mardi 27 mai 2008

Programa de Antropologia Aplicada

ANTROPOLOGIA APLICADA
Faculdade Teológica Batista de São Paulo
Primeiro semestre de 2008

OBJETIVO
O estudo da Antropologia é essencial porque não se pode pensar hoje um cidadão brasileiro que não seja solicitado a refletir o momento político e social que o País vive. Isso significa que todos deveriam ter uma concepção da história de nossa formação enquanto povo e dos desafios a que somos chamados a responder. Tal concepção de brasilidade deve reforçar ou modificar maneiras de agir e pensar o tempo brasileiro. E como protestantes e batistas conhecer a formação e o sentido da identidade brasileira, o que permitirá o desenvolvimento de uma consciência crítica, pela qual a experiência vivida pode ser transformada em consciência compreendida da realidade brasileira.

ABORDAGEM
Optamos por uma abordagem temática da Antropologia, sem descuidar da referência necessária à história da formação e sentido do Brasil, que permita estabelecer o fio condutor da exposição dos temas. Isto porque fazer um estudo da história e formação do povo brasileiro implica em fazer antropologia do povo brasileiro e sociologia da cultura. Tais abordagens não podem ser encaradas como atividades solitárias, mas enquanto diálogo entre pensadores que expõem diferentes visões.

AVALIAÇÃO
Os alunos serão avaliados por sua participação em classe (peso 3) e pelos seminários apresentados.

MATÉRIA

1. O processo civilizatório e as abordagens da Antropologia
Povos germinais / liberdade e história
Darcy Ribeiro, O povo brasileiro, a formação e o sentido do Brasil, São Paulo, Companhia das Letras, 2002, pp.64-80.
Jorge Pinheiro, Deus é brasileiro, as brasilidades e o Reino de Deus, São Paulo, Fonte Editorial, 2008, pp. 11-38.

2. Gestação étnica e travessias da questão hermenêutica

Os brasilíndios / os afro-brasileiros / os neobrasileiros / os brasileiros / ser e consciência.
Darcy Ribeiro, O povo brasileiro, a formação e o sentido do Brasil, São Paulo, Companhia das Letras, 2002, pp.106-140.
Jorge Pinheiro, Deus é brasileiro, as brasilidades e o Reino de Deus, São Paulo, Fonte Editorial, 2008, pp. 39-68.

3. Processo sócio-cultural e o Reino de Deus

Classe e poder / cristianismo e Reino de Deus
Darcy Ribeiro, O povo brasileiro, a formação e o sentido do Brasil, São Paulo, Companhia das Letras, 2002, pp.208-227.
Jorge Pinheiro, Deus é brasileiro, as brasilidades e o Reino de Deus, São Paulo, Fonte Editorial, 2008, pp. 69-100.

4. O destino nacional e o princípio protestante

As dores do parto / os confrontos e o princípio protestante
Darcy Ribeiro, O povo brasileiro, a formação e o sentido do Brasil, São Paulo, Companhia das Letras, 2002, pp.447-456.
Jorge Pinheiro, Deus é brasileiro, as brasilidades e o Reino de Deus, São Paulo, Fonte Editorial, 2008, pp. 101-128.

BIBLIOGRAFIA OBRIGATÓRIA
Darcy Ribeiro, O povo brasileiro, a formação e o sentido do Brasil, São Paulo, Companhia das Letras, 2002.
Jorge Pinheiro, Deus é brasileiro, as brasilidades e o Reino de Deus, São Paulo, Fonte Editorial, 2008.

BIBLIOGRAFIA AUXILIAR
Antonio Gouvêa Mendonça, Protestantes, pentecostais e ecumênicos, o campo religioso e seus personagens, São Bernardo do Campo, UMESP, 1997. Ler capítulo 3, Protestantismo e Cultura.
Marilena Chauí, Brasil: mito fundador e sociedade autoritária, São Paulo, Editora Fundação Perseu Abramo, 2000.
Milton Santos, Por uma outra globalização, São Paulo, Editora Record, 2000. Ler capítulo 6, A transição em marcha.

mardi 13 mai 2008

Novela de memórias: um pedaço de mim, de Jorge Pinheiro


Novela de memórias: um pedaço de mim, de Jorge Pinheiro
Extractos e entrevista com o autor

AUTOR: Omar L. DE BARROS FILHO

Quem, como eu, teve a oportunidade de conhecer Jorge Pinheiro durante sua ativa militância socialista na década de 70, depois do exílio na Argentina, Chile e Europa, foi surpreendido com os rumos de sua trajetória posterior, após a derrota da ditadura militar e a consolidação democrática brasileira, ainda em processo. O corriqueiro seria que o jornalista talentoso ocupasse um cargo de importância nos veículos de comunicação tradicionais, ou fosse para alguma assessoria de comunicação na área de governo ou privada. Entretanto, Jorge Pinheiro, um sobrevivente da ação repressiva da polícia política do Brasil e do paredón de fuzilamento durante o golpe contra Allende, no Chile, optou por um caminho distinto: converteu-se à fé do cristianismo e adotou a construção da Igreja Batista como seu novo objetivo. Doutorou-se em teologia, escreveu obras de cunho religioso, tornou-se professor e pastor. Agora, ao concluir o primeiro volume de uma trilogia em preparação – Novela de memórias: um pedaço de mim –, que será lançado pela Eleva Cultural no próximo dia 31 de maio, em São Paulo, o cientista da religião Jorge Pinheiro abre uma nova etapa em sua caminhada. Uma inflexão que o levou a descrever e refletir sobre a marcha de um militante marxista e seus camaradas em um continente sem rumo, oprimido por regimes discricionários, uma América Latina injusta e violenta que, mesmo assim, sobreviveu sob as sombras das asas do condor.

Capítulo 1 – Indo...

Rebeca tirou o pé do acelerador. O carro deslizou de lado e bateu forte no barranco. Por alguns momentos, nenhum de nós entendeu o que estava acontecendo. Filemón estava com o rosto sangrando, o corpo amolecido pelo impacto. No banco de trás, Yasmin e eu nos recuperamos rápido do susto e saltamos do carro. Juntos, os três agarramos Filemón pelos braços e o puxamos para fora. Estava pálido demais, cor de cera, a não ser pelo vermelho que continuava a lhe escorrer pela cara.

– Está morto, disse Rebeca.

– Não, não está, respondeu Yasmin.

E cada uma olhou para a outra, numa disputa de olhares que todo mundo conhecia muito bem. Elas se odiavam e nunca perdiam a oportunidade de demonstrar isso. Absurdo, essas duas vão começar a brigar aqui, quem sabe vão se engalfinhar, se morder, xingar a mãe, sei lá, enquanto o Filemón se esvai em sangue.

– Ele está com a cabeça machucada. Se for alguma coisa muito grave, a gente só vai saber depois. Não dá para chamar o médico, agora.

As duas olharam para mim como se estivessem diante de um extraterrestre. Pegamos uma estopa velha e suja de óleo, a única que havia na hora, limpamos a cabeça de Filemón e fizemos uma bandagem com uns trapos que estavam jogados no fundo do carro, um Dauphine que era pau pra toda obra.

Encostamos o rapaz no barranco e, então, voltamos ao mundo real. Eram duas e trinta da madrugada. Ali estávamos quatro militantes do Movimento Nacionalista Revolucionário com um carro cheio de armas, tombado junto a um barranco da Rua Almirante Alexandrino, em Santa Teresa, no Rio de Janeiro. Na verdade, eu tinha avisado a Rebeca que tomasse cuidado porque esses trilhos escorregavam. Cuidado com essa curva perto do hospital alemão, cuidado. Mas, quem disse que Rebeca escutava. Ela sempre se considerava uma Mata Hari. Só não usava piteira. Mas será mesmo que Mata Hari usava piteira ou isso era mais uma criação de Hollywood?

– Estamos perto da casa. Uns cinqüenta metros. O problema é se passa alguém.

Recomposta da ira inoportuna, Yasmin ajeitou a blusa e a mini-saia, que tinha subido até o alto da coxa. Ela sempre combinava a cor da mini-saia com a cor da calcinha. E para ser verdadeiro, as mini de Yasmin eram micros. Tinha uma dúzia delas. Sacudiu a cabeça, passou a mão pelo cabelo, como se, de repente, estivesse acordando para a vida.

– Vamos à luta, antes que alguém nos veja.

E mais uma vez os três voltamos a trabalhar juntos. Destombamos o carro, abracei Filemón o melhor que pude, agarrando-o como se fosse um bêbado e o arrastei até o prédio. As duas mulheres, cheias de pacotes, tentavam andar rápido na minha frente. Não corriam. As metralhadoras, mesmo desmontadas, formavam volumes pesados. Era só o que faltava, sermos presos agora, depois de uma viagem tão longa.

Capítulo 15 – Ahumada con huérfanos

Cena Três - Diálogo Três

O homem que foi baleado no peito, à queima roupa, que tem a camisa e a parca verde oliva queimadas, continua sua história. Todos ouvem em silêncio.

A rua é sem saída e um ônibus de carabineiros bloqueia a rua. Começam a chegar tanques. Vou tentar romper o cerco pela retaguarda. Explodimos uma parede e saímos por trás. Estamos em San Joaquín, em frente à Coca-Cola.

León é metralhado. Companheiros o levam de volta para Indumet. Os carabineiros invadem Indumet e fuzilam León e mais dois operários.

Cruzamos San Joaquín e nos enfiamos por uma rua ao lado da Coca-Cola.

Nosso comando chegou a La Légua. Um caminhão de carabineiros tentou nos interceptar, mas respondemos com tiros de bazuca. O caminhão incendiou. Pegamos todas as armas deles e fizemos um pequeno discurso exortando a que lutassem ao lado do povo e não contra ele.

Ocupamos a praça de La Légua. Tomamos um caminhão de bombeiros, ligamos a sirene e passamos de población em población chamando a população a resistir e a defender o governo.

Em La Légua deixamos uma companheira que estava ferida no tornozelo. Ficou com alguns moradores de uma población e se salvou.

Chegamos a Sumar, que era um dos locais de concentração, segundo nosso plano de resistência. Vários companheiros estavam chegando de Tomás Moro. Um deles com uma camioneta cheia de armas.

O companheiro Lozada, da comissão política, dirigiu nossa reorganização. Tínhamos 200 homens armados.

Somos então atacados por um helicóptero Puma do Exército. Ele desce à altura das copas das árvores e começa a nos metralhar. Uns cem companheiros respondem de imediato. O Puma é atingido e afasta-se rapidamente, mortalmente ferido.

Pensei derrubá-lo com um tiro de bazuca ou de M60, mas já não tínhamos essas armas à mão. No meio dessa confusão, veio a frase do Che: “Se a revolução é verdadeira, ou se vence ou se morre”.

Para não sermos um alvo fácil e concentrado, criamos um comando para juntar-se aos trabalhadores de Mademsa-Madeco. Eu fui com esse comando.

No caminho, por La Légua, fomos atacados por unidades de carabineiros. Como a ordem era chegar a Mademsa-Madeco, um grupo ficou combatendo, enquanto outro, cerca de 50 companheiros, rompeu o cerco e seguiu seu caminho.

Chegamos a nosso destino e aí criamos nossa segunda defesa perimetral, com carros, rádio e o controle de vários quarteirões.

Às três da tarde tive uma reunião com o interventor da fábrica, um companheiro socialista. Conseguimos pão e víveres para os combatentes. Fui então informado pela central de rádio que até aquele momento não havia nenhuma comunicação das regionais.

Os militares tinham ocupado todas as rádios.

FICHA TÉCNICA:
Novela de memórias: um pedaço de mim
Autor: Jorge Pinheiro dos Santos
Editora: Eleva Cultural
Acabamento: Brochura
Formato: 16 X 23, 152 páginas
Preço: R$ 28,00

LANÇAMENTO:
31 de maio, às 18h, na Saraiva Mega Store Pátio Paulista
Rua 13 de Maio, 1947 Bela Vista, São Paulo/SP
Tel: (11) 3171.3050
Contato com Layr Cruz. E-mail: elevacultural@elevacultural.com
Tel: (11) 8119. 9894 – Skype: layr.cruz

Leia, a seguir, a entrevista de Jorge Pinheiro com Omar L. de Barros Filho, editor de ViaPolítica, sobre Novela de memórias: um pedaço de mim, onde o autor detalhadamente discorre sobre o livro e sobre as bases de sua opção religiosa.

