradição cultural italiana, principalmente Maquiavel, como precursor do jacobinismo, e Croce como desenvolvimento historicista da filosofia alemã. O marxismo torna-se assim um ponto de convergência destas três correntes sob a forma de crítica radical".

 

Dessa forma, para Gramsci, a Reforma foi não somente uma reforma ao nível da economia, filosofia e política, mas também uma revolução cultural, no sentido de que procurou forjar uma nova humanidade. Para Gramsci a consciência religiosa cristã, que se traduziu em revolução cultural no século XVI, teve um caráter de suma importância na construção do pensamento contemporâneo. Ou, nas suas palavras: "da primitiva rusticidade intelectual do homem da Reforma (leia-se Lutero) decorreu a filosofia clássica alemã e o vasto movimento cultural de onde nasceu o mundo moderno".

Podemos dizer que Gramsci, no que se refere ao cristianismo, faz uma ponte entre Émile Durkheim e Max Weber. Durkheim considera a religião a partir da idéia de vínculo social. A religião constituiria uma comunidade moral na os adeptos comungam um mesmo ideal. A palavra chave aí é solidariedade. E a solidariedade leva a uma memória coletiva, que organiza lembranças, ritualiza a crença. Os estudos de Durkheim sobre as sociedades têm o intuito de dar rumo a sua análise na qual a divisão do trabalho foi anteriormente sua preocupação central. Mais tarde, o diálogo com a antropologia será privilegiado e o universo da religião será pensado como consciência coletiva, abordagem que ele estende ao entendimento da nação, enquanto todo no qual os indivíduos partilham a mesma memória coletiva.

 

Weber trabalha em sentido diferente. O cristianismo é instituição, é igreja, que atua como empresa de salvação das almas. É necessário, então, conhecer os meandros de sua doutrina, a organização de seu clero e a disputa entre visões e interesses distintos no quadro das crenças religiosas. Daí a atenção que dá ao pensamento divergente, as rupturas no interior de uma mesma ordem ideológica, e sua relação com o poder de Estado.

 

Assim, Durkheim busca o que une e Weber realça o que separa. Mas Gramsci está interessado nas duas dimensões, no que une e no que divide. O cristianismo, para ele, é uma concepção de mundo que elabora versões sobre a realidade, o que possibilita aos fiéis atuar segundo determinada ética, mas também os une no interior da mesma comunidade. Essa idéia atravessa as páginas dos Cadernos do cárcere, sintetizada na afirmação de que o catolicismo é o "intelectual orgânico" da Idade Média.

 

Partindo de uma leitura do contexto europeu medieval, Gramsci estuda o papel dos intelectuais católicos: seu cosmopolitismo, incentivado pelo poder de Roma, em relação à fragmentação do poder feudal e sua intolerância diante do pensamento divergente que ameaça a unidade da Igreja. Mas, na qualidade de orgânico, o catolicismo funcionaria como cimento cultural entre diferentes setores de uma sociedade hierárquica. Assim, o catolicismo integra o que se encontra separado por lutas de interesses e discordâncias doutrinárias. O catolicismo, no entanto, é parte de uma superestrutura mais ampla, a ideologia. É uma cosmovisão, tem valor cognitivo, interpreta o mundo ético, orienta a ação, e constrói uma moral que baliza a solidariedade dos fiéis. As ideologias possuem potencialidades diferentes destas, por isso Gramsci faz distinção entre filosofia e cristianismo católico, e entre cristianismo católico e senso comum, mas, ainda assim, todas as ideologias podem ser pensadas a partir dessa mesma matriz teórica.

 

Dessa maneira, as análises de Gramsci rompem com a tradição marxiana, já que a ideologia, mas do que falsa consciência é entendida como elemento cognitivo, concepção de mundo que brota da vida social. Para ele, como concepção de mundo, o cristianismo não seria alienante, mas deve ser entendido como ideologia presente na história. Exemplo disso foi o catolicismo, que possuía valor positivo, era orgânico, e construiu vínculo social entre as classes e os grupos sociais. Mas, no correr da Idade Média perdeu essa positividade, ao perder sua função de solidariedade, e passou a atuar como força reativa diante das mudanças.

 

E se Gramsci se mantém marxiano no que se refere à crítica da transcendência e, por extensão, da natureza humana, a conclusão que se impõe é que não há sociedade sem ideologia. Gramsci prepara, assim, o caminho para outros teóricos do pensamento marxiano, como Althusser e seu "animal ideológico", e Lévy-Strauss e seu "animal simbólico".

Mas Tillich teve uma compreensão diferente daquela de Gramsci, que entende a vanguarda enquanto intelectualidade orgânica, mas não vê o movimento de massas em processo dinâmico que pode levar ao surgimento de uma massa orgânica. Há uma divergência entre os dois pensadores: a crítica intelectual não se limita ao intelectual orgânico, é um processo maior que gera a massa orgânica, com dupla ação: de liderança da sociedade e de transformação da situação-limite.

 

 

9.

 

 

Na perspectiva tillichiana, a passagem da heteronomia à autonomia se deu através de ciclos que atravessaram épocas. Assim, os movimentos dinâmicos das massas estão presentes nos movimentos religiosos do jovem cristianismo, no movimento político da migração dos povos, no movimento religioso da Reforma, no movimento anabatista e no movimento socialista. Embora esses movimentos possam ser encontrados em diversas épocas, estão presentes em diferentes esferas da cultura, mas sempre como movimentos de liberdade: as massas dinâmicas são parteiras de escravos, de povos, de trabalhadores.

Por isso, segundo Tillich, não podemos ver o pensamento de Marx como algo que já se esgotou, se nos propomos a fazer a crítica consciente e transformadora, pois a justiça não é justificativa ideológica das democracias, nem idealismo progressivo ou sistema de harmonia autônoma. A busca incondicional da justiça dentro do espírito da crítica profética e com os métodos do marxismo transcende o mundo. Mas até que ponto a metodologia marxiana e uma conquista do poder político poderiam dar sentido à vida? Só se a busca incondicional da justiça levar em conta que a corrupção também está localizada nas profundezas do coração humano.

 

O teólogo da vida deve entender que as forças demoníacas da injustiça e da vontade de poder jamais serão plenamente erradicadas da cena histórica. Precisa compreender que a corrupção da situação humana tem raízes mais profundas do que as estruturas históricas e sociológicas. Estão encravadas nas profundezas do coração humano.

 

“Como Kierkegaard, Marx fala da situação alienada do ser humano na estrutura social da sociedade burguesa. Empregava a palavra alienação (entfremdung) não do ponto de vista individual, mas social. Segundo Hegel essa alienação significa a incursão do Espírito absoluto na natureza, distanciando-se de si mesmo. Para Kierkegaard era a queda do humano, a transição, por meio de um salto, da inocência para o conhecimento e para a tragédia. Para Marx era a estrutura da sociedade capitalista”. 

 

Por isso, a regeneração da humanidade não é possível apenas mediante mudanças políticas, mas requer mudanças na atitude das pessoas em favor da vida. De todas as maneiras, para Tillich e para Gramsci há uma busca comum de respostas entre aquele que encarna o espírito crítico e a ação consciente do intelectual orgânico. Ou como diz Gramsci:

 

"Se a relação entre intelectuais e povo/nação, entre dirigentes e dirigidos, entre governantes e governados, é dada por uma adesão orgânica, na qual o sentimento paixão torna-se compreensão e, portanto, saber, não mecanicamente, mas de forma viva, é somente então que a relação é de representação e que se produz o intercâmbio de elementos individuais entre governados e governantes, entre dirigidos e dirigentes, isto é: que se realiza a vida conjunta que, só ela, é a vida social, cria-se um bloco histórico".

Para Gramsci, o intelectual quando representa determinada comunidade têm função superestrutural, ou seja, cultural, mas, apesar de sua organicidade, precisa exercer autonomia em relação às pressões sociais que sofre. É dessa postura que nasce a força crítica e a compreensão de que diante da realidade há alternativas diferentes daquelas expressas pelo poder.

 

A partir de Tillich e Gramsci podemos dizer que o princípio da crítica intelectual é expressão humana e verbal do incondicionado, e resgata a tradição do profetismo bíblico, que possuía uma concepção unitária do fato e procurava a síntese entre política e ética. O profetismo era ao mesmo tempo revolucionário, mesmo quando voltado para o passado, e conservador, mesmo quando impulsionado pela paixão do porvir. Nada fazia sem invocar a tradição, no entanto, sua mensagem eram os novos tempos. Os profetas sabiam servir-se do passado para as necessidades do presente. Todos pareciam ter algo em comum: uma atitude realista. A pregação do futuro não constituía o essencial de seus clamores; era antes, o fruto e o resultado final de um conhecimento aprofundado no mundo adjacente, da atualidade e do passado. Ora, essa função profética está presente na compreensão crítica de Gramsci e de Tillich do intelectual orgânico.

 

Mas, não podemos esquecer que para Tillich há limites para a ação do intelectual, pois a razão não é global. Ao contrário, cada criação do espírito é necessariamente afetada pelos limites da situação que a viu nascer. O espírito está sempre ligado a uma classe. No espírito está implícita uma situação particular de luta, de dominação ou de opressão, que conforma a própria consciência. Entendido assim, o espírito não é universalmente o mesmo em cada pessoa, exprime um ser social particular. A passagem à cultura não se faz simplesmente pela transmissão de bens culturais universais, mas pela formação inculcada por uma sociedade e uma situação de lutas determinadas, em meio a obras que exprimem ou exprimiram no passado esta possibilidade humana particular.

 

Numa leitura cristã protestante, Tillich considerou a busca pelo sentido pleno de vida produto do desenvolvimento econômico e espiritual, que preparou e se impõe com a Renascença, a Reforma e o surgimento do capitalismo. Visão compartida por Gramsci. Assim, a busca pelo sentido pleno de vida surge em oposição à cultura autoritária e unitária da Idade Média, sedimenta suas bases nas criações culturais dos últimos séculos, e só pode ser compreendida a partir desta evolução: sua permanência está ligada a esse desenvolvimento. Mas não devemos esquecer, porém, que foi do interior do cristianismo que brotaram as idéias modernas de justiça. 


Para a construção de seu pensamento, Gramsci foge das construções ontológicas, e analisa a sociedade como conjunto de forças, imersas na história e marcada por interesses diversos. Podemos ver isso quando em carta à sua cunhada Tatiana Schucht. de dezembro de 1931, expõe seu conceito de Estado ampliado:

 

“Eu amplio muito a noção de intelectual e não me limito à noção corrente que se refere aos grandes intelectuais. Esse estudo leva também a certas determinações do conceito de Estado, que habitualmente é entendido como sociedade política (ou ditadura, ou aparelho coercitivo para adequar a massa popular a um tipo de produção e a economia a um dado momento); e não como equilíbrio entre a sociedade política e sociedade civil (ou hegemonia de um grupo social sobre a inteira sociedade nacional, exercidas através de organizações ditas privadas, como a igreja, os sindicatos, as escolas, etc.)”.

 

Ora, em geopolítica, hegemonia significa a supremacia de uma nação sobre outras, seja por sua presença militar, de coerção, seja pela presença política e cultural. Mas na política, o conceito formulado por Gramsci descreve a dominação ideológica de uma classe sobre outra, no caso da burguesia sobre os trabalhadores.

 

Em Gramsci não é possível o domínio bruto de uma classe sobre as demais, a não ser nas ditaduras, ou seja, no Estado-coerção. Mas uma classe dominante para ser dirigente deve articular um bloco de alianças e obter o consenso passivo das classes e camadas dirigidas. Nessa busca de alianças, necessárias, a classe dominante sacrifica parte dos seus interesses materiais imediatos, vai além do horizonte corporativo, com a finalidade de construir uma hegemonia ética e política.

 

Ao estudar os mecanismos de construção desta hegemonia, Gramsci chega a um conceito fundamental na sua teoria política, a saber, o conceito de Estado ampliado. O Estado moderno na Europa analisada por Gramsci não seria, para ele, apenas instrumento de força a serviço da classe dominante, mas força revestida de consenso, ou seja, combinaria coerção e hegemonia. O Estado ampliado pode, então, ser entendido como sociedade política mais sociedade civil. E, nas sociedades de tipo ocidental, a hegemonia, que se decide nas inúmeras instâncias e mediações da sociedade civil, não pode ser ignorada pelos grupos sociais subalternos que aspiram a modificar sua condição e a dirigir o conjunto da sociedade.

 

O sentido de progresso civilizatório que a teoria gramsciana implica, reside no fato de que todo o movimento deve acontecer no sentido de uma absorção do Estado político pela sociedade civil, com o predomínio crescente de elementos de autogoverno e autoconsciência. A partir dessa teorização, Gramsci formula nos Cadernos do cárcere uma crítica ao stalinismo, a partir dos traços de hipertrofia do Estado soviético, que chama de estatolatria, considerando que tal estado de ditadura sem hegemonia não subsistiria por muito tempo.

