dimanche 9 janvier 2011
vendredi 7 janvier 2011
Ao Sul da Fronteira 1/8
Colegas, não sei se você conhecem este documentário, Ao sul da fronteira, do diretor de cinema Oliver Stone. Vale a pena ver. Stone é um profissional sério e o documentário marcha na contra-corrente do que geralmente vemos na grande mídia. Por isso, postei no blog. Está dividido em oito partes.
Um feliz 2011 para todos e todas, Jorge Pinheiro.
Um feliz 2011 para todos e todas, Jorge Pinheiro.
mercredi 5 janvier 2011
Você pode ser sábio
Para ser sábio é preciso primeiro temer a Deus, o Senhor. Se você conhece o Deus santo, então você tem compreensão das coisas. Provérbios 9.10.
Provérbios é um livro de vários autores, três dos quais são citados pelos seus nomes: Salomão, Agur e Lemuel. Salomão coletou e é o autor principal (Provérbios 25.1).
Provérbios fala sobre diversos assuntos, mas três devem ser realçados: Deus e o ser humano; a sabedoria; a vida e a morte.
1. Na Torá, a revelação se expressa de três maneiras: Lei, sabedoria e profecia. Ou como disse Jeremias (18.18): “Pois sempre haverá sacerdotes para nos ensinar (a lei), sábios para nos dar conselhos e profetas para anunciar a mensagem de Deus”.
2. A sabedoria nos apresenta a relação entre Deus, o conhecimento e a prosperidade. Ou como disse Oséias (4.6): “O meu povo não quer saber de mim, por isto está sendo destruído...”
3. E o lema de Provérbios relaciona sabedoria e temor a Deus. “Para ser sábio é preciso temer a Deus, o Senhor”. Provérbios 1.7.
O que é hokmah, a sabedoria?
A hokmah é uma figura de cinco lados:
1. É musar, instrução ou treinamento. E essa idéia pode ser traduzida também por correção e disciplina. É para os discípulos.
2. É binah, entendimento ou discernimento. Vem de leb, da palavra coração em hebraico, que deve dirigir nossos movimentos, nossas ações. É capacidade de escolha.
3. É maskil, bom senso ou sabedoria prática. Nos leva ao sucesso através da equidade e procedimentos de justiça e juízo.
4. É ormah, prudência ou discrição. É a capacidade de planejar, e traduz a idéia de habilidade, de conhecer nosso negócio ou aquilo que fazemos.
5. É leqah, conhecimento ou aprendizagem. Nos exorta a buscar a verdade e o próprio Deus, e essa revelação é assimilada, recebida de Deus.
E como se consegue?
1. Através da revelação
É dom de Deus, que dá a todos que a desejam. Ou como o apóstolo Paulo disse aos Efésios (1. 17): “E peço ao Deus de nosso Senhor Jesus Cristo, o Pai glorioso, que dê a vocês o seu Espírito, o Espírito que os tornará sábios e revelará Deus a vocês, para que assim vocês o conheçam como devem conhecer”.
2. Exige conversão
Implica em desviar-se do mal e voltar-se para a luz. Ou como disse Tiago (3.17). “A sabedoria que vem do céu é antes de tudo pura: e é também pacífica, bondosa e amigável. Ela é cheia de misericórdia, produz uma colheita de boas ações, não trata os outros pela sua aparência e é livre de fingimento”.
3. Exige devoção
O livro de Provérbios (9.10) nos diz que o começo da sabedoria é temer a Deus. Ora, temer não significa ter medo de Deus, mas honrá-lo, obedecê-lo, respeitá-lo por tudo o que Ele é, faz e pode fazer. Temer a Deus significa confiar nele e ter a certeza de que pode lhe ajudar a tomar decisões e resolver problemas. Sabedoria é um presente de Deus. Ele dá sabedoria pela confiança que você coloca nele. E você busca a sabedoria porque sabe que precisa dela. É uma busca apaixonada. É a caminhada do discípulo.
Leia de novo, ore e clame a Deus por sabedoria e, no correr da semana, treine cada face da figura. Não encare a sabedoria apenas como exercício intelectual, mas como atitude prática. Caso você exercite a sabedoria, com oração, mudança de maus hábitos de caráter e no reconhecimento de que esse conhecimento provem de Deus, sem dúvida sua vida vai mudar. Tire o mês de janeiro para viver a sabedoria e 2011 será próspero.
E deixo para você o shalom que nasce da hokmah.
Jorge Pinheiro.
vendredi 31 décembre 2010
O espectro do vermelho
Uma leitura teológica do socialismo no Partido dos Trabalhadores, a partir de Paul Tillich e Enrique Dussel. Apresentação lida na defesa da tese de doutoramento em Ciências da Religião na Universidade Metodista de São Paulo, em 2005. Agora dedicada à companheira Dilma Roussef, primeira mulher eleita presidente da República Federativa do Brasil.
Desde a primeira República com a chegada dos imigrantes europeus, em especial espanhóis e italianos, surgiram tentativas de construção de um partido operário que tivesse condições de ação político-eleitoral. Mas todas essas tentativas fracassaram. Até mesmo o Partido Comunista, fundado em 1922, por seu posicionamento ambíguo em relação à democracia e por traduzir, durante a longa presença de Josef Stálin na liderança da União Soviética, uma política ditada por interesses externos, mais precisamente do Cominter, não conseguiu ser este partido. Com o final do Estado Novo surgiu o Partido Trabalhista Brasileiro como organização populista, que combinava uma liderança burguesa e pelego-sindical com base eleitoral popular e de trabalhadores urbanos. Mas também não foi o partido operário sonhado pelos militantes socialistas da primeira República. Outra experiência que vale a pena ressaltar foi a do Partido Socialista Brasileiro, fundado por intelectuais e políticos socialistas-democráticos em 1947. Tendo que enfrentar, à esquerda, o Partido Comunista Brasileiro, marxista-leninista, e à direita, o Partido Trabalhista Brasileiro, burguês, o Partido Socialista Brasileiro também não conseguiu construir o sonhado partido operário de massas, com inserção sindical e expressão político-eleitoral.
Por esses motivos, quando no final dos anos 1970 surgiu o Partido dos Trabalhadores, que nucleou amplos setores sindicais e de trabalhadores fabris em todo o país, a esquerda brasileira, com raras exceções, começou a olhar tal fenômeno como algo novo na história brasileira. O sonho tornava-se realidade. Passados 25 anos da fundação do PT, algumas questões são levantadas, todas girando ao redor da pergunta: que partido é esse? É marxista-leninista? É social-democrata? E se é socialista, que socialismo é esse?
Por isso, as dissertações de mestrado e as teses de doutorado produzidas nos últimos anos sobre o Partido dos Trabalhadores traduziram a preocupação de analisá-lo a partir de leituras sociológicas e históricas. Aqui tivemos outro tipo de preocupação. Todas as dissertações e teses se perguntaram se com o PT estávamos diante de um socialismo de novo tipo. Discutiram o que acontecia no interior mesmo do socialismo, comparando tendências e correntes, ou analisando a importância do sindicalismo na formação desse novo partido. Dessa maneira, nos últimos anos, a academia brasileira produziu excelentes estudos sobre o Partido dos Trabalhadores e suas relações com a esquerda brasileira e o socialismo. Estes trabalhos efetuaram análise qualitativa do papel desempenhado pelos diferentes agrupamentos políticos da esquerda na formação do Partido dos Trabalhadores, abrindo caminho para a compreensão do socialismo e da formação do PT para a história das idéias socialistas no Brasil.
Mas no conjunto dos estudos acadêmicos ainda são poucas as dissertações ou teses que trabalham a análise do Partido dos Trabalhadores a partir da Teologia. Tal carência na pesquisa acadêmica chamou nossa atenção, pois é fato notório que a Teologia da Libertação e as Comunidades Eclesiais de Base estiveram presentes na formação do PT, quer fornecendo reflexão teórica, quer participando com militantes e ativistas. Era de se perguntar, então, porque tão pouco esforço nesse sentido. E por extensão se era possível compreender o pensamento e a história do PT sem correlacionar suas propostas sociais com a religião e o cristianismo. Por isso fizemos a pergunta se havia uma correlação entre cristianismo e socialismo, onde estariam presentes esses elementos religiosos no socialismo petista e em que sentido dariam um caráter especial ao socialismo proposto? Cremos que a tese ora defendida respondeu tais questões, confirmando esta presença cristã no PT, mas também analisando como influenciou o conjunto da esquerda não-comunista no Brasil.
Fez parte dos objetivos do trabalho, a partir da história da formação do Partido dos Trabalhadores mostrar como ele surgiu de amálgama de socialismos, soldados ao redor de uma corrente sindical, com apoio de um setor da Igreja católica, em especial das Comunidades Eclesiais de Base. E também foi objetivo da pesquisa analisar como depois da queda do muro de Berlim e da crise do comunismo no bloco soviético, o Partido dos Trabalhadores procurou definir um socialismo petista com cara brasileira. E que nesse trânsito entre socialismo como mito fundante, socialismo real e cristianismo social, o Partido dos Trabalhadores acabou por afirmar a democracia enquanto projeto político central. E assim constatamos que tais mudanças, que levaram à democracia enquanto realpolitik, acabaram por afastar o PT de sua utopia original e, inclusive, da revolução democrática. Assim, a tese ora apresentada procurou preencher a lacuna existente na pesquisa acadêmica referente à construção do pensamento socialista e democrático no Partido dos Trabalhadores.
A justificativa da pesquisa confirmou-se através da utilização de uma documentação oficial que incluiu as resoluções de onze encontros nacionais, dois encontros nacionais extraordinários e dois congressos nacionais. Partimos, então, dessa documentação oficial e da revista trimestral “Teoria e Debate”, que cobrem a história e a produção teórica do partido. A pesquisa explorou também a bibliografia existente em livros, teses, artigos de jornais e revistas, e memórias, enquanto informações e testemunhos que confrontamos com a documentação oficial analisada. Utilizamos, dessa maneira, um farto material para a compreensão do pensamento e ideário do PT como um todo e do pensamento socialista em particular. O desvelamento teológico do ideário do Partido dos Trabalhadores através da leitura dessa literatura nos permitiu uma nova visão acerca do passado, possibilitando entender melhor os envolvimentos presentes.
Mas além da justificativa científica, foi importante constatar a importância do Partido dos Trabalhadores para a sociedade brasileira, assim como para a política nacional. Em termos sociais, o PT surgiu enquanto organização ligada às classes trabalhadoras da cidade e do campo, polarizando, inevitavelmente, a política nacional. A importância social da tese mostrou tal relevância, ao analisar o papel da religião no próprio crescimento eleitoral do PT.
