mardi 3 mai 2011

Nossa herança anabatista

Eclesiologia e revolução
Professor Dr. Jorge Pinheiro


Introdução

A história anabatista é uma saga ao estilo do cristianismo antigo, anterior à estabilização imperial pós-Constantino, de sangue, perseguições e martírios. E os eventos notáveis e feitos heróicos do movimento anabatista até hoje repercutem no imaginário protestante, levando alguns historiadores e teólogos a exorcizarem o movimento e seus líderes.

Segundo Weber, o ascetismo laico do movimento anabatista[2] espraiou-se pela Europa Ocidental e Estados Unidos, nos séculos 16 e 17, dando origem, quer diretamente, quer por adoção, a novas formas de pensamento religioso, como aqueles dos batistas[3], menonitas e quakers. No Brasil, os evangélicos não podem olvidar a história dos anabatistas, pois as influências eclesiológicas do movimento, herdadas pelos batistas, foram repassadas para as comunidades, igrejas e pensadores evangélicos que em algum momento de sua história comungaram com o pensamento batista.

Por isso, nesse trabalho, vamos fazer uma abordagem das origens do anabatismo, principalmente daquele de forte conteúdo social, a partir da leitura histórica e da sociologia da religião, com a intenção de demonstrar que em sua prática o anabatismo construiu uma eclesiologia que formatou uma teologia e não o contrário. Mas como o nosso texto trabalha a relação entre a eclesiologia e a revolução camponesa e plebéia liderada pelos anabatistas, convém entender o que significa eclesiologia. Nós a consideramos o estudo teológico da realidade de comunidades de fé em seus aspectos estruturais: sua forma de se relacionar com o mundo, seu papel social e sua forma de governo. Por isso, vamos analisar o comunitarismo, que mais tarde foi caracterizado por Karl Marx e Friedrich Engels como socialismo utópico, enquanto construção religiosa e política marcante e central do movimento anabatista.

Os anabatistas eram cristãos reformados que se levantaram contra a hegemonia da Igreja católica e dos príncipes alemães. A partir da frase do Evangelho de Marcos (16.16), “quem crer e for batizado será salvo, mas quem não crer será condenado”, deduziram que quem não crê de nada adiantou o batismo que recebeu quando pequeno. Então, negaram valor ao batismo de crianças, afirmando que aquele sacramento católico e reformado, só deveria ser recebido quando a pessoa tivesse plena consciência do que estava a fazer. Por isso, aqueles que tinham sido batizados antes de terem consciência do bem e do mal deveriam ser batizados de novo.

O fato de levantarem a importância de escolha pessoal na opção pela caminhada cristã levou grupos e comunidades anabatistas a crescerem rapidamente. Mas, o crescimento dos anabatistas na Alemanha e na Europa central se tornou um problema para as autoridades eclesiásticas, afinal propunham às pessoas não batizar os filhos. Logicamente, os católicos e os reformados se colocaram em oposição direta a essa idéia. E como o poder eclesiástico estava ligado às forças do feudalismo ou às forças da burguesia emergente, ambos os lados optaram pelo extermínio dos anabatistas.

Primeira aproximação: Thomas Münzer

Para Engels, a descentralização, a autonomia local e regional, a diversidade comercial e industrial das províncias alemães e a insuficiência das comunicações foram os fatores que explicam o agrupamento das classes sociais da Alemanha no início do século 16 em três campos: o feudal nucleado ao redor do catolicismo; o burguês reformista, ao qual se aliaram os luteranos; e o plebeu/camponês liderado pelos anabatistas.[4]

É bom lembrar que na Alemanha medieval a Igreja católica tinha o monopólio da educação, o que fazia com que todo o ensino tivesse um caráter religioso. Nas mãos do clero católico estavam a política, a jurisprudência e o conhecimento, que era visto como extensão da teologia. E os dogmas do catolicismo, assim como a compreensão católica das Escrituras tinham força de lei em todos os tribunais. Dessa maneira, críticas ou ataques ao feudalismo traduziam-se em confronto com o catolicismo.

A oposição ao feudalismo, começou bem antes do século 16, com os valdenses, albigenses, com as insurreições nos cantões suíços e foi tomando conta da Alemanha com as reivindicações religiosas, sociais e políticas que tomaram corpo como pensamento divergente. Os plebeus e camponeses alemães queriam o estabelecimento da igualdade cristã, que devia se traduzir em igualdade civil e social. Ou seja, a nobreza devia colocar-se ao nível dos camponeses, e os patrícios e burgueses no mesmo nível dos plebeus. Ou seja, reivindicavam, pela primeira vez na história, direitos cidadãos universais. Além disso, exigiam o fim das leis feudais, tais como obrigatoriedade dos serviços pessoais, tributos, privilégios e nivelamento das escandalosas diferenças no que se referia à propriedade. Dessa maneira, essas reivindicações democráticas levaram às reivindicações pelo estabelecimento de comunidades onde a propriedade e os bens fossem comunitários, o que era visto como a realização da promessa do Reino de Deus.

Até 1525-1526, o movimento protestante era mais ou menos informal na Alemanha. Mas com as guerras camponesas, os conventos foram secularizados, o direito canônico abandonado e, com a recusa dos bispos de se associarem ao movimento pelas reformas, as autoridades civis foram empurradas a se tornar favoráveis às novas orientações e a se envolver na reorganização da igreja. Estas ações se inspiraram nas antigas visitas pastorais efetuadas antes pelos bispos. Os príncipes passaram, então, a visitar as paróquias, com delegações compostas de juristas e teólogos. A partir de 1530, criaram instituições permanentes com superintendentes, levando as igrejas a ficarem dependentes do príncipe que, de fato, substituiu o bispo. Nasceu assim a igreja territorial reformada.

Em 1555, a Dieta de Augsbourg proclamou o princípio do “cujus regio, ejus religion” segundo o qual o príncipe ou uma outra autoridade podia determinar a religião das pessoas. A legislação e o órgão jurisdicional, em especial matrimonial, passaram para o poder do príncipe, que o entregava a uma instância jurídica: e o príncipe ou o magistrado das cidades passaram a ser a autoridade última em matéria de liturgia, doutrina ou nomeação de sacerdotes. Os bens eclesiásticos secularizados foram incorporados às possessões dos príncipes, ou geridos por administradores autônomos, em especial as escolas. Dessa maneira, passou a existir um controle sobre o comportamento religioso, e o estado jurídico e financeiro das paróquias, bem como sobre a doutrina e a vida moral dos pastores.

Thomas Münzer e outros dissidentes do protestantismo reformado procuraram mobilizar seus pares e exigir das autoridades políticas liberdade de expressão e de ação religiosas e criaram comunas autônomas, proibindo os seus adeptos de exerceram funções políticas no Estado. Entre suas ações, Münzer suprimiu completamente o uso do latim, em 1522, antes de Lutero. Em Altstadt, nos cultos que dirigia vinha gente de todas as partes ouvi-lo. Seus ataques voltaram-se em especial contra o clero católico, chamando os príncipes e o povo à intervenção armada contra a Igreja católica.

“Não disse Cristo, vim trazer-vos não a paz, porém a espada? E que deveis fazer com ela? Nada, senão afastar a gente má que se opõe ao Evangelho. Cristo ordenou com grande severidade (Lucas 19.27): quanto, porém, a esses meus inimigos, que não quiseram que eu os governasse, trazei-os aqui e matai-os diante de mim... Não vos valhais do vão pretexto de que o braço de Deus deve faze-lo sem ajuda da vossa espada que bem poderia enferrujar-se na bainha. Os que se oponham à revelação divina que sejam aniquilados sem piedade, como Ezequiel, Ciro, Josias, Daniel e Elias destruíram os pontífices de Baal; de outro modo a Igreja cristã não pode retornar à sua origem. Na época da vindima temos que arrancar a erva daninha das vinhas do Senhor. Deus disse (Deuteronômio 7.5): nem terás piedade dos idólatras;... deitarás abaixo seus altares... e queimarás a fogo as suas imagens de escultura... Porque tu és um povo santo e Jeová teu Deus...” [5]

Münstzer, segundo Tillich, foi o mais criativo dos evangélicos radicais e acreditava que o Espírito podia sempre falar por meio das pessoas. No entanto, para se receber o Espírito era preciso participar da cruz.

“Lutero, dizia ele, prega um Cristo doce, um Cristo do perdão. Devemos também pregar o Cristo amargo, o Cristo que nos chama a carregar sua cruz.”[6]

Assim, os anabatistas atacavam a teologia de Lutero a respeito das Escrituras, porque consideravam que Deus não falara apenas no passado, tornando-se mudo no presente. Mas que sempre falou e fala nos corações ou nas profundezas de qualquer ser humano preparado para ouvi-lo por meio de sua própria cruz. O Espírito habita nas profundezas do coração. A cruz, explica Tillich, representava a situação limite, era externa e interna.