VP - Você ainda é jovem. Políticos, jornalistas e escritores, em geral, escrevem suas memórias já tarde, quando o ocaso se aproxima. Por que você está lançando seu livro agora?

Jorge Pinheiro - Obrigado pelo jovem. Tenho 63 anos, saudáveis até agora, mas 63 anos nos levam a pensar no trânsito em direção à eternidade. Donde, começou a contagem regressiva. As idéias do livro partem de dois fatores, o papel da utopia socialista na minha vida e os demônios que infernizaram a minha juventude.

Na verdade, como novela de memórias o livro tem dois personagens: eu mesmo e a utopia socialista. Quando falo utopia não estou menosprezando o sonho do socialismo, mas colocando-o num patamar de realização permanente, histórica e trans-histórica. Ou seja, vejo o caminhar permanente da utopia, sinto o seu cheiro agradável, mas não necessariamente vou vivê-la como desejaria.

E os demônios, seguindo Nietzsche, são os pecados da juventude que se tornam virtude na velhice. São os pesadelos que andam sempre ao lado dos sonhos. Nesse sentido, como qualquer texto biográfico, o meu livro tem função de exorcismo. Exorcizar fantasmas e demônios e ficar com a utopia geradora de novos sonhos.

O livro é a primeira parte de uma trilogia esperada. É a minha história e a história da minha utopia, onde tudo o mais é cenário. É biografia, mas também ficção, pois sonhos e demônios são personificados, interferindo na vida do autor e de seu sonho maior.

VP - Qual o período de sua história pessoal que é abrangido pela obra que em breve será lançada?

Jorge Pinheiro - A história cobre os anos de 1969 a 1973. Ou seja, minha militância no Movimento Nacionalista Revolucionário/MNR, o primeiro exílio, a militância no Chile de Allende, a prisão depois do golpe de Pinochet e a condenação por fuzilamento.

Se levarmos em conta que fui para o paredón para ser fuzilado e hoje posso contar a história para vocês, é fácil entender os demônios da minha história pessoal.

VP - Você sente algum tipo de nostalgia em relação ao período marcado pela ação política de 68, passados 40 anos do ocorrido?

Jorge Pinheiro - Vocês publicaram a coisa de semanas um ótimo artigo sobre Daniel Cohn-Bendit http://www.viapolitica.com.br/artigo_view.php?id_artigo=58, onde ele pede às novas gerações que esqueçam o Maio francês. Eu e minha mulher, Naira Carla Di Giuseppe Pinheiro dos Santos, temos trabalhado bastante sobre esta questão. E, ao contrário de Cohn-Bendit, não negamos a contemporaneidade de 1968. Ao contrário, agradecemos a Deus por aquele kairós, enquanto esforço de ruptura com uma sociedade arcaica e sem sintonia com o novo que se avizinhava, e de construção de um socialismo democrático e revolucionário. Chamar o movimento de 68 de rebeldia juvenil é não entender a riqueza criativa do kairós histórico. É negar as lutas que partiram de estudantes e trabalhadores da França em direção aos EUA, Itália e Alemanha, e jogar no lixo as lutas entre o capital e o trabalho, as guerras do Vietnã, Laos, Camboja e as insurreições populares no Chile, Portugal e Nicarágua.

Não tenho nostalgia, porque não situo minha ação no passado, mas no presente, enquanto ativista político-social que sou. O Maio francês abriu um novo momento na história do planeta e não se limitou à Europa. Espraiou-se pelo mundo. E minha vida política, quer no Brasil, no Chile, na Argentina e mesmo na Europa, esteve correlacionada ao Maio francês. Aprendi desde pequeno que não se cospe no prato em que se come. Creio que cresci em relação à minha ingenuidade militante e juvenil, mas isso não significa negar os momentos nobres e poderosos da minha militância nos anos 60 e 70.

Minha conversão ao cristianismo, que é um ato de fé no sacrifício do Cristo, de forma nenhuma implicou um abandono de minha consciência política. Nós, batistas, consideramos inalienável a liberdade de consciência e acreditamos que cada pessoa é livre perante Deus em todas as questões de consciência.

Nesse sentido, sou um utópico: acredito que devo me posicionar a partir de uma ética da responsabilidade social. Isso implica entender o paradoxo da multicultura relacional brasileira: vivemos num país onde impera a moral autoritária do senhor, da casa grande e da senzala, e a moral libertária da contracultura – a moral do “não existe pecado do lado de baixo do Equador/ vamos fazer um pecado rasgado, suado, a todo vapor”.

Por isso, qualquer atuação no campo social implica compreender esta realidade. Mas, consciente de que as sociedades devem se organizar através de relações democráticas, considero que a igreja na América Latina tem como desafio embasar seu compromisso no imperativo protestante: liberdade, conhecimento e justiça.

Tal processo se expandirá conforme cresça a consciência de que temos a tarefa de transformar o Brasil num país onde todos possam acessar condições dignas de vida e justiça social. E, logicamente, todo o continente.

VP- Como ocorreu o processo vivido por você -- um militante marxista radical considerado perigoso pela ditadura militar brasileira -- de rompimento com sua política e o posterior encontro com o cristianismo, a Igreja Batista, a teologia? Como você lida com essa questão hoje?

Jorge Pinheiro – Jesus proclamou a chegada do Reino de Deus, que é um reino de justiça, paz e alegria. É bem verdade que, muitas vezes, o cristianismo tem deixado a proclamação do Reino de Deus de lado e procurado viver sob a tutela do reino deste mundo. Mas, só para mostrar o envolvimento cristão protestante na transformação do mundo, vou me remeter à história da militância cristã na Inglaterra do século 18.

William Wilberforce e William Pitt são nomes conhecidos na Inglaterra, mas não entre nós. Amigos desde a universidade, esses dois homens, no século 18, chegaram ao Parlamento no início dos seus vinte anos. Pitt elegeu-se primeiro-ministro e ganhou o apelido de "o jovem", para diferenciá-lo do pai, que também ocupara o cargo. E resolveu implantar um projeto político audacioso: acabar com o tráfico de escravos, liderado pela Inglaterra. Projeto difícil, pois a maioria dos parlamentares estava direta ou indiretamente ligada ao tráfico.

Pitt convocou Wilberforce para ajudá-lo na tarefa. E foi assim que dois movimentos marcaram a Inglaterra: a campanha contra a escravidão, que começou em 1789, com um discurso de William Wilberforce na Câmara dos Comuns, e as campanhas pelas reformas trabalhistas, que desembocaram no movimento social cristão. Em 23 de fevereiro de 1807, o tráfico de escravos foi interrompido, graças à intensa militância cristã e política de Wilberforce.

A partir desse momento, as campanhas abolicionistas foram lideradas por outro ativista, Thomas Fowell Buxton. Ambos, Wilberforce e Buxton, pertenciam a um pequeno grupo protestante surgido na paróquia de Clapham, vilarejo distante oito quilômetros de Londres. Assim, a comunidade de Clapham, aliada a grupos não-conformistas, e através da publicação de literatura, realização de palestras e mobilizações de rua, foi responsável por algumas das manifestações sociais mais importantes da Inglaterra. Em 25 de julho de 1833, o Ato de Emancipação libertou os escravos em todo o império britânico.

O significado dessa ação repercutiu em todo o mundo, inclusive no Império brasileiro, estrategicamente ligado à Inglaterra, através de três intelectuais: Joaquim Nabuco, Rui Barbosa e Luiz Gama. Nabuco, que era diplomata, se inspirou no cristianismo militante de Wilberforce para organizar o movimento que levou a monarquia brasileira a aprovar a Lei do Ventre Livre. Somada à pressão britânica, a militância de Nabuco contribuiu para determinar a abolição da escravatura, em 1888.

Junto com as campanhas abolicionistas, as reformas trabalhistas mobilizaram outros intelectuais protestantes vindos do anglicanismo, como John Malcolm Ludlow (1821-1891), Charles Kingsley (1819-1875) e Thomas Hughes (1822-1896), que lutaram pelo fim da escravidão, contra o trabalho infantil nas fábricas e pela jornada de dez horas. Essas mobilizações levaram a uma ampla reforma social e ao surgimento do movimento social cristão inglês.

Assim, os protestantes deram início ao movimento social inglês. Homens como Ludlow, Kingsley, Maurice e Hughes criaram o socialismo cristão na Inglaterra. Com plena consciência do que estava fazendo, Maurice afirmou “a necessidade de uma reforma teológica inglesa, como meio de evitar uma revolução política e de trazer o que de bom existe nas revoluções estrangeiras, tem estado cada vez mais impresso no meu pensamento”.

O movimento inglês repercutiu com força nos Estados Unidos. E, apesar da visão escravista de muitos protestantes estadunidenses, como Richard Furman, líder batista da Carolina do Sul, que, de certa forma, traduzia o sentimento generalizado entre os grandes fazendeiros sulistas, no norte surgiu um forte movimento protestante contra a escravidão. Seu primeiro grande ativista foi Charles G. Finney, seguido por abolicionistas como Theodore Weld e Lymann Beecher.

Um romance marcará a campanha abolicionista e entrará para a história da literatura mundial: “A cabana do pai Tomás”, de Harriet Stowe. Numa leitura escatológica milenarista, Harriet Stowe considerava que a escravidão não era apenas um pecado do Sul, mas que a culpa era nacional e, por isso, o juízo seria nacional.

No livro, atacava a consciência nacional escravista na esperança de que uma purificação da alma dos Estados Unidos livrasse o corpo político da vingança divina. É interessante que o argumento de Wilberforce, exposto em suas campanhas, sobre a inviolabilidade do conceito de que todos os homens são iguais, foi usado pelo presidente estadunidense Abraham Lincoln no ato de 1863, que aboliu a escravidão nos Estados Unidos. Lincoln, cujo mandato se desenrolou em meio à Guerra de Secessão, compartilhava a visão de Wilberforce de que era uma imoralidade possuir um outro ser humano e citava o inglês em seus discursos.

Com a guerra, veio a vitória do norte e a abolição da escravatura. Finda a escravidão, a discussão sobre a industrialização do país, os danos humanos, misérias e exclusão que produzia entraram na ordem do dia. Surgiram assim os “protestantes públicos” que, ao contrário dos “privatistas”, falavam de cristianismo social, evangelho social, serviço social. Expoentes desse pensamento foram Washington Gladden, ministro congregacional de Ohio, o escritor Charles Sheldon, que produziu uma obra até hoje famosa, “Em Seus Passos Que Faria Jesus?”, e o pastor batista Walter Rauschenbusch.

Rauschenbusch (1861-1918) era de origem alemã. Levantou a questão do evangelho social, a partir de uma leitura que combinava a doutrina bíblica da responsabilidade social e os socialistas utópicos. Defendeu uma democracia econômica e política e propôs uma atuação através dos sindicatos.

“Nossa economia política tem sido por muito tempo o oráculo de um deus falso. Ensinaram-nos a ver as questões econômicas do ponto da vista dos bens e não do homem. Disseram-nos como a riqueza é produzida e dividida e consumida pelo homem, e não como a vida e o desenvolvimento do homem podem melhorar e serem promovidos pela riqueza material. É significativo que a discussão do consumo da riqueza esteja negligenciada na economia política, contudo a questão humana é a mais importante de todas. A teologia deve ser cristocêntrica, mas a economia política deve tornar-se antropocêntrica. O homem é cristianizado quando põe Deus acima de si próprio, a economia política será cristianizada quando colocar o homem acima da riqueza. É isso que uma economia política socialista faz”, afirmou em “Christianity and the social crisis”.