Um exemplo disso, que na tese foi analisado, é o fato de que o PT atuou sobre o conjunto da sociedade brasileira modificando padrões sociais anteriormente estabelecidos, como, por exemplo, sua inserção nos grotões, através da presença cristã, o que modificou o perfil do voto conservador e de direita dessas áreas. Ora, essa importância social nos direcionou à questão política. Sem mistificar os limites da presença do PT no cenário nacional, vimos que construiu lideranças e desenvolveu nova maneira de fazer política: de diálogo com os setores excluídos e marginalizados da sociedade, em parte esquecida desde os governos de Getúlio Vargas e João Goulart.
A pesquisa qualitativa possibilitou, também, o equacionamento de uma das questões que levantamos: a presença de uma religiosidade cristã invisível que se fez presente no processo de construção do pensamento socialista do Partido dos Trabalhadores e que foi encontrada nos textos oficiais e nos pronunciamentos dos líderes petistas, não enquanto discurso cristão propriamente, mas enquanto consciência religiosa. Tais constatações da pesquisa confirmaram as hipóteses de que o socialismo do Partido dos Trabalhadores tem profundas imbricações com a religião. Ou seja, o desenvolvimento do pensamento socialista dentro do Partido dos Trabalhadores, sem dúvida, pode e deve ter uma leitura teológica.
Assim, vimos que a Teologia, enquanto hermenêutica dos universos simbólicos, permite uma abordagem do problema do poder, principalmente quando partimos de duas perspectivas fundamentais nessa leitura teológica: a antropológica política, que percebe o simbólico como fundante da vida social, e a ética que, ao dar ênfase às instituições, pensa a relação entre instituições e estruturas políticas.
Vimos que para Paul Tillich, a distância que separa o ser e a consciência é necessária para que o ser se eleve à consciência. Por isso, consciência supõe não somente uma ligação ao ser, mas também um distanciamento que permita reflexão. Assim, aquele que é confrontado em sua ligação original com um grupo ou com uma classe é chamado a dar consciência a outra classe que não é a sua. E toma como exemplo Marx, que não era proletário, mas rompeu com sua classe de origem e se colocou a serviço de outra. Marx mostrou que a relação entre a situação social e o pensamento político deve se elevar da esfera biográfica para aquela das relações funcionais. Tal realidade leva a palavra princípio a caracterizar de maneira global os grupos políticos, pois deixa de lado a esfera biográfica e permite ao pensamento extrair a multiplicidade de fenômenos que constitui a característica comum a todos os indivíduos.
Normalmente, esta tarefa se cumpre com ajuda do conceito de essência, pois a relação entre essência e fenômeno domina a teoria do conhecimento. Porém a lógica da essência não é suficiente para explicar as realidades históricas. A essência de um fenômeno histórico, como constata Tillich, é uma abstração vazia, de onde se expulsou a força viva da história. Isso leva Tillich a buscar a essência do socialismo na própria história e nos mitos que lhe deram origem, afirmando que o socialismo é um movimento de oposição, um movimento de oposição à sociedade burguesa, mas enquanto mediação uniu-se à sociedade burguesa na oposição às formas feudais e patriarcais de sociedade. Entender esta raiz do socialismo ajudaria a entender as raízes do pensamento político que lhe deu origem. Tillich parte de uma teologia política onde seu referencial primeiro é o ser. Mas para ele, não se pode entender o socialismo caso não se experimente a exigência de sua justiça como uma necessidade incondicional, pois quem não é desafiado pelo socialismo não pode falar do socialismo, a não de forma superficial. Não pode falar dele porque é contrário àquilo que ele defende. É por isso que a leitura teológica de Tillich sobre política e socialismo rompe as bases preconceituosas sobre tal debate e nos possibilitou abordar o assunto, a partir da correlação, sem estigmatizar grupos e movimentos. Logicamente, por olhar a realidade a partir de um momento específico da história, que se dá na Europa, entre as duas guerras mundiais, faltaria nesta abordagem teológica de Paul Tillich o olhar latino-americano que, mesmo reconhecendo as estruturas comuns à história do pensamento político, indicassem novos aspectos e movimentos, entre os quais a presença cristã institucional e invisível na sociedade brasileira.
Enrique Dussel complementa Paul Tillich através de uma teologia latino-americana que é um pensar sobre Deus, mas um Deus que se revela na história, que se revela através do Outro, que é o mistério incompreensível de nossa liberdade. Para Dussel, crer na revelação de Deus é compreender o sentido da história, que ele nos apresenta através do Outro. Tal compreensão da teologia permite a Dussel analisar como cristianismo e socialismo se relacionaram na história recente da América Latina e do Brasil. Para ele, a relação cristianismo-socialismo começou a ser colocada nos grupos estudantis cristãos, principalmente a partir de 1959 pela revolução cubana, e que o antecedente mais distante aconteceu no Brasil, na época da Juventude Universitária Católica. Segundo Dussel, o pensamento do padre Cardonnel e principalmente de Henrique de Lima Vaz foram adotados como ‘compromisso político’ pela Ação Popular, cujo Documento de Base admitiu a ação revolucionária. Assim, em junho de 1968, o Congresso Nacional da Juventude Operária Católica e da Ação Católica Operária condenou o capitalismo e defendeu a luta de classes, admitindo a análise marxista da realidade social. A partir desse momento, dezenas de grupos cristãos na América Latina aceitaram a estratégia revolucionária dos focos de Che Guevara, como a guerrilha de Teoponte de Nestor Paz Samora, em 1970, na Bolívia. Mas o caso mais conhecido foi o do padre Camilo Torres, morto em 15 de fevereiro de 1966. Com o fracasso da teoria dos focos, a Unidade Popular chilena constituiu-se em novo modelo de transição ao socialismo. E, assim, o cristianismo social ocupou um espaço político até então inédito na história latino-americana e brasileira.
Os estudos desenvolvidos por Paul Tillich, assim como por Enrique Dussel, nos deram instrumentos para uma compreensão teológica da realidade política brasileira, quer a partir da leitura das raízes antropológicas, no caso de Paul Tillich, quer ética, no caso de Enrique Dussel. E foi a partir das justificativas expostas, e definido o campo motivacional dos autores, que nos armamos de razões instrumentais e referenciais para desenvolver o trabalho ora apresentado. E mais do que isso, levamos em conta a riqueza do momento histórico, tanto em relação à consolidação democrática, quanto em relação às perspectivas de construção do futuro, apesar de ser este um momento de crise ética, que ameaça, sobretudo, a esperança.
A metodologia da tese teve por base uma extensa pesquisa bibliográfica do socialismo brasileiro no período do pós-guerra até a formação do Partido dos Trabalhadores, assim como das correntes socialistas que se fizeram presentes no partido. A metodologia procurou através da pesquisa bibliográfica trazer informações sobre a presença da ética cristã no PT, quer através das correntes católicas ligadas à Teologia da Libertação, quer de grupos evangélicos. Também foi nossa intenção compreender a relação que Tillich e Dussel construíram entre religião, cristianismo e socialismo, e como tais correlações se apresentaram na formação e construção do Partido dos Trabalhadores. Por isso, a metodologia teve por base os escritos socialistas de Tillich, amparados em conceitos que foram por ele construídos no correr de sua vida. A idéia-chave para o trabalho foi o argumento tillichiano de que o socialismo traduz a exigência incondicional de justiça e por isso não pode ser entendido quando separado da ética cristã que lhe deu origem.
Da mesma maneira, a metodologia reportou a Dussel e seu conceito de religião enquanto infraestrutura, ou seja, enquanto estrutura crítica da totalidade do sistema que oprime, o que dá à religião função histórica essencial. E também ao conceito de analética, que é a afirmação da exterioridade, não somente como negação da negação do sistema desde a afirmação da totalidade, mas como superação da totalidade a partir da transcendentalidade interna ou da exterioridade daquele que nunca esteve dentro. A analética é crítica por isso, é a superação do método dialético negativo, mas não o nega, simplesmente o assume e completa. Para Dussel afirmar a exterioridade é realizar o impossível para o sistema, é descobrir aquilo que surge a partir da liberdade não condicionada, revolucionária e inovadora. Por isso, só através da analética é possível comprometer-se com o outro, a ponto de arriscar a vida na luta pela libertação desse outro, além do que possibilita a justiça do sistema.
Dessa maneira, a partir da metodologia descrita, analisamos a relação entre teologia e socialismo em Tillich e Dussel, focalizando questões como socialismo, democracia e justiça. Tal análise teológica proposta partiu, assim, do universo simbólico cristão e socialista como fundante do pensamento político e da vida militante dentro do Partido dos Trabalhadores, com abordagens do problema do poder em suas relações com estes universos simbólicos. Dessa maneira, a proposta da tese cumpriu seu objetivo ao analisar a relação do cristianismo com a política brasileira através de seus conteúdos simbólicos.
Nossa hipótese central foi demonstrada: a religião e o cristianismo social foram componentes fundamentais na formação do pensamento socialista no Partido dos Trabalhadores. Essa hipótese -- que teve dois desdobramentos, ao perguntar: qual é o sentido teológico de um partido socialista que se forma desta maneira? E se é possível, teologicamente, demonstrar a importância disso? -- também foi respondida. Pois ficou evidente que um tipo de socialismo religioso teve presença marcante no conjunto do pensamento petista, ao levantar a bandeira da expansão da democracia de participação e a solução de problemas brasileiros historicamente pendentes, como a questão da terra, do trabalho e da liberdade cidadã. Assim, cremos que respondemos através da tese “O espectro do vermelho: uma leitura teológica do socialismo no Partido dos Trabalhadores, a partir de Paul Tillich e Enrique Dussel” aos questionamentos levantados.
[Jorge Pinheiro, “O espectro do vermelho: Uma leitura teológica do socialismo no Partido dos Trabalhadores, a partir de Paul Tillich e Enrique Dussel”, apresentação exposta na defesa da tese de doutoramento, em 2005, na Universidade Metodista de São Paulo. Em 2006, a tese foi publicada como livro: Jorge Pinheiro, Teologia e política, Paul Tillich, Enrique Dussel e a experiência brasileira, São Paulo, Fonte Editorial, 2006].
jeudi 30 décembre 2010
Fé cristã e Partido dos Trabalhadores
A relação entre fé cristã e presença no Partido dos Trabalhadores manifestou-se na forma de um paradoxo, no sentido de um modo de pensar que estava à margem das opiniões aceitas e mesmo em oposição a elas. O paradoxo inicial da fé cristã residiu no fato de ser ela uma obra da cultura na forma de um saber que tem a intenção de explicar a realidade e, por extensão, a própria cultura da qual procede. Essa universalidade da fé cristã foi designada como sendo o predicado da interrogação cristã que se dirige ao ser da nossa brasilidade. Ela determina o caráter paradoxal da relação entre cultura e fé cristã na medida em que é origem e uma das instâncias fundadoras da cultura brasileira.