 

Assim o Estado se compõe de dois segmentos distintos, porém atuando com o mesmo objetivo, que é o de manter e reproduzir a dominação da classe hegemônica: a sociedade política, estado-coerção, a qual é formada pelos mecanismos que garantam o monopólio da força pela classe dominante, burocracia executiva e policial-militar; e a sociedade civil, formada pelo conjunto das organizações responsáveis pela elaboração e difusão das ideologias, composta pelo sistema escolar, Igreja, sindicatos, partidos políticos, organizações profissionais, organizações culturais: meios de comunicação e de massa.

 

E aqui merecem destaque os meios de comunicação, pois para sua época estavam ainda em sua fase embrionária, e a televisão nem sequer fazia parte dos projetos futuros. Isto só seria possível no início da década de 1950. É exatamente através dos meios de comunicação da alta modernidade, que se dá a canalização da direção intelectual e moral, difundindo as ideologias da classe hegemônica vigente.

 

Assim, o Estado é a sociedade política gramsciana. E esta sociedade civil representa a nova determinação apresentada por Gramsci. Esta sociedade civil assume crescente dimensão no começo do século vinte, com os partidos de massa, sindicatos de trabalhadores e outras formas de organizações sociais. É após seu desenvolvimento histórico que a sociedade civil pôde ser capturada teoricamente. Antes disso, o estado-coerção era muito superior em sua base material para se permitir tal percepção.

 

O que chama a atenção no modelo do Estado ampliado, desde o Leviatã de Hobbes até Marx, é o sentido unitário do Estado. Ou seja, até Marx, o Estado era entendido como algo diferente da sociedade civil, que seria extinto quando se extinguisse a divisão de classes dentro da sociedade, uma vez que era esta divisão que produzia a necessidade do Estado.

 

Em Gramsci, porém, quando agrega a sociedade civil ao Estado-coerção, nada fica de fora do Estado. Este todo, entretanto, não é homogêneo, é rico em contradições e é mantido pelo tecido hegemônico que a cada momento histórico é recriado em processo permanente de renovação.

 

Assim, a luta pela construção de uma sociedade plena de sentido de vida, torna-se mais complexa e difícil do que imaginava Marx. Não basta ser classe dominante, tem que ser também classe hegemônica, dirigente. Desta forma, o campo da luta entre as classes se amplia. E a democracia necessária ao sentido pleno de vida será construída pelo bloco histórico hegemônico. Neste momento, a sociedade civil terá atingido uma base material superior a base material do Estado-coerção, atingindo o que Gramsci chama de sociedade regulada.

 

Com a gradativa absorção da sociedade política pela sociedade civil, que atua através dos seus aparelhos de hegemonia, o estado-coerção será substituído pelo estado-ético. E esta figura remanescente do estado-coerção, torna mais factível o modelo social voltado para a democracia de bens e direitos e menos utópico em relação ao que planejara Marx.

 

Nesta concepção de Estado, as democracias ocidentais possibilitariam o sentido pleno de vida. Mas fica uma questão: se a supremacia da sociedade civil se dará pelo consenso contra a coerção, onde fica o conceito de luta de classes, momento celular do pensamento marxiano?

 

Na verdade, para Gramsci a extinção da coerção do estado se dará pela absorção deste pelo estado-ético, ou seja, pela sociedade civil. Esta sociedade civil está inserida no estado ampliado e, por isso, não se pode falar de extinção do estado, mas de uma reorganização do estado onde um de seus componentes, está atrofiado por disfunção ou necessidade, já que os conflitos passaram a ser administrados pela base material do consenso.

 

Há, porém, dois níveis superestruturais nas sociedades democráticas: o estado ampliado, que é a sociedade civil, ou o conjunto dos aparelhos privados de hegemonia; e a sociedade política, ou o estado no sentido restrito do termo, composto pelos organismos de coerção do aparelho burocrático-militar de dominação política.

 

Nesse espaço a sociedade civil como espaço do domínio da ideologia, portador material da hegemonia, encontra a possibilidade de legitimidade, de consenso, através dos aparelhos privados de hegemonia que propagam valores ideológicos.

 

Assim, o conceito de estado ampliado procura apreender a configuração de forças sociais e políticas resultantes dos estados ocidentais do século vinte, idéia que confronta a proposta de Trotsky de revolução permanente a partir da concepção de hegemonia civil. Tal proposta-conceito parte da idéia de guerra de posição, que exige uma frente de combate no campo cultural, unida às frentes econômicas e políticas para a conquista da hegemonia pelas classes subalternas. A fórmula hegemonia civil propõe a participação das maiorias sociais nos aparelhos privados de hegemonia (sindicatos, partidos, escolas, igrejas, imprensa), que constituem as trincheiras de luta para obter posições de direção no governo da sociedade.

 

A proposta de extinção do estado, no entanto, nunca é plena, pois sempre restará o governo para cuidar da sociedade civil. É claro que se entendermos assim podemos dizer que na distinção de função entre as pessoas que governam e as que vivem a vida da sociedade de consenso está presente ainda a dominação entre as classes e, portanto, os restos da coerção do Estado se farão presentes.

 

Em Gramsci está presente uma utopia que atravessou todo pensamento socialista: sonhar com o bom selvagem de Rousseau, em oposição ao homem é o lobo do homem de Hobbes. Esse Estado ético é uma idealização do ser humano, que poderia viabilizar a construção de uma sociedade ética, igualitária e justa.

 

Mas, mesmo questionando Gramsci, podemos utilizar seus conceitos de estado ampliado e de hegemonia civil como estruturas de pensamento válidas para a análise social, não como proposta da utopia socialista, mas como ferramenta para delimitar e compreender o desenvolvimento das sociedades ocidentais contemporâneas, principalmente aquelas que se propõem democráticas.

 

A busca pelo sentido pleno de vida e os movimentos de liberdade sempre estiveram ligados, mas isso não significa que não existem tensões entre o momento universal e o momento particular. O momento universal pode formular exigências que ameaçam absorver o momento particular. A busca pelo sentido pleno de vida se tornará, então, uma idéia geral, desprovida de raízes sociais e perderá sua força histórica. Este é o perigo de uma luta pela justiça restrita à intelectualidade. Esse perigo provém da situação burguesa e de seu pensamento político particular, que procura elaborar uma ordem social futura fundada sobre a justiça, mas deixando de lado a situação proletária real. Seja qual for o valor que se atribua a esta tentativa, ela não será de fato justiça social. A luta contra o intelectualismo utópico se apóia sobre a ligação indissolúvel que Marx viu entre sentido pleno de vida e proletariado, que não pode ser quebrada por essa harmonia metafísica proposta pela globalidade burguesa.

 

Para Paul Tillich existe na esfera política uma relação entre razão e autonomia. Toda estrutura política pressupõe poder e um grupo que o assume. Mas um grupo de poder é também um conglomerado de interesses opostos a outras unidades de interesses e sempre necessita uma correção. A democracia está justificada e é necessária na medida em que é um sistema que incorpora correções contra o uso errôneo da razão política. Assim, a teologia e a política não são realidades estanques, porque as raízes do pensamento político não são apenas pensamentos. Teologia e política, no mundo ocidental, estão imbricados, mas não existem sem a necessidade de correção, ou seja, da democracia. 

 

Tal compreensão da realidade ocidental no pós-guerra levou Tillich a se debruçar sobre projetos que tiveram início ainda na sua fase alemã, como a sua reflexão sobre a cultura. Mas a maioria de seus companheiros, que esperavam a realização da vida social plena de sentido, diante do visível abandono dos direitos civis e humanos, assim como a descoberta da existência de gulags nos países comunistas, se desiludiu.

 

“O movimento marxista não foi capaz de se criticar por causa da estrutura em que caiu, transformando-se no que chamamos agora de stalinismo. Dessa maneira, todas as coisas em favor das quais os grupos originais tanto lutaram acabaram sendo reprimidas e esquecidas. Em nosso século vinte temos tido a ocasião de melhor perceber a trágica realidade da alienação humana no campo social”.

 

Tal política comunista fez com que Tillich, que não se considerava um utópico, constatasse que “o amanhecer de uma nova era criativa” se distanciava da humanidade. Assim, alertou para o perigo, a partir da experiência stalinista de que, em nome da busca pelo sentido pleno de vida, sociedades mergulhassem no totalitarismo, já que não aceitavam a pluralidade de partidos políticos e as liberdades civis, que ele e os socialistas-religiosos defendiam. Mas é interessante ver que descartava qualquer possibilidade de hegemonia permanente, quer por parte do bloco soviético, quer por parte do bloco ocidental:

 

“Novos centros de poder podem aparecer, primeiro secretamente, e depois, então, abertamente, levando para a separação de ou para a transformação radical do todo. (...) O poder inicia a luta novamente e o período determinado do império mundial será tão limitado quanto o foi o período augustiniano de paz”. 

 

E afirmou que um mundo sem as dinâmicas do poder, sem a tragédia da vida e da história não é o reino de Deus, nem a finalidade do ser humano, pois o fim está limitado à eternidade e nenhuma imaginação pode atingir o eterno. Mas as antecipações fragmentárias são possíveis. Assim, falar de teologia da existência significa entender que a busca pela incondicionalidade da justiça e, por extensão, da paz e alegria, traduz a defesa do sentido último do significado profundo das raízes do humano e que, no mundo contemporâneo, diante do trovejar dos canhões e da ameaça à existência, deve levantar-se como voz profética de um mundo novo.

 

Mas o que vimos foi que, de fato, a igreja soube adaptar-se à era de revoluções, mas não abandonou suas doutrinas fundadoras ou sofreu uma descaracterização de seus conteúdos. Na verdade, isso não aconteceu. E exatamente porque não aconteceu, soube enfrentar as economias e políticas que surgiram no século vinte e que se colocaram como suas principais oponentes: o comunismo e o nazismo.

 

O processo que se abriu a partir da Segunda Guerra Mundial deu continuidade à revolução permanente que teve início com a Revolução francesa, levando à fragmentação que traduz o atual momento histórico da igreja.

 

Com o final da Segunda Guerra Mundial, uma grande parte do mundo tornou-se comunista. Nesses países, que incluíam praticamente mais da metade da Europa, o chamado bloco soviético, a maior parte da Ásia, China e países limítrofes, e um país latino-americano, Cuba, durante quase quarenta anos, a igreja enfrentou a perseguição. Milhares de cristãos foram presos, internados em campos de trabalhos forçados e mortos.

 

Nos países democráticos construiu-se um muro de separação entre o Estado e as igrejas nacionais. As leituras não conservadoras e liberais aceitaram a secularização da sociedade e a construção daquele novo mundo ocidental.

 

Mas, como vimos acima, a ação do protesto contra a corrente apresenta-se como fundamental para a construção de alternativas de fraternidade, liberdade e igualdade. Ou como nos disse Bertolt Brecht.

 

“De que serve a bondade, se os bons são imediatamente liquidados, ou são liquidados aqueles para os quais eles são bons?” (Bertolt Brecht, do poema De que serve a bondade).

 

Para quem deseja mergulhar nesta relação entre cristianismo e socialismo, convém ler Paul Tillich (Christianisme et Socialisme, 1919-1931, Écrits socialistes allemands), onde nos apresenta bases para a formatação da ação do protesto contra a corrente. E uma dessas bases é o conceito de princípio protestante, necessário para se entender os fenômenos de transformação social sob uma ótica teológica, mesmo quando tais acontecimentos se dão à margem das estruturas religiosas.

 

Para Tillich, a radicalidade da ação do protesto existe quando se proclama a possibilidade do novo ser. Protestantismo é isso. Pode estar presente em religiões organizadas, mas não depende delas. Talvez, por isso, as pessoas experimentem a radicalidade do estar protestante mais fora do que dentro das igrejas. Essa radicalidade, presente no Ocidente, não implica em filiação eclesiástica ou institucional, mas traduz a situação humana diante dos desafios da transcendentalidade da vida. Quando nessas situações vive-se o princípio protestante, então é aí e não nas igrejas que o protestantismo se faz vivo.

 

Tomando-se por base tal conceito, temos um instrumental metodológico em que nos basear para construir a ação do protesto contra a corrente. Ao analisar o princípio protestante enquanto crítica radical deve-se levar em conta aspectos históricos, assim como os movimentos ideológicos da modernidade.

 

Falar em um posicionamento de crítica radical, de julgamento e transformação da realidade, implica em falar de direções: vertical, diante do apesar de, e horizontal, diante do por que. Diante de situações, quando devemos resistir à catástrofe histórica, a mensagem do protesto deve ser simples, não ilusória, mas consciente e de esperança.

 

Nesse contexto, vemos que a modernidade já deu ao Ocidente o princípio da autonomia, mas manteve, contraditoriamente, o ser humano inseguro no interior dessa autonomia. Isto levou parte das organizações políticas dos trabalhadores à tentativa de emancipar os trabalhadores através da submissão às velhas leituras da vida, ou seja, à hierarquia e à tradição. Fenômeno este que chamamos de burocratização. Mas a liberdade já foi experimentada e esta é uma experiência que une todos aqueles que protestam.

 

“De que serve a liberdade, se os livres têm que viver entre os não-livres? De que serve a razão, se somente a desrazão consegue o alimento de que todos necessitam”? (Bertolt Brecht, do poema De que serve a bondade).