No mesmo livro, dizia que “nada dará a classe trabalhadora uma compreensão real de seu status de classe e de seu objetivo final do que a luta permanente para conquistar suas reivindicações mínimas e para eliminar as pressões reacionárias contra seus sindicatos. Nós partimos do princípio de que uma organização fraternal da sociedade não terá força se for apoiada apenas por idealistas. Ela (a organização fraternal da sociedade) necessita da sustentação firme da classe trabalhadora, cujo futuro econômico depende do sucesso desse ideal. A classe trabalhadora industrial é, consciente ou inconscientemente, a força para a realização desse princípio. Assim, aqueles que desejam a vitória, desde um ponto de vista religioso, terão que fazer uma aliança com a classe trabalhadora. Mas o princípio protestante da liberdade religiosa e o princípio democrático da liberdade política levam à vitória através da aliança da classe média, que também deseja a conquista do poder, com a classe trabalhadora; dessa maneira, o novo princípio cristão, que busca uma organização fraternal da sociedade, deve aliar-se para a conquista que ambos querem”.

Acho que estou em boa companhia, principalmente quando me lembro do companheiro Martin Luther King Jr., pastor batista, e um dos maiores militantes da causa social em todos os tempos.

VP - Como essa crise e a superação dela aparecem no livro? A revolução e Cristo ainda caminham juntos na América Latina? Por quê?

Jorge Pinheiro – Hoje, na América Latina, muitos intelectuais, pastores e teólogos protestantes estão organizados ao redor de projetos político-sociais. Mas, logicamente, a preocupação primeira das igrejas protestantes é com a vida espiritual das pessoas e sua renovação em Cristo. Hoje, não poucos evangélicos atuam inspirados na fé cristã em movimentos populares, sindicatos, partidos políticos e ministérios de ação social de suas igrejas. E, em relação ao nosso país, atuar politicamente já faz parte da vida dos protestantes brasileiros.
Em termos de organização, vou falar de dois movimentos que, embora novos, têm fermentado positivamente o solo militante evangélico. O primeiro é o movimento da Missão Integral, que procura envolver as igrejas locais com o compromisso social. Na visão da Missão Integral, da qual faço parte e sou um dentre muitos teóricos, a proclamação do Evangelho tem conseqüências sociais quando olha o ser humano como totalidade.

Assim, a teologia da Missão Integral busca a justiça social porque entende a fé como intervenção política, material e espiritual, e acredita que a transformação das pessoas e as mudanças estruturais estão correlacionadas.

E porque acreditamos que o ser humano é a imagem de Deus, a Missão Integral é uma teologia para aqueles que carecem de bens e possibilidades, mas que, como os demais, são imagem de Deus. Os despossuídos de bens e possibilidades têm conhecimento, habilidades e recursos. Tratá-los com respeito significa propiciar condições para que sejam arquitetos de mudança em suas comunidades, ao invés de impor soluções. Trabalhar com os despossuídos e expropriados envolve a construção de relações que conduzem a uma mudança mútua.

E, para a Missão Integral, quem pode e deve atuar assim são as igrejas locais. O futuro da missão integral se define, pois, em termos de capacitar as igrejas locais para que transformem as comunidades das quais fazem parte. As igrejas, como comunidades de cuidado e inclusividade, estão no coração do que significa fazer missão. As pessoas são, em particular, atraídas à comunidade cristã antes de serem atraídas pela mensagem cristã.

Esse jeito de produzir inclusão social nasce de baixo, nasce nas igrejas, traduz uma teologia do Reino de Deus, comunitária, a experiência de caminhar com as comunidades. Olhando assim, a igreja não é meramente uma instituição, mas comunidade na qual se concretizam os valores do Reino de Deus.

A participação dos despossuídos e expropriados na vida da igreja leva a encontrar novas maneiras de ser igreja no contexto da cultura brasileira. Dessa maneira, a Missão Integral, que hoje envolve centenas de igrejas evangélicas brasileiras, é uma teologia social. Tal atividade se amplia para incluir avanços até a transformação de valores, a valorização das comunidades e a cooperação em questões de justiça. Em sua presença entre os despossuídos e expropriados, a igreja está numa posição singular para restaurar a dignidade das pessoas, apresentando valores que produzem recursos e criam redes de solidariedade.

Mas os problemas continuam presentes, por isso toda ação de transformação é permanente. Temos problemas políticos e sociais, como pobreza, violência, corrupção. Má qualidade dos serviços públicos nas áreas de educação e saúde, agressões contra o meio ambiente. Por isso, num momento em que a visibilidade e o reconhecimento da presença protestante reclamam expressões políticas de responsabilidade e serviço, nós, ou seja, um grupo de evangélicos de igrejas diferentes e de diferentes partes do Brasil, estamos atuando na construção de um movimento chamado Evangélicos pela Justiça.

Bem, você deve estar pensando, mas por que dois movimentos: Missão Integral e Evangélicos pela Justiça? Considero que a Missão Integral, que hoje já é estudada como matéria em muitas faculdades de teologia, visa atuar através das igrejas, sugerindo programas e propostas para estas atuarem nos lugares onde estão implantadas. Aqui, então, o agente é a igreja local: agente de transformação social.

Já no caso do movimento dos Evangélicos pela Justiça desejamos ter neste primeiro momento uma atuação conscientizadora sobre os formadores de opinião do mundo protestante. Ao mesmo tempo, temos uma preocupação definitivamente política, pois queremos uma alter sociedade, que supere o capitalismo e suas orientações ideológicas, o neoliberalismo e as chamadas terceiras vias. Trata-se de meta histórica e estratégica, que necessita de um programa de transição, e que envolverá contribuições de dentro e de fora do campo protestante. Mas, acima de tudo, não é um projeto que envolva a criação de um poder evangélico ou apoiado na religião.

Por isso, nós, os Evangélicos pela Justiça, rejeitamos os modelos de fusão entre instituições religiosas e poder político. Não porque consideramos a política indigna ou contrária à mensagem do Reino de Deus, mas porque acreditamos que as instituições políticas de uma sociedade democrática devam ser construções históricas, pactuadas entre pessoas de qualquer fé ou de nenhuma fé. E que o papel dos cristãos é testemunhar de sua fé também nas questões sociais e políticas.

Assim, a luta contra a globalização excludente e suas formas de legitimação ideológicas, seculares e religiosas, conservadoras ou progressistas, é um projeto que exige estratégia histórica, que vai além das confissões religiosas, remetendo à aspiração de uma humanidade livre e democrática. Mas é um projeto legítimo para quem vê a fé cristã como chamado ao compromisso com a libertação de todas as formas de escravidão, opressão e discriminação, que negam nos seres humanos a imagem de Deus e nos impedem de um encontro com nosso Criador. É isso aí.

jeudi 8 mai 2008

APOLOGÉTICA -- TEMOS A MENTE DE CRISTO

Textos: Jó 42:1-6 e I Coríntios 2: 6-16

O que é conhecimento?

1. A centralidade da revelação
Jesus Cristo é a centralidade da revelação. Nós cristãos temos quatro doutrinas básicas: Criação (criados para ser integralmente pessoas: pensam, têm vontade própria, afetividade, personalidade, atuam sobre a realidade, têm experiências e constróem o mundo e seus relacionamentos), revelação (a natureza visualizada e vivida e as Escrituras verbalizadas ou vivendo os pensamentos de Deus), redenção (o Verbo se fez carne e pagou o preço) e juízo (julgados por nossa obediência).

Mas aqui, vamos nos ater à redenção, já que esta produz salvação eterna, reconstitui a imagem divina no homem (Efésios 3.14-19) e exige a proclamação da boa nova. Por isso, está intimamente ligada à apologética e a discusão sobre a fé. A redenção é o momento maior da soberania de Deus em relação as suas criaturas. E também a loucura da pregação porque bate de frente com a auto-suficiência humana.

2. A mente vazia de Deus e a mente cristã

A mente vazia ou falta de compreensão da centralidade da redenção leva ao ritualismo, à violência social e, como extremo ao ateísmo. Diante disso, devemos entender que todos os seres humanos somos confrontados por um desafio ético: pensar e agir conforme o conhecimento que temos.

A mente cristã é uma mente adoradora, que reconhece Deus como Senhor da natureza, Senhor das nações, Senhor que se revela através de atos concretos, Senhor que cria e mantém o universo, Senhor que redime e preserva seu povo. Seu ato mais poderoso é o nascimento, a vida, a morte e a ressurreição de Jesus Cristo. É Deus presente, Espírito Santo.

Mas mente cristã, que é em primeiro lugar, adoradora, tem por base e fundamente a fé integral. Muita gente considera o conhecimento como algo meramente racional. Teologicamente, conhecimento é fé (Hb 11.1), assim aqueles que consideram o conhecimento como processo exclusivamente racional, também vêem a fé como puramente racional. Excluem assim a vontade, o afeto, a personalidade, a ação humana, as obras e as experiências de sua compreensão de fé. Tal abordagem nos levam a fazer três perguntas, que elucidarão a relação entre revelação e conhecimento.

Qual é a natureza da fé?
A fé vem antes ou depois do arrependimento?
A fé vem antes ou depois da regeneração?


Respondendo ao primeiro questionamento, consideramos que a fé depende de uma opção da pessoa e que é um estado do coração. Vejamos porque: Tomando por base alguns textos (Rm 10.9-10; 1 Jo 5.1; Jo 5. 38-40, 42, 44; 2 Ts 2.10; At 8. 37) podemos dizer que a fé (1) é um dever e, portanto, a vontade está incluída; (2) que é uma graça entregue pelo Espírito Santo (1 Co 13), e sendo graça não está limitada ao intelecto; (3) que dá glória a Deus e não se dá glória a Deus só com a razão, já que envolve toda a personalidade humana; (4) expressa-se em termos de afeto (2Ts 2.10). Ora receber inclui afeto, implica assim em engajamento de afetividades (Rm 10.9-10); (5) a falta de fé está ligada a uma disposição moral (Jo5; Jo 8.33+; Hb 3; Ef 4.17). A incredulidade é um estado do coração, não é um erro enquanto abordagem meramente racional.

Em relação à segunda questão, consideramos que se não houver arrependimento não há fé verdadeira. João, o batista, pregava o batismo do arrependimento. Ver também o chamado de Jesus em Mc 1.15; Lc 24; e a experiência da igreja primitiva em At 2.37-38; 3.19; 5.31; 20 e 26.18.

Quanto ao terceiro questionamento consideramos que sem regeneração não há fé. Os textos que nos levam a pensar assim são 1Co 2.10-16, 1Co 12.3; a experiência de Nicodemos (Jo 3) e Rm 8.7.

Assim, a compreensão da fé ou do conhecimento da revelação como opção do coração, arrependimento e regeneração elimina a idéia de que podemos conhecer exclusivamente através de processos racionais. Por isso, dizemos que o processo de conhecimento da revelação está ligado à obediência, que em última instância é disposição positiva do coração, enquanto totalidade da personalidade humana, arrependimento e regeneração de vida (vide o exemplo de Abraão).

A fé e o conhecimento teológico têm por base o caráter e as promessas de Deus. É uma confiança integral, que nasce de uma profunda reflexão e leva à constatação de que Deus é digno de crédito. Mas, de maneira nenhuma, lança fora a vontade, a afetividade, a personalidade, as ações, obras e experiências humanas enquanto componentes e realidades da fé.

Tal fé que nasce da adoração leva à busca da santidade. Consiste em buscar uma vida digna, que agrade a Deus. Não basta saber o que devemos ser, temos que resolver, em nossas mentes, atingir o objetivo. Por isso, podemos dizer que a batalha é ganha nas mentes.