Há aqui uma correlação de causalidades históricas, mas é importante assinalar que outras produções culturais, como a política e a democracia de participação apresentam essa originalidade de ostentarem os traços do que serão as suas essências como intenção de conhecimento. Nesse sentido, a fé cristã no Brasil deve ser considerada não só um caminho para se penetrar no espírito da cultura proletária, mas meio para se compreender o pensamento libertário em um partido de trabalhadores. Mas, para isso é necessário ter presente a relação dialética que existe entre o dinamismo da cultura proletária e a produção da fé cristã brasileira, que juntas construíram nossa história recente. E, ainda hoje, a sobrevivência dessas construções mostra que a fé cristã é um dos elos que asseguram a continuidade da tradição humana que chamamos de cultura cristã brasileira.
Assim, a fé cristã esteve inscrita no destino da cultura petista e fez parte do seu espírito. Por isso, é necessário perguntar qual a razão que conduziu a esse destino. Ora, a própria fé cristã brasileira nos dá motivos para essa interrogação. Ela nomeia a razão debaixo da qual a cultura proletária caminhou, sendo a única que fez de tal razão a sua marca, embora sejamos obrigados a levar em conta os tristes caminhos que essa razão ofereceu no suceder histórico da brasilidade. Mas, é fato que a descoberta do instrumento pelas duas grandes correntes formadoras do pensamento cristão brasileiro, o catolicismo e o protestantismo, e a legitimação social de seus usos, foram a causa do aparecimento de um conhecimento de fé e de vida, que se apresentaram marcados pelo paradoxo da interrogação sobre o ser brasileiro e pela utopia.
Como vimos, há um choque entre a utopia e o kairós, que se traduz enquanto clamor crítico diante da responsabilidade que não pode ser esquecida. E é a partir da compreensão do que significa o espírito da autonomia crítica no tempo presente, que voltamos ao kairós, que irrompe no instante concreto, no sentido de clamor desestabilizador, enquanto plenitude no tempo certo. Este kairós é o tempo onde se completa aquilo que é absolutamente significativo, é o tempo da destinação. A relação entre utopia e kairós está caracterizada pela necessidade do desenvolvimento de uma utopia que aceitou legitimar socialmente a autonomia. O kairós passou a ser, então, a forma exemplar da vida segundo a autonomia.
Ora, a intenção de universalidade que move um partido de trabalhadores, levando-o a voltar-se reflexivamente sobre si próprio e sobre a utopia que lhe dá origem, opera aqui uma inversão na significação dos termos da relação entre a utopia e kairós como sua própria criação. Inicialmente a utopia é o termo fundante nessa relação, se considerarmos o kairós revolução que se determina a si própria. Considerado, porém, na sua natureza de interrogação sobre aquilo que deve ser a sociedade brasileira, portanto, intencionalmente universal, kairós assume, na sua relação com a utopia, a posição de termo fundante, já que a utopia se torna objeto a ser explicado pelo kairós no tribunal do que é essencial e inescusável. Essa explicação nos leva a estabelecer, de modo sistemático, a ordem das razões segundo a qual a utopia pode ser pensada na sua natureza, na sua unidade e nos seus fins. Assim, como termo fundante da sua relação com a utopia, o kairós descobre seu propósito essencial na construção histórica de partido de trabalhadores.
Pensar a utopia significa para o kairós, de um lado, examinar a solidez do edifício da utopia, os conceitos ontológicos que tornam possível a atividade espiritual do ser humano: o ser e a essência, e definir segundo o seu estatuto ontológico, as condições de exercício dessa construção, sua razão e justiça. Nesse sentido, a utopia, em sua acepção mais ampla, leva o kairós a ser um kairós da utopia. Por isso, podemos afirmar que a relação entre utopia e kairós apresenta uma forma dialética, pois nela a utopia e o kairós invertem, no movimento do conceito, o papel de termo fundante da relação.
Essa estrutura dialética caracteriza a tensão histórica entre utopia e kairós que é um paradoxo tanto no ato de pensar a fé cristã, quanto na intenção de ser socialista. Ela obriga o kairós, ao constituir-se como termo fundante da sua relação com a utopia, a passar além das esferas de interesse dentro das quais ocorrem os momentos diversos do pensar utópico. Assim, o lugar da tensão dialética entre utopia e kairós, nesse impulso de remoer as origens, encontrará satisfação no kairós, enquanto história que conhece diferentes tentativas de superação dessa tensão, que está no começo e no anunciado ato final do destino histórico. Existe assim uma regência da utopia pelo kairós, não só simbólica, mas política. É o de tornar-se mundo pelo advento daquilo que é novo na história, da qual ele é a coroa. Donde, a inevitabilidade da pergunta pelo futuro, inscrita como destino e como condição de sobrevivência de um partido de trabalhadores. Portanto, a situação do kairós na utopia socialista nos convida a conviver com essa tensão que assume feições diversas ao ser o kairós confrontado com os universos utópicos que constituem a realidade complexa da utopia: particulares, mas universal. Talvez, por isso, o futuro do kairós e o da existência de um partido de trabalhadores permaneçam problematizados: o kairós vive essa tensão e é a partir dele que se articulam as questões fundamentais do futuro do movimento socialista no alvorecer do novo milênio.
Há aqui uma correlação de causalidades históricas, mas é importante assinalar que outras produções culturais, como a política e a democracia de participação apresentam essa originalidade de ostentarem os traços do que serão as suas essências como intenção de conhecimento. Nesse sentido, a fé cristã no Brasil deve ser considerada não só um caminho para se penetrar no espírito da cultura proletária, mas meio para se compreender o pensamento libertário em um partido de trabalhadores. Mas, para isso é necessário ter presente a relação dialética que existe entre o dinamismo da cultura proletária e a produção da fé cristã brasileira, que juntas construíram nossa história recente. E, ainda hoje, a sobrevivência dessas construções mostra que a fé cristã é um dos elos que asseguram a continuidade da tradição humana que chamamos de cultura cristã brasileira.
Assim, a fé cristã esteve inscrita no destino da cultura petista e fez parte do seu espírito. Por isso, é necessário perguntar qual a razão que conduziu a esse destino. Ora, a própria fé cristã brasileira nos dá motivos para essa interrogação. Ela nomeia a razão debaixo da qual a cultura proletária caminhou, sendo a única que fez de tal razão a sua marca, embora sejamos obrigados a levar em conta os tristes caminhos que essa razão ofereceu no suceder histórico da brasilidade. Mas, é fato que a descoberta do instrumento pelas duas grandes correntes formadoras do pensamento cristão brasileiro, o catolicismo e o protestantismo, e a legitimação social de seus usos, foram a causa do aparecimento de um conhecimento de fé e de vida, que se apresentaram marcados pelo paradoxo da interrogação sobre o ser brasileiro e pela utopia.
Como vimos, há um choque entre a utopia e o kairós, que se traduz enquanto clamor crítico diante da responsabilidade que não pode ser esquecida. E é a partir da compreensão do que significa o espírito da autonomia crítica no tempo presente, que voltamos ao kairós, que irrompe no instante concreto, no sentido de clamor desestabilizador, enquanto plenitude no tempo certo. Este kairós é o tempo onde se completa aquilo que é absolutamente significativo, é o tempo da destinação. A relação entre utopia e kairós está caracterizada pela necessidade do desenvolvimento de uma utopia que aceitou legitimar socialmente a autonomia. O kairós passou a ser, então, a forma exemplar da vida segundo a autonomia.
Ora, a intenção de universalidade que move um partido de trabalhadores, levando-o a voltar-se reflexivamente sobre si próprio e sobre a utopia que lhe dá origem, opera aqui uma inversão na significação dos termos da relação entre a utopia e kairós como sua própria criação. Inicialmente a utopia é o termo fundante nessa relação, se considerarmos o kairós revolução que se determina a si própria. Considerado, porém, na sua natureza de interrogação sobre aquilo que deve ser a sociedade brasileira, portanto, intencionalmente universal, kairós assume, na sua relação com a utopia, a posição de termo fundante, já que a utopia se torna objeto a ser explicado pelo kairós no tribunal do que é essencial e inescusável. Essa explicação nos leva a estabelecer, de modo sistemático, a ordem das razões segundo a qual a utopia pode ser pensada na sua natureza, na sua unidade e nos seus fins. Assim, como termo fundante da sua relação com a utopia, o kairós descobre seu propósito essencial na construção histórica de partido de trabalhadores.
Pensar a utopia significa para o kairós, de um lado, examinar a solidez do edifício da utopia, os conceitos ontológicos que tornam possível a atividade espiritual do ser humano: o ser e a essência, e definir segundo o seu estatuto ontológico, as condições de exercício dessa construção, sua razão e justiça. Nesse sentido, a utopia, em sua acepção mais ampla, leva o kairós a ser um kairós da utopia. Por isso, podemos afirmar que a relação entre utopia e kairós apresenta uma forma dialética, pois nela a utopia e o kairós invertem, no movimento do conceito, o papel de termo fundante da relação.
Essa estrutura dialética caracteriza a tensão histórica entre utopia e kairós que é um paradoxo tanto no ato de pensar a fé cristã, quanto na intenção de ser socialista. Ela obriga o kairós, ao constituir-se como termo fundante da sua relação com a utopia, a passar além das esferas de interesse dentro das quais ocorrem os momentos diversos do pensar utópico. Assim, o lugar da tensão dialética entre utopia e kairós, nesse impulso de remoer as origens, encontrará satisfação no kairós, enquanto história que conhece diferentes tentativas de superação dessa tensão, que está no começo e no anunciado ato final do destino histórico. Existe assim uma regência da utopia pelo kairós, não só simbólica, mas política. É o de tornar-se mundo pelo advento daquilo que é novo na história, da qual ele é a coroa. Donde, a inevitabilidade da pergunta pelo futuro, inscrita como destino e como condição de sobrevivência de um partido de trabalhadores. Portanto, a situação do kairós na utopia socialista nos convida a conviver com essa tensão que assume feições diversas ao ser o kairós confrontado com os universos utópicos que constituem a realidade complexa da utopia: particulares, mas universal. Talvez, por isso, o futuro do kairós e o da existência de um partido de trabalhadores permaneçam problematizados: o kairós vive essa tensão e é a partir dele que se articulam as questões fundamentais do futuro do movimento socialista no alvorecer do novo milênio.