“Surpreendentemente, Münzer expressa esta idéia em termos existencialistas modernos. Quando percebemos a finidade humana, desgostamo-nos com a totalidade do mundo. E nos tornamos pobres de espírito. O homem é tomado pela ansiedade de sua existência de criatura e descobre que a coragem é impossível. Nesse momento Deus se manifesta e ele é transformado. Quando isso acontece, o homem pode receber revelações especiais. Pode ter visões pessoais não apenas a respeito de teologia como um todo, mas sobre assuntos de vida diária”.[7]

Nessa conjuntura de choque, em Zurique, na Suíça, no meio dos seguidores do reformador Zwinglio, surgiu um grupo de cristãos que rejeitou o poder eclesiástico, fosse ele católico ou reformado, exigindo a autonomia das comunidades cristãs. Assim, os anabatistas fundaram sua primeira comunidade no dia 21 de janeiro de 1525. E eles próprios passaram a escolher seus pastores e a construir comunidades separadas do estado.

Mas, no sul da Alemanha, sem dúvida, foi Thomas Münzer quem se levantou como defensor de uma proposta de revolução social camponesa. Em 1521, liderou um grupo de anabatistas que se somaram aos camponeses sublevados ao redor da reivindicação de terra e liberdade. Münzer criou, assim, pela primeira vez na história um movimento de libertação camponês anabatista.

Münzer não foi apenas um pensador, mas um militante que praticava a fé. Acreditava ser um profeta, chamado para implantar o Reino de Deus. Considerava ser seu dever denunciar e executar as sentenças contra os governantes que exploravam o povo. Suas pregações estavam impregnadas de conteúdo social e político: o fim da velha Igreja deveria marcar o inicio de uma nova ordem social.

Engels, que junto com Marx foi um dos pais do socialismo científico, considerou as guerras camponesas lideradas pelos anabatistas como combates sociais. Afirmou que “se, em termos gerais, a burguesia podia arrogar-se o direito de representar, em suas lutas com a nobreza, além dos seus interesses, os das diferentes classes trabalhadoras da época, ao lado de todo grande movimento burguês que se desatava, eclodiam movimentos independentes daquela classe que era o precedente mais ou menos desenvolvido do proletariado moderno. Tal foi na época da Reforma e das guerras camponesas na Alemanha, a tendência dos anabatistas e de Thomas Münzer”.[8]

Considerou que, apesar de terem uma face cristã reformada, as reivindicações anabatistas iam além da expressão religiosa que apresentavam. Para Engels,[9] a política de Münzer nasceu de seu pensamento revolucionário, que caminhava adiante da situação social e política de sua época. Seu programa propunha o estabelecimento do Reino de Deus, com o milênio de justiça, paz e felicidade, com a supressão de todas as instituições que se encontravam em contradição com o mandamento do amor.

Para Münzer, o céu estava aqui no chão. E, por isso, o cristão deveria construí-lo na vida. A esse cristão anabatista cabia a missão de estabelecer o Reino de Deus sobre a terra. Seus sermões eram clamores políticos e estavam dirigidos a instaurar uma nova ordem social. A partir de Münzer, os anabatistas fizeram dos sermões proféticos, elaborados a partir da realidade social em que estavam inseridos, manifestos revolucionários, cujas propostas atemorizavam as autoridades, governantes eclesiásticos e príncipes de toda a Europa.

A crise econômica fruto exploração agrícola predatória e extensiva; a crise demográfica, por causa das epidemias e fome; a crise social gerada com o surgimento da burguesia e dos assalariados; a crise clerical, devido às contradições e o enfraquecimento da Igreja católica e a crise espiritual ocasionada pelo surgimento de novas leituras do cristianismo fizeram da baixa Idade Média um período de alta instabilidade e angústia coletiva. Milhares de camponeses sem terra e plebeus desempregados vagavam pelos campos e cidades. Essa situação levou às propostas de construção de comunidades formadas por camponeses e plebeus, onde pudessem viver e trabalhar juntos, num sistema de vida em comum com os bens partilhados, disponíveis segundo as necessidades das pessoas e famílias. E, de fato, os anabatistas organizaram comunidades com este formato, organizações baseadas na propriedade social autônoma em relação ao Estado e aos poderes eclesiásticos e laicos da época, em primeiro lugar católico e depois reformado.

Dessa maneira, a compreensão que os anabatistas tiveram de que o cristianismo era uma ferramenta para a mudança da condição social em que se encontravam os camponeses e deserdados da terra, sem dúvida, partiu de suas próprias experiências de vida e trabalho e quebraram o paradigma de que a fé devia estar alienada da vida social e política.

Mais tarde, em combate, e exército d e Münzer foi derrotado e ele foi preso, torturado e executado. Mas a guerra camponesa na Alemanha se estendeu até 1525, quando os anabatistas revolucionários foram afogados em sangue. O conflito, que teve lugar nas áreas do sul, centro e oeste da Alemanha, também afetou regiões vizinhas na Suíça e Áustria, e envolveu no seu auge, no verão de 1525, cerca de 300 mil camponeses. Estimativas da época situaram o número de mortes em torno de 100 mil camponeses e plebeus.

O sonho anabatista, porém, não morreu aí, subsistiu no coração de milhares de cristãos. Vejamos alguns exemplos. Sete anos depois da morte de Münzer, em 1532, uma insurreição tomou conta da cidade de Münstzer. Ela foi iniciada por um ex-padre da Catedral de Münstzer, que se tornou luterano, Bernard Rothmann, e acabou sendo expulso da cidade. Dois anos depois, em 1534, o pastor anabatista Jan Matthys, junto com outros líderes, entre os quais Jan van Leiden e Gert Tom Kloster, declarou a cidade de Münstzer livre do domínio dos príncipes e do poder eclesiástico.

Matthys iniciou uma revolução social: os proprietários de terras foram expropriados e suas terras e bens distribuídos entre os camponeses. Dando seqüência à revolução, ele e um grupo de anabatistas atacaram a guarnição liderada pelo príncipe Franz von Waldeck, que era bispo de Münstzer e também chefe do exército. No confronto Matthys foi morto. Foi, então, sucedido por Jan van Leiden. Após um ano de resistência, Waldeck liderou um exército bem equipado e assaltou a cidade. Jan van Leiden e seus oficiais foram presos, torturados e executados. Os combatentes anabatistas foram lançados às prisões e, posteriormente, deportados para outras regiões da Alemanha e Suíça.

A partir desse momento as comunidades anabatistas passaram a viver umas isoladas das outras, de forma clandestina. Seus líderes eram leigos que pregavam em roupas civis. Adotaram uma disciplina e uma ética rígidas a fim de sobreviverem na clandestinidade. Essas pequenas comunidades se refugiaram no interior da Europa e se estruturaram de forma autônoma. Cada comunidade de fé sobrevivia do compromisso de serviço e financeiro de seus afiliados.

Segunda aproximação: a Confissão ante o Concílio de Nuremberg

Depois da morte de Münzer, Hans Denck (1500-1527) surgiu como o reformador do destino anabatista. Em 21 de janeiro de 1525, Denck deixou Nuremberg para nunca mais retornar. No curso do ano e meio seguinte, sofreu o mesmo destino em outras cidades no sul da Alemanha e Suíça: foi expulso delas devido ao seu espiritualismo radical. Uniu-se aos anabatistas do sul da Alemanha e se tornou seu líder mais eloqüente até sua morte precoce pela peste em 1527.

A diferença entre Münzer e Denck repousou sobre o Cristo internalizado. E é a partir do Cristo internalizado que Denck construiu uma eclesiologia alternativa à hierarquia católica, à exegese dos reformadores e apontou um novo caminho para o anabatismo. Para Denck, a presença do Cristo internalizado era mais importante do que o próprio batismo de adultos e, inclusive, as Escrituras. E essa transformação interna do cristão deveria ser construída através das experiências de vida, das lutas internas e externas que enfrenta e do sofrimento. Se a teologia de Münzer tinha duas faces, uma de transformação interna, pessoal, no poder do Espírito, e outra de transformação social, que se correlacionavam numa visão revolucionária do Reino de Deus, a teologia de Denck foi construída em cima de uma única via, a da revolução interna das pessoas. Assim, a teologia de Denck repousou sobre a renovação das pessoas, de expressão não violenta, e não sobre a revolução da sociedade.

Foi a partir dessa concepção que Denck modificou as perspectivas revolucionárias de Münzer, exortando os fiéis a manter suas espadas embainhadas até que Deus desse a ordem para que as utilizassem. Denck, no sul da Alemanha, abriu o caminho para o anabatismo da não violência, sugerindo também que os fiéis não mais se organizassem em comunidades separatistas, isoladas da sociedade.