Tudo isso solidamente soldado, amarrado pelo amor.

dimanche 4 mai 2008

I Macabeus capítulos 1 e 2

Os dois livros de Macabeus fazem parte da História de Israel e contam a heróica resistência do povo judeu diante da invasão do império selêucida. Por sua importância histórica, estes dois livros devem ser lidos pelos cristãos. Por isso, nosso blog publica os dois primeiros capítulos de I Macabeus. Uma boa leitura para todos. Jorge Pinheiro


I Macabeus, 1

1. Ora, aconteceu que, já senhor da Grécia, Alexandre, filho de Filipe da Macedônia, oriundo da terra de Cetim, derrotou também Dario, rei dos persas e dos medos e reinou em seu lugar. 2. Empreendeu inúmeras guerras, apoderou-se de muitas cidades e matou muitos reis. 3. Avançou até os confins da terra e apoderou-se das riquezas de vários povos, e diante dele silenciou a terra. Tornando-se altivo, seu coração ensoberbeceu-se. 4. Reuniu um imenso exército, 5. impôs seu poderio aos países, às nações e reis, e todos se tornaram seus tributários. 6. Enfim, adoeceu e viu que a morte se aproximava. 7. Convocou então os mais considerados dentre os seus cortesãos, companheiros desde sua juventude, e, ainda em vida, repartiu entre eles o império. 8. Alexandre havia reinado doze anos ao morrer. 9. Seus familiares receberam cada qual seu próprio reino. 10. Puseram todos o diadema depois de sua morte, e, após eles, seus filhos durante muitos anos; e males em quantidade multiplicaram-se sobre a terra. 11. Desses reis originou-se uma raiz de pecado: Antíoco Epífanes, filho do rei Antíoco, que havia estado em Roma, como refém, e que reinou no ano cento e trinta e sete do reino dos gregos. 12. Nessa época saíram também de Israel uns filhos perversos que seduziram a muitos outros, dizendo: Vamos e façamos alianças com os povos que nos cercam, porque, desde que nós nos separamos deles, caímos em infortúnios sem conta. 13. Semelhante linguagem pareceu-lhes boa, 14. e houve entre o povo quem se apressasse a ir ter com o rei, o qual concedeu a licença de adotarem os costumes pagãos. 15. Edificaram em Jerusalém um ginásio como os gentios, dissimularam os sinais da circuncisão, afastaram-se da aliança com Deus, para se unirem aos estrangeiros e venderam-se ao pecado. 16. Quando seu reino lhe pareceu bem consolidado, concebeu Antíoco o desejo de possuir o Egito, a fim de reinar sobre dois reinos. 17. Entrou, pois, no Egito com um poderoso exército, com carros, elefantes, cavalos e uma numerosa esquadra. 18. Investiu contra Ptolomeu, rei do Egito, o qual, tomado de pânico, fugiu. Foram muitos os que sucumbiram sob seus golpes. 19. Tornou-se ele senhor das fortalezas do Egito, e apoderou-se das riquezas do país. 20. Após ter derrotado o Egito, pelo ano cento e quarenta e três, regressou Antíoco e atacou Israel, subindo a Jerusalém com um forte exército. 21. Penetrou cheio de orgulho no santuário, tomou o altar de ouro, o candelabro das luzes com todos os seus pertences, 22. a mesa da proposição, os vasos, as alfaias, os turíbulos de ouro, o véu, as coroas, os ornamentos de ouro da fachada, e arrancou as embutiduras. 23. Tomou a prata, o ouro, os vasos preciosos e os tesouros ocultos que encontrou. 24. Arrebatando tudo consigo, regressou à sua terra, após massacrar muitos judeus e pronunciar palavras injuriosas 25. Foi isso um motivo de desolação em extremo para todo o Israel. 26. Príncipes e anciãos gemeram, jovens e moças perderam sua alegria e a beleza das mulheres empanou-se. 27. O recém-casado lamentava-se, e a esposa chorava no leito nupcial. 28. A própria terra tremia por todos os seus habitantes e a casa de Jacó cobriu-se de vergonha. 29. Dois anos após, Antíoco enviou um oficial a cobrar o tributo nas cidades de Judá. Chegou ele a Jerusalém com uma numerosa tropa; 30. dirigiu-se aos habitantes com palavras pacíficas, mas astuciosas, nas quais acreditaram; em seguida lançou-se de improviso sobre a cidade, pilhou-a seriamente e matou muita gente. 31. Saqueou-a, incendiou-a, destruiu as casas e os muros em derredor. 32. Seus soldados conduziram ao cativeiro as mulheres e as crianças e apoderaram-se dos rebanhos. 33. Cercaram a Cidade de Davi com uma grande e sólida muralha, com possantes torres, tornando-se assim ela sua fortaleza. 34. Instalaram ali uma guarnição brutal de gente sem leis, fortificaram-se aí; 35. e ajuntaram armas e provisões. Reunindo todos os espólios do saque de Jerusalém, ali os acumularam. Constituíram desse modo uma grande ameaça. 36. Serviram de cilada para o templo, e um inimigo constantemente incitado contra o povo de Israel, 37. derramando sangue inocente ao redor do templo e profanando o santuário. 38. Por causa deles, os habitantes de Jerusalém fugiram, e só ficaram lá os estrangeiros. Jerusalém tornou-se estranha a seus próprios filhos e estes a abandonaram. 39. Seu templo ficou desolado como um deserto, seus dias de festa se transformaram em dias de luto, seus sábados, em dias de vergonha, e sua glória em desonra. 40. Quanto fora ela honrada, agora foi desprezada, e sua exaltação converteu-se em tormento. 41. Então o rei Antíoco publicou para todo o reino um edito, prescrevendo que todos os povos formassem um único povo e 42. que abandonassem suas leis particulares. Todos os gentios se conformaram com essa ordem do rei, e 43. muitos de Israel adotaram a sua religião, sacrificando aos ídolos e violando o sábado. 44. Por intermédio de mensageiros, o rei enviou, a Jerusalém e às cidades de Judá, cartas prescrevendo que aceitassem os costumes dos outros povos da terra, 45. suspendessem os holocaustos, os sacrifícios e as libações no templo, violassem os sábados e as festas, 46. profanassem o santuário e os santos, 47. erigissem altares, templos e ídolos, sacrificassem porcos e animais imundos, 48. deixassem seus filhos incircuncidados e maculassem suas almas com toda sorte de impurezas e abominações, de maneira 49. a obrigarem-nos a esquecer a lei e a transgredir as prescrições. 50. Todo aquele que não obedecesse à ordem do rei seria morto. 51. Foi nesse teor que o rei escreveu a todo o seu reino; nomeou comissários para vigiarem o cumprimento de sua vontade pelo povo e coagirem as cidades de Judá, uma por uma, a sacrificar. 52. Houve muitos dentre o povo que colaboraram com eles e abandonaram a lei. Fizeram muito mal no país, e 53. constrangeram os israelitas a se refugiarem em asilos e refúgios ocultos. 54. No dia quinze do mês de Casleu, do ano cento e quarenta e cinco, edificaram a abominação da desolação por sobre o altar e construíram altares em todas as cidades circunvizinhas de Judá. 55. Ofereciam sacrifícios diante das portas das casas e nas praças públicas, 56. rasgavam e queimavam todos os livros da lei que achavam; 57. em toda parte, todo aquele em poder do qual se achava um livro do testamento, ou todo aquele que mostrasse gosto pela lei, morreria por ordem do rei. 58. Com esse poder que tinham, tratavam assim, cada mês, os judeus que eles encontravam nas cidades 59. e, no dia vinte e cinco do mês, sacrificavam no altar, que sobressaía ao altar do templo. 60. As mulheres, que levavam seus filhos a circuncidar, eram mortas conforme a ordem do rei, 61. com os filhos suspensos aos seus pescoços. Massacravam-se também seus próximos e os que tinham feito a circuncisão. 62. Numerosos foram os israelitas que tomaram a firme resolução de não comer nada que fosse impuro, e preferiram a morte antes que se manchar com alimentos; 63. não quiseram violar a santa lei e foram trucidados. 64. Caiu assim sobre Israel uma imensa cólera.

I Macabeus, 2

1. Foi nessa época que se levantou Matatias, filho de João, filho de Simeão, sacerdote da família de Joarib, que veio de Jerusalém se estabelecer em Modin. 2. Tinha ele cinco filhos: João, apelidado Gadis, 3. Simão, alcunhado Tasi, 4. Judas, chamado Macabeu, 5. Eleazar, cognominado Avarã, e Jônatas, chamado Afos. 6. Vendo as abominações praticadas em Judá e em Jerusalém, exclamou: Ai de mim, por que nasci eu, para ver a ruína de meu povo e da cidade santa, 7. e ficar sem fazer nada, enquanto ela é entregue ao poder de seus inimigos 8. e seu centro religioso abandonado aos estrangeiros? Seu templo tornou-se como um homem desonrado 9. e os vasos sagrados, que eram o motivo de seu orgulho, levados como para um cativeiro; seus filhos foram trucidados nas ruas e os seus jovens sucumbiram ao gládio do inimigo. 10. Que povo há que não tenha herdado de seus atributos reais, que não se tenha apoderado dos seus despojos? 11. Toda a sua glória desapareceu e, de livre que era, tornou-se escrava. 12. Eis que tudo o que tínhamos de sagrado, de belo, de glorioso, foi assolado e profanado pelas nações. 13. Por que viver ainda? 14. Matatias e seus filhos rasgaram suas vestes, cobriram-se de sacos, e choravam amargamente. 15. Sobrevieram enviados do rei a Modin, para impor a apostasia e obrigar a sacrificar. 16. Muitos dos israelitas uniram-se a eles, mas Matatias e seus filhos permaneceram firmes. 17. Em resposta disseram-lhe os que vinham da parte do rei: Possuis nesta cidade notável influência e consideração, teus irmãos e teus filhos te dão autoridade. 18. Vem, pois, como primeiro, executar a ordem do rei, como o fizeram todas as nações, os habitantes de Judá e os que ficaram em Jerusalém. Serás contado, tu e teus filhos, entre os amigos do rei; a ti e aos teus filhos o rei vos honrará, cumulando-vos de prata, de ouro e de presentes. 19. Matatias respondeu-lhes: Ainda mesmo que todas as nações que se acham no reino do rei o escutassem, de modo que todos renegassem a fé de seus pais e aquiescessem às suas ordens, 20. eu, meus filhos e meus irmãos, perseveraremos na Aliança concluída por nossos antepassados. 21. Que Deus nos preserve de abandonar a lei e os mandamentos! 22. Não obedeceremos a essas ordens do rei e não nos desviaremos de nossa religião, nem para a direita, nem para a esquerda. 23. Mal acabara de falar, eis que um judeu se adiantou para sacrificar no altar de Modin, à vista de todos, conforme as ordens do rei. 24. Viu-o Matatias e, no ardor de seu zelo, sentiu estremecerem-se suas entranhas. Num ímpeto de justa cólera arrojou-se e matou o homem no altar. 25. Matou ao mesmo tempo o oficial incumbido da ordem de sacrificar e demoliu o altar. 26. Com semelhante gesto mostrou ele seu amor pela lei, como agiu Finéias a respeito de Zamri, filho de Salum. 27. Em altos brados Matatias elevou a voz então na cidade: Quem for fiel à lei e permanecer firme na Aliança, saia e siga-me. 28. Assim, com seus filhos, fugiu em direção às montanhas, abandonando todos os seus bens na cidade. 29. Então, uma grande parte dos que procuravam a lei e a justiça, encaminhou-se para o deserto. 30. Ali refugiaram-se, com seus filhos, suas mulheres e seus rebanhos, porque a perseguição se encarniçava contra eles. 31. Contaram aos oficiais do rei e às forças acantonadas em Jerusalém, na cidadela de Davi, que certo número de judeus, culpáveis de terem transgredido a ordem real, havia descido ao deserto, para ali se ocultar e que muitos se haviam precipitado em seu seguimento. 32. Os sírios arremessaram-se ao encalço deles e os alcançaram, depois se prepararam para agredi-los no dia de sábado. 33. Isso basta, agora, gritaram-lhes eles, saí, obedecei à ordem do rei, e vivereis. 34. Não sairemos, replicaram os judeus, e nem obedeceremos ao rei, com a profanação do dia de sábado. 35. Instantaneamente os sírios travaram combate contra eles; 36. mas eles não responderam, não atiraram uma pedra e não barricaram seu refúgio. 37. Que morramos todos inocentes! O céu e a terra nos servirão de testemunha, de que nos matais injustamente. 38. E foi assim que os inimigos se lançaram sobre eles em dia de sábado, morrendo eles, suas mulheres e seus filhos, com seu gado, em número de mil. 39. Matatias e seus amigos o souberam e comoveram-se muito; 40. mas disseram uns aos outros: Se todos nós agirmos como nossos irmãos, e se não pelejarmos contra os estrangeiros para pormos a salvo nossas vidas e nossas leis, exterminar-nos-ão bem depressa da terra. 41. Tomaram, pois, naquele dia a seguinte resolução: Mesmo que nos ataquem em dia de sábado, pugnaremos contra eles e não nos deixaremos matar a todos nós, como o fizeram nossos irmãos no seu esconderijo. 42. Então se ajuntou a eles o grupo dos judeus assideus, particularmente valentes em Israel, apegados todos à lei; 43. e todos os que fugiam das perseguições se ajuntaram do mesmo modo a eles e os reforçaram. 44. Formaram, pois, um exército e na sua ira e indignação massacraram certo número de prevaricadores e de traidores da lei; os outros procuraram refúgio junto aos estrangeiros. 45. Assim Matatias e seus amigos percorreram o país, destruíram os altares e 46. circuncidaram à força as crianças, ainda incircuncisas nas fronteiras de Israel 47. e perseguiram os sírios orgulhosos. Sua empresa alcançou bom êxito. 48. Arrancaram a lei do poder dos gentios e dos reis, e não permitiram que prevalecesse o mal. 49. Ora, chegou para Matatias o dia de sua morte e ele disse a seus filhos: O que domina até este momento é o orgulho, o ódio, a desordem e a cólera. 50. Sede, pois, agora, meus filhos, os defensores da lei e dai vossa vida pela Aliança de vossos pais. 51. Recordai-vos dos feitos de vossos maiores em seu tempo, e merecereis uma grande glória e um nome eterno. 52. Porventura, não foi na prova que Abraão foi achado fiel? E não lhe foi isso imputado em justiça? 53. José observou os mandamentos na sua desgraça e veio a ser o senhor do Egito. 54. Finéias, nosso antepassado, por ter sido inflamado de zelo, recebeu a promessa de um perpétuo sacerdócio. 55. Josué, cumprindo a palavra de Deus, veio a ser juiz em Israel. 56. Caleb deu testemunho na assembléia e herdou a terra. 57. Por todos os séculos, em vista de sua piedade, mereceu Davi o trono real. 58. Porque ardia em zelo pela lei, Elias foi arrebatado ao céu. 59. Ananias, Azarias e Mizael foram salvos das chamas por terem tido fé. 60. Daniel, na sua retidão, foi livre da boca dos leões. 61. Recordai-vos assim, de geração em geração, de que todos os que esperam em Deus não desfalecem. 62. Não receeis as ameaças do pecador, porque sua glória chega à lama e aos vermes:63. hoje ele se eleva e amanhã desaparece, porque tornará ao pó, e seus planos são frustrados. 64. Quanto a vós, meus filhos, sede corajosos e destemidos em observar a lei, porque por ela chegareis à glória. 65. Aqui tendes Simão, irmão vosso, eu sei que ele é homem de conselho, ouvi-o sempre e será para vós um pai. 66. Judas Macabeu, bravo desde a juventude: será o general do exército e dirigirá a guerra contra os gentios. 67. Atraireis a vós todos os que observam a lei e vingareis vosso povo. 68. Pagai aos gentios o que nos fizeram e atendei aos preceitos da lei. 69. Depois disso abençoou-os e foi unir-se aos seus pais. 70. Morreu no ano cento e quarenta e seis. Seus filhos sepultaram-no em Modin, entre as sepulturas de seus antepassados, e todo o Israel o chorou dolorosamente.