- A primeira práxis do cristianismo social dentro do Partido dos Trabalhadores foi a crítica no sentido original da justificação, enquanto integridade que conduz à dúvida tanto sobre a utopia, como sobre o próprio kairós. No caso da utopia essa tarefa se desenvolveu no terreno da tensão dialética da qual é o kairós que deveria refletir criticamente sobre a própria utopia. Nos últimos anos, o paradoxo dessa situação voltou a se manifestar dentro do PT, quando setores do cristianismo social, que se opunham à política majoritária, disseram que é o kairós que deve julgar a utopia. Essa pretensão foi condenada em razão da relatividade dos paradigmas que possibilitavam o kairós e que se dissolviam na pluralidade das utopias. Tratava-se, porém, de uma pluralidade quantitativa no espaço e no tempo históricos, mas qualitativamente relativas. Dessa maneira, a reflexão sobre a utopia colocou o kairós em face de um questionamento: o problema da unidade e diversidade do ser socialista, que está presente no fundamento das diferentes versões do viver utópico e político dentro do PT.
- A segunda práxis do cristianismo social no PT foi a busca do fundamento da unidade da cultura socialista no PT, que só poderia estar na ontologia, enquanto ontologia do ser humano. Para esse fundamento refluiu a interrogação sobre a unidade ontológica da cultura socialista e a questão se formulou nesses termos: qual é o princípio antropológico daquilo que a cultura socialista produz? É certo que o humano cria seu próprio universo de significação, que é a cultura, e é nela que vamos encontrar o ato e a forma da nossa expressividade. Dessa maneira, a reflexão do cristianismo social sobre a cultura socialista no Partido dos Trabalhadores consistiu em assegurar no ato dessa produção petista a unidade que só poderia ser pensada em oposição ao fluxo do tempo e à dispersão do espaço onde a experiência se situava. Essa intuição já tinha inaugurado o pensar da Teologia da Libertação na America Latina. Donde, a unidade ontológica da cultura socialista, aquilo que é inteligivel no seu ser, reside na relação dialética entre a estrutura transcendental da pessoa e aquilo que é ideal no que a cultura de trabalhadores e excluídos produz, que se manifesta na forma transtemporal e transespacial que lhe dá perenidade simbólica. O próprio cristianismo social apresentou-se, então, como paradigma da utilidade ontológica da cultura socialista, pois nela foi tematizada a transcendência da ação.
Dessa maneira, para os cristãos sociais, a unidade passou a ser defendida como uma unidade na diferença e por isso analética,[1] que permitiria aos trabalhadores e socialistas realizarem-se na pluralidade das culturas brasileiras e na profusão de formas por elas produzidas. Foi, pois, a não compreensão do caráter analético da unidade da cultura socialista que deu origem à não compreensão dos universos culturais petistas. Falar do caráter analético dos universos culturais petistas significava afirmar a exterioridade: superar a totalidade a partir da transcendentalidade interna ou da exterioridade daquele que nunca esteve dentro das tendências petistas. O caráter analético é crítico porque leva à superação da dialética. Afirmar a exterioridade da militância partidária, dos movimentos sociais, realizaria o que era aparentemente impossível para o partido, imprevisível para a totalidade, aquilo que deveria surgir a partir da liberdade não condicionada, revolucionária.
Como a analética é prática, torna-se uma pedagogia e uma política de massas, que trabalham para a realização da alteridade humana, alteridade que nunca é solitária, mas a epifania de todos os trabalhadores e excluídos. E essa analética, então, leva à questão dos universos culturais brasileiros, ao problema das categorias antropológicas que exprimem as relações de trabalhadores e socialistas com a realidade, no âmbito da sua abertura transcendental ao ser brasileiro. A diferenciação dessas categorias obedece à diferenciação do ser na realidade e incide na diferenciação dos modos de relação do trabalhador e socialista com o ser humano brasileiro, de maneira que a categoria de objetividade delimita o campo da relação de produção enquanto campo da relação teórica e campo de relação da práxis. O entrelaçamento dessas relações no existir histórico do PT deveria definir a cultura socialista no partido, pois as diferentes correntes de um partido de trabalhadores como seres em relação são, ontologicamente, seres da cultura socialista, assim como a realidade é, para eles, uma realidade da cultura socialista. A unidade analética da cultura socialista em um partido de trabalhadores deve ser pensada segundo a analogia de atribuição, ordenada em direção à inteligibilidade,[2] porque a determinação dessa direção orienta a discussão sobre a relação entre teoria e práxis.
- A terceira práxis do cristianismo social no Partido dos Trabalhadores teve em vista o estatuto ontológico que rege a atividade cultural socialista do ser petista. Esse estatuto ontológico exprime-se como unidade da cultura socialista que encontra sua efetivação nos diversos ciclos da história de um partido de trabalhadores. Mas, ao colocar em evidência a dimensão da realização do brasileiro, o cristianismo social descobriu o caráter normativo que lhe é inerente. E como a ontologia prolonga-se numa ética da cultura, o brasileiro fundou o mundo da cultura brasileira tendo em vista o seu próprio bem. Por isso, o ético não deve ser entendido como um predicado externo à cultura: os dois conceitos tornam-se complementares porque a produção encontra seu lugar no espaço daquilo que é morada do ser humano.
Desde o momento em que o campo simbólico da cultura socialista dilatou-se no espaço universal da razão, os limites do ethos tradicional tornaram-se estreitos e coube ao cristianismo social a proposta de um outro ethos, a ética cristã. Por isso, o cristianismo social foi o produtor dessa instauração no PT. O roteiro da ética na cultura petista acompanhou o roteiro seguido pelo pensamento cristão. Ele reflete as dificuldades da cultura petista nessa hora de crise de identidade que é vivida como crise da cultura socialista, mas também como crise ética. Mas tal crise tem um paradigma que traduz este momento especial: esta crise é uma enfermidade da modernidade capitalista. Diante dessa crise, o cristianismo social tinha dois caminhos a seguir: participar do fechamento do sistema sobre si mesmo, favorecendo a totalização do sistema, e cumprir a função de ocultar a dominação. Isto significaria desistorificar a realidade social, desdialetizar um processo que teve gênese e dinâmica próprias. Tal divinização levaria à fetichização, que consiste na identificação da estrutura atual com a vontade divina. Outro caminho seria ver a própria fé cristã como clamor daquele que está excluído, e que precisa de fé para abandonar as ilusões sobre sua própria situação. Por isso, a crítica do cristianismo social no Partido dos Trabalhadores levantou a anterioridade da responsabilidade prática que se tem com o excluído dentro do sistema capitalista brasileiro. Essa anterioridade parte da exigência de que o cristão social deve transcender o sistema vigente de dominação e ver como responsabilidade sua o serviço ao excluído. A fé cristã nesse caso é a instauração de uma nova práxis. E o fato de que a práxis cristã possa chegar ao poder e tornar-se superestrutural não nega o fato de que a crítica profética continue a irromper na história.
Essa presença de responsabilidade social com o excluído mostra a vigência do clamor crítico e autônomo e funciona como freio das pressões alienantes e superestruturais. Por isso, consciente de seu papel de profeta, dom Hélder Câmara, um dos pais do cristianismo social no país, disse que quando falava da pobreza todos o chamavam de cristão, “mas quando eu falo da causa da pobreza, me chamam de comunista. Quando eu falo que os ricos devem ajudar os pobres, me chamam de santo, mas quando eu falo que os pobres têm que lutar pelos seus direitos, me chamam de subversivo”.[3]
Assim, a crítica do cristianismo social desmitifica para que as pessoas pensem, para que atuem e transformem suas realidades como seres humanos conscientes. Um exemplo dessa crítica cristã social à crise e enfermidade do capitalismo brasileiro, em nossa história recente, foi a decisão da CNBB em criar o Grito dos Excluídos, fazendo um paralelo com o Grito do Ipiranga, de Dom Pedro I, que teria sido um grito de “liberdade ou morte”. A Igreja católica, com o apoio de entidades como a CUT e o MST, fez com que o Sete de Setembro passasse a ser comemorado com mobilizações centradas nas reivindicações dos trabalhadores. Da mesma forma, foram os temas sociais da Campanha da Fraternidade, que ainda no governo do presidente Fernando Henrique Cardoso perguntou: “Desemprego, por quê?”, chamando assim a atenção para um problema estrutural da sociedade brasileira. Naquele momento o país tinha um desempregado em cada cinco trabalhadores brasileiros. O índice na grande São Paulo, segundo o DIEESE, era de 18% da mão-de-obra. E o índice nacional aproximava-se dos 8%, e o próprio índice oficial falava de aproximadamente 10 milhões de trabalhadores desempregados. Isso, sem levar em conta que os novos trabalhadores, os jovens que deveriam entrar anualmente no mercado de trabalho eram cerca de dois milhões. O país, no entanto, só conseguia criar quinhentos mil novos empregos por ano.
Ora, o clamor crítico e autônomo procede porque em nosso país o cristianismo é a primeira consciência que a pessoa tem de si mesmo, e as relações morais são relações de formatação cristã. Tal realidade, de forma paradoxal, se expressa também no cristianismo conservador e fundamentalista. Isto explica porque as massas, enquanto oprimidas e passivas, vivem a ideologia das classes dominantes e aceitam as respostas que o sistema oferece de forma ambígua para as suas necessidades. Ao aceitar esse cristianismo superestrutural das classes dominantes, enquanto rito simbólico do triunfo dos dominadores, as massas se colocam sob resignação passiva. Por isso, é tarefa dos socialistas verificar a realidade e desmascarar a santidade da auto-alienação. Devem, sem dúvida, fazer a crítica do céu para que se transforme em crítica da terra. Mas, também procede a crítica que o cristianismo social faz, quando diz que o ateísmo, por negar a necessidade da essencialidade perde sentido, pois, ao negar afirma, através da negação, a existência do humano. Ora, o socialismo não necessita dessa mediação, já que surgiu como consciência sensível, teórica e prática do ser humano e da natureza como essência. O socialismo, então, deve fazer a negação da negação da emancipação e da recuperação humana, enquanto princípio dinâmico, embora não seja nem o fim do desenvolvimento humano, nem a forma última da sociedade humana.