Sua “Confissão Ante o Concílio de Nuremberg” é parte da herança teológica dos irmãos hutteritas, dos menonitas e dos pietistas alemães, e seus escritos influenciaram os trabalhos de espiritualistas como Frank[10] (1495–1592) e Schwenckfeld[11] (1490-1561). Nessa Confissão ele expõe sua compreensão da fé, das Escrituras Sagradas, do Espírito Santo, da justiça, do batismo e da ceia do Senhor. Vejamos alguns trechos da Confissão de Denck.

Eu, Hans Denck, confesso que verdadeiramente considero, sinto e percebo que por natureza sou uma pessoa pobre de espírito, sujeito a toda doença do corpo e da alma. (...) Eu queria muito ter fé, isto é, vida. Mas, como isso não é alicerçado completamente dentro de mim, não posso enganar nem a mim mesmo, nem aos outros. De fato, se digo hoje, eu creio, eu posso, contudo, amanhã reprovar a mim mesmo por mentir, ainda que não eu, mas a verdade, que percebo imperfeitamente em mim. (...) Quanto a essa fé, não ouso dizer que a tenho, pelo motivo declarado. Pois vejo que a minha incredulidade não pode estar diante Dele. Por isso, digo: Muito bem, então, no nome do onipotente Deus, a quem eu temo do fundo do meu coração. Senhor, eu creio, ajuda-me na minha incredulidade!

A Sagrada Escritura, o farol, brilha na escuridão, mas não pode por si mesma (por ser escrita por mãos humanas, falada por boca humana, vista por olhos humanos e ouvida por ouvidos humanos) remover plenamente a escuridão. Mas, quando o dia, essa luz eterna, amanhece, quando a estrela da manhã – que a fé como um grão de mostarda anuncia para breve o sol da justiça do Cristo – nasce em nossos corações, como a Sagrada Escritura também testemunha acerca do patriarca Jacó, então apenas assim a escuridão da incredulidade é superada. Isso ainda não está em mim. Enquanto tamanha escuridão está em mim, é impossível que possa entender completamente a Sagrada Escritura. Mas, se não a entendo, como deveria então tirar a fé disso? Isso significaria que a fé origina-se de si mesma se eu alegasse isso antes de ser revelado a mim por Deus. De fato, aquele que não quer esperar a revelação de Deus, mas presume o trabalho que pertence unicamente ao Espírito de Deus, certamente faz pouco do mistério de Deus, documentado na Sagrada Escritura -- uma abominação dissoluta diante de Deus -- e perverte a graça do nosso Deus em libertinagem, como é apontado nas epístolas de Judas e 2Pedro”.

Essa é a minha posição com a qual me apego, de bom grado, para o amor e a honra de Deus e para o mal e a desgraça de ninguém, exceto o que não está na verdade. Disto é em parte percebido facilmente por aquilo que me atém com respeito à Sagrada Escritura: pecado, justiça de Deus, lei, e evangelho. Contudo, para brevemente me explicar, falo dessas quatro últimas da seguinte forma: incredulidade sozinha é pecado, o qual a justiça de Deus extirpa através da lei. Tão logo a lei perde essa função, o evangelho toma o seu lugar. Pelo ouvir da mensagem a fé vem. Fé não tem pecado. Onde não há pecado, a justiça de Deus habita. Assim, a justiça de Deus é o próprio Deus. Pecado é o que cresce sozinho contra Deus; isto na verdade não é nada”.

A justiça trabalha através da palavra que estava desde o início e é dividida em duas, subsequentemente, lei e evangelho, por causa da posição dupla a qual Cristo como Rei da justiça pratica, a saber: extirpar a incredulidade e trazer a vida aos crentes. Sendo assim, todos os crentes eram outrora incrédulos. Consequentemente, tornando-se crentes, desse modo primeiro tiveram que morrer na condição de que eles não poderiam mais viver para si mesmos como um não crente faz, mas para Deus através de Cristo é que eles podem caminhar de fato não sendo tanto na terra, mas no céu, como disse Paulo. Davi também comprovou isso quando ele disse: “O Senhor faz descer à sepultura e dela resgata”. Em tudo isso eu creio (Senhor, esmague minha incredulidade) verdadeiramente, agora na expectativa, de quem quer que deseje negar e derrubar isso. Por isso, eu intento também registrar que eu creio no batismo e na ceia do Senhor. Agora meu tempo é curto. O Senhor esteja conosco. Amém”.

A poderosa palavra de Deus sozinha é capaz de sobrevir e penetrar dentro do abismo da impureza do homem, exatamente como um solo árido é preparado pela boa chuva. Onde isso acontece, nasce o conflito no homem antes da natureza ceder, e resulta em desespero, então se presume que ele deve perecer de corpo e alma e que poderá não suportar o trabalho que Deus começou. Como acontece quando chega uma grande enchente que a terra não pode agüentar, mas é lavada. Em grande desespero Davi disse: ´Senhor Deus, ajuda-me, pois as correntezas subiram até a minha alma´. Mas tamanho desespero, embora grande ou pequeno, dura tanto quanto o eleito está em seu corpo, e o trabalho de Cristo começa imediatamente após isso. Por isso, não apenas João Batista, mas também os apóstolos de Cristo batizaram-se nas águas. A razão: tudo que não sobrevive à água pode de fato tolerar menos o fogo, pois o batismo de Cristo é no Espírito, a perfeição de seu trabalho. Essa água ou batismo santifica (1 Pe 3), não que ela remova a sujeira do corpo, mas por causa do compromisso de uma boa consciência diante de Deus”.

Esse compromisso significa que, aquele que se deixa ser batizado o faz perante a morte de Cristo, que morreu assim como este também morre para Adão; como Cristo ressuscitou, ele também caminhará na nova vida de Cristo, de acordo com Romanos 6. Onde está esse compromisso, o Espírito de Cristo está junto e acende o fogo do amor, que consome completamente o que permanece enfermo, e completa a obra de Cristo. Depois disso acontece o Sabbath, o eterno descanso em Deus, acerca do qual todas as línguas se calam. Onde o batismo formal exala o compromisso anteriormente mencionado, é bom. Onde não acontece isso não serve para a razão indicada. O batismo formal não é preciso para a salvação; como Paulo disse, ele não foi enviado para batizar, o que seria desnecessário, mas para pregar o evangelho é necessário. Mas, o batismo interno, acima mencionado, é necessário. Como está escrito, quem crer e for batizado será salvo”.

Aquele que, portanto, em lembrança come o invisível pão vivo, sempre será fortalecido e capacitado na vida justa. Aquele que, portanto, em lembrança bebe do vinho invisível do cálice invisível, o qual Deus desde o início verteu através de seu Filho, através da palavra, torna-se exaltado e não mais sabe nada sobre si mesmo, mas através do amor de Deus torna-se divino e Deus está humanizado nele. Isso é denominado ter comido o corpo de Cristo e ter bebido o sangue de Cristo, João 6. De fato, aquele que, portanto, em lembrança, tão frequentemente quanto lembra do que o Senhor diz, isto é, tão frequentemente come o pão e bebe do cálice, celebra e proclama a morte do Senhor. Assim sendo, para aquele que, entretanto, fisicamente também come e bebe, isso é verdadeiramente benéfico e saudável para o corpo porque o corpo se sujeita ao Espírito e também o serve em verdade”.

O comer alegra e fortalece, o beber acende o amor e aperfeiçoa aquilo para o que Cristo veio, a purificação do pecado que realizou-se no derramamento do sangue de Cristo. Assim sendo, o que foi dito acima diz respeito ao pão visível, também podendo ser aqui referente ao cálice. O mesmo pode viver sem esse pão exterior através do poder de Deus onde quer que sua glorificação o requerer, como fez Moisés no Monte Sinai e Cristo no deserto. Sem o pão interior ninguém pode viver. O justo vive pela fé. Aquele que não crê, não vive. Tudo isso eu confesso do fundo do meu coração diante da face do Deus invisível, para quem através dessa confissão devo me submeter humildemente; não deveria dizer “eu”, mas ele propriamente me sujeita a Ele, não por Ele mesmo, mas para todas as criaturas Nele. Não obstante, eu imploro a todas as criaturas e a sua sabedoria, que está nas mãos de Deus, através do terrível e grande nome de Deus, para julgar-me e aos meus irmãos presos, a quem amo em verdade, não de acordo com a aparência, mas de acordo com a verdade. Assim também o Senhor julgará quando ele vier em sua glória no dia da revelação de todos os mistérios. Amém. Amém”.[12]

Assim, Denck na sua Confissão caminhou na direção de uma ética do Novo Testamento internalizada nos corações, que deveria levar os crentes a aplicá-la no dia-a-dia. Não eliminou o poder formativo da eclesiologia comunitária, mas privilegiou uma compreensão carismática da espiritualidade. Essa internalização da fé deslocou a proposta de revolução religiosa, social e política. Se antes, com Münzer o combate aos poderes do mundo nasciam do caráter incondicional da justiça de Deus e do caráter concreto da situação histórica, com Denck a realidade da graça era espiritualidade privatizada. De todas as maneiras, permanecia a compreensão de que nenhuma hierarquia pode se apoderar do direito à graça e exigir que os cristãos se submetam ao arbítrio na busca pela salvação. E, assim, o sonho anabatista permaneceu: a fé é humana, mas não vem do humano, embora se realize no humano. A graça é pregada e assim vem a fé. Ter fé significa ser tomado e transformado pela graça, e isso acontece na materialidade das vidas.