 

Tillich utilizou um conceito, o de situação-limite, para se referir àqueles momentos onde existe ameaça ao sentido da vida. Levantar-se em defesa da vida e de seu sentido é o diferencial do protestantismo. Essa expressão nasceu em torno de um conceito da Reforma protestante, o de justificação pela fé. Significa que a vida em liberdade implica em reconhecer a incondicionalidade da justiça. Assim, a crítica e a ação radical do protesto partem do reconhecimento da existência de situações-limite, que devem ser julgadas e transformadas, e não de palavras e ações favoráveis à hierarquia e à tradição.

 

A história anabatista nos ensina muito sobre isso. A história anabatista é uma saga ao estilo do cristianismo antigo, anterior à estabilização imperial pós-Constantino, de sangue, perseguições e martírios. E os eventos notáveis e feitos heroicos do movimento anabatista até hoje repercutem no imaginário protestante, levando alguns historiadores e teólogos a exorcizarem o movimento e seus líderes.

 

Segundo Weber, o ascetismo laico do movimento anabatista espraiou-se pela Europa Ocidental e Estados Unidos, nos séculos dezesseis e dezessete, dando origem, quer diretamente, quer por adoção, a novas formas de pensamento religioso, como aqueles dos batistas, menonitas e quakers. No Brasil, os protestantes não podem olvidar a história dos anabatistas, pois as influências eclesiológicas do movimento, herdadas pelos batistas, foram repassadas para as comunidades, igrejas e pensadores protestantesque em algum momento de sua história comungaram com o pensamento batista.

 

Por isso, faremos uma abordagem das origens do anabatismo, principalmente daquele de forte conteúdo social, a partir da leitura histórica e da sociologia da religião, com a intenção de demonstrar que em sua prática o anabatismo construiu uma eclesiologia que formatou uma teologia e não o contrário. Mas como aqui trabalhamos a relação entre a eclesiologia e a revolução camponesa e plebeia liderada pelos anabatistas, convém entender o que significa eclesiologia. Nós a consideramos o estudo teológico da realidade de comunidades de fé em seus aspectos estruturais: sua forma de se relacionar com o mundo, seu papel social e sua forma de governo. Por isso, vamos analisar o comunitarismo, que mais tarde foi caracterizado por Karl Marx e Friedrich Engels como socialismo utópico, enquanto construção religiosa e política marcante e central do movimento anabatista.

 

Os anabatistas eram cristãos reformados que se levantaram contra a hegemonia da Igreja católica e dos príncipes alemães. A partir da frase do Evangelho de Marcos (16.16), “quem crer e for batizado será salvo, mas quem não crer será condenado”, deduziram que quem não crê de nada adiantou o batismo que recebeu quando pequeno. Então, negaram valor ao batismo de crianças, afirmando que aquele sacramento católico e reformado, só deveria ser recebido quando a pessoa tivesse plena consciência do que estava a fazer. Por isso, aqueles que tinham sido batizados antes de terem consciência do bem e do mal deveriam ser batizados de novo.

 

O fato de levantarem a importância de escolha pessoal na opção pela caminhada cristã levou grupos e comunidades anabatistas a crescerem rapidamente. Mas, o crescimento dos anabatistas na Alemanha e na Europa central se tornou um problema para as autoridades eclesiásticas, afinal propunham às pessoas não batizar os filhos. Logicamente, os católicos e os reformados se colocaram em oposição direta a essa idéia. E como o poder eclesiástico estava ligado às forças do feudalismo ou às forças da burguesia emergente, ambos os lados optaram pelo extermínio dos anabatistas.

 

Para Engels, a descentralização, a autonomia local e regional, a diversidade comercial e industrial das províncias alemães e a insuficiência das comunicações foram os fatores que explicam o agrupamento das classes sociais da Alemanha no início do século dezesseis em três campos: o feudal nucleado ao redor do catolicismo; o burguês reformista, ao qual se aliaram os luteranos; e o plebeu/camponês liderado pelos anabatistas. 

 

É bom lembrar que na Alemanha medieval a Igreja católica tinha o monopólio da educação, o que fazia com que todo o ensino tivesse um caráter religioso. Nas mãos do clero católico estavam a política, a jurisprudência e o conhecimento, que era visto como extensão da teologia. E os dogmas do catolicismo, assim como a compreensão católica das Escrituras tinham força de lei em todos os tribunais. Dessa maneira, críticas ou ataques ao feudalismo traduziam-se em confronto com o catolicismo.

 

A oposição ao feudalismo, começou bem antes do século dezesseis, com os albigenses e valdenses, com as insurreições nos cantões suíços e foi tomando conta da Alemanha com as reivindicações religiosas, sociais e políticas que tomaram corpo como pensamento divergente. Os plebeus e camponeses alemães queriam o estabelecimento da igualdade cristã, que devia se traduzir em igualdade civil e social. Ou seja, a nobreza devia colocar-se ao nível dos camponeses, e os patrícios e burgueses no mesmo nível dos plebeus. Ou seja, reivindicavam, pela primeira vez na história, direitos cidadãos universais. Além disso, exigiam o fim das leis feudais, tais como obrigatoriedade dos serviços pessoais, tributos, privilégios e nivelamento das escandalosas diferenças no que se referia à propriedade. Dessa maneira, essas reivindicações democráticas levaram às reivindicações pelo estabelecimento de comunidades onde a propriedade e os bens fossem comunitários, o que era visto como a realização da promessa do Reino de Deus.

 

Até 1525-1526, o movimento protestante era mais ou menos informal na Alemanha. Mas com as guerras camponesas, os conventos foram secularizados, o direito canônico abandonado e, com a recusa dos bispos de se associarem ao movimento pelas reformas, as autoridades civis foram empurradas a se tornar favoráveis às novas orientações e a se envolver na reorganização da igreja. Estas ações se inspiraram nas antigas visitas pastorais efetuadas antes pelos bispos. Os príncipes passaram, então, a visitar as paróquias, com delegações compostas de juristas e teólogos. A partir de 1530, criaram instituições permanentes com superintendentes, levando as igrejas a ficarem dependentes do príncipe que, de fato, substituiu o bispo. Nasceu assim a igreja territorial reformada.

 

Em 1555, a Dieta de Augsbourg proclamou o princípio do “cujus regio, ejus religion” segundo o qual o príncipe ou uma outra autoridade podia determinar a religião das pessoas. A legislação e o órgão jurisdicional, em especial matrimonial, passaram para o poder do príncipe, que o entregava a uma instância jurídica: e o príncipe ou o magistrado das cidades passaram a ser a autoridade última em matéria de liturgia, doutrina ou nomeação de sacerdotes. Os bens eclesiásticos secularizados foram incorporados às possessões dos príncipes, ou geridos por administradores autônomos, em especial as escolas. Dessa maneira, passou a existir um controle sobre o comportamento religioso, e o estado jurídico e financeiro das paróquias, bem como sobre a doutrina e a vida moral dos pastores.

 

Thomas Münzer e outros dissidentes do protestantismo reformado procuraram mobilizar seus pares e exigir das autoridades políticas liberdade de expressão e de ação religiosas e criaram comunas autônomas, proibindo os seus adeptos de exerceram funções políticas no Estado. Entre suas ações, Münzer suprimiu completamente o uso do latim, em 1522, antes de Lutero. Em Altstadt, nos cultos que dirigia vinha gente de todas as partes ouvi-lo. Seus ataques voltaram-se em especial contra o clero católico, chamando os príncipes e o povo à intervenção armada contra a Igreja católica.

 

“Não disse Cristo, vim trazer-vos não a paz, porém a espada? E que deveis fazer com ela? Nada, senão afastar a gente má que se opõe ao Evangelho. Cristo ordenou com grande severidade (Lucas 19.27): quanto, porém, a esses meus inimigos, que não quiseram que eu os governasse, trazei-os aqui e matai-os diante de mim... Não vos valhais do vão pretexto de que o braço de Deus deve faze-lo sem ajuda da vossa espada que bem poderia enferrujar-se na bainha. Os que se oponham à revelação divina que sejam aniquilados sem piedade, como Ezequiel, Ciro, Josias, Daniel e Elias destruíram os pontífices de Baal; de outro modo a Igreja cristã não pode retornar à sua origem. Na época da vindima temos que arrancar a erva daninha das vinhas do Senhor. Deus disse (Deuteronômio 7.5): nem terás piedade dos idólatras;... deitarás abaixo seus altares... e queimarás a fogo as suas imagens de escultura... Porque tu és um povo santo e Jeová teu Deus...”

 

Münzer, segundo Tillich, foi o mais criativo dos evangélicos radicais e acreditava que o Espírito podia falar por meio das pessoas. No entanto, para se receber o Espírito era preciso participar da cruz.

 

“Lutero, dizia ele, prega um Cristo doce, um Cristo do perdão. Devemos também pregar o Cristo amargo, o Cristo que nos chama a carregar sua cruz.”

 

Assim, os anabatistas atacavam a teologia de Lutero a respeito das Escrituras, porque consideravam que Deus não falara apenas no passado, tornando-se mudo no presente. Mas que sempre falou e fala nos corações ou nas profundezas de qualquer ser humano preparado para ouvi-lo por meio de sua própria cruz. O Espírito habita nas profundezas do coração. A cruz, explica Tillich, representava a situação limite, era externa e interna.

 

“Surpreendentemente, Münzer expressa esta idéia em termos existencialistas modernos. Quando percebemos a finidade humana, desgostamo-nos com a totalidade do mundo. E nos tornamos pobres de espírito. A pessoa é tomada pela ansiedade de sua existência de criatura e descobre que a coragem é impossível. Nesse momento Deus se manifesta e ela é transformada. Quando isso acontece, a pessoa pode receber revelações especiais. Pode ter visões pessoais não apenas a respeito de teologia como um todo, mas sobre assuntos de vida diária”.

 

Nessa conjuntura de choque, em Zurique, na Suíça, no meio dos seguidores do reformador Zwinglio, surgiu um grupo de cristãos que rejeitou o poder eclesiástico, fosse ele católico ou reformado, exigindo a autonomia das comunidades cristãs. Assim, os anabatistas fundaram sua primeira comunidade no dia 21 de janeiro de 1525. E eles próprios passaram a escolher seus pastores e a construir comunidades separadas do estado.


Mas, no sul da Alemanha, sem dúvida, foi Thomas Münzer quem se levantou como defensor de uma proposta de revolução social camponesa. Em 1521, liderou um grupo de anabatistas que se somaram aos camponeses sublevados ao redor da reivindicação de terra e liberdade. Münzer criou, assim, pela primeira vez na história um movimento de libertação camponês anabatista.

 

Münzer não foi apenas um pensador, mas um militante que praticava a fé. Acreditava ser um profeta, chamado para implantar o Reino de Deus. Considerava ser seu dever denunciar e executar as sentenças contra os governantes que exploravam o povo. Suas pregações estavam impregnadas de conteúdo social e político: o fim da velha Igreja deveria marcar o inicio de uma nova ordem social.

 

Engels, que junto com Marx foi um dos pais do socialismo moderno, considerou as guerras camponesas lideradas pelos anabatistas como combates sociais. Afirmou que “se, em termos gerais, a burguesia podia arrogar-se o direito de representar, em suas lutas com a nobreza, além dos seus interesses, os das diferentes classes trabalhadoras da época, ao lado de todo grande movimento burguês que se desatava, eclodiam movimentos independentes daquela classe que era o precedente mais ou menos desenvolvido do proletariado moderno. Tal foi na época da Reforma e das guerras camponesas na Alemanha, a tendência dos anabatistas e de Thomas Münzer”. 

 

Considerou que, apesar de terem uma face cristã reformada, as reivindicações anabatistas iam além da expressão religiosa que apresentavam. Para Engels, a política de Münzer nasceu de seu pensamento revolucionário, que caminhava adiante da situação social e política de sua época. Seu programa propunha o estabelecimento do Reino de Deus, com o milênio de justiça, paz e felicidade, com a supressão de todas as instituições que se encontravam em contradição com o mandamento do amor.

 

É necessário dizer que, ao analisar a teoria social dos anabatistas, de contrapor as políticas de poder ao amor cristão, vemos que desejavam o estabelecimento do Reino de Deus na terra, o reino milenar dos profetas. Tal Reino seria uma sociedade sem diferenças de classes, sem propriedade privada e sem autoridade estatal independente ou externa aos membros da sociedade. É claro, que na construção dessa eclesiologia sócio-política não podemos esquecer a dimensão religiosa do milenarismo de Münzer, sua força espiritual e moral, sua experimentada e autêntica profundidade mística. Sem dúvida, encontramos nas propostas anabatistas uma síntese das reivindicações plebeias e camponesas daqueles tempos, que antecipou os movimentos socialistas de outras revoluções camponesas e proletárias. Mas essa dimensão sócio-política não pode ser entendida em toda a sua riqueza se for separada da dimensão utópica milenarista dos cristãos anabatistas.