vendredi 4 avril 2008

Os deuterocanônicos e a Igreja cristã

O que são os livros deuterocanônicos?

O termo deuterocanônico é formado pela raiz grega deutero (segundo) e canônico (que faz parte do Cânon, isto é, do conjunto de livros considerados inspirados e normativos por uma religião ou igreja). Assim, o termo é aplicado a livros e partes de livros bíblicos que só num segundo tempo foram considerados como canônicos.

Eles têm importância teológica?
O adjetivo deuterocanônico é aplicado a um número de textos pelos cristãos que consideram que tais textos são inspirados e fazem parte integrante da Bíblia. Sendo também a terminologia teológica aplicada a esse conjunto de livros.

O fato de setores do cristianismo não os considerarem inspirados, não caracteriza a desvalorização desses livros, pois são considerados patrimônios históricos da fé: refletem e fizeram parte das crenças cristãs ao longo da História, sendo portanto de grande valor literário e religioso. Lutero reconheceu a importância dos mesmos para a formação cristã e incluiu na sua tradução da Bíblia para o alemão estes livros como apêndice. Além da Igreja católica apostólica romana, outras igrejas utilizam-se dos livros deuterocanónicos em suas Bíblias, como as Igrejas ortodoxas (copta, siríaca, grega e russa), anglicana e maronita.

Quais são os livros deuterocanônicos
São deuterocanônicos os seguintes livros bíblicos: Tobias, Judite, I e II Macabeus, Sabedoria, Eclesiástico, também chamado Ben Sirah, e Baruque. Fora os livros deuterocanônicos podemos também encontrar fragmentos deuterocanônicos dentro de livros canônicos como: adições em Ester e adições em Daniel nomeadamente os episódios da Casta Susana e de Bel e o dragão.

A origem dos deuterocanônicos
Os livros deuterocanônicos foram escritos no período intertestamentário, época que segundo os Evangelhos a revelação do Antigo Testamento ainda se fazia presente, culminando com João Batista (cf. Mt 11.12; Lc 16.16).

Os textos deuterocanônicos, acima citados, chegaram até nós apenas em grego (alguns escritos originalmente nessa língua, outros traduzidos de versão hebraica que se perdeu), fazendo parte da chamada Bíblia dos Setenta, ou Septuaginta, a tradução da Bíblia em grego, feita por volta do século III a.C, para uso dos judeus da diáspora, e adoptada pelos cristãos desde o início como seu texto bíblico de referência. Tais textos não se encontram, pois, na Bíblia hebraica ou Tanach.

Num famoso encontro de rabinos judeus, o chamado Concílio de Jâmnia, realizado nos finais do século I d.C, destinado a procurar um rumo para o judaísmo, após a destruição do Templo de Jerusalém, no ano 70 d.C, os participantes decidiram considerar como textos canônicos do judaísmo apenas os que existiam em língua hebraica e que remontassem ao tempo do profeta Esdras.

A crítica moderna considera que alguns livros do cânon judaico são posteriores ao tempo de Esdras, como é o caso do Livro de Daniel, e que os fariseus não dispunham de condições científicas para datar com precisao um texto, e nem mesmo para atribuir a ela um autor. De qualquer forma, os critérios por eles adotados excluíram os livros deuterocanônicos do cânon judaico.

O uso dos deuterocanônicos pela Igreja
Estes livros já eram conhecidos pelos cristãos, que os citavam e utilizavam. Encontramos citações nas obras de Ireneu, Justino, Agostinho, Jerônimo, Basílio Magno e Ambrósio. Assim, foram considerados inspirados por Ireneu, Justino, Agostinho, Cirilo e Cipriano. Outros, porém, os consideraram eclesiásticos: não canônicos, porém não contrários à fé. Foi o caso de Melitão, Rufino e Atanásio.

Jerônimo inicialmente negou a canonicidade dos deuterocanônicos. Porém, os estudiosos encontraram uma mudança posterior de sua opinião em suas cartas escritas a Rufino e a Paulino, bispo de Nola. Embora existisse discordância nas opiniões dos Pais da Igreja, esta discordância não influenciou o parecer comum da Igreja dos primeiros séculos. Nenhum concílio da Igreja dos primeiros séculos recusou a canonicidade destes livros. Ao contrário, foram declarados canônicos nos concílios regionais de Roma (382 d.C, dando origem ao cânon Damaseno), Hipona I (cânon 36, 393 d.C), Cartago III (cânon 47, 397 d.C), IV (cânon 24, 417 d.C), Trullo (cânon 2, 692). Um documento conhecido como decreto Gelasiano (496 d.C) também apresenta a canonicidade dos deuterocanônicos.

A aceitação comum dos deuterocanônicos como livros inspirados pode ser constatada nas primeiras versões da Bíblia, como a Vetus Latina e a Vulgata. No Oriente, a Septuaginta foi adotada como a versão oficial do Antigo Testamento.

Como a história registra, os deuterocanônicos faziam parte da vida dos judeus através da tradução grega chamada Septuaginta ou Tradução dos Setenta (LXX). A primeira tradução da Bíblia para o latim, conhecida como Vetus Latina continha os deuterocanônicos do AT. E na Vulgata, tradução empreendida por Jerônimo no século IV, estavam presentes os deuterocanônicos do AT. A primeira Bíblia impressa da história, conhecida como a Bíblia de Gutenberg, também continha os livros deuterocanônicos do AT. E nas primeiras versões protestantes, como a KJV (King James Version), os deuterocanônicos também estavam presentes. Um exemplo é a versão original da KJV de 1611.

A oposição aos deuterocanônicos
No início do séc. XV, um grupo dissidente da Igreja copta (também chamados de monofisistas), conhecidos como jacobitas questionaram o Cânon Alexandrino entre outras coisas. Em 1441, O Concílio Ecumênico de Florença, através da Bula Cantate Domino (4/2/1442) reafirmou o caráter canônico do Cânon Alexandrino.

Com a Reforma protestante, Lutero questionou o caráter canônico dos deuterocanônicos negando inclusive seu caráter eclesiástico, pois para ele estes livros nada acrescentavam à fé, mas os incluiu na sua tradução da Bíblia para o alemão, colocando-os como apêndice. Em 1545, foi convocado o Concílio de Trento, que reafirmou o caráter canônico do Cânon Alexandrino.

No início não houve consenso entre os protestante sobre o Cânon do AT. O Rei Jaime I da Inglaterra, responsável pela famosa tradução KJV (King James Version), defendia que os deuterocanônicos deveriam continuar constando nas bíblias protestantes. Praticamente na mesma época surgiu uma tradução conhecida como Bíblia de Genebra, que definiu os deuterocanônicos como apócrifos.

Somente após a "Confissão de fé de Westminster" (séc. XVII), os protestantes ingleses influenciados pelo calvinismo e puritanismo removeram das suas listas os livros deuterocanônicos, passando a adotar como lista de composição do AT o Cânon Hebraico conforme instituído no Concilio de Jâmnia. Princípios desta confissão foram espalhando-se por várias denominações e seu conteúdo funcionou como resposta ao concílio de Trento.

Atualmente, evangélicos têm denominado esse livros de apócrifos, por considerarem que neles existem erros geográficos e que não há provas de fatos narrados nesses livros, abdicando da utilização dos mesmos nas suas igrejas.

Existem deuterocanônicos no Novo Testamento?
É importante dizer que, segundo exegetas, também no NT existem livros deuterocanônicos. Seriam eles Tiago, Hebreus, Apocalipse, 2 Pedro e 2 e 3 João que tiveram sua canonicidade contestada.

Lutero não considerou canônicos Hebreus, Tiago, Judas e Apocalipse, que na sua tradução da Bíblia para o alemão deixou-os num apêndice sem numeração de páginas. Mas os demais reformadores aceitaram a tradição cristã, já que esses livros eram utilizados nas comunidades, e eles foram definitivamente incluídos no Novo Testamento.