Terceira aproximação: a Confissão de Schleitheim

A derrota da revolução e as idéias espiritualistas, de Denck e de outros pregadores, levaram a uma síntese. De fato, o anabatismo tinha vindo para ficar. E mesmo perseguidos ou clandestinos, continuavam a celebrar o batismo adulto por infusão como símbolo de reconhecimento e obediência a Cristo. E o apelido pejorativo transformou-se em definição teológica: anabaptista, "re-baptizador", do grego "ana" e "baptizo". Em alemão, Wiedertäufer, porque seus convertidos eram batizados em idade adulta. Continuavam a celebrar, também, a Ceia do Senhor, que para eles não transmitia graça, mas era ato in memoriam à morte e ressurreição de Jesus Cristo. Continuavam, ainda, a afirmar a autoridade da comunidade em disciplinar seus membros e até mesmo definir sua expulsão, a fim de manter a pureza das pessoas e da comunidade de fé. E quanto à salvação, caminhando no sentido contrário ao da Reforma, acreditavam no livre-arbítrio, defendendo que todas as pessoas têm a capacidade de se arrepender de seus pecados, que Deus as regenera e as ajuda a andar em uma vida transformada.

Essa proposta eclesiológica/teológica foi expressa na Confissão de Schleitheim, de 1527,[13] que reagrupou comunidades anabatistas ao redor das sete teses de Schaffhouse, que podem ser sintetizadas assim: (1) o batismo está reservado aqueles que aceitam a fé, quer dizer, aos adultos seguros da redenção, que desejam viver fielmente a mensagem do Cristo; (2) a ceia do Senhor não é simbólica: é uma cerimônia de lembrança feita com pão e vinho, mas nela não há nem consubstanciação, nem transubstanciação; (3) o pastor é eleito livremente pela comunidade e não está investido do sacerdócio; (4) estão excluídos da ceia do Senhor todos os fiéis que caíram em erro ou pecado; (5) a separação do mundo é total: tanto eclesiástica como política. É necessário se separar de todas as instituições que não vivem o Evangelho; (6) um anabatista não pode exercer funções civis e nunca servir às forças militares do mundo; (7) ele não deve jamais fazer juramento.

A partir desse documento, um dos mais divulgados do anabatismo, possivelmente redigido pelo mártir Miguel Sattler,[14] a eclesiologia anabatista está definida: o batismo só deveria ser concedido aos que conheceram o arrependimento e mudaram de vida, para que entrassem na ressurreição de Jesus Cristo. Os que estavam no erro não podiam ser excomungados sem antes serem advertidos três vezes e isto deveria ser feito antes do partir o pão, para que a comunidade permanecesse unida. A ceia do Senhor era só para os batizados e era um serviço comemorativo. Entre os alertas que fazia, estavam: os membros deviam deixar o culto católico e protestante; não deviam tomar parte dos negócios públicos, que eram na sua maioria imoral; deviam renunciar à guerra e às armas de fogo. Os pastores deviam ser sustentados pelas congregações, a fim de poderem ler as Escrituras, assegurar a disciplina da comunidade e dirigir a oração. Se um pastor fosse expulso ou martirizado, deveria imediatamente ser substituído, e ordenado outro, para que o rebanho de Deus não fosse destruído. A espada destinava-se aos magistrados temporais, a fim de poderem castigar os maus, mas os cristãos não deviam usá-la, mesmo em legítima defesa, como também não deviam recorrer à lei ou tomar o lugar dos magistrados. Eram proibidos os juramentos.

Na confissão de Schleitheim vemos que eclesiologia, teologia e política se correlacionaram formando um todo teórico coerente. E essa confissão se tornou a coluna mestra do movimento anabatista e, no século seguinte, marcou o pensamento dos Batistas Gerais na Inglaterra.[15]


Considerações finais

À guisa de finalização, é necessário dizer que, ao analisar a teoria social dos anabatistas, de contrapor as políticas de poder ao amor cristão, vemos que desejavam o estabelecimento do Reino de Deus na terra, o reino milenar dos profetas. Tal Reino seria uma sociedade sem diferenças de classes, sem propriedade privada e sem autoridade estatal independente ou externa aos membros da sociedade. É claro, que na construção dessa eclesiologia sócio-política não podemos esquecer a dimensão religiosa do milenarismo de Münzer, sua força espiritual e moral, sua experimentada e autêntica profundidade mística. Sem dúvida, encontramos nas propostas anabatistas uma síntese das reivindicações plebéias e camponesas daqueles tempos, que antecipou os movimentos socialistas de outras revoluções camponesas e proletárias. Mas essa dimensão sócio-política não pode ser entendida em toda a sua riqueza se for separada da dimensão utópica milenarista dos cristãos anabatistas.

As comunidades de fé anabatistas rejeitaram qualquer forma de poder representado na ordem econômica e política sob o poder do Estado. Mas ao rejeitar as políticas de poder da sociedade feudal e de submissão ao poder dos príncipes, optaram pela construção de uma nova sociedade, de uma nova política, de uma eclesiologia, e, por extensão, de um novo cristianismo. E, nesse contexto, até mesmo a expressão “movimento anabatista” precisa ser reconsiderado, já que não podemos falar de uma reforma anabatista como falamos de uma reforma luterana, zwingliana ou calvinista. Os anabatistas não estabeleceram chefes espirituais, nem código de doutrina amplamente aceito e de consenso, nem órgão central dirigente. Não influenciaram governos, não modelaram sociedades nacionais,não conservaram uma administração política.

Neste sentido, a revolução anabatista desembocou na reflexão não violenta de Denck, que não podemos caracterizar como pacifismo. Sem dúvida, diferia do separatismo anabatista, revolucionário e de confronto, que historicamente propôs a radical separação entre igreja e Estado em nome da liberdade e da justificação pela fé, mas não era ainda uma proposta pacifista. Afinal, o separatismo revolucionário, que via o fracasso das políticas de poder como impedimento para a manifestação do Reino de Deus, ainda estava muito presente na vida e memória dos fiéis.

A teologia anabatista, que podemos dizer existencial e humanista, fazia a crítica da política vigente e propunha o enfrentamento físico dos poderes do mundo. Traduzia uma atitude política consciente. Tal espiritualidade permaneceu sob a proposta não violenta e espiritualista de Denck e da confissão de Schleitheim e se espraiou pela Europa, traduzindo-se em novas construções religiosas, entre as quais podemos citar menonitas e batistas.

Na Inglaterra, principalmente durante o período de Oliver Cromwell (1599-1658) e da revolução puritana (1625-1660) as idéias anabatistas retornaram com força, não mais com sua marca separatista, mas como missão moral de transformação. Aliás, o próprio Cromwell foi criticado por ter franca empatia pelos anabatistas. E são nesses anos que cobrem a primeira metade do século 17, que os batistas, muitos dos quais antigos anabatistas, vão construir uma nova identidade religiosa. E talvez o batista que melhor expressou essa realidade foi William Dell, que considerou o uso da coação uma invenção humana, algo deletério que não tinha lugar no Reino de Deus. Dell escreveu um livro chamado “Uniformidade Examinada” e apoiou a revolução dirigida por Cromwell.

Assim, podemos dizer que fatores religiosos, sociais e políticos, entre os quais a revolução camponesa e plebéia de 1525, levaram à construção da eclesiologia anabatista. Tal eclesiologia traduziu a realidade das comunidades anabatistas nos seus confrontos e relacionamentos com o mundo feudal e burguês reformado, em seu papel social e na forma comunitária e democrática de governo dessas comunidades.

A matriz eclesiológica anabatista permanece presente hoje, com releituras e contextualizações, em parte das igrejas evangélicas brasileiras. Por isso, entender que tal eclesiologia não deve estar separada de uma ética política e social é caminho para repensar a missão das comunidades de fé nesta alta modernidade. Tal eclesiologia deve utilizar os meios que possibilitam chegar aos fins que busca. Mas, é necessário entender que quem rejeita todo poder, rejeita políticas. Tal rejeição pode até ser aceita, como no caso da revolução anabatista, desde que as comunidades de fé tenham consciência do que estão fazendo e, coerentemente, proponham a revolução do mundo. Mas as comunidades de fé que repousam sua relação com o mundo numa eclesiologia de tipo anabatista não precisam se omitir diante da política e do poder, mas a partir da não violência ativa podem favorecer a expansão do Reino de Deus, ou seja, trabalhar pela justiça, pela paz e pela alegria. Têm-se, então, uma política cristã, que nasce participativa e se espraia como representativa.