 

As comunidades de fé anabatistas rejeitaram qualquer forma de poder representado na ordem econômica e política sob o poder do Estado. Mas ao rejeitar as políticas de poder da sociedade feudal e de submissão ao poder dos príncipes, optaram pela construção de uma nova sociedade, de uma nova política, de uma eclesiologia, e, por extensão, de um novo cristianismo. E, nesse contexto, até mesmo a expressão “movimento anabatista” precisa ser reconsiderado, já que não podemos falar de uma reforma anabatista como falamos de uma reforma luterana, zwingliana ou calvinista. Os anabatistas não estabeleceram chefes espirituais, nem código de doutrina amplamente aceito e de consenso, nem órgão central dirigente. Não influenciaram governos, não modelaram sociedades nacionais, não conservaram uma administração política.

 

Neste sentido, a revolução anabatista desembocou na reflexão não violenta de Hans Denck (1500-1527), que não podemos caracterizar como pacifismo. Sem dúvida, diferia do separatismo anabatista, revolucionário e de confronto, que historicamente propôs a radical separação entre igreja e Estado em nome da liberdade e da justificação pela fé, mas não era ainda uma proposta pacifista. Afinal, o separatismo revolucionário, que via o fracasso das políticas de poder como impedimento para a manifestação do Reino de Deus, ainda estava muito presente na vida e memória dos fiéis.

 

A teologia anabatista, que podemos dizer existencial e humanista, fazia a crítica da política vigente e propunha o enfrentamento físico dos poderes do mundo. Traduzia uma atitude política consciente. Tal espiritualidade permaneceu sob a proposta não violenta e espiritualista de Denck e da confissão de Schleitheim e se espraiou pela Europa, traduzindo-se em novas construções religiosas, entre as quais podemos citar menonitas e batistas.

 

Na Inglaterra, principalmente durante o período de Oliver Cromwell (1599-1658) e da revolução puritana (1625-1660) as idéias anabatistas retornaram com força, não mais com sua marca separatista, mas como missão moral de transformação. Aliás, o próprio Cromwell foi criticado por ter franca empatia pelos anabatistas. E são nesses anos que cobrem a primeira metade do século 17, que os batistas, muitos dos quais antigos anabatistas, vão construir uma nova identidade religiosa. E talvez o batista que melhor expressou essa realidade foi William Dell, que considerou o uso da coação uma invenção humana, algo deletério que não tinha lugar no Reino de Deus. Dell escreveu um livro chamado “Uniformidade Examinada” e apoiou a revolução dirigida por Cromwell.

 

Assim, podemos dizer que fatores religiosos, sociais e políticos, entre os quais a revolução camponesa e plebeia de 1525, levaram à construção da eclesiologia anabatista. Tal eclesiologia traduziu a realidade das comunidades anabatistas nos seus confrontos e relacionamentos com o mundo feudal e burguês reformado, em seu papel social e na forma comunitária e democrática de governo dessas comunidades.

 

A matriz eclesiológica anabatista permanece presente hoje, com releituras e contextualizações, em parte das igrejas evangélicas brasileiras. Por isso, entender que tal eclesiologia não deve estar separada de uma ética política e social é caminho para repensar a missão das comunidades de fé nesta alta modernidade. Tal eclesiologia deve utilizar os meios que possibilitam chegar aos fins que busca. Mas, é necessário entender que quem rejeita todo poder, rejeita políticas. Tal rejeição pode até ser aceita, como no caso da revolução anabatista, desde que as comunidades de fé tenham consciência do que estão fazendo e, coerentemente, proponham a revolução do mundo. Mas as comunidades de fé que repousam sua relação com o mundo numa eclesiologia de tipo anabatista não precisam se omitir diante da política e do poder, mas a partir da não violência ativa podem favorecer a expansão do Reino de Deus, ou seja, trabalhar pela justiça, pela paz e pela alegria. Têm-se, então, uma política cristã, que nasce participativa e se espraia como representativa.


 

 

 

 

 

 

 

 

 

Perdoa as nossas ofensas como também nós

perdoamos as pessoas que nos ofenderam

 

 

 

Para Münzer, o céu estava aqui no chão. E, por isso, o cristão deveria construí-lo na vida. A esse cristão anabatista cabia a missão de estabelecer o Reino de Deus sobre a terra. Seus sermões eram clamores políticos e estavam dirigidos a instaurar uma nova ordem social. A partir de Münzer, os anabatistas fizeram dos sermões proféticos, elaborados a partir da realidade social em que estavam inseridos, manifestos revolucionários, cujas propostas atemorizavam as autoridades, governantes eclesiásticos e príncipes de toda a Europa.

 

A crise econômica fruto exploração agrícola predatória e extensiva; a crise demográfica, por causa das epidemias e fome; a crise social gerada com o surgimento da burguesia e dos assalariados; a crise clerical, devido às contradições e o enfraquecimento da Igreja católica e a crise espiritual ocasionada pelo surgimento de novas leituras do cristianismo fizeram da baixa Idade Média um período de alta instabilidade e angústia coletiva. Milhares de camponeses sem terra e plebeus desempregados vagavam pelos campos e cidades.

 

Essa situação levou às propostas de construção de comunidades formadas por camponeses e plebeus, onde pudessem viver e trabalhar juntos, num sistema de vida em comum com os bens partilhados, disponíveis segundo as necessidades das pessoas e famílias. E, de fato, os anabatistas organizaram comunidades com este formato, organizações baseadas na propriedade social autônoma em relação ao Estado e aos poderes eclesiásticos e laicos da época, em primeiro lugar católico e depois reformado.

 

Dessa maneira, a compreensão que os anabatistas tiveram de que o cristianismo era uma ferramenta para a mudança da condição social em que se encontravam os camponeses e deserdados da terra, sem dúvida, partiu de suas próprias experiências de vida e trabalho e quebraram o paradigma de que a fé devia estar alienada da vida social e política.

 

Mais tarde, em combate, e exército de Münzer foi derrotado e ele foi preso, torturado e executado. Mas a guerra camponesa na Alemanha se estendeu até 1525, quando os anabatistas revolucionários foram afogados em sangue. O conflito, que teve lugar nas áreas do sul, centro e oeste da Alemanha, também afetou regiões vizinhas  na Suíça e Áustria, e envolveu no seu auge, no verão de 1525, cerca de 300 mil camponeses. Estimativas da época situaram o número de mortes em torno de 100 mil camponeses e plebeus.

 

 

10.

 

 

O sonho anabatista, porém, não morreu aí, subsistiu no coração de milhares de cristãos. Vejamos alguns exemplos. Sete anos depois da morte de Münzer, em 1532, uma insurreição tomou conta da cidade de Münstzer. Ela foi iniciada por um ex-padre da Catedral de Münstzer, que se tornou luterano, Bernard Rothmann, e acabou sendo expulso da cidade. Dois anos depois, em 1534, o pastor anabatista Jan Matthys, junto com outros líderes, entre os quais Jan van Leiden e Gert Tom Kloster, declarou a cidade de Münstzer livre do domínio dos príncipes e do poder eclesiástico.


Matthys iniciou uma revolução social: os proprietários de terras foram expropriados e suas terras e bens distribuídos entre os camponeses. Dando sequência à revolução, ele e um grupo de anabatistas atacaram a guarnição liderada pelo príncipe Franz von Waldeck, que era bispo de Münstzer e também chefe do exército. No confronto Matthys foi  morto. Foi, então, sucedido por Jan van Leiden. Após um ano de resistência, Waldeck liderou um exército bem equipado e assaltou a cidade. Jan van Leiden e seus oficiais foram presos, torturados e executados. Os combatentes anabatistas foram lançados às prisões e, posteriormente, deportados para outras regiões da Alemanha e Suíça.

 

A partir desse momento as comunidades anabatistas passaram a viver umas isoladas das outras, de forma clandestina. Seus líderes eram leigos que pregavam em roupas civis. Adotaram uma disciplina e uma ética rígidas a fim de sobreviverem na clandestinidade. Essas pequenas comunidades se refugiaram no interior da Europa e se estruturaram de forma autônoma. Cada comunidade de fé sobrevivia do compromisso de serviço e financeiro de seus afiliados.

 

Há um poder formador no ato do protesto. E dele podemos dizer: a espiritualidade conquista profundidade no mergulho dentro da materialidade; o que chamamos de Eterno deve se expressar em relação à situação presente; o mandato da vida deve ser expresso com ousadia e risco; e, enfim, o poder formador do protestantismo deve expressar o seu radicalismo.

 

A ação protestante é uma experiência transcendente ao nível da materialidade humana, uma experiência que aconteceu em todos os tempos. Nesse sentido, a ação protestante não pode ser identificada com um tipo determinado de organização social, mas sempre com a transcendentalidade da justiça.

 

Por isso, o protestantismo é portador de poder de transformação e oferece uma mensagem de vida tanto para a pessoa, como para a comunidade. Mas, não se pode dizer que a ação protestante é um movimento que mecanicamente parte da interioridade em direção à exterioridade, apropriando-se de formas culturais ou passando ao largo delas. Na verdade, a ação radical de protesto dá forma às expressões culturais e toma novas formas a partir delas. Dessa maneira, o protestantismo está ligado a modelos sociais e econômicos, embora tenha mais afinidade com determinadas formas de organização social.

 

A ética da vida, por exemplo, leva o protestantismo a ter uma postura crítica diante da ordem social que se apóia na opressão e na exclusão social. E proclama a necessidade de uma ordem na qual a vida e seu o sentido sejam o fundamento da organização social.

 

“Em vez de serem apenas bons, esforcem-se para criar um estado de coisas que torne possível a bondade. Ou melhor: que a torne supérflua!” (Bertolt Brecht, do poema De que serve a bondade).

 

Tal ética propõe uma economia solidária onde a alegria não seja fruto do ganho, mas do próprio trabalho. E prega a submissão das nações, ricas e pobres, à idéia do direito, e à construção de uma consciência comunitária, soldada sobre a paz, que leve a uma globalidade real entre povos e nacionalidades.

 

Historicamente, rupturas religiosas acontecem associadas a rupturas econômicas, isto porque o núcleo da unidade cultural de determinada época ou povo é a religião, quer esteja institucionalmente expressa ou não. Assim, o fracionamento religioso característico de determinadas épocas traduz fracionamento econômico, distanciamento e choque entre classes. E naquelas épocas em que temos um processo cultural de unidade temos também uma nova base de unidade e solidariedade social e econômica.

 

Nesse sentido, há um processo de desenvolvimento que se realiza de forma desigual na história, mas que combina mudanças religiosas e transformações econômicas e sociais. Diante de tais circunstâncias a ação protestante está eticamente obrigada a fazer escolhas: participar dos processos de transformação ou se retrair e entrar em processo de caducidade, ao afastar-se da vida real das comunidades.

 

Seja qual for a opinião ética sobre as organizações políticas dos trabalhadores, um fato deve ser ressaltado: o protestantismo deve apresentar a elas uma leitura radical da incondicionalidade da justiça, que emprenhe a construção das comunidades futuras.

 

No século vinte, a concepção materialista da história negou a possibilidade da aproximação do protestantismo às organizações políticas dos trabalhadores, mas se entendemos que em Marx esta concepção do fato histórico não é materialista, mas econômica, vemos que há uma relação de causalidade entre fundamento econômico e organização da cultura. E, ao contrário, tal fundamento dá às ciências humanas uma possibilidade metodológica fecunda, que vai além do ateísmo.

 

“Em vez de serem apenas livres, esforcem-se para criar um estado de coisas que liberte a todos e também o amor à liberdade torne supérfluo!” (Bertolt Brecht, do poema De que serve a bondade).

 

Assim, ao contrário do que antes parecia, não podemos dizer que o ateísmo seja um elemento constitutivo das organizações políticas dos trabalhadores. É uma herança burguesa, que foi adotada pelas organizações políticas dos trabalhadores sob a crença de que ajudaria a extirpar a idéia de opressão e abriria o caminho para a construção de um mundo mais justo.

 

A crítica das organizações políticas dos trabalhadores esteve dirigida às instituições eclesiásticas, já que a religião se tornou negócio. Mas, essas organizações buscaram inspiração ética nas potencialidades da universalidade humana e, por isso, hoje, devem aceitar os princípios da tolerância religiosa e da separação entre religião e Estado.

 

Embora tenham existido razões históricas para as críticas às instituições eclesiásticas, e ainda existam, as organizações dos trabalhadores não podem negar a base solidária e comunitária do ideal da ação radical protestante. E quanto à revolução, é preciso dizer que não existe uma relação natural entre o ideal das organizações políticas dos trabalhadores e tática revolucionária. Nem sempre se pode dizer que as táticas propostas pelos trabalhadores são contrárias às ações protestantes. Basta ver como Engels analisou a revolução anabatista na Alemanha.

 

É, caros leitores e leitoras, tenho plena consciência do caráter permanente e universal da revolução, já que está ligada à própria vida. E creio que os movimentos libertários da história humana traduzem esse anseio inerente à alma humana. Por isso, como disse um amigo e intelectual sofisticado, Tomás Rosa Bueno, "cada revolução fala a língua da sua época, radicalizada. É natural que os anabatistas e tantos outros nos séculos pré e peri-renascentistas adotassem a da face mais humana da religião. Mas, no fundo, é sempre a mesma velha toupeira que cava os seus túneis sob os palácios do poder. Nós todos vamos chegar à luz um dia. E vamos refazer a história, dando razão aos anabatistas, tirando Espártaco da cruz, trazendo à Terra o nosso reino".