Diante disso, os cristãos sociais precisam entender que sua militância faz parte de uma luta mais ampla, onde o cristianismo infraestrutural é aliado estratégico de trabalhadores e socialistas e que o ateísmo, por isso, é ocultamento, pois fecha as portas ao aliado estratégico, ao cristianismo, que se fará presente enquanto houver seres humanos obstinados pela responsabilidade diante do excluído, sentido incondicional de justiça, esperança de um novo kairós. Assim, para o cristão social a história brasileira e nela as possibilidades de um partido de trabalhadores são uma produção das massas em movimento, a partir da ação de milhões de trabalhadores e excluídos, que transforma, cria uma nova cultura e produz o nascimento de uma nova sociedade. É num processo permanente que os trabalhadores e seus partidos constróem sua essencialidade: do ser humano em direção ao ser humano. Mas, o êxito nesse processo depende das condições de possibilidade, donde é impossível separar teoria e práxis. Por isso, os cristãos sociais num partido de trabalhadores devem propor a integração dos princípios na escolha de fins que permitam levar à práxis de libertação aqueles que estão excluídos. E diante da crise, o cristianismo social deve chamar pessoas e comunidades à co-responsabilidade pela construção de uma nação com identidade própria, e estimular os cristãos, em nome da sua fé, a se engajaram na política, pois vale a pena servir a uma causa que ultrapassa o momento da crise: tal política é um exercício de amor.
Jorge Pinheiro, Teologia e política, Paul Tillich, Enrique Dussel e a experiência brasileira, São Paulo, Fonte Editorial, 2005.
Referências bibliográficas
[1] Enrique Dussel, “Para una fundamentación analéctica de la liberación latinoamericana” (Apéndice 4), Método para una Filosofía de la Liberación, Salamanca, Ediciones Sígueme, 1974, p. 281.
[2] Gildardo Díaz Novoa, “O Método Analético”, in Enrique Dussel en la Filosofía Latinoamericana y frente a la Filosofía Eurocéntrica, Valladolid, 2001, pp. 151-152.
[3] Frei Betto, “Política e religião”, João Pessoa, U. Federal da Paraíba, Campus I, (03.02.1999). WEB: www.dhnet.org.br/direitos/militantes/freibetto (Acesso 06.12.2005).
mercredi 29 décembre 2010
Um canto de vitória
Sou um pastor. Essa pequena palavra define o chamado: o serviço a Deus no cuidado de suas ovelhas. Tudo o mais é um acréscimo, importante, mas não essencial. Deus me deu dons, capacidades, que devo e posso exercer para enriquecer o meu chamado, o exercício do magistério teológico, o amor pelo estudo e pela pesquisa acadêmica, mas isso não é o essencial.
Hoje é 29 de dezembro de 2010 e são 4h51 da manhã. Deus falou, eu ouvi, conversamos. Estou diante do computador escrevendo algo da conversa.
O ministério pastoral é o exercício de um chamado de Deus. É um privilégio, é um desafio, é uma cruz.
Às vezes, com o correr dos anos, nós pastores nos esquecemos de que em algum momento fomos escolhidos por Deus para exercer esse ministério tão especial. Talvez o mais especial entregue por Deus aos homens. Esquecemos do chamado e o pastorado vira profissão, apenas função. E nesse momento e a partir daí transforma-se em peso.
Foi sobre isso que conversamos nessa madrugada. Sou um privilegiado e esse privilégio pode ser compreendido naquele convite solene que Deus faz em Isaías 55.6-13. Buscai ao Senhor. Ridderbos, em seu comentário, diz que a expressão significa o movimento do coração, com suas afeições e expressões, na direção do Senhor. Esse é o privilégio: ser chamado tem um correlato magnífico, a busca apaixonada, movimento do coração em direção ao Eterno, que define afeições e expressões do ser pastor.
Mas é um desafio, desafio de ser sábio no serviço. E a primeira característica desse desafio é a constância. E aí me remeto ao livro de Provérbios e vejo essa constância no serviço como ação fraterna, amor, amizade verdadeira pelas ovelhas. Sabemos que quando as coisas caminham bem todos têm amigos, mas o livro de Provérbios (18.24) nos diz que existem amigos mais chegados que um irmão, que amam a qualquer tempo (17.17). Esse é o desafio. Você foi chamado para cuidar de gente, sempre.
E, sem dúvida, é cruz. E é cruz porque é Deus quem escolhe a bebida e o cálice. Oramos... Senhor afasta de mim este cálice... Mas seja feita a Tua vontade. E o cálice é entregue e somos convidados a beber dele até a última gota. E aí a vontade de desistir nubla o movimento do coração, com suas afeições e expressões na direção do Senhor.
Mas nessa conversa na madrugada, quando expunha dores, fraquezas e sofrimentos, Ele remeteu meu coração a um trecho do apóstolo Paulo na sua primeira carta aos Coríntios (15.20-28), as consequências da ressurreição de Cristo. É isso mesmo: Cristo ressurgiu dos mortos! A cruz pode ser cálice amargo, mas foi e é caminho de obediência. E a ressurreição de Cristo é para a vida que não conhece a morte e, nesse sentido, segundo Morris, Ele é o primeiro, o precursor de todos os que haveriam de estar nele.
Este canto é o testemunho de uma conversa, de um momento de oração, onde Deus falou ao meu coração e tive consciência de que o chamado é para a vida, durante a vida, toda ela, não um pedaço. Por isso, meu canto de vitória sobre a morte, para além de qualquer sentido apenas material. Agradeço a Deus. E, assim, retorno ao primeiro parágrafo:
Sou um pastor. Essa pequena palavra define o chamado: o serviço a Deus no cuidado de suas ovelhas. Tudo o mais é um acréscimo, importante, mas não essencial.
Referências bibliográficas
Kidner, Derek, Provérbios, introdução e comentário, São Paulo, Ed. Vida Nova, 1992, p. 43.
Morris, Leon, ICoríntios, introdução e comentário, São Paulo, Ed. Vida Nova, 1997, p. 171.
Ridderbos, J., Isaías, introdução e comentário, São Paulo, Ed. Vida Nova, 1995, p. 454.
mardi 28 décembre 2010
lundi 27 décembre 2010
O tempo das cerejas
Ou, para que não sejamos covardes!
Já em São Paulo, cometi um crime. Não, não foi um crime, foi uma dilaceração. Peguei todas as notas de compras da viagem, cada papelito e rasguei e joguei no lixo. E por que foi um ato tresloucado? Porque a minha memória é construída de emoções, sensações, racionalizações e muitos, mas muitos pequenos papéis de viagens. E talvez porque uma tragédia nunca se faça sozinha, peguei todos os meus cartazes e notas e papéis de minha viagem a Cuba e também joguei fora. Foram-se passando as horas e uma angústia foi me dominando. Um sentimento de ausência, de perda, uma tristeza louca por estar jogando fora um pedaço de mim. Na verdade um pedaço de minhas memórias. Sou um escritor de pedaços: cada notinha, ainda que seja de compra num free shop tem um valor enorme, maior do que o preço do produto, que certamente já foi consumido. Para minha alegria, a lata de lixo, que não é de lata mas de plástico, fica da área de serviço da casa. E agora, hoje, eu tenho uma preciosidade, um montão de papel picado e cartazes rasgados, não sujos, mas empoeirados, meio amassados, que vou guardar e pesquisar como um cientista louco por palavras sem sentido.
É isso mesmo, gosto de palavras, mas não gosto da palavra dada, entregue, pronunciada. Gosto da palavra destruída de sentido, desmantelada, que apresenta novos significados, que se torna signo desconhecido, apontando realidades que só existem depois, ao final. É por isso que sofro com aquele revisor, que indevidamente conserta palavras que desejo desconsertadas.
Escrevi: “em Santiago fixo irado”. E disse para a Naira, minha mulher, algum maledetto vai reescrever “em Santiago fico irado”. E fazer isso será um absurdo porque “fico” é do verbo ficar e “fixo” é do verbo fixar. Escrevo “em Santiago fixo irado” porque na minha época houve um guerrilheiro que se chamava Tiro-fijo, em espanhol, e que traduzido quer dizer “tiro certeiro”, mas que eu sempre li e entendi como “tiro-fixo”, porque debruçado na mira, como amante sobre sua amada, era mortal. Só quem sofreu com os papéis lançados na lata de plástico do lixo pode dizer se eu em Santiago fico irado. Não fico irado não, fixo irado.
Desmontei a palavra, depois, remontei-a conforme a minha estética precária exige. É isso mesmo, a estética exige, tem jeitos que ela mesma define, é uma senhora brava, uma matrona cheia de manias. Mas a minha é precária, pois no diálogo com essa matrona, ela entra com sua autoridade e eu com minha fragilidade de escritor. E, então, se dirá: mas, e o leitor?
Bem, o leitor é o grande construtor da realidade estética do texto. E repare por quê! O autor é o momento da luta com o caos, ele criou seu texto a partir de emoções, sensações, racionalizações e muitos, mas muitos pequenos papéis de viagens. E da dilaceração permanente, contínua, de cada palavra, de cada sentença, tirou delas o sentido esperado. Fez do esperado, desespero. Criou sentidos que só pertencem a ele, como o exemplo do fixo irado. Mas, o leitor é o ato de liberdade que possibilita a todos os sentidos e a qualquer sentido ter de fato sentido. Por isso quando eu digo em Santiago fixo irado, você vai convidar a matrona para a cama, vai dormir com ela, nem que seja só para se aquecer. De todas as maneiras, ela vai se adocicar diante da sua ternura e abrir possibilidades novas que o autor nunca, jamais, tinha pensado. E o leitor tem esse direito, porque ao possuir o texto vai fazê-lo dele, é quem de fato lhe dá vida.
Mas vamos falar agora, um pouco de minha viagem a Santiago, que posso traduzir como uma volta ao local do crime. Crime meu e crime cometido contra milhares e eu aí incluído. Crime contra a democracia, a liberdade e o pensamento.
Naira comprou cerejas numa banca de frutas em frente à Universidade do Chile. É tempo de cerejas no Chile e elas são tão doces que doem na garganta. Tinha ido visitar a minha antiga universidade e cultivar lembranças. Geralmente se cultiva lembranças como frutas, é preciso terra. Donde a necessidade de voltar ao local do crime, de sentir os pés sobre a terra, respirar o cheiro do lugar, ouvir sons que estão adormecidos na memória. Por isso, caminhamos degustando cada cereja, porque as frutas já não eram frutas apenas, mas o açúcar do tempo das cerejas.