Bibliografia

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Denck, John, (1526) in George H. Williams e Angel M. Mergel, Spiritual and anabatist writers, Filadélfia, TheWestminster Press, 1957, pp. 86-111.
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_____________, As guerras camponesas na Alemanha, São Paulo, Editorial Grijalbo, 1977.
Guenther, Titus, “Las teologías del Tercer Mundo y la identidad anabautista”, in Luis Scott e Titus Guenther, Del Sur al Norte, Aportes teológicos desde la periferia, Buenos Aires, Kairós, 2003, pp. 51-91.
Hubmayer, Balthasar, (1527) in George H. Williams e Angel M. Mergel, Spiritual and anabatist writers, Filadélfia, TheWestminster Press, 1957, pp. 112-135.
Mayeur, J-M., Pietri, Ch., Vauchez, A., Venard, M., "Les Réformateurs radicaux" in Marc Lienhard, Histoire du Christianisme des origines à nos jours (vol. 7, "De la réforme à la Réformation (1450-1530), Desclée, 1994, pp. 830-850.
Münstzer, Thomas, (1524) in George H. Williams e Angel M. Mergel, Spiritual and anabatist writers, Filadélfia, TheWestminster Press, 1957, pp. 47-70.
Séguy, Jean, Les Assemblés Anabaptistes Mennonites de France, Paris e La Haye, Mouton, 1977.
Tillich, Paul, História do pensamento cristão, São Paulo, ASTE, 2000.
Weber, Max, A ética protestante e o espírito do capitalismo, São Paula, Editora Pioneira, 1998.
Zimmermann, Wilhelm, Allgemaine Geschichte des grassen Bauernkrieges (História da Grande Guerra Camponesa), vols 1-3, Sttutgart, 1841-1843.

[Documents Anabaptistes de l'École Biblique Mennonite Européenne (Centre de Formation et de Rencontre du Bienenberg), Bienenberg, 4410, Liestal - Suisse: No. 1, "Lettres de Conrad Grebel à Thomas Münstzer" (1973, 1975)].

Notas
[2] Max Weber, «Anticritique à propos de l´esprit du capitalisme» (1910), in L’Ethique protestante et l’esprit du capitalisme suivi d’autres essais, Paris, NRF Gallimard, 2003, trad. Jean-Pierre Grossein, pp. 344-380. Ver também: Max Weber, A ética protestante e o espírito do capitalismo, São Paulo, Editora Pioneira, 2000, pp. 102, 196-197.
[3] John Smyth (†1617), ministro anglicano, desejava uma reforma profunda do cristianismo inglês. Discordava da organização episcopal anglicana. Formou em Gainsborough uma comunidade dissidente em 1604. Foi perseguido pelo anglicanismo oficial e obrigado a exilar-se com seus companheiros, fugindo para Amsterdã, na Holanda. Ali residiu na casa de um padeiro menonita, que lhe expôs a eclesiologia e a teologia anabatistas. De volta à Inglaterra, ele e seus companheiros fundaram a primeira Igreja batista, que ficou conhecida como a igreja dos Batistas Gerais, porque ensinava que Cristo salvara na cruz todos os fiéis e não apenas os predestinados. Segundo Weber, dos batistas, só os Batistas Gerais tiveram suas origens no movimento anabatista (Weber, op.cit. p. 196). Mas, no que se refere à eclesiologia, também os Batistas Particulares são herdeiros (indiretos) dos anabatistas.
[4] Friedrich Engels, As guerras camponesas na Alemanha, São Paulo, Editorial Grijalbo, 1977, p. 37.
[5] Friedrich Engels, idem, op. cit., p. 47.
[6] Paul Tillich, História do pensamento cristão, O conflito de Lutero com os evangélicos radicais, São Paulo, ASTE, 2000, p. 238.
[7] Paul Tillich, idem, op. cit., p. 238.
[8] Friedrich Engels, Do socialismo utópico ao socialismo científico, in Karl Marx e Friedrich Engels, Textos, volume I, São Paulo, Edições Sociais, 1975, p. 28.
[9] No prefácio do seu livro As guerras camponesas na Alemanha, Engels conta que utilizou como fonte para as pesquisas das insurreições camponesas e de Thomas Münzer o trabalho do historiador Wilhelm Zimmermann (1807-1878), que publicou Allgemaine Geschichte des grassen Bauernkrieges (História da Grande Guerra Camponesa), em três volumes, em Sttutgart nos anos 1841-1843.
[10] Sebastian Frank foi escritor e impressor. Expulso de Strasbourg por ordem das autoridades de Ulm, em 1544, reeditou a Vulgata latina a partir de uma versão revista por Servet. Em 1557, foi preso em Frankfurt por ter impresso um texto sobre a guerra de Schmalkalden. Também editou poetas latinos expurgados pela Igreja Católica.
[11] Caspar Schwenckfeld von Ossig foi um nobre alemão que se converteu ao protestantismo reformado, mais especificamente ao espiritualismo anabatista. Foi um dos promotores da Reforma na Silésia. Schwenckfeld chegou às idéias reformadas através de Thomas Müntzer e Andreas Karlstadt. Divergiu de Lutero em relação à Ceia do Senhor (1524) e seu pensamento influenciou o anabatismo, o puritanismo na Inglaterra, e o pietismo.
[12] Hans Denck, "Confession before the Nuremberg Council, 1525", in Jaroslav Pelikan, Valerie Hotchkiss (orgs.), Creeds and Confessions of Faith in the Christian Tradition , vol. II, New Haven, Connecticut, Yale University Press, 2003, pp. 665-672. Tradução para o português de Paula Coatti.
[13]"The Schleitheim Confession, 1527", in Jaroslav Pelikan, Valerie Hotchkiss (orgs.), Creeds and Confessions of Faith in the Christian Tradition , vol. II, New Haven, Connecticut, Yale University Press, 2003, pp. 694-703.
[14] "The Schleitheim Confession, 1527", in Jaroslav Pelikan, Valerie Hotchkiss (orgs.), op. cit., p. 695.
[15] “As seitas batistas desenvolveram a mais radical desvalorização de todos os sacramentos como meios de salvação e realizaram assim, até as últimas conseqüências, a desmistificação religiosa do mundo”. Weber, op. cit., p. 104.

lundi 2 mai 2011

GT Paul Tillich na ANPTECRE

Venha participar do GT Paul Tillich na Assembléia Geral Ordinária da ANPTECRE 
02/05/2011, na Universidade Presbiteriana Mackenzie (SP). 

Cronograma das apresentações do GT 14
Terça-feira, 03 de maio, das 13h30 às 18h00

Abertura: Etienne Alfred Higuet e Jorge Pinheiro dos Santos:
A pesquisa Tillichiana no Brasil e no mundo
1.       Vitor Chaves de Souza:
A religião bíblica e a identidade narrativa
2.       Cleber Araújo Souto Baleeiro:
Tillich e a crítica da idéia de progresso: aproximações ao pensamento pós-moderno
3.       Kleiton Cerqueira de Almeida:
Há experiência religiosa na recusa ao divino?
Possibilidades da teologia da cultura na arte e revolta em Albert Camus
4.       Hugo Fonseca Alonso Júnior:
A palavra vivente: linguagem como campo de aproximação à interface teologia e literatura
5.       Ricardo Quadros Gouvea:
Teologia qua Escatologia na Teologia da Era de Ouro:
Escatologia em Barth, Bultmann, Tillich e Moltmann
6.       Gustavo Soldati Reis:
O Xamanismo indígena Guarani como expressão demônica da cultura
7.       Etienne Alfred Higuet:
Os métodos da filosofia da religião em Paul Tillich

Quarta-feira, 04 de maio, das 13h30 às 18h00.