Bibliografia
BITTENCOURT, Benedito P., O Novo Testamento, Cânon, Língua, Texto. São Paulo: Aste, 1965
LIMA, Alessandro. O Cânon Bíblico, A Origem da Lista dos Livros Sagrados. São José dos Campos. SP: Editora COMDEUS, 2007.
LIVROS DEUTEROCANÔNICOS, Wikipedia: http://pt.wikipedia.org/wiki/Deuterocan%C3%B4nico
PASQUERO, Fedele. O Mundo da Bíblia, vv.aa. São Paulo: Paulinas, 1986.
ROST, Leonard. Introdução aos Livros Apócrifos e Pseudo-Epígrafos do Antigo Testamento. São Paulo: Paulinas, 1980.
SHELLEY, Bruce L., História do Cristianismo ao alcance de todos: uma narrativa do desenvolvimento da Igreja Cristã através dos séculos. São Paulo: Editora Shedd, 2004.

lundi 17 mars 2008

O Tapeceiro

Stênio Marcus escreveu

"A idéia de Deus como um Tapeceiro não foi minha. Ouvi falar de um livro que abordava esse tema e peguei a figura pra usar na música. Essa é minha canção mais conhecida, graças ao Brasileiro(João Alexandre), que a espalhou por aí. Dizem que é a mais bonita. Foi feita em 1988, em Manaus. Comecei a composição na calçada de uma movimentada avenida e terminei depois em casa".


Tapeceiro
Grande artista
Vai fazendo o seu trabalho
Incansável, paciente
No seu tear

Tapeceiro
Não se engana
Sabe o fim desde o começo
Trança voltas, mil desvios
Sem perder o fio

Minha vida é obra de tapeçaria
É tecida de cores alergres e vivas
Que fazem contraste no meio das cores
Nubladas e tristes

Se você olha do avesso
Nem imagina o desfecho
No fim das contas
Tudo se explica
Tudo se encaixa
Tudo coopera pro meu bem

Quando se vê pelo lado certo
Muda-se logo a expressão do rosto
Obra de arte pra honra e glória
Do Tapeceiro

Quando se vê pelo lado certo
Todas as cores da minha vida
Dignificam a Jesus Cristo
O Tapeceiro.


Ouça a música no YouTube
http://br.youtube.com/watch?v=CcfKTXtkC-I

mardi 4 mars 2008

Lançamento do livro "Deus é brasileiro"

Amigos, colegas e família, olhem só.
Link do youtube, onde se encotra pequeno video do lançamento de "Deus é brasileiro".


http://br.youtube.com/watch?v=GzA31muktVY

Um abração para todos e todas.
Jorge Pinheiro.

lundi 18 février 2008

Deus é brasileiro


Amigos e amigas
Meu novo livro "Deus é brasileiro, as brasilidades e o Reino de Deus" terá coquetel de lançamento no dia 1o. de Março, sábado, na Livraria Saraiva do Shopping Pátio Paulista, em São Paulo, a partir das 18 horas. Gostaria muito de contar com sua presença. Na ocasião será lançado também o livro de Jaci Maraschin e Frederico Pieper Pires, "Teologia e Pós-Modernidade, novas perspectivas em teologia e filosofia da religião".
Quero lhe dar um abraço, apareça!

mardi 5 février 2008

Apologética Cristã, programa para o primeiro semestre de 2008

Faculdade Teológica Batista de São Paulo
Primeiro semestre de 2008
Prof. Dr. Jorge Pinheiro dos Santos

APOLOGÉTICA CRISTÃ

Objetivo
O estudo da Apologética, a partir de uma leitura da Missão Integral, é importante porque possibilita ao aluno correlacionar o cristianismo vivido pela maioria das igrejas com a realidade brasileira, sejam elas filosóficas ou religiosas. Isso permite aos futuros profissionais da teologia construir uma concepção de mundo e da Igreja brasileira que permita o diálogo com outras formas de pensar, mas ao mesmo tempo possibilite ao aluno balizar teologicamente sua vida ministerial.

Abordagem
Optamos por uma abordagem temática, sem descuidar da referência necessária à história dessa área da Teologia, que permita estabelecer o fio condutor da exposição dos temas. Isto porque fazer Apologética não deve ser visto como atividade solitária, mas que se faz através do diálogo entre pensadores, igreja e fiéis quando expõem suas diferenças.

Avaliação
Os alunos serão avaliados por sua participação em classe (peso 3), pelos seminários apresentados (peso 4) e por uma prova final (peso 3).

PROGRAMA DA DISCIPLINA

O propósito básico da Apologética foi expresso por Pedro: “estando sempre preparados para responder a todo aquele que vos pedir razão da esperança que há em vós.” (1Pedro 3.15). A Apologética, fundamentada na Missão Integral, é a resposta para perguntas e questões sobre a teologia da igreja brasileira cristã, tanto as questões levantadas pelos próprios cristãos, como os questionamentos apresentados pelos não-crentes.

Sob tal perspectiva, a Apologética envolve temas que incluem:

Fevereiro
O evangelho e a evangelização. Conflito espiritual.
Texto: C. René Padilha, Missão Integral, ensaios sobre o Reino e a Igreja, Londrina, Editora Descoberta, 2005, capítulos I e II.

Março
O que é o Evangelho. A contextualização do Evangelho.
Texto: Padilha, idem op. cit., caps. III e IV.

Abril
Cristo e anticristo na proclamação do Evangelho. Missão integral.
Texto: Texto: Padilha, idem op. cit., caps. V e VI.

Maio
A unidade da igreja e o princípio das unidades homogêneas. Perspectivas neotestamentárias para um estilo de vida simples.
Texto: Padilha, idem op. cit., caps. VII e VIII.

Junho
A missão da igreja à luz do reino de Deus.
Texto: Padilha, idem op. cit., cap. IX.

Bibliografia obrigatória
C. René Padilha, Missão Integral, ensaios sobre o Reino e a Igreja, Londrina, Editora Descoberta, 2005.

Bibliografia auxiliar
Lloyd Geering, Deus em um mundo novo, São Paulo, Fonte Editorial, 2005. (Leitura dos capítulos 15-21).

Teologia Sistemática I, programa para o primeiro semestre de 2008

TEOLOGIA E HISTÓRIA PARA AS REALIDADES
GLOBAL E MULTICULTURAIS NO SÉCULO XXI


Prof. Jorge Pinheiro dos Santos
Primeiro semestre de 2008

Programa de Teologia Sistemática I

Objetivo

O estudo da Teologia Sistemática II é essencial porque não se pode pensar em um pastor ou teólogo que não seja solicitado a refletir sobre temas como as doutrinas da Revelação, de Deus e do ser humano. Isso significa que todos os profissionais da teologia deveriam ter uma compreensão de como Deus fala ao ser humano, quais são os atributos de Deus e sua importância, assim como o que é o ser humano. A pesquisa da Teologia nos campos dessas doutrinas possibilita o desenvolvimento de uma consciência apta a compreender a riqueza dos fenômenos vividos pela fé cristã e, por extensão, construir um conhecimento a respeito da real experiência dos fiéis e da igreja.

Abordagem

Optamos por uma abordagem temática dos assuntos, sem descuidar da referência necessária à história dessas áreas da teologia, que permita estabelecer o fio condutor da exposição dos temas. Isto porque fazer teologia não deve ser visto como atividade solitária, mas que se faz através do diálogo entre pensadores, igreja e fiéis quando expõem suas diferenças.

Avaliação

Os alunos serão avaliados por sua participação em classe (peso 3), pelos seminários apresentados (peso 4) e por uma prova final (peso 3).

PROGRAMA DA DISCIPLINA

Fevereiro/ Março
Palavra de Deus, Revelação, Inspiração. Roteiro para a vida, base da fé. A formulação do cânon e as quatro características das Escrituras: autoridade, clareza, necessidade e suficiência.

Abril
A doutrina de Deus e a Revelação. O caráter de acomodação do conhecimento de Deus. O caráter correlativo do conhecimento de Deus. O caráter existencial do conhecimento de Deus. O conceito bíblico de Deus: aspecto misterioso, revelação pessoal, soberania e auto-limitação, santidade amorável. Limitações da teodicéia filosófica.

Maio/ Junho
A questão antropológica e o pecado. O ser humano real: biológico, psicológico, sociológico, moral, filosófico, teológico. Os dois sentidos da imagem de Deus e a analogia relationis. A natureza do pecado. A terminologia bíblica a respeito do pecado, no AT e no NT. A questão da solidariedade no pecado: reino do pecado, a explicação dialética e a polêmica pelagiana-agostiniana.

BIBLIOGRAFIA OBRIGATÓRIA
Alister E. McGrath, Teologia sistemática, histórica e filosófica, São Paulo, Shedd. 2005.

Bibliografia Auxiliar
Carl E. Braaten e Robert W. Jenson, Dogmática Cristã, vol I, São Leopoldo, Sinodal, 1990.
Júlio Andrade Ferreira, Antologia Teológica, São Paulo, Fonte Editorial, 2007.

Teologia Sistemática II, programa para o primeiro semestre de 2008

TEOLOGIA E HISTÓRIA PARA AS REALIDADES
GLOBAL E MULTICULTURAIS NO SÉCULO XXI


Prof. Dr. Jorge Pinheiro
Primeiro semestre de 2008.

Trindade de Deus

Cristologia

Teologia Sistemática II

PROGRAMA DA DISCIPLINA

Fevereiro - Março
A Teologia da Trindade.
A formulação do dogma trinitário; a economia intratrinitária; paradoxo e dificuldades terminológicas. Posições em relação à Trindade.

Abril - Junho
A Cristologia.
Jesus, o Cristo, uma identidade construída. O Cristo da fé e o Jesus histórico. Jesus num mundo de exclusão, ontem e hoje. A cruz de Cristo na soteriologia. A cruz e suas realizações.

BIBLIOGRAFIA Obrigatória
Alister E. McGrath, Teologia sistemática, histórica e filosófica, São Paulo, Shedd. 2005.

Bibliografia auxiliar
Carl E. Braaten e Robert W. Jenson, Dogmática Cristã, vol I, São Leopoldo, Sinodal, 1990.
Júlio Andrade Ferreira, Antologia Teológica, São Paulo, Fonte Editorial, 2003.

Teologia Sistemática III, programa para o primeiro semestre de 2008

Programa de Teologia Sistemática III

TEOLOGIA E HISTÓRIA PARA AS REALIDADES
GLOBAL E MULTICULTURAIS NO SÉCULO XXI


Prof. Dr. Jorge Pinheiro

PROGRAMA DA DISCIPLINA

Fevereiro - Março

1. A teologia do Espírito Santo
O Espírito na história da Igreja: no Antigo Testamento, no Intertestamento e no Novo Testamento. A teologia do Espírito nas igrejas dos primeiros séculos. A Trindade e o Espírito Santo. Agostinho e a teologia do amor. A teologia do Espírito Santo e o cisma oriental. Filioque e o Espírito enquanto expiração e conceito predicamental. Os aportes de Bulgakov e Lossky. A teologia reformada do Espírito Santo e o desafio pentecostal

Abril - Junho
A questão escatológica.
Escatologia, estudo teológico das coisas finais: vida além-túmulo, parousia, ressurreição, julgamento, fim do mundo e o Apocalipse.

BIBLIOGRAFIA OBRIGATÓRIA

Jürgen Moltmann, O Espírito da vida, uma pneumatologia integral, Petrópolis, Editora Vozes, 1999.

Christopher B. Harbin, Escatologia, estudo teológico das coisas finais -- vida além-túmulo, parousia, ressurreição, julgamento, fim do mundo e o Apocalipse, Seminário Teológico Batista do Rio Grande do Sul, 2006.

BIBLIOGRAFIA AUXILIAR
Jürgen Moltmann, A fonte da vida: o Espírito Santo e a teologia da vida. São Paulo: Loyola, 2002.
______________, A Vinda de Deus: Escatologia cristã. Tradutor: Nélio Schneider. São Leopoldo: Unisinos, 2003.