Veja como é estranho. “O tempo das cerejas” é uma canção de dois franceses, Jean Baptist Clément e Antoine Renard. Foi escrita e musicada em 1866, antes de explodir a Comuna de Paris, uma pequena, mas grande revolução que durou apenas três meses, de 26 de março a 28 de maio de 1871. Mudou a maneira de se pensar o socialismo. Marx, por exemplo, ficou extasiado diante daquela experiência do proletariado. O tempo das cerejas não é uma canção revolucionária, mas de amor. A última estrofe foi agregada posteriormente e dedicada a uma enfermeira morta em defesa da Comuna. Essa estrofe foi escrita debaixo do fogo da semana sangrenta, quando milhares de combatentes da Comuna foram massacrados. “Le temps des cerises”, que você pode ouvir e baixar na internet, me lembra o Hotel Residencial Londres, que fica na calle Londres, em Santiago. O prédio foi construído entre 1923 e 1929, e em 1964 transformado em hotel por Ilic e Adela Dumand. E deu um charme especial ao bairro Paris-Londres no centro da cidade. Na calle Londres, no Hotel Residencial Londres fui preso em setembro de 1973, no terceiro dia do golpe militar.
O tempo das cerejas entregou a cabeça da mulher
serviu o sangue da virgem num cálice
cada gole tem o sabor da vida derramada
mochileiros franceses, macho, fêmea e filhote, dizem à demain para as cerejeiras
a rua está perfumada
a alameda é atravessada.
Para quem gosta de palavras é muito difícil deixar Gabriela Mistral e Pablo Neruda de lado. São monstros sagrados da literatura universal. Neruda tinha uma mania que eu também tenho, gostava de casas. Casa para ele não era abrigo ou lugar de morar. Era navio, lugar de memórias e casulo para amar. Por isso, mandou construir La Chascona, a desgrenhada, que foi a casa dele com a terceira companheira, Matilde Urrutia. É bom lembrar que Matilde tinha cabelos vermelhos. E eu, numa homenagem transversal ao poeta, também cheguei lá de cabelos vermelhos. E me senti muito bem, ruivo, a papear com Paloma no jardim. Ricardo Eliécer Neftalí Reyes Basoalto foi um homem de muitas faces, mas a que mais admiro, além daquela de poeta, foi a de militante comunista. Estudou pedagogia, foi diplomata, senador, prêmio Nobel de literatura, mas nós nos lembramos dele como Neruda, o poeta comunista.
De 1953 até 1973, viveu em La Chascona. Morreu aí, junto com a democracia, a liberdade e o pensamento. La Chascona, que agora é história, está ao lado do Cerro San Cristóbal e foi construída em níveis. Um jardim serpenteia a casa e cria hoje paisagens propícias ao cultivo de memórias. Nesse jardim, eu e Paloma descansamos, olhando para a sombra das pequenas árvores, quietos, silentes, vendo turistas passantes e Naira desaparecida a fotografar.
O tempo das cerejas fugirá para outras bandas
Miró mia nas minhas lembranças
rabisco no La Chascona ao poeta
bardo brado
por onde anda a ode?
flagelo e sal
sangue e semente
formigas desfilam sobre o açúcar derramado
você e eu descarrilados
por poemar instantes
beleza é água na garganta seca.
Você já prestou atenção no caminhar? É diferente caminhar em terra batida, em terra molhada, na grama. São apenas duas ruas de paralelepípedos e mansões dos anos 1920, uma se chama Paris, como aquela da Comuna, e a outra Londres, como aquela de Cromwell e seus republicanos. De manhã, caminhar em ruas de paralelepípedos nos dá a sensação de segurança e desequilíbrio. Você sai do asfalto, do cimento e vai devagar a pisar paralelepípedos. Sinta com atenção. Veja a diferença. Sentiu, Naira? Veja como é gostoso, Paloma? Aqui as ruas não são apenas belas, estão paradas no tempo, frescas, sombreadas. Aqui não há lojas. Há pequenos hotéis, escolas e esse café maneiro ao lado do hotel. Com uma praça e tudo, à moda antiga, um pedaço da Europa no meio de Santiago.
Mas como sonho e pesadelo são estados do adormecido, em frente ao meu Hotel Residencial Londres há um prédio pichado “aqui torturaram e assassinaram”. E quando meio dormindo, meio acordado, tentava descobrir o que estava lendo, um cicerone não convidado se aproximou e disse: “Esta era uma das muitas casas onde a ditadura torturava e assassinava pessoas”. Conversamos poucas frases sobre violência e crimes políticos, e tráfico de drogas no Brasil, mas rapidamente meu interlocutor escafedeu-se.
Essas ruas de Santiago, manchadas de sangue, me remetem a um militante, homem de fé, Martin Luther King Jr, herói dos trezentos milhões de negros espalhados pelo mundo e do novo presidente estadunidense. Mas tudo começou com Rosa Parks. Ou como contou o jornal Versus:
1955. Uma costureira negra, dirigindo-se do trabalho para casa em Montgomery, Alabama, recebeu ordens de um motorista branco para que se transferisse para a parte de trás do ônibus. Rosa Parks estava sentada, em um dos bancos da frente, e simplesmente recusou-se a mudar de lugar. Foi presa por violação às leis de segregação do Alabama. A comunidade negra enfureceu-se. Os negros disseram que já vinham sendo insultados há demasiado tempo por motoristas de ônibus brancos, e declararam que não tomariam mais qualquer ônibus até que a segregação fosse eliminada e certo número de motoristas negros fosse admitido.
Liderados pelo jovem ministro batista Martin Luther King, os negros de Montgomery simplesmente boicotaram os ônibus até que a empresa, quase à bancarrota, submeteu-se às exigências. Em breve, os negros de muitas cidades do Sul recorreram à técnica do boicote para conseguir melhor tratamento nas lojas e outras casas comerciais, e para assegurar melhor emprego para sua gente. Se os autores do boicote usavam a não-violência, eram ao mesmo tempo militantes e obstinados. Certamente, tiveram importância na obtenção de certas mudanças que o Sul dos Estados Unidos, com sua veemente resistência a toda e qualquer transformação, consideraria revolucionária.
Também foi em 1955 que King finalizou sua tese A Comparison of the Conceptions of God in the Thinking of Paul Tillich and Henry Nelson Wieman. King conhecia o pensamento do teólogo teuto-estadunidense e, por isso, sua ação militante repousou em parte sobre o pensamento socialista de Tillich.
Tanto para King como para Tillich, o poder autêntico era a verdade. Entretanto, esta verdade não seria norma abstrata que se impõe à realidade. Seria, sobretudo, a expressão concreta da tendência última do real. A verdade só teria poder se fosse uma tendência de vida, de uma sociedade, a verdade de um grupo que detém, interiormente, na sociedade, o poder.
Teoria e prática se fizeram carne e sangue na vida de King e, no dia 4 de abril de 1968, quando preparava uma marcha dos negros na cidade de Memphis, Tennessee, foi atingido por tiros. Anos depois, o jornal Versus orou pelo companheiro abatido:
"Desde a época em que chefiou o boicote dos ônibus em Montgomery, inúmeras foram as ameaças à sua vida. Foi publicamente denunciado e alvo de abjetos epítetos. O próprio clima tornou-se tão carregado que, considerando-se agora as coisas, percebe-se que um fim violento para o grande líder negro era inevitável. Todavia, a América branca não podia antecipar a reação da América negra ao assassinato a sangue frio de um de seus líderes mais poderosos. Vários dias de desordens, incêndios e pilhagens em muitas cidades foram a louca manifestação de um amargo desespero e frustração. Mesmo os que prantearam a morte de Martin Luther King sem qualquer mostra exterior de emoção revelaram-se tão sensíveis no apreço de seu significado quanto aqueles cuja reação foi violenta. Descanse em paz, Dr. Martin Luther King!"
Tanto para Tillich como para King, a conquista violenta dos instrumentos de poder social não decidia a vitória de uma revolução. Isso só aconteceria quando se estabelecesse uma nova estrutura de poder, amplamente reconhecida. Seria um erro pensar, afirmava Tillich, que amparar a revolução no aparelho do poder garantiria a vitória. O aparelho do poder deveria ser renovado constantemente a partir das forças da sociedade, forças pessoais, materiais e ideais. Caso contrário, a revolução ruiria, mesmo quando os meios técnicos permitissem que se impusesse por tempo maior àquele de épocas não desenvolvidas.
Mas do que palavras, a militância política de King traduziu a compreensão de que há uma dialética de ferro entre verdade e poder. E que o poder verdadeiro nasce da verdade última, aquela que transcende o momento presente e permanece no coração e mente dos excluídos. Essa compreensão, mesmo quando não é corretamente traduzida pelo grupo que chega ao poder, continua a marcar o horizonte último da ética socialista.
Londres-fixo
aranhas sopradas pelo vento norte
lugar de sonhos desperdiçados
picadas na carne nova
matinais de 11 de setembro
o azul cede ao cinza
morcegos desconstroem flores
palavras duras decretam o fim da esperança
olhos mareados
a porta esmurrada
a fronte torturada
o corpo desfilado
olho perdido na esquina.
Deixo para trás Paris-Londres, olho a igreja de San Francisco, a construção mais antiga da cidade. Caminho algumas quadras na sequidão sob um sol de trinta e poucos graus pela principal avenida da cidade, que a corta de leste a oeste, e se chama Libertador Bernardo O’Higgins, mas é conhecida como Alameda apenas. Ali perto, a poucas quadras, há um palácio, o La Moneda.
E me lembro de um político, Salvador Allende, que depois de três derrotas, veio a vencer as eleições presidenciais em 1970. Governou com uma frente popular capitaneada por socialistas e comunistas. Acreditava que poderia levar o Chile ao socialismo através do processo democrático, sem enfrentamentos violentos. Mas isso não aconteceu. E como a direita e os Estados Unidos viam Allende como o príncipe das trevas, todos os setores de oposição, inclusive os democratas cristãos, se organizaram e com apoio dos militares, se lançaram ao golpe. Allende foi derrubado. O Palácio La Moneda e fábricas, onde trabalhadores organizavam a resistência, foram bombardeados. Foi um tempo de chacina.
Londres-fixo
nem Caetano
nem Gil
é ilha no nada
lagartos da inexistência
tristeza, espanto, perplexidade
Tiago não tem salvador
coturnos abundam!