8.       Noêmia dos Santos Silva:
O instante que completa a alma: diálogo entre Paul Tillich e Cecília e Cecília Meireles
9.       Elton Vinícius Sadao Tada:
A problemática entre teoria da arte e teologia da cultura em Paul Tillich
10.   Antonio Almeida Rodrigues da Silva:
Razão e Revelação no pensamento de Paul Tillich
11.   Jonas Roos:
Conteúdo e forma: Kierkegaard e Tillich em diálogo
12.   Guilherme Estevam Emílio: A ontologia de Parmênides
e o efeito sofístico na Teologia Contemporânea de Paul Tillich
13.   Manoel Ribeiro de Moraes Junior:
Teologia da Cultura e a Hermenêutica Teológica no quadro das Ciências da Religião
14.   Eduardo Gross:
Considerações sobre a perspectiva de Donald Dreisbach sobre a “hermenêutica de Tillich”
15.   Jorge Pinheiro dos Santos:
Huguenotes e Tupinambás,
encontros e desencontros do pensamento calvinista com a cultura Tupi-Guaraní
16.   Paulo Ronaldo Braga Leal:
Paralelos entre Tillich e Heidegger:
elementos críticos entre o conceito de Deus e do Ser.
 

jeudi 28 avril 2011

Elementos para uma hermenêutica da complexidade

Prof. Dr. Jorge Pinheiro

Por três séculos, desde Isaac Newton, os cientistas descreveram o mundo como semelhante a uma máquina. Governando o mundo estavam os princípios de regularidade e ordem. Todas as coisas eram a soma das partes; as causas e efeitos estavam ligados linearmente; e os sistemas moviam-se de modo determinístico e previsível. É claro que os cientistas desde longo tempo estavam atentos para os fenômenos que contradiziam a lógica linear: as formas espirais das chamas de fogo, os redemoinhos em correntes e as formações de nuvens, por exemplo, não podiam ser representadas por simples equações lineares.

O desenvolvimento da teologia a partir do final do século 20 baseando-se em hermenêuticas da alta-modernidade que tinham por base as ciências naturais e a teoria de sistemas sugeriu modelos diferentes para se pensar como as coisas ocorrem e daí a percepção de que a revelação e como consequência a compreensão de Deus, da Trindade e da Cristologia, por exemplo, só podem ser compreendidos a partir de abordagens fundamentalmente não-lineares.

O significado da palavra complexidade remete àquilo que encerra elementos, conjunto de coisas, fatos e circunstâncias que têm nexo entre si. E caos, palavra que sempre aparece quando de discute a complexidade, é entendido como vazio obscuro e ilimitado que precede e propicia a geração do mundo. Mas, na construção do conceito complexidade para uso hermenêutico, partindo da filologia, vamos mais fundo na construção de uma definição e vemos complexidade e caos como aqueles comportamentos impresivíseis que aparecem em sistemas regidos por leis deterministas, o que se deve ao fato de as equações não-lineares que regem a evolução desses sistemas serem extremamente sensíveis a variações em suas condições iniciais, ou seja, pequenas alterações no valor de um parâmetro podem gerar mudanças significativas no estado do sistema.

Assim, determinadas questões teológicas são praticamente impossíveis de serem compreendidas numa abordagem tradicional de causa-efeito. Mas as dificuldades sempre eram atribuídas à impossibilidade de se isolar os ruídos externos ao sistema teológico, ruídos esses que levavam às distorções de compreensão. Entretanto, o que deve ser visto é que nos sistemas dinâmicos, a incerteza e o caos são gerados internamente pelo próprio sistema, devido à sua não-linearidade e não exclusivamente por fatores externos. Ou seja,  a complexidade e o caos podem surgir de regras simples aplicadas de forma recursiva. A resposta, então, para questões teológicas não está na procura de mais informações para tentar encontrar uma relação de causa-efeito, mas em entender quqis regras básicas regem o comportamento do sistema, que tipo de feedback existe, de que forma este feedback atua no sistema e o tipo e duração dos ciclos de retro-alimentação.

A razão de tal abordagem 

Parte do que chamamos de hermenêutica da dinâmica não-linear ou hermenêutica da complexidade para uso na teologia tem por base hermenêuticas provenientes da biologia, física, química, economia e sociologia do final do ´seculo 20, onde o caos refere-se às áreas de instabilidade de fronteira, o que para nós significa, em termos teológicos, que se move entre o equilíbrio de um lado, em especial a revelação, e a complexa situação randômica da vida humana.

Em sistemas caóticos não-lineares, as ligações entre causa e feito desaparecem pela amplificação de feedbacks que podem transformar fracas variações iniciais em severas conseqüências. O futuro de tais sistemas não é passível de ser plenamente conhecido.

Donde, a importância de uma hemenêutica da complexidade para que se possa melhor compreender entre revelação e espiritualidade humana e suas expressões estruturais e organizacionais. Essas estruturas são sistemas complexos constituídos por agentes interativos com uma tendência aparente para a auto-organização, pois as pessoas nos mercados religiosos são adaptativas, de modo que as regras de seu comportamento mudam à medida que elas aprendem.  Pois, na verdade, este mundo não é aquele representado pela metáfora de uma máquina. As coisas são mais do que a soma de suas partes; equilíbrio é morte; causas são efeitos e efeitos são causas; desordem e paradoxo estão em toda parte.

Por isso, dizemos que uma hermenêutica da complexidade deve levar em conta que

·                  Na modernidade, a hermenêutica foi entendida como aparato de feedback negativo, que possibilidade a construção de doutrinas e dogmas e encaminha fiéis na direção correta pela correção de seus desvios do plano traçado. À luz da hermenêutica da complexidade o quadro é mais complicado. As hermenêuticas modernas, de origem iluminista, estão corretas para leituras ligadas às rotinas do viver diário, mas no que tange a produção criativa de conhecimento teológico que responda às necessidades humanas no mundo da alta modernidade, elas se encontram em crise. Os resultados não desejados de suas ações não podem ser plotados porque a estrutura do sistema torna o futuro impossível de ser controlado. O corolário é que o dogma viável não é algo que é o resultado de um intento prévio de um líder visionário, em vez disso, emerge das múltiplas possibilidades lançadas por várias dinâmicas em colisão com a vida humana. Assim, os teólogos deveriam se pensar como jardineiros, que em vez de intencionarem, deveriam trabalhar possibilidades.

·                  Na literatura da teologia moderna, os teólogos controlaram suas produções a partir de estruturas e procedimentos ordenados. Se isso é tudo o que nós podemos fazer em um mundo complexo, a igreja está destinada a seguir o caminho do Tyrannosaurus rex. A tentativa de estabilizar o sistema leva a torná-la incapaz de interagir com o mundo e possibilitar a criação de alternativas futuras.

·                  Os teólogos modernos enfatizaram que as culturas e os valores compartilhados são essenciais para conduzir a igreja no futuro. Em condições dinâmicas, onde o futuro é formado por múltiplas e variadas possibilidades, hermenêuticas monolíticas provavelmente falharão na geração da criatividade teológica necessária para dotar a igreja de adequadas opções. Por isso, as diversidades de opiniões e abordagens são importantes. O pensamento único, que não comporta diferentes visões, pode ter sido um dos fatores cruciais para a crise de parte da igreja no mundo moderno e, em especial, nas últimas décadas do século 20.

Teólogos modernos acreditaram que o sucesso da igreja seria o resultado da manutenção de um equilíbrio adaptativo com o mundo moderno. Se isso fosse verdade, a liberdade da religiosidade no século 20 deveria ter sido reduzida à escolha da adaptação certa ou errada. Mas no mundo da complexidade, os riscos são muito maiores. Primeiro porque equilíbrio significa morte, exatamente o contrário do que pensava a velha teologia. Segundo porque em condições não-estáveis, o ambiente humano também se adapta à igreja tanto quanto esta a ele. As implicações disto significam que a igreja não pode culpar o mundo por suas falhas: a igreja deve ser vertiginosamente livre para criar seu próprio futuro.

O desafio da virtualidade

Há um verso de Friedrich Nietzsche que pode nos servir de guia para uma leitura da alta-modernidade: “Agora celebramos, seguros da vitória comum,/ a festa das festas:/ O amigo Zaratustra chegou, o hóspede dos hóspedes!/ Agora o mundo ri, rasgou-se a horrível cortina,/ É hora do casamento entre a Luz e as Trevas...” [1]

Nietzsche pensa a ausência de horizontes. Em “Além do Bem e do Mal”, ele pensa contra a modernidade: faz um libelo contra os valores da modernidade, como o sentido histórico, a objetividade científica e, logicamente, a fé num Deus absoluto e numa razão autônoma. Assim, é o caso de perguntar: é possível continuar existindo algum contato com a realidade, quando a virtualidade fica indistinguível e até mesmo mais autêntica que o original, quando podemos criar mundos sintéticos que são mais reais que o real, quando a tecnologia gloza a natureza?   

Hoje, um teólogo norte-americano percorre, sob outras condições, questionamentos idênticos aos levantados por Nietzsche: Mark C. Taylor. Ao trabalhar a questão da virtualidade na sociedade da alta-modernidade, utiliza um conceito que já vinha sendo usado na crítica literária, a idéia de imagologia. Antes, na teoria literária, e agora na hermenêutica de Taylor, a identidade do sujeito não pode ser encarada como uma forma de ser plena e apriorística, mas como realidade dinâmica ou relacional, onde se cruzam questões de identidade pessoal e social, o que também se dá na virtualidade, que acaba sempre por revelar uma dimensão estrangeira, que é manifestação de um outro. Na medida em que há constante busca identitária, o confronto com este outro supõe sempre uma comparação, explícita ou implícita, e se integra naquilo que, na terminologia de Taylor será a imagologia, estudo das representações do outro, que também pode ser entendido como virtualidade.