 

Essa é a força do reino: é utopia humana que baliza sonhos e esperanças, em tempos e lugares diferentes. Por isso, também resgato o pensamento libertário das comunidades cristãs anticlericais que pontuaram a Idade Média e que culminaram com o messianismo revolucionário anabatista de Thomas Muntzer, que propôs uma revolução social, sem a qual não poderia haver revolução cristã, já que para ele o reino de Deus estava presente no cotidiano. Ele quis instaurar a dignidade de homens e mulheres, um reino de Deus no aqui e agora. É esse caminho que me permite dialogar fraternalmente com as comunidades cristãs. Na verdade, esse socialismo em construção permanente não estabelece doutrinas e dogmas, mas contextualiza as reflexões e práticas cristãs e revolucionárias. Por isso nadamos pela orla da Reforma protestante, mergulhamos na ação revolucionária dos cristãos anabatistas e chegamos a Marx a braçadas.

 

As pessoas que vivem o princípio protestante podem, sem temor, ter uma atitude positiva em relação às organizações políticas dos trabalhadores. Atitude positiva deve ser entendida como a realização da incondicionalidade da justiça e da defesa do sentido da vida, que entende a necessidade de eliminar as condições que geram exclusão e miséria. Tal atitude traduz a urgência de combater os fundamentos do egoísmo econômico e de ações para a construção de uma ordem social, que sem deixar de ser globalizada, inclua excluídos e periféricos. Isto porque o pensamento e a ação da radicalidade protestante não são tarefas, apenas, de operários e trabalhadores fabris, mas um ideal ético que traduz anseios e esperanças de todos que se levantam por uma sociedade mais justa.

 

“Em vez de serem apenas razoáveis, esforcem-se para criar um estado de coisas que torne a desrazão de um indivíduo um mau negócio”. (Bertolt Brecht, do poema De que serve a bondade).

 

E como tornar realidade esta ação de protesto contra a corrente, hoje. Bem, no Terceiro Mundo, a partir da década de 1970, a repercussão da revolução cubana, assistiremos ao surgimento da Teologia da Libertação, que terá como pais o teólogo católico peruano Gustavo Gutierrez e brasileiros Rubem Alves e Leonardo Boff, uma teologia profundamente voltada para a práxis da ação social. No Brasil teve importância quando criou e desenvolveu as Comunidades Eclesiais de Base, CEBs, que serviram como elemento dinamizador, ao lado dos sindicatos, para a formação do Partido dos Trabalhadores, PT.

 

Mas aqui convém que eu dê um pequeno testemunho. Como no caso de milhões de brasileiros, as últimas cinco décadas do século vinte fazem parte da minha vida. Fazem parte da minha memória as tentativas de golpes militares contra Juscelino Kubitschek, em 1955, e as manifestações contra o vice-presidente João Goulart em 1961.

 

A tentativa de golpe contra Kubitschek foi impedida pelo marechal Henrique Batista Duffles Teixeira Lott, que criou as condições para a realização das eleições e para a posse de Juscelino Kubitschek.


Da mesma maneira, me lembro quando eu ainda estudante secundarista do Colégio Estadual José Pedro Varela no Rio de Janeiro, assisti boquiaberto ao noticiário da renúncia de Jânio Quadros. O presidente alegou ter sido pressionado por forças ocultas, mas o mal estar se aprofundou quando o vice-presidente João Goulart foi visto como aquele que naturalmente deveria ocupar a presidência. Goulart era o sucessor político de Getúlio Vargas, odiado pelos militares e, pior ainda, cunhado do governador do Rio Grande do Sul, Leonel Brizola, que defendia reformas estruturais no país, entre as quais a reforma agrária. 

 

Goulart estava na China quando soube da renúncia de Jânio e de que os militares tinham se manifestado contra sua posse como presidente. Ranieri Mazilli, nesse momento, foi empossado presidente em exercício.


No Rio de Janeiro, um jornalista eleito governador do estado da Guanabara, Carlos Lacerda, iniciara uma campanha contra Jânio Quadros, por este estar se aproximando dos países socialistas. Lacerda disse na TV que Jânio queria dar um golpe para governar com poderes absolutos. O discurso de Lacerda desestabilizou o governo de Jânio, que se mostrara desde o início instável e populista.


E foi assim que eu entrei na política, apoiando a Campanha da Legalidade lançada no Rio Grande do Sul por Leonel Brizola para que seu cunhado assumisse a presidência da República. E em frente ao Colégio Estadual José Pedro Varela, em cima de uma caixote de feira, chamei os colegas e professores à greve. E como estávamos bem articulados e interpretávamos o sentimento das massas trabalhadoras naquele momento, a greve saiu e foi um sucesso.


Mas os liberais, ao redor de Raul Pilla, defensor do parlamentarismo, apresentaram uma solução de negociação: Goulart seria presidente, mas não governaria. O governo ficaria nas mãos do Presidente do Conselho de Ministros.

Jango, assim era chamado João Goulart, passou a exercer a função de chefe de estado, mas o governo passou pelas mãos de três Primeiros-Ministros: Tancredo Neves, Francisco de Paula Brochado da Rocha e Hermes Lima.


O certo é que os movimentos de trabalhadores e sindicatos, em 1962, descontentes com o parlamentarismo, que acabou por não agradar a ninguém, pressionam por um plebiscito que definisse a forma de governo no Brasil: parlamentarismo ou presidencialismo. Esse plebiscito estava previsto para dentro de três anos, quando se dariam as novas eleições presidenciais, mas o descontentamento generalizado apressou a sua realização. E os eleitores escolheram o presidencialismo. Goulart, então, começou a governar de fato.


O Partido Comunista e os sindicatos, junto com o Partido Trabalhista Brasileiro, que formavam a base de sustentação do governo, pressionaram para que as reformas fossem realizadas. E eu tive a sorte de viver esse impressionante momento de nossa história, como jovem que frequentava o restaurante do Calabouço, onde comia a vanguarda estudantil do proletariado naqueles dias de luta e sonhos.

 

O país estava sendo corroído por uma inflação que só fazia crescer e que levou o governo a medidas de austeridade, ou seja, antipopulares. A esquerda, então, liderada pelo Comando Geral dos Trabalhadores, em busca da ruptura da indecisão de Goulart de iniciar as reformas, lançou o país num clima de greves até aquele momento jamais visto.

 

O presidente estadunidense John Kennedy, intervindo diretamente na política brasileira, ordenou o financiamento das campanhas dos governos estaduais que fossem contrários a João Goulart.


Segundo Philip Agee, ex-agente da CIA, os fundos vindos de fontes estrangeiras foram utilizados na campanha de oito candidatos estaduais, de 15 candidatos ao Senado, de 250 candidatos à Câmara e a mais de 500 candidatos às Assembleias Legislativas. O dinheiro era entregue ao Instituto Brasileiro de Ação Democrática/ IBAD, para a viabilização do Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais/ IPES, com a finalidade de desestabilizar o governo. Tal situação gerou uma Comissão Parlamentar de Inquérito, que apurou que as doações eram originárias de três bancos, Royal Bank of Canada, Bank of Boston e First National City Bank.


Dando início às reformas, Leonel Brizola estatizou a companhia telefônica, assim como a de energia elétrica do Rio Grande do Sul, afirmando que estas empresas promoviam dumpping, levando à quebra as pequenas empresas de geração elétrica e telecomunicações gaúchas. As empresas estatizadas pertenciam a grupos norte-americanos. Os dados estavam lançados. A partir daquele momento inicia-se uma queda de braço entre direita e esquerda no Brasil.

 

E, assim, os sargentos e marinheiros ligados a Brizola, que pleiteavam direito à democracia nas Forças Armadas, deram início as suas manifestações. E na sequência vieram os estudantes. A classe média aterrorizada começou a marchar para a direita, bombardeada pelos meios de comunicações que diziam estar o Brasil prestes a um golpe de estado para a implantação do comunismo.


E sob a batuta dos Estados Unidos que, desde 1961, fomentavam o golpe, apoiando-se nos militares descontentes desde 1954, e com o apoio da União Democrática Nacional, partido de Carlos Lacerda, organizou-se o golpe. Assunto de tal importância que desembocou na Comissão da Verdade, implementada pela ex-presidenta Dilma Rousseff.

 

No campo protestante, os conservadores são a maioria nos Estados Unidos e a vanguarda da ação social. E no Brasil, onde também predominam, dividem-se em dois grupos, os históricos e os pentecostais, incluídos nesse último grupo os neopentecostais. No campo católico, a igreja enfrenta um refluxo de vocações, fortes pressões a favor do sincretismo, mas, ao mesmo tempo, crescimento do movimento carismático, que já contou com cerca de quatro milhões de fiéis.

 

Fenômenos como as teologias radicais e o ecumenismo estão em pleno declínio. As igrejas que levantaram essas bandeiras perderam um número expressivo de membros. Da mesma maneira, o liberalismo e as correntes neo-ortodoxas estão em franco esgotamento. Há uma busca crescente pelo dinamismo religioso da cruz.

 

De conjunto, a igreja de Cristo continua a crescer. A metade da população da África é cristã, cerca de 200 milhões de pessoas. Na China, estima-se a população cristã em 30 milhões de pessoas. No Brasil, cerca de 20% da população é evangélica. Um quarto da população mundial diz-se cristã, católicos e protestantes. Ou seja, a comunidade do Cristo teve uma impressionante expansão.

 

Mas em relação ao humanismo cientificista, ateu e materialista, que tem caracterizado toda essa nova era, as respostas da Igreja não se mostraram muito convincentes para o conjunto da sociedade cristã ocidental. A Igreja tem sobrevivido, mas parte de seu impacto e frescor se perdeu. Por outro lado, houve uma restauração da “devoção corporizada como atividade comunal”para despertar na compreensão popular a grandeza eterna encarnada na passagem do fato temporal e uma redescoberta da Bíblia, como revelação da verdade sobre a origem e destino do homem.

 

Vidler considera que na Igreja da era da revolução a ação social e a volta às Escrituras equilibram-se com a tendência ao fracionamento e ao surgimento de seitas. Assim, infelizmente, a era da revolução é, em relação à Igreja, a era do cisma. E nada indica, até agora, que esta tendência caminha para o seu fim.

 

“Os homens hoje estão divididos entre aqueles que conservaram as suas raízes e perderam o contato com a ordem da sociedade existente, e aqueles que têm observado os seus contatos sociais e perdido suas raízes espirituais”. Ao menos em relação à Europa e à Inglaterra essas palavras são verdadeiras. Assim, desde a Revolução Francesa a Igreja enfrenta esse tipo especial de cisma, que fraciona não apenas sua estrutura, mas a alma do ser humano moderno e até mesmo a alma de homens e mulheres cristãos.

 

No Brasil de hoje podemos falar de uma multidimensionalidade do tempo na cultura. Ora, antes, sem dúvida, o tempo deveria ser distintamente diferente para cristãos e não-cristãos, mas agora com a criação e combinação dos tempos artificiais produzidos pela tecnologia, os ritmos e tempos se interpenetram.

 

Em 1983, o cientista político italiano Giacomo Marramao lançou Potere e secolarizzazione, em que trabalha a controvérsia sobre tempo pagão e tempo cristão e, como consequência, a questão das imagens do mundo e as representações do tempo.

 

O conceito secularização não é apenas uma metáfora, que expressa o distanciamento progressivo da esfera religiosa enquanto poder, já que seu significado semântico continua em permanente construção. Para Marramao (1997), "a impossibilidade de reconduzir essa noção a uma concepção unitária não depende meramente, como no caso de outros termos característicos da modernidade, da sua polissemia ou polivalência semântica", mas necessita de uma "estrutural ambivalência de significado, a qual dá lugar a premissas antitéticas ou diametralmente inversas". Assim, o paradoxo maior da secularização mostra-se enquanto conflito igreja versus secularidade, já que a igreja assume um caráter burocrático e a secularidade, cada vez mais, discute, opina e legisla sobre questões religiosas. Ou seja, há ou não uma interseccionalidade de valores? Vemos, então, que a religiosidade evangélica busca institucionalidade e a secularidade cria características religiosas.

 

É de se entender que a secularização, enquanto fenômeno interseccional, possui significado de afirmação e de oposição entre o espiritual e o secular. Dessa maneira, a secularização se apresenta hoje, na alta modernidade sob três formas, o princípio da ação eletiva, o princípio da diferenciação/ especialização progressiva, e o princípio da legitimação. E se falamos do princípio da ação eletiva, estamos a falar da emersão progressiva da pessoa na busca do significado do seu "eu" e da "consciência de si mesmo". Por isso, para Marramao (1995), "este aspecto comporta um modo cultural particular de estabelecer a linha de demarcação entre subjetividade e objetividade e, portanto, de construir a realidade social."

 

Já o princípio da diferenciação/especialização progressiva nos mostra que quando o princípio eletivo se torna afirmativo, a adoção do critério de escolha fica em aberto. Esse critério de escolha está no âmbito da racionalidade instrumental, assim, Marramao (1995) nos dirá que "a consequência disto é a relação estreitamente biunívoca que se instaura entre secularização e  aumento de complexidade do mundo social."