Introdução à Filosofia, primeiro semestre de 2008

Faculdade Teológica Batista de São Paulo
Prof. Dr. Jorge PinheiroPrimeiro semestre de 2008

Introdução à Filosofia

Objetivo
O estudo da filosofia é essencial porque não se pode pensar em uma pessoa que não seja solicitada a refletir e agir. Isso significa que todos têm, ou deveriam ter, uma concepção de mundo, uma linha de conduta moral e política, e deveriam atuar no sentido de manter ou modificar as maneiras de agir e pensar do seu tempo. Acreditamos que a filosofia oferece condições teóricas para a superação da consciência ingênua e o desenvolvimento de uma consciência crítica, pela qual a experiência vivida é transformada em consciência compreendida, ou seja, em conhecimento a respeito dessa experiência.

Abordagem
Optamos por uma abordagem temática dos assuntos, sem descuidar da referência necessária à história da filosofia, que permita estabelecer o fio condutor da exposição dos temas. Isto porque filosofar não deve ser visto como uma atividade solitária, mas que se faz através do diálogo entre pensadores quando expõem suas diferenças.

Avaliação
Os alunos serão avaliados por sua participação em classe (peso 3), pelos seminários apresentados (peso 4) e por uma prova final (peso 3).

PROGRAMA DA DISCIPLINA

Fevereiro
A cultura
Textos:
Maria Lúcia de Arruda Aranha e Maria Helena Pires Martins, Filosofando, Introdução à Filosofia, São Paulo, Moderna, 2000, Unidade I, capítulos 1 e 2.

Março
O conhecimento
Textos:
Aranha e Martins, idem, unidade II, capítulos 3 e 4.
Jonas Madureira, Filosofia, São Paulo, Editora Vida Nova, 2008, capítulo 6.

Abril
Do mito à razão
Textos
Aranha e Martins, idem, unidade II, capítulos 6 e 7.
Madureira, idem, capítulo 2.

Maio
O que é filosofia
Textos
Aranha e Martins, idem, unidade II, capítulos 8 e 9.
Madureira, idem, capítulo 1.

Junho
Ideologia e consciência mítica
Textos
Aranha e Martins, idem, unidade II, capítulos 3 e 4.

BIBLIOGRAFIA Obrigatória
ARANHA, Maria Lúcia de Arruda, MARTINS, Maria Helena Pires, Filosofando: introdução à Filosofia. São Paulo: Moderna, 1997.
MADUREIRA, Jonas, Filosofia, São Paulo, Editora Vida Nova, 2008.

BIBLIOGRAFIA Auxiliar
C. Luckesi, E. S. Passos, Introdução à Filosofia: aprendendo a pensar. São Paulo: Cortez, 2002.

DICIONÁRIOS DE FILOSOFIA
Hilton Japiassu e Danilo Marcondes, Dicionário Básico de Filosofia, Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1989.
Nicola Abbagnano, Dicionário de Filosofia, São Paulo, Mestre Jou, 1970.

jeudi 31 janvier 2008

Materialismo histórico, fé e Deus

Este texto do Molotov, blog do PSTU, foi recomendado por um companheiro trotskista. É um texto apologético que discute materialismo histórico, fé e Deus. É muito interessante: recomendo a leitura.

"Mas sejam quais forem as circunstâncias da minha morte, morrerei com fé inabalável no futuro comunista da humanidade" (Leon Trotsky).

A fé é um fenômeno tipicamente humano. Quase todos os seres humanos manifestam fé em algo. Leon Trotsky, por exemplo, na frase citada acima, afirma sua "fé inabalável" no futuro comunista da humanidade. Outras pessoas têm outras fés, diferentes (e não necessariamente incompatíveis com essa fé de Trotsky).

De onde Trotsky tirou sua "fé inabalável" no futuro comunista da humanidade? Quem podia lhe garantir que o futuro da humanidade não será a barbárie (como expresso na célebre dicotomia de Rosa Luxemburgo: "Socialismo ou barbárie"), quem podia lhe garantir que o comunismo triunfará? Nada, nem ninguém, poderia. Mesmo assim, Trotsky tinha não apenas fé, mas fé inabalável, em um futuro comunista.

Algumas polêmicas podem então ser suscitadas quando os ateus proclamam a sua crença na não existência de Deus como sendo a "Verdade". Em primeiro lugar, existe uma grande diferença entre não aceitar as religiões oficiais estabelecidas (como o catolicismo ou o luteranismo) e ser ateu. Vejamos alguns exemplos:

O próprio Charles Darwin, criador da Teoria da Seleção Natural, morreu sem nunca se afirmar ateu. Nos últimos anos de sua vida, dizia-se agnóstico, e polemizava com os que queriam impor o ateísmo (como polemizou com o marxista Edward Aveling, esposo de Eleanor Marx).

Um dos maiores físicos de todos os tempos, pai da Teoria da Relatividade, o socialista Albert Einstein, não era ateu, e expressou em diversas oportunidades sua religiosidade. A mais célebre talvez tenha sido na sua conhecida frase "Deus não joga dados". Mas essa não foi a única ocasião. Certa vez afirmou: “a ciência sem a religião é manca; a religião sem a ciência é cega” O fato de Einstein não professar nenhuma religião oficial nunca o tornou um ateu.

Einstein não acreditava em um Deus personalizado, mas se irritava quando insistiam em lhe imputar a pecha de ateu. Einstein sempre estabeleceu uma distinção nítida entre sua descrença num Deus pessoal, de um lado, e o ateísmo, de outro. Num texto em que comentava um livro que negava a existência de Deus, Einstein disse: “Nós, seguidores de Espinosa, vemos nosso Deus na maravilhosa ordem e submissão às leis de tudo o que existe, e também na alma disso, tal como se revela nos seres humanos e nos animais." Em seu ensaio "Religião e Ciência", de 1930, Einstein definiu o que chamava de "três estágios de desenvolvimento" da religião. O terceiro estágio, que considerava o mais avançado, ele chamou de “sentimento religioso cósmico”.

A crença de Einstein talvez seja reflexo da percepção mais moderna, do século XX, que tinha do Universo e da matéria (ele mais do que ninguém, como pai da Relatividade). A visão que se tinha da matéria no século XIX, nos tempos em que Marx escreveu (obviamente condicionado por sua época), era uma visão bastante limitada, e bem menos refinada do que a visão que foi-se desenvolvendo no decorrer do século XX.

O próprio materialismo histórico de Marx distinguia-se do materialismo vulgar de Feuerbach. Marx, pessoalmente, era um ateu, porém sua maior contribuição teórica, o materialismo histórico, é uma Teoria da História, cuja preocupação central é explicar a evolução da história humana através do prisma da luta de classes. Não se tratava de uma mera filosofia da matéria, como o materialismo vulgar, cuja maior preocupação era afirmar a "matéria" como sendo tudo o que existe, e negar a existência de qualquer evento ou Ser extra-material (incluindo Deus).

A própria concepção de matéria da época de Marx sofreu inúmeros impactos posteriores. No tempo de Marx, o átomo, unidade fundamental da matéria, ainda era visto como uma bolinha indivisível, e seus componentes como prótons, nêutrons e elétrons ainda não haviam sido descobertos. No decorrer do século XX, responder a pergunta: "O que é a matéria" tornou-se algo cada vez mais complexo. Einstein descobriu que E=mc² (a correspondência entre matéria e energia). Os prótons e nêutrons foram cada vez mais subdivididos em novas partículas subatômicas descobertas, surgindo toda uma "fauna" de múons, glúons, quarks, e outras partículas até hoje não inteiramente compreendidas pelos cientistas. Descobriu-se que a luz, misteriosamente, as vezes se comporta como onda eletro-magnética, e as vezes como partícula (o famoso fóton). A força da gravidade continua um mistério, e ainda não há provas irrefutáveis da existência de uma partícula chamada gráviton, que permanece na especulação.

Se é tão difícil afirmar o que é a matéria, como os "materialistas" de nosso tempo podem afirmar com tanta certeza que tudo o que existe é a matéria, e não existem seres imateriais (incluindo o Criador)? Como podem cultuar o seu "deus matéria" sem sequer explicar do que ele é feito?

Não seria mais prudente, e mais plural e democrático, manter o materialismo histórico como aquilo que ele é, uma Teoria da História, baseada na luta de classes?

* Este texto é de autoria de Iskra, em um debate democrático com os defensores do ateísmo. O autor é materialista-histórico (em sua concepção da História humana), mas não é materialista (em sentido feuerbachiano), e acredita em Deus

Site: Molotov/ blog do PSTU. 
WEB: http://blogmolotov.blogspot.com/2007/05/questo-de-f.html

mardi 15 janvier 2008

Elementos para uma antropologia

Prof. Dr. Jorge Pinheiro
Façamos o ser humano segundo a nossa imagem, semelhante a nós”. Gn 1.26

Toda a criação de Deus é o mundo do ser humano: assim afirmam os dois relatos da criação e o Salmo 8. Mas em que sentido o ser humano é a imagem de Deus? Como Deus confere ao ser humano essa correspondência? O livro de Gênesis e o Salmo 8 nos dão elementos para a construção de uma antropologia:

[1] Em primeiro lugar o ser humano é fruto de uma intervenção de Deus. Há uma concessão de encargo que diferencia o ser humano do resto da criação. Ele é apresentado como um momento sublime, especial, como um ser que coroa toda a ação criadora de Deus (Sl 8.6). Ele recebe responsabilidade (Gn 2.15-17) e poder de decisão (2.18-23).

[2] Em segundo lugar, Deus explica porque decidiu criar um ser pessoal, segundo sua imagem. Tal ser deverá ter uma relação especial com o restante da criação (1.26). Deus cria e entrega ao ser humano sua criação. Este ser pessoal deverá estar sobre ela, numa relação de trabalho, produção e administração (2.15,16 e 19). O ser humano relaciona-se com a criação e através do uso e de suas descobertas em relação a ela, mantém uma permanente relação com Deus.

[3] Em terceiro lugar, a imagem de Deus é traduzida na relação que o ser humano mantém com as criaturas, já que é uma relação de domínio. Ele reina sobre o universo produzido pelo poder criador de Deus. Mas aqui há um detalhe sutil: este direito de domínio não lhe é próprio, ele reina enquanto imagem de Deus. Ele não é proprietário, nem tem autonomia irrestrita sobre a criação.

[4] Mas imagem de Deus traduz abertura à transcendência. Aqui estão dados os elementos que nos permitem entender porque faz parte da humanidade o abrir-se à transcendência e viver com ela. Há um deslumbramento permanente diante do absoluto, do sobrenatural e do mistério. Estamos diante de um ser que pode pensar o que não está aqui e agora, e que pode refletir sobre o que vai além da realidade factual. E é por poder pensar tais realidades que não podem ser vistas, que o ser humano enquanto imagem de Deus pode refletir sobre a eternidade e relacionar-se com o transcendente. Assim, ao ser feito imagem de Deus, o próprio Deus transfere à humanidade a capacidade de relacionar-se com Ele.

[5] Esse ser humano de que fala Gênesis 1.26, que deve ser uma imagem de Deus, não é uma pessoa em particular, pois a continuação do texto fala que eles dominem. Assim, estamos diante da criação da humanidade e o domínio do universo não é dado a uma pessoa, mas a comunidade dos seres humanos. Assim, ninguém pode ser excluído da autoridade de domínio dada por Deus à humanidade.

Da mesma maneira, em Gn 1.27 temos uma outra característica fundamental dessa mesma humanidade: ela é formada por homens e mulheres. Para alguns teólogos, como Karl Barth, tal explicação de Gn 1.27b, de uma humanidade formada por gêneros, é apresentada por Deus “quase à maneira de definição”. Logicamente, há uma intenção para que o texto bíblico aprofunde-se em tais minúcias. É a de apresentar como o universo criado deveria ser administrado: através da convivência de seres que se completam e se amam. Ou seja, esse ser plural só poderia exercer o domínio através da comunidade, completando-se e complementando-se.

Se toda a criação de Deus é o mundo do ser humano, há a total desmitização da natureza. Não há astros divinos, terra divina, animais divinos. Todo o universo pode tornar-se o ambiente do ser humano, seu espaço, que ele pode adaptar às suas necessidades e administrar.