Nos últimos anos essa questão tem sido tema tanto da arte e da ciência e agora da própria teologia. As mídias têm demonstrado a força das realidades artificiais.

Essa questão, realidade e imagem na sociedade imagológica, já tinha sido analisada por psicólogos da escola piagetiana. Segundo eles, é difícil ensinar a pensar de modo lógico a um menino que está sob o bombardeio de imagens distantes da lógica, como acontece nos programas infantis. E onde até mesmo as entrevistas ao vivo fazem parte da criação de algum gênio da publicidade. A moda e o show bizz, por exemplo, fazem parte desta realidade, onde o que é apresentado pelo entrevistador não tem nada a ver com a realidade da audiência ou com o próprio artista/produto, já que suas imagens sofrem uma transformação mágica para poder ser popular, ou pelo menos este é o objetivo.

Para Taylor, a sociedade imagológica leva à ansiedade que circula acima e debaixo do chão, que tem crescido e emaranhou-se num complexo tecnológico e de redes financeiras , o que tornam, por exemplo, o terrorismo global possível.[2]

“Com a informação e o dinheiro que correm ao redor do mundo à velocidade da luz,  nenhum de nós está seguro, porque qualquer um está no controle. As redes de terroristas assombram a estrutura e através da Web atuam nas comunicações e sistemas financeiros globais. Eles foram mais efetivos utilizando as tecnologias contra nós do que nós em nossa capacidade de usar essas tecnologias contra eles. Nós não seremos capazes de enfrentar redes de terroristas até que melhoremos a compreensão da lógica e operação de nossas próprias redes. Nestas teias emaranhadas e nas redes, está o limite entre nós e eles, dentro e fora, para quem nada é fixo e imóvel, mas restos fluidos e móveis”.

Vivemos, por isso, ainda segundo Taylor, um momento de complexidade sem precedentes, onde as coisas mudam mais rapidamente que nossa habilidade de compreender, por isso devemos resistir à tentação de procurar respostas simples. “As mesmas redes que conduziram à nossa superioridade econômica e militar durante a última década, nos fazem vulneráveis agora. Nossa força se tornou nossa fraqueza”.[3]
       
Diante disso, será possível distinguir entre realidade e virtualidade na sociedade imagológica, se a tecnologia constrói a nova realidade? Bem, para Taylor vivemos um mundo colocado num processo de equilíbrio instável. E para entender isso, ele nos leva às margens do sistema.   

“A complexidade é marginal e fenômeno emergente. Nunca está fixa, a complexidade é móvel, é sempre momentânea e o momento marginal de seu aparecimento é inevitavelmente complexo. Longe de ser um estado, o momento emergente, repetidamente, constitui e reconstitui o fluxo de tempo, enquanto impulso que mantém tudo em movimento. É significante que a palavra momento derive da idéia de impulso em latim, mostrando movimento como sendo também impulso. Embora freqüentemente representasse um ponto simples, o momento é inerentemente complexo. Seus limites não podem ser firmemente estabelecidos, porque sempre estão trocando de modos, que dão fluidez ao momento. Vivemos o domínio do intermediário, que a teoria da complexidade tenta entender”.[4] 

A dinâmica do caos e da complexidade,[5] explica Taylor, parte de certas características que diferem em importância e modos. A teoria do caos foi desenvolvida como um corretivo para os sistemas fechados e lineares de físicas de Newton. Diante da ausência de ordem, caos é uma condição na qual a ordem não pode ser averiguada por causa da insuficiência de informação. Enquanto a física de Newton imagina um mundo abstrato governado por leis definidas, que determinavam completamente as coisas reais, a globalidade não é transparente porque não temos a informação adequada e necessária para estabelecer leis, assim toda operação é sempre inacessível. Embora haja razões para esta situação, duas são notáveis neste contexto.

Primeiro, sistemas finitos não estão fechados, mas estão abertos e incompletos. E, segundo, alguns sistemas envolvem relações que não podem ser entendidas em termos de modelos lineares de causalidade. Nos sistemas recorrentes é impossível medir as condições iniciais com precisão para determinar as relações causais num período muito limitado de tempo.[6] Então, a imprevisibilidade é inevitável. Ao contrário dos sistemas lineares, nos quais causas e efeitos são proporcionais, em sistemas recorrentes, a avaliação é complexa, porque esses sistemas se auto-alimentam e na recorrência geram causas que podem ter efeitos desproporcionados.

Em contraste com a teoria de caos, a teoria de complexidade está menos interessada em estabelecer a fuga ou o caos determinado. Oscilando entre ordem e caos, o momento de complexidade é o ponto no qual ego-sistemas organizados emergem para criar novos padrões de coerência e estruturas de relação.[7] Tendo crescido fora das investigações das ciências biológicas, a percepção de teoria da complexidade pode ser usada para iluminar as questões sociais e culturais.

E Taylor cita o biólogo Stuart Kauffman, que escreveu “At Home in the Universe: The Search for the Laws of Self-Organization and Complexity”,[8] onde pergunta o que há de comum entre as moléculas que se apressam em auto-reproduzir metabolismos, as células que coordenam esses comportamentos para formar organismos multicelulares e os ecossistemas e os sistemas econômicos e políticos? A possibilidade da vida, que evolui entre um regime equilibrado de ordem e caos, é o que há de comum entre esses processos.

A hipótese é esta: a vida existe enquanto extremidade do caos.[9] Partindo da metáfora da física, a vida existe ao lado de um tipo de transição de fase. A água existe em três estados, gelo sólido, água líquida e vapor gasoso. Começamos a ver que idéias semelhantes podem ser aplicadas aos sistemas complexos. Sabemos que as redes de genomas que controlam o desenvolvimento do zigoto podem existir em três regimes: ordenado congelado, caótico gasoso e líquido aquoso, localizados na região entre ordem e caos. É uma hipótese adorável, para Taylor, que sistemas de genomas ordenem regimes de transição entre uma ordem e o caos.

Em tais sistemas, o regime ordenado congelado também coordena as sucessões complexas das atividades genéticas necessárias. Mas, nessas redes, também o regime gasoso caótico, perto da extremidade de caos, pode coordenar atividades complexas e evoluir. A partir das redes, com que Kauffman está preocupado, a análise pode ser estendida à comunidade social e às dimensões culturais. Equilibrado entre uma pequena ou grande ordem, o momento de complexidade é o meio no qual a cultura de rede está emergindo. [10]

E Taylor projeta a discussão da teoria da complexidade para a teologia, ao afirmar que a noção de que as fundações referentes a Deus tenham desaparecido é ameaçadora para muitas pessoas. Esse assunto é um tema recorrente em teologia. Pensadores importantes na história de filosofia ocidental, como Nietzsche, colocaram tal discussão na ordem do dia e influenciaram pensadores da alta-modernidade como Derrida. Uma das coisas que golpeia o pensamento moderno é a ênfase desses filósofos na importância de entender que a idéia de fim de fundamentos é uma metáfora, assim como a teoria da complexidade é uma metáfora[11] ao nível da física.

Há freqüentemente rastros de metafísica nas palavras que usamos: entender é um exemplo disso. Entender algo é não agarrar alguma coisa superficialmente. O ato cognitivo envolve apreensão dentro de condições de superfície e relativos à profundidade. A distinção entre informação e entendendimento é muito complexa. No domínio onde as pessoas pensam em informação devemos falar de sobrecarga de informação. Somos bombardeados com   informação de todos os tipos.
  
Entender é um modo de organizar e estruturar a informação. Na revolução da informação, dispositivos filtrantes estão começando a emergir. É crucial entender o poder das pessoas que criam estas grades culturais. Este é um dos temas de Imagologies.[12] Essas grades culturais desenvolvem-se gradualmente e mudam para prover vigamentos interpretativos que criam a possibilidade de construir compreensão de informação na qual estamos imersos. 

Temos dois mundos, um é o mundo tradicional, o mundo da pessoa. É um mundo platônico, no qual o assunto percebido é colocado num nível agradável de fundação. Este mundo está presente, mas também está acima, é a transcendência. Esse modelo se torna um modo de saber. Quando começamos a conceber algo, concebemos figurando em termos de modelo. Através do contraste descrevemos um mundo no qual um modelo diferente predomina. Temos interações de planos, modelos e processos. A pessoa poderia chamá-los locais de consumo. Uma estrutura não é aquilo que alguém busca. A pessoa enfatiza movimento e troca, troca de informação, bens, etc.
  