Os demônios estão mortos. Curto a cidade limpa, com metrô e prédios modernos. Metrópole neoliberal, segundo o modelo dos Chicago Boys, liderados pelo economista Milton Friedman. Mas, permanece a sensação de que caminhamos sobre cadáveres que não foram sepultados com dignidade. Ignavi ne simus.
Jorge Pinheiro, "Tempo de cerejas", capítulo do livro Teologia da Vida, São Paulo, Fonte Editorial, 2009.
Já em São Paulo, cometi um crime. Não, não foi um crime, foi uma dilaceração. Peguei todas as notas de compras da viagem, cada papelito e rasguei e joguei no lixo. E por que foi um ato tresloucado? Porque a minha memória é construída de emoções, sensações, racionalizações e muitos, mas muitos pequenos papéis de viagens. E talvez porque uma tragédia nunca se faça sozinha, peguei todos os meus cartazes e notas e papéis de minha viagem a Cuba e também joguei fora. Foram-se passando as horas e uma angústia foi me dominando. Um sentimento de ausência, de perda, uma tristeza louca por estar jogando fora um pedaço de mim. Na verdade um pedaço de minhas memórias. Sou um escritor de pedaços: cada notinha, ainda que seja de compra num free shop tem um valor enorme, maior do que o preço do produto, que certamente já foi consumido. Para minha alegria, a lata de lixo, que não é de lata mas de plástico, fica da área de serviço da casa. E agora, hoje, eu tenho uma preciosidade, um montão de papel picado e cartazes rasgados, não sujos, mas empoeirados, meio amassados, que vou guardar e pesquisar como um cientista louco por palavras sem sentido.
É isso mesmo, gosto de palavras, mas não gosto da palavra dada, entregue, pronunciada. Gosto da palavra destruída de sentido, desmantelada, que apresenta novos significados, que se torna signo desconhecido, apontando realidades que só existem depois, ao final. É por isso que sofro com aquele revisor, que indevidamente conserta palavras que desejo desconsertadas.
Escrevi: “em Santiago fixo irado”. E disse para a Naira, minha mulher, algum maledetto vai reescrever “em Santiago fico irado”. E fazer isso será um absurdo porque “fico” é do verbo ficar e “fixo” é do verbo fixar. Escrevo “em Santiago fixo irado” porque na minha época houve um guerrilheiro que se chamava Tiro-fijo, em espanhol, e que traduzido quer dizer “tiro certeiro”, mas que eu sempre li e entendi como “tiro-fixo”, porque debruçado na mira, como amante sobre sua amada, era mortal. Só quem sofreu com os papéis lançados na lata de plástico do lixo pode dizer se eu em Santiago fico irado. Não fico irado não, fixo irado.
Desmontei a palavra, depois, remontei-a conforme a minha estética precária exige. É isso mesmo, a estética exige, tem jeitos que ela mesma define, é uma senhora brava, uma matrona cheia de manias. Mas a minha é precária, pois no diálogo com essa matrona, ela entra com sua autoridade e eu com minha fragilidade de escritor. E, então, se dirá: mas, e o leitor?
Bem, o leitor é o grande construtor da realidade estética do texto. E repare por quê! O autor é o momento da luta com o caos, ele criou seu texto a partir de emoções, sensações, racionalizações e muitos, mas muitos pequenos papéis de viagens. E da dilaceração permanente, contínua, de cada palavra, de cada sentença, tirou delas o sentido esperado. Fez do esperado, desespero. Criou sentidos que só pertencem a ele, como o exemplo do fixo irado. Mas, o leitor é o ato de liberdade que possibilita a todos os sentidos e a qualquer sentido ter de fato sentido. Por isso quando eu digo em Santiago fixo irado, você vai convidar a matrona para a cama, vai dormir com ela, nem que seja só para se aquecer. De todas as maneiras, ela vai se adocicar diante da sua ternura e abrir possibilidades novas que o autor nunca, jamais, tinha pensado. E o leitor tem esse direito, porque ao possuir o texto vai fazê-lo dele, é quem de fato lhe dá vida.
Mas vamos falar agora, um pouco de minha viagem a Santiago, que posso traduzir como uma volta ao local do crime. Crime meu e crime cometido contra milhares e eu aí incluído. Crime contra a democracia, a liberdade e o pensamento.
Naira comprou cerejas numa banca de frutas em frente à Universidade do Chile. É tempo de cerejas no Chile e elas são tão doces que doem na garganta. Tinha ido visitar a minha antiga universidade e cultivar lembranças. Geralmente se cultiva lembranças como frutas, é preciso terra. Donde a necessidade de voltar ao local do crime, de sentir os pés sobre a terra, respirar o cheiro do lugar, ouvir sons que estão adormecidos na memória. Por isso, caminhamos degustando cada cereja, porque as frutas já não eram frutas apenas, mas o açúcar do tempo das cerejas.
Veja como é estranho. “O tempo das cerejas” é uma canção de dois franceses, Jean Baptist Clément e Antoine Renard. Foi escrita e musicada em 1866, antes de explodir a Comuna de Paris, uma pequena, mas grande revolução que durou apenas três meses, de 26 de março a 28 de maio de 1871. Mudou a maneira de se pensar o socialismo. Marx, por exemplo, ficou extasiado diante daquela experiência do proletariado. O tempo das cerejas não é uma canção revolucionária, mas de amor. A última estrofe foi agregada posteriormente e dedicada a uma enfermeira morta em defesa da Comuna. Essa estrofe foi escrita debaixo do fogo da semana sangrenta, quando milhares de combatentes da Comuna foram massacrados. “Le temps des cerises”, que você pode ouvir e baixar na internet, me lembra o Hotel Residencial Londres, que fica na calle Londres, em Santiago. O prédio foi construído entre 1923 e 1929, e em 1964 transformado em hotel por Ilic e Adela Dumand. E deu um charme especial ao bairro Paris-Londres no centro da cidade. Na calle Londres, no Hotel Residencial Londres fui preso em setembro de 1973, no terceiro dia do golpe militar.
O tempo das cerejas entregou a cabeça da mulher
serviu o sangue da virgem num cálice
cada gole tem o sabor da vida derramada
mochileiros franceses, macho, fêmea e filhote, dizem à demain para as cerejeiras
a rua está perfumada
a alameda é atravessada.
Para quem gosta de palavras é muito difícil deixar Gabriela Mistral e Pablo Neruda de lado. São monstros sagrados da literatura universal. Neruda tinha uma mania que eu também tenho, gostava de casas. Casa para ele não era abrigo ou lugar de morar. Era navio, lugar de memórias e casulo para amar. Por isso, mandou construir La Chascona, a desgrenhada, que foi a casa dele com a terceira companheira, Matilde Urrutia. É bom lembrar que Matilde tinha cabelos vermelhos. E eu, numa homenagem transversal ao poeta, também cheguei lá de cabelos vermelhos. E me senti muito bem, ruivo, a papear com Paloma no jardim. Ricardo Eliécer Neftalí Reyes Basoalto foi um homem de muitas faces, mas a que mais admiro, além daquela de poeta, foi a de militante comunista. Estudou pedagogia, foi diplomata, senador, prêmio Nobel de literatura, mas nós nos lembramos dele como Neruda, o poeta comunista.
De 1953 até 1973, viveu em La Chascona. Morreu aí, junto com a democracia, a liberdade e o pensamento. La Chascona, que agora é história, está ao lado do Cerro San Cristóbal e foi construída em níveis. Um jardim serpenteia a casa e cria hoje paisagens propícias ao cultivo de memórias. Nesse jardim, eu e Paloma descansamos, olhando para a sombra das pequenas árvores, quietos, silentes, vendo turistas passantes e Naira desaparecida a fotografar.
O tempo das cerejas fugirá para outras bandas
Miró mia nas minhas lembranças
rabisco no La Chascona ao poeta
bardo brado
por onde anda a ode?
flagelo e sal
sangue e semente
formigas desfilam sobre o açúcar derramado
você e eu descarrilados
por poemar instantes
beleza é água na garganta seca.
Você já prestou atenção no caminhar? É diferente caminhar em terra batida, em terra molhada, na grama. São apenas duas ruas de paralelepípedos e mansões dos anos 1920, uma se chama Paris, como aquela da Comuna, e a outra Londres, como aquela de Cromwell e seus republicanos. De manhã, caminhar em ruas de paralelepípedos nos dá a sensação de segurança e desequilíbrio. Você sai do asfalto, do cimento e vai devagar a pisar paralelepípedos. Sinta com atenção. Veja a diferença. Sentiu, Naira? Veja como é gostoso, Paloma? Aqui as ruas não são apenas belas, estão paradas no tempo, frescas, sombreadas. Aqui não há lojas. Há pequenos hotéis, escolas e esse café maneiro ao lado do hotel. Com uma praça e tudo, à moda antiga, um pedaço da Europa no meio de Santiago.
Mas como sonho e pesadelo são estados do adormecido, em frente ao meu Hotel Residencial Londres há um prédio pichado “aqui torturaram e assassinaram”. E quando meio dormindo, meio acordado, tentava descobrir o que estava lendo, um cicerone não convidado se aproximou e disse: “Esta era uma das muitas casas onde a ditadura torturava e assassinava pessoas”. Conversamos poucas frases sobre violência e crimes políticos, e tráfico de drogas no Brasil, mas rapidamente meu interlocutor escafedeu-se.
Essas ruas de Santiago, manchadas de sangue, me remetem a um militante, homem de fé, Martin Luther King Jr, herói dos trezentos milhões de negros espalhados pelo mundo e do novo presidente estadunidense. Mas tudo começou com Rosa Parks. Ou como contou o jornal Versus:
1955. Uma costureira negra, dirigindo-se do trabalho para casa em Montgomery, Alabama, recebeu ordens de um motorista branco para que se transferisse para a parte de trás do ônibus. Rosa Parks estava sentada, em um dos bancos da frente, e simplesmente recusou-se a mudar de lugar. Foi presa por violação às leis de segregação do Alabama. A comunidade negra enfureceu-se. Os negros disseram que já vinham sendo insultados há demasiado tempo por motoristas de ônibus brancos, e declararam que não tomariam mais qualquer ônibus até que a segregação fosse eliminada e certo número de motoristas negros fosse admitido.