 

Ao analisar o pensamento político da religiosidade evangélica no Brasil, dois autores traçam linhas demarcadas, sobre como se lançaram contra os direitos civis, democráticos, seculares. Para Cowan, “a direita política evangélica no Brasil tornou-se presuntiva, mas foram prefiguradas durante os processos simultâneos de redemocratização nacional e de politização evangélica na década de 1970.

 

Nesta encruzilhada, os líderes de várias denominações religiosas adotaram a linguagem de uma crise moral aguda, lançando as bases para uma direita evangélica. A própria crise moral tornou-se “nosso terreno”, o ponto de inserção dos evangélicos de direita na esfera política, e uma das várias questões-chave que dividem evangélicos reacionários e seus correligionários progressistas. Até o momento da Constituinte, a posição dos Batistas e Assembleianos, como vozes dos conservadores que apoiaram amplamente o regime militar e se opuseram às iniciativas de justiça social do ecumenismo de esquerda e ao comunismo, tinha sido estabelecida após anos de pronunciamentos que ligavam essas questões à crise moral.”

 

E para Carneiro, “no Brasil, o evangelicalismo evoluiu cada vez mais para a direita ao longo do período ditatorial e pós-ditatorial, constituindo o que já foi chamado de uma nova direita” baseada na reação moral e cultural. Na ditadura houve uma distinção clara entre setores protestantes democráticos que se opuseram ao regime, como o pastor presbiteriano James Wright, fundador do Brasil Nunca Mais, e os grupos mais conservadores que apoiaram os governos militares.

 

“Esta ala direita se aproveitou de benesses do regime, cresceu e predominou. Sua atuação política mais destacada se deu em torno ao combate à pornografia, o alcoolismo, o tabagismo, o jogo, o divórcio, e a emancipação feminina. Defensores de que o lugar da mulher é no lar, se juntaram à Igreja Católica para se opor ao controle populacional e aos anticonceptivos.”

 

A Reforma protestante desde os seus primeiros momentos buscou fundações. Conhecemos os princípios basilares apresentados por Lutero: a justificação pela fé, a sola scriptura, o livre exame dos textos sagrados cristãos e o sacerdócio universal dos fiéis. A partir desses conceitos de liberdade surgiu um conjunto de princípios em cima do qual se levantou a teologia reformada. Tal construção foi vista como base que legitimou e autorizou a expansão de uma das maiores revoluções religiosas da história humana. E, assim, surgiu a teologia reformada como fundamento de todos os protestantismos, inclusive os nossos com cara brasileira, com leituras e matizes diferentes.

 

Assim, a academia quando se debruçou sobre o fundamentalismo do movimento evangélico, viu principalmente o seu lado integrista. É certo que a religiosidade evangélica é fundamentalista. Mas Mendonça explica o que isso significa:

 

“Seu apego à letra da Bíblia, ao mesmo tempo em que a interpreta dogmaticamente, tem engessado o protestantismo no cipoal da ortodoxia mais fria que pode existir. O fundamentalismo, além de violar o sagrado princípio da Reforma, que é livre exame – por ter-se especializado em publicar Bíblias com notas e referências, verdadeiros tratados teológicos --, voltou a submeter o protestantismo a um simples sistema de crenças ao qual o fiel se submete intelectualmente".

 

Na verdade, a utilização da expressão fundamentalista para a religiosidade evangélica brasileira ou setores dela não está errada, mas se torna reducionista ao prender-se aos aspectos negativos do termo -- conservação, integrismo, retroação – e deixa de ver aspectos relacionais positivos que a busca por fundação implica.

 

O Brasil desde 1940 vem numa acelerada marcha de urbanização. Em 1940, 30% da população do país, 40 milhões de pessoas viviam em cidades. Em 2006, 56,3 milhões de brasileiros viviam nas nove maiores regiões metropolitanas do país. Segundo dados do IBGE (2007), hoje 83% da população moram em cidades, 140 milhões de habitantes. Portanto, 8 em cada 10 brasileiros vivem em núcleos urbanos. Parte da população urbana concentra-se no Sudeste do país, em especial em grandes áreas metropolitanas como São Paulo, 17 milhões na Grande São Paulo, e Rio de Janeiro, mais de 10 milhões na Grande Rio.

 

 

11.

 

 

Além do aumento da população urbana ocorre no país uma urbanização do território: há crescimento da população urbana, do número de cidades, e os núcleos urbanos passam a se espalhar por todos os estados e regiões do país. Surge, então, uma rede urbana ampla, interligada e complexa. Expande-se, assim, o modo de vida urbano, apoiando-se nos sistemas de transportes, telecomunicações e informações. O processo de modernização do país, na segunda metade do século vinte, gerou duas megalópoles, São Paulo e Rio de Janeiro, que foram constituídas coração cultural e econômico do país, concentrando recursos e articulando em seu entorno uma constelação de aglomerações urbanas e cidades médias. Por outro lado, ocorreu nos últimos anos uma tendência à desconcentração de atividades - sobretudo industriais -, com o deslocamento de unidades produtivas do núcleo central de metrópoles como São Paulo para outras cidades e aglomerações urbanas de diferentes portes e localizadas em diferentes estados e regiões. E a redução no ritmo de crescimento populacional de São Paulo e do Rio de Janeiro é fato marcante, embora não signifique a redução do poder e influência nacional e internacional de ambas.

 

Crescem também outras aglomerações urbanas metropolitanas e não-metropolitanas e também o número de cidades médias por todo o país. Temos, então, uma situação em que permanece o peso acentuado das metrópoles, ao mesmo tempo em que há a desconcentração ou repartição de atividades entre as metrópoles e outros núcleos.

 

E a religiosidade evangélica montou a cavalo no processo de urbanização. A procura evangélica por fundamentos é uma mostra de que o fenômeno não traduz um movimento espontâneo, mas procura construir raízes que lhe deem estabilidade e permanência. As antigas construções institucionais e religiosas brasileiras, primeiramente calcadas no catolicismo rural e depois no protestantismo de migração e de missão, estão presentes nessa procura evangélica por fundamentos e são um fenômeno urbano. E tal processo nesta alta modernidade não ter definições precisas e sólidas, as religiosidades evangélicas urbanas necessitam de um permanente olhar a frente. Assim, as necessidades estruturais da sociedade brasileira e o descontentamento nem sempre definido e claro das populações urbanas fornecem elementos para a compreensão da busca de fundamentos por parte dos novos movimentos protestantes presentes no espaço urbano.

 

Ao acrescentarmos a variável urbanização à alta modernidade, entendemos que a procura por fundamentos é também produto da globalidade e que, embora possa assumir formas antiglobais, sua tendência é partilhar as características da globalidade. Ou seja, a alta modernidade surge como desequilíbrio e traz insegurança para as massas, e o movimento evangélico, calcado em fundamentos, apresenta-se como opção de sentido, esperança e vida para essas mesmas massas. Por isso, não podemos dizer que o fenômeno evangélico urbano brasileiro seja mero produto da correlação entre urbanização e alta modernidade.

 

Os estudos publicados pelo IBGE mostram que em 1970 a população evangélica tinha 4,8 milhões de fiéis, e que em 1980 passou a 7,9 milhões. Constatou que na década de 90, a velocidade de crescimento das comunidades evangélicas foi quatro vezes maior que a da população brasileira. Assim, em 1991 chegou a 13,7 milhões; em 2000 a 26 milhões. E em 2010, a 42,3 milhões, ou seja 22,2% dos brasileiros. Atualmente, o movimento como um todo caminha para ser um quarto da população.

 

Devemos reconhecer, porém, que a multiculturalidade brasileira tem suas correlações com a globalidade, e que não há cidades de refúgio na temporalidade globalizada. As culturas brasileiras estão integradas na ordem de um conjunto maior que é a própria brasilidade na alta modernidade, coladas cultural e economicamente à globalidade da produção e do consumo capitalistas. Assim, dentro desse panorama, o protestantismo evangélico, em seus diferentes matizes, leva a uma viagem da tradição em direção à alta modernidade.

 

Como vimos, uma das características do fenômeno religioso urbano, e aí se enquadra a religiosidade evangélica em seus diversos matizes, é a procura por fundamentos. Tal tendência pode ser ilustrada nas propostas de volta às tradições históricas da Reforma, o que aparentemente entra em choque com a globalidade. Mas essa volta às tradições históricas faz parte da própria globalidade. E é expressão profunda de sua virtualidade.

 

No protestantismo clássico, os teólogos magisteriais controlaram suas produções a partir de estruturas e procedimentos ordenados. Isso é tudo o que podemos fazer em um mundo complexo? Se for, a institucionalidade das confissões judaico-cristãs estão destinadas a seguir o caminho do Tyrannosaurus rex. A tentativa de estabilizar o sistema leva a torná-lo incapaz de interagir com o mundo e possibilitar a criação de alternativas futuras. Os intérpretes modernos enfatizaram que as culturas e os valores compartilhados são essenciais para fazer a leitura da religiosidade judaico-cristã.

 

Em condições dinâmicas, onde fé e linguagem religiosas são formados por múltiplas e variadas possibilidades, onde hermenêuticas monolíticas falharão na geração da criatividade religiosa necessária para dotar as confissões de compreensões adequadas. Por isso, as diversidades de opiniões e abordagens são importantes. O pensamento único, que não comporta diferentes visões, pode ter sido um dos fatores cruciais para a crise de parte das confissões judaico-cristãs no mundo moderno e, em especial, nas últimas décadas do século vinte. Os hermeneutas modernos acreditaram que o sucesso da fé e linguagem religiosas poderia repousar exclusivamente na manutenção do equilíbrio interno da origem fundante, mas se isso fosse possível, a própria fundação teria deixado de apresentar novidade e a liberdade da religiosidade no século vinte deveria ter sido reduzida à escolha da adaptação certa ou errada.

 

Mas no mundo da complexidade hermenêutica os riscos são muito maiores. Primeiro porque equilíbrio exclusivo e permanente da internalidade religiosa significa morte, exatamente o contrário do que pensava a velha hermenêutica. Segundo porque em condições não-estáveis o ambiente humano também se fez presente na religiosidade, tanto quanto ele no ambiente humano. As implicações disto significam que as compreensões hermenêuticas não podem culpar o mundo por suas falhas: elas devem ser vertiginosamente livres para criar o próprio futuro religioso.

 

Há um verso de Nietzsche que pode nos servir de guia para uma hermenêutica da religiosidade evangélica na alta-modernidade:

 

“Agora celebramos, seguros da vitória comum, a festa das festas: O amigo Zaratustra chegou, o hóspede dos hóspedes! Agora o mundo ri, rasgou-se a horrível cortina, É hora do casamento entre a Luz e as Trevas...”

 

Nietzsche pensava a ausência de horizontes. Em Além do Bem e do Mal, ele pensa contra a modernidade: faz um libelo contra os valores da modernidade, como o sentido histórico, a objetividade científica e, logicamente, a fé numa razão autônoma. Assim, é o caso de perguntar: é possível continuar existindo algum contato com a chamada realidade hermenêutica, quando a virtualidade, por exemplo, fica indistinguível e até mesmo mais autêntica que o original, quando podemos criar mundos sintéticos que são mais reais que o real, quando a tecnologia glosa a natureza? Quando a hermenêutica, livre das dogmáticas confessionais, faz caminhos como o filme Matrix.

 

Mark C. Taylor, hermeneuta estadunidense, percorre sob outras condições questionamentos idênticos aos levantados por Nietzsche. Ao trabalhar a questão da virtualidade na comunidade religiosa da alta-modernidade, utiliza um conceito que já vinha sendo usado na crítica literária, a idéia de imagologia. Antes, na teoria literária, e agora na hermenêutica de Taylor, a identidade do texto não pode ser encarada como uma forma de ser plena e apriorística, mas como realidade dinâmica ou relacional, onde se cruzam questões de identidade textual e comunitária, o que também se dá na virtualidade, que acaba sempre por revelar uma dimensão estrangeira, que é manifestação de um outro. Na medida em que há constante busca identitária, o confronto com este outro supõe sempre uma comparação, explícita ou implícita, e se integra naquilo que na terminologia de Taylor será a imagologia, estudo das representações do outro, que também pode ser entendido como virtualidade.

 

Nos últimos anos essa questão tem sido tema da simbologia da revelação dos textos sagrados, como da própria teologia. As mídias têm demonstrado a força das realidades artificiais. Essa questão, realidade e imagem na comunidade imagológica, já tinha sido analisada por psicólogos da escola piagetiana. Segundo eles, é difícil ensinar a pensar de modo lógico a um menino que está sob o bombardeio de imagens distantes da lógica, como acontece nos programas infantis. E onde até mesmo as entrevistas ao vivo fazem parte da criação de algum gênio da publicidade. A moda e os shows de rock, por exemplo, fazem parte desta realidade onde o que é apresentado pelo entrevistador não tem nada a ver com a realidade da audiência ou com o próprio intérprete/ produto, já que suas imagens sofrem uma transformação mágica para poder ser popular, ou pelo menos este é o objetivo.