E como ele consegue isso? Através da cultura, enquanto processo social e objetivo de sujeição da natureza, e através dessa necessidade de expansão e domínio, pessoal e subjetivo, que é peculiar a todo homem e mulher livres.

O afastamento de Deus fez com que a humanidade perdesse sua capacidade de ser imagem de Deus viva e eficaz. Seu caráter inicial está distorcido e o mal perpassa todas suas ações. Assim, o ser humano lançou-se ao domínio de seus iguais, inclusive através do derramamento de sangue; suprimiu o equilíbrio e a mútua ajuda entre homem e mulher; mitificou a ciência e técnica; e lançou-se à destruição da própria natureza.

Cristo é “a verdadeira imagem do Deus invisível” (Colossenses 1.15 cf. 2Co 4.4) e a Ele cabe fazer, a nível escatológico, aquilo que à humanidade tornou-se impossível. “Foi-me dado todo o poder no céu e na terra, por isso, indo, fazei discípulos em todas as nações”. (Mateus 28.18 e seguintes).

lundi 10 décembre 2007

O punhal de Abraão

Tem o cristianismo uma palavra de esperança para o sofrimento humano, para o momento de solitude, de espera do milagre?

O punhal de Abraão

Quando chegaram ao local que Deus havia indicado, Abraão fez um altar e arrumou a lenha em cima dele. Depois amarrou Isaque e o colocou no altar, em cima da lenha. Em seguida pegou o punhal para matá-lo". Gênesis 22.9-10.

Eis um dos textos mais desnorteadores do Antigo Testamento. Abraão, em obediência a Deus, se prepara para sacrificar seu filho. Neste artigo vamos fazer a leitura deste texto a partir de um ensaio teológico, "Temor e tremor", escrito por Sören Kierkegaard, em 1843.

Sören Kierkegaard, dinamarquês (1813-1855), é fundador da teologia da existência. Ele recusou o ideal de um saber intelectual e universal, defendido por Hegel, e mostrou o caráter voluntário e singular da vida cristã, que se consubstancia no ato de fé.

Kierkegaard foi conhecedor dos clássicos. Amou a música e a literatura, a filosofia clássica e moderna. Fruto dessa paixão construiu uma teologia da existência que teve o objetivo de confrontar idéias e experiências à luz do cristianismo.

Sua teologia baseou-se em conhecimento e experiências sentimentais. A partir de problemas pessoais procurou explicação para a existência. Não se contentou em analisar o conteúdo da consciência e daí construir uma teologia da existência. Relacionou conhecimento e experiências e estabeleceu entre elas uma dialética. É através da dialética que percebe as experiências da existência: estética, ética e experiência da fé.

Experiências da existência

A experiência estética é básica na realidade humana. Os valores estéticos estavam presentes no romantismo e influenciaram artistas e intelectuais do século XIX. É difícil definir essa experiência, porque é diversificada, embora sempre tenha uma característica comum: o desejo. O desejo produz satisfação afetiva, emocional e material, e a principal experiência estética é o desejo erótico.

Mas, a experiência estética não nos realiza plenamente. Muitas vezes, os objetivos não são claros e se perdem por não haver plena satisfação.

Há uma outra experiência humana que, ao contrário da experiência estética, é de mais fácil definição: a experiência ética. Isto porque é marcada por uma vida governada por normas morais. O herói da experiência ética é o marido fiel.

Kierkegaard combina a teoria do amor romântico com a teoria do acordo matrimonial, na forma de amor cristão entre duas pessoas que reconheceram em Deus o responsável por esta união. O casamento cristão, indissolúvel, pleno de companheirismo, é um discurso de exaltação ao amor. O casamento é o meio através do qual homem e mulher fazem uma opção, tendo Deus como testemunha. É aqui que se evidencia a experiência ética: os dois terão que resistir aos dias maus para manter a vida conjugal.

Assim, casamento é risco, mas, ao mesmo tempo, a mais profunda experiência para se atingir tal sentido de vida. O casal deve entender que o heroísmo moral da vida cotidiana é a única forma de desviá-los dos caminhos que comprometem a relação conjugal. Só o heroísmo ético, aliado à ajuda de Deus, pode salvar a vida conjugal e a vida moral.

Mas o casamento não é a única e derradeira experiência humana. A fé é uma fonte de inspiração e um espaço de reflexão e existência.

O cristianismo de Kierkegaard era composto por duas realidades marcantes: por um lado, o cristianismo com suas doutrinas e seus paradoxos, e, por outro, a tensão psicológica com que ele recebia essas doutrinas e paradoxos em meio aos problemas existenciais.

Nesse sentido, "Temor e Tremor" é uma introdução ao mundo cristão de Kierkegaard. O objetivo do livro é mostrar, através da história do patriarca Abraão, que a experiência ética não é absoluta, fica ofuscada diante das exigências da experiência da fé.

Abraão não hesitou em sacrificar Isaque e esta entrega lhe deu o filho de volta. A experiência da fé é entrega ao Deus que não vemos e comunica-se através do silêncio. As duas primeiras experiências, estética e ética, não podem existir sem a experiência da fé. A fé deve estar presente tanto na experiência estética quanto na ética. A fé é uma experiência que desestrutura experiências e possibilita o encontro com a realidade da vida cristã.

Mas fé implica em fazer escolha, já que é solitude e colocar-se sob o olhar atento de Deus. Esse estar só no sofrimento nos leva ao sentido da subjetividade e da existência. Em 1848, Kierkegaard passou pela experiência de conversão e registrou em seu Diário:

"A totalidade do meu ser está transformada... Mas a crença no perdão dos pecados significa crer que aqui no tempo o pecado é esquecido por Deus, que é realmente verdade que Deus o esquece".

E em 1850 escreveu em seu Diário:

"A peculiaridade da raça humana é: justamente porque o indivíduo é criado à imagem de Deus, o 'indivíduo' está acima da raça. Isto pode ser entendido erroneamente (...) reconheço. Mas isso é o cristianismo. E é aí que a batalha deve ser travada".

Deus é subjetividade infinita. O cristianismo é uma fé histórica, mas como os resultados dos fatos históricos são incertos, o importante é a escolha. Crer em Deus é um salto de fé, um compromisso com o absurdo. A pessoa faz uma escolha por aquele fato histórico porque significa tanto que arrisca a vida por ele.

"Então vive; vive inteiramente cheio da idéia, e arrisca sua vida por ela; e sua vida é a prova de que crê".

Não precisa haver provas para a pessoa crer e viver a fé. Sem riscos não há fé. Por isso, há no pensamento de Kierkegaard, uma palavra chave: o amor. É por amor que Deus decide agir, mas como seu amor é a causa, seu amor também é o fim. Deus quer estabelecer relações com o ser humano.

"Deus encontra sua alegria em vestir ao lírio com mais esplendor que Salomão" (Fragmentos Filosóficos, p. 59).

O amor de Deus ensina, mas também leva a um novo nascimento, passando do não ser ao ser, pois "o fazer nascer pertence a Deus cujo amor é regenerador" (Fragmentos, p. 68).

Deus busca transformar o não ser do ser humano. Assim, "para obter a unidade, Deus deve se fazer igual ao seu discípulo", e para isto toma a forma de servo. Deus sofre a fome, o deserto, tudo experimenta por amor ao ser humano. Kierkegaard afirma que só Deus pode salvar o indivíduo do desespero.

O salto da fé


O sentido estético da existência nos é dado, também, pela busca da realização profissional e pelo consumo e posse de bens. Abraão fez essa experiência estética, mas ela não bastou. Por isso disse a Deus: "Ó Senhor! Ó Deus Eterno! De que vale a tua recompensa?" O sentido ético na vida do patriarca não foi dado por sua relação com Sara, pois não foi um marido exemplar (cf. Gênesis 12.13; 20.2), mas pelo nascimento de Isaque. O filho prometido possibilitou a Abraão essa experiência ética, mas, ainda assim, faltava ao patriarca a experiência da fé, a entrega a Deus daquilo que lhe era mais caro.

Abraão não está na situação do herói que deve escolher entre valores subjetivos e objetivos. Deus não está testando a sabedoria de Abraão. A força de sua fé fez com que Abraão optasse por Deus. Caso o sacrifício se tivesse consumado, Abraão não teria como justificá-lo à luz de uma ética humana. Seria o assassino de seu filho. Permaneceria toda a vida indagando acerca das razões do sacrifício e não obteria resposta. Do ponto de vista humano, a dúvida permaneceria para sempre.

No entanto, Abraão não hesitou: a fé fez com que ele saltasse da razão e da ética para o plano do absoluto, âmbito em que o entendimento é cego. Abraão ilustra na sua radicalidade o desafio da fé. A fé representa um salto, a ausência de mediação humana, porque não pode haver transição racional entre o finito e o infinito. A fé é inseparável da angústia, o temor de Deus é inseparável do tremor.

Por isso, o punhal de Abraão é o símbolo desse salto. É desespero e angústia. Mas o movimento da lâmina, que aparentemente antecede a morte, conduz ao grito de Deus: Abraão! O movimento da lâmina leva a um renascer, a um novo sentido de vida, ao encontro com o filho amado.

Tudo o que a existência envolve de afirmação da fé não pode ser explicado pelo pensamento enquanto representação e significação. O conceito jamais dá conta das tensões e contradições que marcam a vida pessoal. Existir é existir diante de Deus, e a incompreensibilidade da infinitude divina faz com que a consciência vacile como diante de um abismo. Não podemos apreender racionalmente a contemporaneidade do Cristo, que faz com que a existência cristã se consuma num instante e ao mesmo tempo se estenda pela eternidade.

Essa virtude teologal traduz adesão pessoal a Deus e combina reflexão e êxtase. É procura infindável e visão instantânea da verdade. É paradoxo: a alienação é condição da perdição, mas Cristo veio ao mundo para resgatar o ser humano. Qualquer teologia que não leva em conta essas tensões, derivadas de estar o finito e o infinito em presença um do outro, não constitui fundamento adequado da vida.

O duplo movimento do infinito


Quando nos colocamos diante de nós próprios e de nosso destino, olhamos um fato que nenhuma lógica pode explicar: a fé. Esta não é substituição afetiva provisória que dura enquanto não se fortalecem as luzes da razão. É um modo de existir. E esse modo nos situa em relação ao absurdo e ao paradoxo. O paradoxo de Deus feito ser humano e o absurdo das circunstâncias do advento de Cristo.

Cristo, Deus tornado ser humano, é o mediador. É por meio de Cristo que o ser humano se situa existencialmente perante Deus. Cristo é o fato primordial para a compreensão que o ser humano tem de si. Não há mediação conceitual, prova racional que nos transporte à compreensão da divindade. A mediação é o Cristo vivo, histórico, é o fato do sacrifício do cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo.

Aqui se situam as circunstâncias que fazem da encarnação de Cristo um absurdo: a verdade não nos foi revelada com as pompas da representação e significação do objeto pelo pensamento. Ela foi vivida pelo Filho de Deus, que morreu na cruz como criminoso. O acesso à verdade depende da crença no absurdo, pois, como afirma o apóstolo Paulo, "Deus pega os sábios nas suas espertezas". É o absurdo que possibilita a verdade. Caso permanecesse a distância infinita que separa Deus e o ser humano, jamais teríamos acesso à verdade. É a mediação do paradoxo e do absurdo que nos coloca em comunicação com Deus. Por isso devemos dizer: creio porque é absurdo. Este é o caminho do encontro com Deus.

Em seu Diário, Kierkegaard escreveu em maio de 1843, época em que trabalhava no texto de Temor e tremor:

"A fé, portanto, tem esperança nessa vida igualmente, mas apenas em virtude do absurdo, não por causa da razão humana; do contrário, seria meramente sabedoria mundana e não fé".

Assim, estamos diante do "duplo movimento do infinito", que nos leva a romper com a finitude, mas possibilita, por meio da fé, recuperá-la. É possível tornar a vida compatível com o amor de Deus. A renúncia nos conduz a uma relação negativa com o mundo, mas a fé nos traz para uma nova relação com o mundo, agora construtiva.