Liderados pelo jovem ministro batista Martin Luther King, os negros de Montgomery simplesmente boicotaram os ônibus até que a empresa, quase à bancarrota, submeteu-se às exigências. Em breve, os negros de muitas cidades do Sul recorreram à técnica do boicote para conseguir melhor tratamento nas lojas e outras casas comerciais, e para assegurar melhor emprego para sua gente. Se os autores do boicote usavam a não-violência, eram ao mesmo tempo militantes e obstinados. Certamente, tiveram importância na obtenção de certas mudanças que o Sul dos Estados Unidos, com sua veemente resistência a toda e qualquer transformação, consideraria revolucionária.
Também foi em 1955 que King finalizou sua tese A Comparison of the Conceptions of God in the Thinking of Paul Tillich and Henry Nelson Wieman. King conhecia o pensamento do teólogo teuto-estadunidense e, por isso, sua ação militante repousou em parte sobre o pensamento socialista de Tillich.
Tanto para King como para Tillich, o poder autêntico era a verdade. Entretanto, esta verdade não seria norma abstrata que se impõe à realidade. Seria, sobretudo, a expressão concreta da tendência última do real. A verdade só teria poder se fosse uma tendência de vida, de uma sociedade, a verdade de um grupo que detém, interiormente, na sociedade, o poder.
Teoria e prática se fizeram carne e sangue na vida de King e, no dia 4 de abril de 1968, quando preparava uma marcha dos negros na cidade de Memphis, Tennessee, foi atingido por tiros. Anos depois, o jornal Versus orou pelo companheiro abatido:
"Desde a época em que chefiou o boicote dos ônibus em Montgomery, inúmeras foram as ameaças à sua vida. Foi publicamente denunciado e alvo de abjetos epítetos. O próprio clima tornou-se tão carregado que, considerando-se agora as coisas, percebe-se que um fim violento para o grande líder negro era inevitável. Todavia, a América branca não podia antecipar a reação da América negra ao assassinato a sangue frio de um de seus líderes mais poderosos. Vários dias de desordens, incêndios e pilhagens em muitas cidades foram a louca manifestação de um amargo desespero e frustração. Mesmo os que prantearam a morte de Martin Luther King sem qualquer mostra exterior de emoção revelaram-se tão sensíveis no apreço de seu significado quanto aqueles cuja reação foi violenta. Descanse em paz, Dr. Martin Luther King!"
Tanto para Tillich como para King, a conquista violenta dos instrumentos de poder social não decidia a vitória de uma revolução. Isso só aconteceria quando se estabelecesse uma nova estrutura de poder, amplamente reconhecida. Seria um erro pensar, afirmava Tillich, que amparar a revolução no aparelho do poder garantiria a vitória. O aparelho do poder deveria ser renovado constantemente a partir das forças da sociedade, forças pessoais, materiais e ideais. Caso contrário, a revolução ruiria, mesmo quando os meios técnicos permitissem que se impusesse por tempo maior àquele de épocas não desenvolvidas.
Mas do que palavras, a militância política de King traduziu a compreensão de que há uma dialética de ferro entre verdade e poder. E que o poder verdadeiro nasce da verdade última, aquela que transcende o momento presente e permanece no coração e mente dos excluídos. Essa compreensão, mesmo quando não é corretamente traduzida pelo grupo que chega ao poder, continua a marcar o horizonte último da ética socialista.
Londres-fixo
aranhas sopradas pelo vento norte
lugar de sonhos desperdiçados
picadas na carne nova
matinais de 11 de setembro
o azul cede ao cinza
morcegos desconstroem flores
palavras duras decretam o fim da esperança
olhos mareados
a porta esmurrada
a fronte torturada
o corpo desfilado
olho perdido na esquina.
Deixo para trás Paris-Londres, olho a igreja de San Francisco, a construção mais antiga da cidade. Caminho algumas quadras na sequidão sob um sol de trinta e poucos graus pela principal avenida da cidade, que a corta de leste a oeste, e se chama Libertador Bernardo O’Higgins, mas é conhecida como Alameda apenas. Ali perto, a poucas quadras, há um palácio, o La Moneda.
E me lembro de um político, Salvador Allende, que depois de três derrotas, veio a vencer as eleições presidenciais em 1970. Governou com uma frente popular capitaneada por socialistas e comunistas. Acreditava que poderia levar o Chile ao socialismo através do processo democrático, sem enfrentamentos violentos. Mas isso não aconteceu. E como a direita e os Estados Unidos viam Allende como o príncipe das trevas, todos os setores de oposição, inclusive os democratas cristãos, se organizaram e com apoio dos militares, se lançaram ao golpe. Allende foi derrubado. O Palácio La Moneda e fábricas, onde trabalhadores organizavam a resistência, foram bombardeados. Foi um tempo de chacina.
Londres-fixo
nem Caetano
nem Gil
é ilha no nada
lagartos da inexistência
tristeza, espanto, perplexidade
Tiago não tem salvador
coturnos abundam!
Os demônios estão mortos. Curto a cidade limpa, com metrô e prédios modernos. Metrópole neoliberal, segundo o modelo dos Chicago Boys, liderados pelo economista Milton Friedman. Mas, permanece a sensação de que caminhamos sobre cadáveres que não foram sepultados com dignidade. Ignavi ne simus.
Jorge Pinheiro, "Tempo de cerejas", capítulo do livro Teologia da Vida, São Paulo, Fonte Editorial, 2009.
vendredi 24 décembre 2010
Minha oração de Natal para você
Nasceu uma criança, mas onde está o irmão dela? Solidariedade com os diferentes é ver que a criança tem irmãos e irmãs, uma, duas, três, milhões. Nós recebemos você, criança, com alegria, maravilhosa conselheira, que, por amor, nasceu na Palestina. Nós recebemos você com alegria, agradecidos, luz na noite do mundo.
Os favorecimentos num mundo de desigualdades fazem pó do abraço e do beijo sinceros. Não combinam com o nascimento da criança na cidade de Belém. Nós recebemos você com alegria, menino sem teto, Deus forte, que dos excluídos fez um. Nós recebemos você com alegria e pedimos faça-nos irmãos, você que aceitou ser filho de Maria.
O caminho acarpetado para acabar com o clamor da justiça não é a perseguição, mas os privilégios. A estrebaria propõe o fim do eu sou melhor e mereço mais. Onde está o irmão e a irmã diferentes da criança que nasceu? Nós recebemos você com alegria, presença do Eterno, Deus único.
Vamos derrubar os muros da história e adorar o príncipe da paz, presente nesta noite preparada há séculos. Noite de alegria e de luz para a criança e os milhões de irmãos e irmãs dela. Venham, adoremos!
mardi 21 décembre 2010
A violência, uma leitura ontológica
Lá no rolo de Bereshit, a eternidade disse para a vida, que o sofrimento seria a regra e a humanidade cresceria na dor. A violência estabelece uma proposição: um princípio atemporal e não espacial, sobre o qual a razão titubeia, uma vez que aparentemente transcende a concepção de humanidade, mas, ao mesmo tempo, reduz qualquer expressão humana. Parece estar além da razão: é impensável. Podemos, no entanto, partir do postulado de que há uma violência ontológica, que antecede toda violência manifesta. Esta causa maior é a raiz sem raiz de tudo que foi e é violência. Despida de atributos não tem, a princípio, nenhuma relação com a violência expressa. É a violência que é e está além da razão de ser violento.
O que é violência está simbolizado no ser violento sob dois aspectos: por um lado, é o não-espaço da subjetividade, aquilo que a mente não pode excluir, nem conceber por si mesma. Por outro lado, a violência incondicionada é dinâmica. A consciência é inconcebível quando separada do movimento, pois é ele que leva à mudança. Tal aspecto da violência é simbolizado na ideação sofrimento e dor na espécie serão um padrão. Um símbolo gráfico da violência presente no parir a vida. Este axioma fundante da violência, ontológico, remete àquilo que podemos simbolizar como características trinitárias da violência.
A natureza da causa da violência, derivada de causa aparentemente sem causa, aflora como consciência da violência, impessoal, que permeia a natureza. Esta causa da violência é o campo da consciência, que transcende a relação com a existência e da qual a existência consciente é um símbolo condicionado. Mas, ao atravessar pela negação a dualidade entre existência e consciência, sobrevém a tríade da violência: o espírito de violência, a consciência da violência e a matéria da violência.
Espírito de violência, a consciência da violência e a matéria da violência devem ser consideradas não como independentes, mas correlações que constituem a base do ser ou estar violento. Considerada esta trindade ontológica da violência como a raiz da qual procedem todas as manifestações violentas, a expressão o sofrimento será a regra e a humanidade crescerá na dor assume o caráter de ideação do que ainda não é humano. Ela é a fonte da força de toda violência individual e social e fornece os elementos para a análise da violência que perpassa o humano e sua história. Tal raiz pré-humana é o absoluto expresso no “multiplicarei o teu sofrer e a tua conceição: em dor darás à luz filhos”, base da violência objetiva. Tal ideação do porvir humano é a raiz da violência individual e social, porque a substância pré-humana é o substrato da matéria violenta em seus diferentes graus.
A correlação dos aspectos da violência ontológica, de origem, é fundante da existência enquanto violência manifesta. A ideação da humanidade, separada de sua substância, não se manifesta como violência individual e social, uma vez que é somente através de um veículo, a alienação da ideação, que a violência aflora como violência que é, como ato alienado que necessitou de base física para apresentar-se como momento de uma complexidade maior, natural e humana. Da mesma forma, a substância do humano, separada da ideação da humanidade, permaneceria como uma abstração da qual a violência não poderia emergir. A violência-manifesta, assim, é permeada pela correlação, que é fundamento de sua existência como violência que se manifesta.
As correlações entre violência-manifesta, espírito e matéria da violência são símbolos da violência ontológica, presentes no universo manifestado da violência. Essa correlação é alienação existencial, a ponte através da qual as idéias são impressas enquanto substância da natureza da violência, presentes na forma de leis da natureza e da sobrevivência do humano. A alienação, dessa maneira, é dinâmica da ideação do humano, é meio que guia a manifestação.
Ou como disse Lameque, ser violento mítico consciente do ciclo da violência, apresentado nas escrituras hebraicas: “ouçam a minha voz. Escutem as minhas palavras: matei um homem, porque me machucou. E um jovem, porque me pisou. Se são mortas sete pessoas para pagar pela morte de Caim, então, se alguém me matar, serão mortas setenta e sete pessoas da família do assassino”. Assim, a consciência humana procede também da ideação da violência, e fornece os meios que possibilitam à violência individualizar-se como substância do humano. A alienação em suas manifestações é o elo entre o espírito e a matéria da violência, presença que, dialeticamente, equilibra vida e morte, permanência e destruição.
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