 

Para Taylor, a comunidade imagológica leva à ansiedade que circula acima e debaixo do chão, que tem crescido e emaranhou-se num complexo tecnológico e financeiro.

 

“Com a informação e o dinheiro que correm ao redor do mundo à velocidade da luz, nenhum de nós está seguro, porque qualquer um está no controle. As redes de terroristas assombram a estrutura e através da Web atuam nas comunicações e sistemas financeiros globais. Eles foram mais efetivos utilizando as tecnologias contra nós do que nós em nossa capacidade de usar essas tecnologias contra eles. Nós não seremos capazes de enfrentar redes de terroristas até que melhoremos a compreensão da lógica e operação de nossas próprias redes. Nestas teias emaranhadas e nas redes, está o limite entre nós e eles, dentro e fora, para quem nada é fixo e imóvel, mas restos fluidos e móveis”. 

 

E essa é uma discussão sobre o sentido da hermenêutica, porque vivemos um momento de complexidade sem precedentes, onde as coisas mudam mais rapidamente que nossa habilidade de compreender. Por isso devemos resistir à tentação de procurar respostas simples, pois o que antes era força interpretativa da hermenêutica moderna agora é fraqueza que nos deixa abandonados à mercê da sorte. Diante disso, será possível distinguir entre realidade e virtualidade na comunidade imagológica evangélica, se a tecnologia constrói a nova realidade? Bem, vivemos um mundo colocado em processo de equilíbrio instável, e para entendê-lo devemos ir às margens do sistema.    

 

A complexidade hermenêutica, na alta modernidade, é vista como marginal e fenômeno emergente. Não está fixa, porque a complexidade é móvel, momentânea e o momento marginal de seu aparecimento é inevitavelmente complexo. Longe de ser um estado, esse momento emergente da hermenêutica reconstitui o fluxo de tempo, enquanto impulso que mantém a religiosidade em movimento. É significante que a palavra momento derive da idéia de impulso em latim, mostrando movimento como sendo também impulso. Embora frequentemente representasse um ponto simples, o momento hermenêutico é inerentemente complexo. Seus limites não podem ser firmemente estabelecidos, porque sempre estão trocando de modos, que dão fluidez ao momento. Na hermenêutica da alta modernidade vivemos o domínio do intermediário, que a teoria da complexidade procura entender.

 

A dinâmica do caos e da complexidade da hermenêutica parte de certas características que diferem em importância e modos. Um sistema complexo é um sistema único composto de partes compatíveis, que interagem entre si e que contribuem para sua função básica, sendo que a remoção de uma das partes faria com que o sistema deixasse de funcionar de forma eficiente. Um sistema de tal complexidade não pode ser produzido diretamente, isto é, pelo melhoramento contínuo da função inicial, que continua a atuar através do mesmo mecanismo, mediante modificações leves, sucessivas, de um sistema precursor.

 

O exemplo mais popular de complexidade irredutível foi apresentado por Michael Behe (A caixa preta de Darwin): é a ratoeira. Ela tem uma função simples, pegar ratos, e possui várias partes: uma plataforma, uma trava, um martelo, uma mola e uma barra de retenção. Se qualquer uma dessas partes for removida, o aparelho não funciona. Portanto, é irredutivelmente complexo. Um automóvel, em contrapartida, pode funcionar com os faróis queimados, sem as portas, sem pára-choques, etc, embora chegará um momento em que haverá um mínimo de peças essenciais para seu funcionamento.

 

Originariamente, a teoria do caos foi desenvolvida como um corretivo para os sistemas fechados e lineares de físicas de Newton, pois diante da ausência de ordem, caos é uma condição na qual a ordem não pode ser averiguada por causa da insuficiência de informação. Enquanto a física de Newton imagina um mundo abstrato governado por leis definidas, que determinavam completamente as coisas reais, a globalidade não é transparente porque não temos a informação adequada e necessária para estabelecer leis, assim toda operação é sempre inacessível. A partir dessa compreensão da teoria do caos e da complexidade, duas razões hermenêuticas podem ser destacadas na abordagem das religiosidades evangélicas.

 

Primeiro que os sistemas finitos, como é o caso dessas religiosidades, não estão fechados, mas são sistemas abertos. E segundo que os sistemas ou estruturas das religiosidades evangélicas envolvem relações que não podem ser entendidas apenas em termos de modelos lineares de causalidade. Nos sistemas religiosos evangélicos recorrentes é impossível medir as condições iniciais com precisão para determinar as relações causais num período limitado de tempo. Então, a imprevisibilidade é inevitável.

 

Ao contrário dos sistemas lineares, nos quais causas e efeitos são proporcionais, nos sistemas das religiosidades evangélicas recorrentes, a avaliação é complexa, porque esses sistemas se auto-alimentam da vida de seus fiéis e na recorrência geram causas que podem ter efeitos desproporcionados. Em contraste com a teoria do caos, a teoria da complexidade está menos interessada em estabelecer a fuga ou o caos determinado, pois oscila entre ordem e caos. Assim, o momento de complexidade é o ponto no qual ecossistemas organizados emergem para criar novos padrões de coerência e estruturas de relação.

 

Embora tenha se desenvolvido fora das investigações hermenêuticas das religiosidades evangélicas, a percepção de teoria da complexidade pode ser usada para iluminar as questões da interpretação desta religiosidade hoje no Brasil. Aliás, poderíamos até nos perguntar o que há de comum entre as moléculas que se apressam em auto-reproduzir metabolismos, as células que coordenam esses comportamentos para formar organismos multicelulares e os sistemas das religiosidades evangélicas? E a resposta, complexa, é óbvia: a possibilidade da vida, que faz a travessia de um regime equilibrado de ordem e caos, é o que há de comum entre esses processos.

 

Donde a hipótese hermenêutica maior é esta: a vida existe enquanto extremidade do caos. Partindo da metáfora da física, a vida existe ao lado de um tipo de transição de fase. A água existe em três estados, gelo sólido, água líquida e vapor gasoso. Começamos a ver que idéias semelhantes podem ser aplicadas aos sistemas hermenêuticos complexos. Sabemos que as redes de genomas que controlam o desenvolvimento do zigoto podem existir em três regimes: ordenado congelado, caótico gasoso e líquido aquoso, localizados na região entre ordem e caos. É uma hipótese impressionante que sistemas de genomas ordenem regimes de transição entre uma ordem e o caos. Em tais sistemas, o regime ordenado congelado também coordena as sucessões complexas das atividades genéticas necessárias. Mas, nessas redes, também o regime gasoso caótico, perto da extremidade de caos, pode coordenar atividades complexas e evoluir. A partir das redes, a análise pode ser estendida às comunidades e às dimensões culturais, ou seja, por extensão às leituras interpretativas. Assim, equilibrado entre uma pequena ou grande ordem, o momento de complexidade da hermenêutica na alta modernidade é o meio no qual emerge a cultura de rede.

 

Taylor projeta a discussão da teoria da complexidade para a hermenêutica ao afirmar que a noção de que as fundações tenham desaparecido é ameaçadora para muitas pessoas, mas que esse assunto é um tema recorrente nas ciências da religião. Pensadores importantes na história de filosofia ocidental, como Nietzsche, colocaram tal discussão na ordem do dia e influenciaram pensadores da alta modernidade como Derrida. Uma das coisas que golpeia o pensamento moderno é a ênfase desses filósofos na importância de entender que a idéia de fim de fundamentos é uma metáfora, assim como a teoria da complexidade também é uma metáfora.

 

Ou como afirma Derrida, a metáfora é determinada pela filosofia como perda provisória de sentido, economia sem prejuízo irreparável de propriedade, desvio inevitável, mas história com vista e no horizonte da reapropriação circular do sentido. É por isso que a avaliação filosófica foi sempre ambígua: a metáfora é estranha ao olhar da intuição, do conceito e da consciência. E por isso Derrida dirá que a metafísica é a superação da metáfora, donde ao discutir a hermenêutica devemos levar em conta que há rastros da metafísica nas palavras que usamos: entender é um exemplo disso. Entender algo é não agarrar alguma coisa superficialmente.

 

O ato cognitivo envolve apreensão dentro de condições de superfície e relativos à profundidade. A distinção entre informação e entendimento é muito complexa. No domínio onde as pessoas pensam em informação devemos falar de sobrecarga de informação. Somos bombardeados com informação de todos os tipos. Entender é um modo de organizar e estruturar a informação. Na revolução da informação, dispositivos filtrantes estão começando a emergir. É crucial entender o poder das hermenêuticas que criam estas grades culturais. Este é um dos temas de Imagologies. 

 

E essas grades culturais, por sua vez, desenvolvem-se e mudam para prover vigamentos interpretativos que criam possibilidades de construção da compreensão de informação na qual estamos imersos. Temos, então, dois mundos, um é o mundo tradicional, o mundo da religiosidade histórica tal como o recebemos. É um mundo platônico, no qual o assunto percebido é colocado num nível agradável de fundação. Este mundo está presente, mas também está acima, é a transcendência. Esse modelo se torna um modo de saber. Quando começamos a conceber algo, concebemos figurando em termos de modelo. Através do contraste descrevemos um mundo no qual um modelo diferente predomina. Temos interações de planos, modelos e processos.

 

As religiosidades evangélicas, assim entendidas, podem ser chamadas de locais de consumo, e apontam para a utopia de uma República evangélica. Mas uma estrutura não é aquilo que alguém busca, pois as religiosidades enfatizam movimento e troca, troca de informação, etc. Os modelos hermenêuticos de que estamos falamos não são apenas conceituais, pois o conhecimento simbólico das religiosidades evangélicas emerge de uma interação entre entendimento e as formas de fé, que são filtros através dos quais foram processadas a informação. Se alguém pensa tais categorias como um vigamento historicamente emergente de interpretação, em constante processo de formação, deformação e reforma, estamos diante de um salto como o das tecnologias de produção e reprodução em uma comunidade determinada.

 

Começamos então a ver os modos em que processamos a experiência, onde o conhecimento é constituído em fluxo constante. Não é apenas uma questão de como pensamos, é uma questão de como vemos, ouvimos e tememos. E aí entram cultura e política, e questões como aborto, feminismo e movimentos gays, entre outros. E neste ver, ouvir e temer, as mídias abrem uma percepção nova e capacidades de apercebimento. O ponto em que se faz a troca também é uma questão importante. Uma das coisas que o estruturalismo nos ensinou é que em lugar de ser um local de origem, a religiosidade deve ser entendida como constituída dentro e pelas redes de troca na qual está imbricada. É um tipo complexo de reversão. Pensando nessas estruturas como criadas por um tema original, temos que pensar no assunto como uma função das redes estruturais nas quais está situada. Essas redes estruturais levam a todos os tipos de formas. São culturais, políticas, sociais. Entender as religiosidades evangélicas como constituídas por redes de troca é muito importante.

 

Assim, há uma procura pelas tradições históricas do protestantismo, o que implica em ressignificar o estudo da literatura sagrada, a liturgia nas comunidades e até mesmo os currículos dos seminários de teologia. A caminhada em direção às tradições históricas, à nacionalização do culto e à compreensão da teologia parte dessa luta na alta modernidade pela busca da autonomia e da expressão local, mas traduz também o desejo, e aí entra a globalidade, de que a comunidade local contribua para a espiritualidade mundial. O estímulo da alta modernidade às expressões das religiosidades locais implica numa combinação sincrética de práticas ditas locais com adaptações às práticas alheias às circunstâncias locais. Assim, expressões do fenômeno evangélico urbano são ressignificadas. São produções sintetizadas e sincretizadas de diferentes tradições cristãs e, até mesmo, não-cristãs. São formas particulares de adaptação à urbanização e uma resposta aos efeitos da tribalização da alta modernidade.

 

A maioria do movimento evangélico contemporâneo aparentemente parte das necessidades religiosas dos diferentes estratos urbanos. Mas é, também, multinacional e mantém alianças com instituições forâneas. Nos últimos vinte anos desenvolveu uma solidariedade entre estratos urbanos marcados pelos contatos e pela crescente participação com os Estados Unidos da América. Esses setores do movimento evangélico são conduzidos como opinião mundial, e capitalizam a preocupação geral com uma identidade protestante genérica e dela se alimentam. Tal fenômeno não é negativo, se entendermos que estimula, ao participar da globalidade, o reconhecimento de que a religiosidade evangélica local só é possível numa base cada vez mais global. Ou seja, para os as religiosidades evangélicas urbanas pensar globalmente é cada vez mais necessário a fim de tornar a própria noção de religiosidade urbana viável. O evangelicalismo urbano está globalmente institucionalizado, embora apresente complicações dispersas. A urbanização produz variedade e a diversidade é, em muitos sentidos, um aspecto básico da globalidade.

 

Esta é uma complicação, a diversidade pressupõe na globalização a preservação de enclaves da particularidade em meio à crescente homogeneidade e uniformidade. Ou seja, dentro do conjunto movimento evangélico vamos encontrar singularidades que rompem as uniformidades e também as não-uniformidades. Podemos definir essa idéia dizendo que a urbanização do evangelicalismo envolve simultaneamente globalidade e localidade.

 

É por isso que, quando falamos em religiosidade evangélica urbana, apontamos para a comunicação entre grupos, comunidades locais e confissões. Tal fenômeno é uma reação ao aumento da compressão do espaço e do tempo urbanos. Essa comunicação, que chamo de interdenominacional, se faz em todos os níveis, está presente nas salas de aula, na mídia, e já chegou aos cultos e às liturgias. Mas na mídia traduz a utopia da diferença e funciona como o espaço aberto dos símbolos. Nesse sentido, não apresenta a diferença autêntica, mas faz uma descrição simbólica ao adequar religiosidade evangélica e religiosidades não-cristãs às características contemporâneas da urbanização das religiões.

 

Michael Löwy trabalhou, há quase quinze anos, o desafio do pensamento das religiosidades evangélicas brasileiras a partir de uma leitura weberiana, o que matiza os contornos aparentemente demoníacos da presença evangélica na política brasileira. Para ele, “os evangélicos são, no fundo, uma religião mágica. Eles acreditam que, fazendo certos rituais, orações ou mesmo dando dinheiro para a igreja, terão seus problemas resolvidos. Isso, para parte da população, sempre foi assim. Mas devemos reconhecer que os evangélicos, pela ética protestante, calvinista, impõem uma série de proibições aos fiéis: não podem consumir álcool, drogas, ir a prostíbulos, jogar cartas. E isso melhora a situação da família, é fato. Por outro lado, essas igrejas são conservadoras, intolerantes, fundamentalistas e, na maioria das questões sociais, regressivas. Além do quê, desenvolvem uma pretensa teologia da prosperidade que faz elogios ao capitalismo, ao neoliberalismo, ao mercado e ao consumo, que é bastante negativo.”

 

Podemos, caso utilizemos critérios modernos de análise, falar em tempo da mentalidade conservadora versus tempo da mentalidade progressista. Mas tais critérios de análise, embora sejam aparentemente agradáveis e facilitadores, já não cabem na multidimensionalidade do tempo na cultura, que nos leva, a partir de Marramao, a falar de conflitualidade endêmica do mundo e, como consequência, dos dilemas que trazem para a política e para a religião. Assim, faz a crítica da sociedade contemporânea, onde o presente é dominado pelo movimento incessante, onde ninguém consegue saborear o presente. E reconstrói a etimologia do tempo latino, onde são colocados o sentido interno de tempo, a síndrome temporal da pressa e a busca insana para se recuperar a posse da existência.

 

Temos que ver, a partir de Marramao, que a realidade se expressa de forma imagológica na política das religiosidades evangélicas, fazendo com que as propostas evangélicas interseccionadas enquanto governamentais, quer no que se relaciona à pessoa, à família ou às comunidades, se entrelacem e produzam, como diz Giner, “mutações na vivencia e qualidade desses tempos”. Assim, a bancada evangélica, prefeitos, governadores e ministros de Estado expressem produções imagológicas de tempos e geografias, que apesar de suas volatilidades, traduzem de forma caleidoscópica mudanças no momento presente.

 

Em seu livro Passagem ao Ocidente, filosofia e globalização, de 2003, Marramao faz uma análise do pensamento contemporâneo e como este se debruçou sobre a investigação da globalização. Mas procura evitar a ocidentalização da abordagem, delineando uma política global. Assim fez leituras de F. Fukuyama e Kojève e, consequentemente, do fim da História e a universalidade do individualismo competitivo. Atravessa, então, o conflito de civilizações que, após o colapso do muro de Berlim, viu o globo mergulhado num conflito intercultural mundial. E, chegou com S. Latouche, à concepção da expansão planetária de dominação da tecnologia sob o controle da razão instrumental.

 

Mas, para Marramao, a globalização deve ser vista como pressuposto típico da modernidade, na transição de um mundo fechado a um universo circum-navegável, que possibilita o encontro, mas também o choque de culturas, levando a sociedade a ser transformada por esse encontro diário, que se espraia a partir das megalópolis, mas que permanentemente desafia a nossa identidade.

 

No percurso dessa compreensão da globalidade, vai além da crise do Estado-nação, agora personificada pelo Leviatã democratizado de John Rawls. Aqui temos a reconstrução do princípio de universalidade da diferença, que se dá em esfera global, onde o mundo aparece como presença-imagem da racionalidade técnica e econômica, que influencia tudo e todos através da criação de um modelo único de sociedade e pensamento. E que, ao mesmo tempo, tira proveito da riqueza das diferenças para construir uma globalidade cosmopolita, onde todos podemos cultivar nosso politeísmo de valores. Globalidade e temporalidade, para Marramao, estão imbricadas. E para chegar à sua construção da temporalidade da globalização, fez a reconstrução das concepções de tempo nascidas na reflexão ocidental a partir da análise de Timeu de Platão, até chegar às discussões sobre a flecha do tempo na física. Mas, construindo uma reflexão sobre temporalidade / identidade, onde busca os pontos de contato entre as abordagens focadas na pessoa e as sociais.

 

A síndrome da pressa, do tempo que falta, tornou-se parte do projeto moderno, numa racionalização da escatologia judaico-cristã, onde se busca o fim último do domínio da razão instrumental. Essa homogeneização, que se procura planetária, responde à síndrome da pressa repetindo, eternizando, a mesma cena neurótica, por não ser capaz de parar, considerando normal chegar sempre fora do tempo certo, tarde demais, vivendo a angústia e o trauma permanente da perda da oportunidade certa. Mas este projeto moderno, afirma Marramao, está em crise, e devemos olhá-lo com distanciamento, superando Weber, já que a racionalidade instrumental é um fenômeno típico do Ocidente, que não surgiu em nenhuma outra cultura, nem mesmo na China. É com este distanciamento que devemos analisar o capitalismo, debruçando sobre outras culturas, humildes na certeza de que têm algo a dizer e que podem nos ensinar a escapar da sociedade contemporânea e aprender a viver no presente, renunciando à idéia de que lá na frente algo bom e definitivo deve acontecer.

 

Donde, o kairós, o tempo bom, tão caro à escatologia judaico-cristã, se apresenta como interseção entre a realidade divergente de tempo privado e tempo público. Ou seja, as religiosidades evangélicas por sua virtualidade colocam desafios culturais – éticos e políticos – à laicidade brasileira, isto porque o tempo privado deixou de ser humano e passou a depender de condições e variáveis que incluem desde a situação mundial às situações físicas e psíquicas, plasmando tempos que esmagam pessoas e comunidades.

 

E vale a pena lembrar ao deixar esta conversa que não estamos diante de uma teoria do colapso do protestantismo histórico, porém daquilo que ainda não foi examinado com suficiente atenção. Donde estamos desafiados à recolocação de diferentes e novas expressões teóricas. E o caráter desorientador que estudiosos e pesquisadores veem nas religiosidades evangélicas não devem se traduzir em demonização, mas buscar compreensões culturais e históricas que nos levem a uma atualização do pensar a religião no Brasil, reconhecendo que não estamos diante de nuvem passageira, mas de realidades que interagem com os problemas do estar brasileiro hoje.

 

Mas é necessário apoiar-se na centralidade do Cristo e levantar a ação dos protestos contra a corrente. E para isso, nos fazemos algumas perguntas: qual é o papel dos jovens protestantes brasileiros numa sociedade em crise? Como Cristo, centralidade da ação e fé protestante, é a solução para os problemas brasileiros?

 

E algumas questões devem ser levadas em conta. A revolta generalizada do brasileiro urbano contra a atual situação em que vive grande parte da população. Por isso, somos exortados à reforma radical, no sentido protestante, diante do grito de revolta de uma população que desperta para a consciência de que a exclusão de bens e possibilidades não é uma situação irreversível e permanente. As manifestações e mobilizações apontam para aquilo que Tomás de Aquino afirmava: “há um mínimo de condições exigidas para a prática da virtude”. A existência de vidas em condições desumanas, injustas, inferiores, leva milhões de brasileiros à prática de atos contrários aos padrões morais. O Brasil quer definir sua identidade enquanto nação.

 

 


 

 

 

 

 

E não deixes que sejamos tentados, mas livra-nos do mal.

Pois teu é o Reino, o poder e a glória, para sempre.

 

 

 

A juventude protestante é chamada a agir e pensar no sentido de reformas e transformações que favoreçam e possibilitem mudanças políticas e sociais no Brasil. Mas devemos entender que o País não enfrenta um problema de subdesenvolvimento, mas outro, mais complexo, que é o do desenvolvimento desigual.

 

A resistência à mudança no Brasil localiza-se predominantemente na natureza patrimonialista do País de pensamento arcaico. E tal pensar não está apenas nas zonas rurais tradicionais, mas também no Sul e dentro do próprio Brasil urbano. Diante de tal situação, qual a missão da juventude protestante? Será possível uma resposta coerente, que apresente saídas para os grandes dilemas brasileiros?

 

 

12.

 

 

A situação brasileira se insere num contexto mundial, que é fruto das transformações sociais e dos imperativos morais e religiosos decorrentes da ampla utilização da ciência nos meios de produção. Em última instância, a técnica é boa pois modifica as condições de vida das pessoas, mas, paradoxalmente, virou o mundo de ponta cabeça.

 

Somos exortados, então, a viver a reforma radical, no sentido dos cristãos revolucionários dos séculos dezesseis e dezessete, em marcha, já que não é mais possível tolerar a exclusão de possibilidades de milhões de brasileiros.

 

Os jovens protestantes não podem divorciar-se da luta pela justiça. E essa luta traduz ao nível do real, atributos do próprio Cristo, já que ele fez do brasileiro mordomo e não dono absoluto deste quase continente. Esse Cristo redentor e santificador lança sobre nós o desafio do Brasil, já que é impossível adotar a criança da manjedoura e esquecer a realidade, colocar-se sob a cruz e esquecer a sociedade em que vivemos.

 

A existência é o primeiro passo para a construção de uma centralidade do Cristo.  Quando lemos o evangelho de Lucas (4.16-21), vemos o programa ministerial de Jesus. E no texto o escritor destaca os quatro pontos programáticos do Messias: anunciar uma nova ordem aos excluídos de bens e possibilidades; proclamar a libertação aos deserdados da terra; restaurar a vida dos que estão sendo ceifados pelas enfermidades; e apregoar o ano aceitável do Senhor.

 

Ora, se os três primeiros itens do programa se referem aos aspectos materiais da vida humana, sobre o que trata o quarto item? Ao compromisso, a opção por estar na trincheira ao lado daqueles que lutam por dignidade e justiça.  Aqui, está, à maneira protestante radical, as sementes para uma centralidade do Cristo em nossas vidas e na vida da nação.

 

E podemos tirar algumas conclusões desta abordagem profética. A nossa fé deve interpretar a condição humana à luz do propósito de Cristo. Somos porta-vozes de Cristo para condições específicas. Somos jovens protestantes em ação. Somos jovens do povo de Cristo e de nosso tempo. Exercemos uma ação política à luz da compreensão do destino do povo de Cristo. O propósito básico de nossa pregação social é a aliança no sangue do Cristo. Justiça e juízo, amor e integridade são importantes para a estrutura política, e a religião organizada e a organização e instituições econômicas da nação não devem ser excludentes. Nosso compromisso é com Cristo. Cristo participa dos combates pela justiça, é a centralidade de nossa ação. Hoje, somos desafiados, na centralidade do Cristo, a enfrentar os dilemas destes dias.

 

Sim, Cristo é a centralidade da reforma radical, é a centralidade da teologia humana e é a centralidade da ação do protesto contra a corrente da exclusão, da expropriação de bens e possibilidades e da morte.

 

Se você jovem protestante se colocar na brecha social e considerar fundamental participar da vida real do país, em que sentido podemos falar da centralidade do Cristo numa reforma radical da sociedade brasileira? O que significa, em última instância, a centralidade do Cristo?

 

Teologicamente, fazemos a proclamação da soberania de Cristo, depositando sobre cada ombros de nossa juventude protestante a tarefa de aceitar o desafio do momento, a fim de demonstrar a evidência da ação do Cristo no mundo.

 

O perigo é, em meio às rápidas transformações sociais, ficar atrás em nosso pensamento social e pregar um evangelho que não seja compreensível e adequado às necessidades do sociedade em mudança. O papel dos jovens protestantes numa sociedade em crise é seguir os passos de Cristo, amante apaixonado dos excluídos de bens e possibilidades.

 

Se voltarmos ao início deste texto e ao título da capa: Protestante, esta é uma religião em extinção, digo que cabe a você leitor responder. Não com um meneio de cabeça, com um sim ou um não. Mas com um olhar para a vida: ainda somos protestantes ou vivemos um cristianismo imagológico?

 

E assim termino esta conversa, dizendo: atenção meu jovem amigo protestante, Cristo é a centralidade para a solução dos problemas brasileiros porque sob sua soberania está nossa ação política, a favor do brasileiro e da existência, na reforma permanente do reinar de Deus. E neste que fazer, o fazemos todos, juntos a partir de nosso atuar transformador. Amém!

 

 


 

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mardi 17 septembre 2024

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