Os modelos de que falamos não são apenas conceituais. Na epistemologia de Kant, segundo Taylor, todo conhecimento emerge de uma interação entre o que ele chama categorias do entendimento e as formas de intuição, que são filtros através dos quais processamos informação. Kant vê essas categorias como universais. Se alguém pensa as categorias kantianas como um vigamento historicamente emergente de interpretação, em constante processo de formação, deformação e reforma, estamos diante de um salto como o das tecnologias de produção e reprodução em qualquer sociedade determinada. Começamos então a ver os modos em que processamos a experiência, onde o conhecimento é constituído em fluxo constante.

Não é apenas uma questão de como pensamos, é uma questão de como vemos, ouvimos e tememos. Quando vejo meus alunos assistirem um filme, está claro para mim que foram socializados de modos diferentes do que eu fui. Eles vêem coisas que eu não vejo, eles ouvem coisas que não ouço, da mesma maneira que quando leio Lutero, vejo coisas que eles não vêem. As novas mídias abrem uma percepção nova e capacidades de apercebimento. O ponto em que se faz a troca também é uma questão importante. Uma das coisas que o estruturalismo nos ensinou é que em lugar de ser um local de origem, o assunto deve ser entendido como constituído dentro e pelas redes de troca no qual está imbricado. É um tipo complexo de reversão. Pensando nessas estruturas como criadas por um tema original, temos que pensar no assunto como uma função das redes estruturais nas quais está situada.  

Essas redes estruturais levam a todos os tipos de formas. Podem ser econômicas, sociais, culturais, etc. Entender o sujeito como constituído por redes de troca é muito importante.  
 
No século 19 tivemos o herói romântico, a figura de Beethoven, a idéia de gênio. Temos que voltar e olhar para a noção de gênio em Kant, que é crítico. O que constitui gênio?   Originalidade. Ser original significa não ser influenciado por nada diferente do ego da pessoa. O gênio é, em efeito, o imóvel que tudo move da teologia aristotélica. Deus é o criador porque Deus não depende de nada diferente dele para criar. Aquela noção de criatividade como absolutamente original é deslocada no gênio romântico como aquele que cria fora dele. Criatividade romântica se estende à ética e à política. Kant define liberdade como autonomia ao invés de heteronomia. Heteronomia vem do nomos e do heteros grego que significa receber a lei de outro. O outro de quem se recebe a lei poderia ser Deus ou poderia ser um soberano político, o rei.
 
A troca da heteronomia pela autonomia é a troca de um condicionamento: é dar a lei para outro alguém, um condicionamento no qual a lei é dada ao ego da pessoa. Isto quer dizer, o indivíduo livre é alguém que não é determinado ou que se exclui. Este é o ego referencial da noção de liberdade. O modelo consiste em trocar a noção de assunto centrado, para uma visão do sujeito, em termos de sistemas de troca no qual assuntos individuais são algo como locais de consumo. Tomemos a noção de troca como crucial, mas pensemos em redes. Em lugar de assuntos que criam estruturas, estruturas criam assuntos. Cada assunto se torna algo como o nó de uma teia infinita de relações. 

A situação da pessoa dentro daquela rede que envolve trocas de todos os tipos, econômicas, psicológicas, simbólicas, etc., constitui a particularidade do assunto. Esse é um dos momentos altos de Hegel. São as relações que constituem a particularidade de qualquer indivíduo. Nos tornamos indivíduos em virtude de nossa situação dentro de redes complexas. Estas, porém, não são redes fechadas e estáveis como os estruturalistas e Hegel pensaram, mas estão abertas e em constante mudança. Então, subjetividade nunca é um produto acabado; está em mudança porque as redes dentro das quais se inscreve estão em permanente mudança. 

Todas as tecnologias podem se desenvolver de diferentes modos. Um dos problemas como percebemos o reino de Deus na terra é que não está separado da maneira como percebemos nossos piores medos. Da mesma maneira que Deus é apresentado como onisciente e pode controlar tudo, nas sociedades modernas tudo está sendo visto, exemplo são as tecnologias de vigilância que se tornam um poder penetrante e político. 

Assim tais economias, a da representação e a da dominação, operam dentro de estruturas de referência que reivindicam para si o referir-se ao outro e são estruturas de ego-referência que usam o outro, humano ou divino, para a conformação de soberania.

“No esforço para afiançar sua identidade e estabelecer sua presença, o ego descobre sua inevitável diferença e ausência irreprimível. Embora lutemos para negar isto, esta é a realidade. A procura pela ego-presença em autoconsciência conduz à descoberta da ausência do ego. A auto-afirmação e a ego-negação provam estar ligadas indivisivelmente. Ser ego aparentemente tornou-se não ser ego. A viagem de volta ao ego é uma viagem perigosa – tanto quanto aquela da cruz. Na representação de si mesmo, o sujeito é quebrado e aberto. A quebra do sujeito é registrada pelo rastro. O rastro é, em geral, a abertura do sujeito à exterioridade, à relação enigmática do viver sem o outro e de um interior para um externo: espacial. A ausência sempre está presente, e o exterior é sempre isto: morte. O presente vivo sempre é marcado pela morte. E esta morte, esta morte eterna, é a não-conservação que assombra a presença. Dentro do espaço do rastro se inscreve uma cruz que marca o local do desaparecimento do ego”.[13]

É provável que a maioria das pessoas tenha alguma idéia do que é a realidade imagológica e de como a tecnologia é usada para prover uma interface mais íntima entre a coisa humana e a coisa relativa. E como se faz para que dados sensoriais se transformem em experiência real. No entanto, o fundamental é analisar a representação que se coloca por trás da imagem e dentro da estrutura. Pode-se dizer que tudo aquilo que o computador faz é uma simulação, mas para definir simulação é necessário das respostas científicas e matemáticas. Assim, a realidade da imagem, que poderia ser um novo paradigma, se tornou uma metáfora. É um conceito estranho e provocante, com um certo senso de aventura tecnológica. Esta filosofia da ego-reflexão, iniciada por Descartes, alcança seu ápice no idealismo especulativo de Hegel. Taylor explica:

“A Idéia hegeliana, que fundamenta toda a realidade, é uma totalidade estrutural na qual tudo está dentro e tem seu próprio outro. Alteridade e diferença são componentes essenciais da ego-identidade, a relação entre alteridade e diferença é, em última instância, ego-relação” (Tears, 93).
  
Assim, o outro, nos modernos projetos filosóficos de estruturas totalizantes, é um outro de valor utilitário na construção do ego. Quando o outro resiste a este papel, quando recusa ser usado ou consumido, sua territorialidade é invadida ou sua alteridade colonizada.[14]
   
Dessa maneira, a realidade da imagem que o computador nos oferece termina sendo real. Promete a realidade virtual, que deixa de ser metáfora, e se transforma em criação verdadeira, global, fantástica, terrível. Nesse sentido, a imagem deixa de ser metáfora e se faz metafísica.

Assim, para Taylor, a globalização que tem suas próprias tecnologias, computarização, miniaturização, digitalização, comunicações de satélite, fibra óptica e internet, criou a partir delas uma perspectiva que é a globalização. Ou seja, estamos diante da recorrência da teoria da complexidade. Se a perspectiva da Guerra Fria era a divisão, a perspectiva da globalização é integração forçada. O símbolo do sistema de Guerra Fria era um muro que dividia o mundo. O símbolo da globalização é a Web, que une o mundo. O documento da Guerra Fria era o tratado. O documento da globalização é o sistema de transação.
 
“Estes processos de globalização criam uma nova cultura de rede cuja lógica complexa e dinâmica só agora começamos a entender. O contraste entre grades e redes clarifica a transição do sistema de Guerra Fria para o de cultura em rede. O sistema de Guerra Fria foi projetado para manter a estabilidade através de relações complexas e situações que deveriam ser simplificadas em termos de grades com oposições precisas: Leste/ Oeste, esquerda/ direita, comunismo/ capitalismo, etc. Este era um mundo onde as paredes pareciam prover segurança. Paredes e grades, porém, não oferecem nenhuma proteção diante da possibilidade de se criar teias. Assim, as paredes se desmoronam e tudo começa a mudar”.[15]

Uma nova economia desloca o velho e uma ordem mundial nova aparece no horizonte. Nesta situação, as oposições estruturais que tinham formado o pensamento e a política, enquanto guia no tempo, se desfazem e o equilíbrio de forças desaparece. Considerando que as paredes dividiam e traduziam um esforço para impor ordem e controlar, teias unem e relacionam, emaranhando o mundo, transformando e definindo conexões nas quais ninguém realmente está no controle. Como proliferam conexões, a mudança se acelera, trazendo tudo à extremidade do caos.

Ou como dirá Derrida: “O fim do homem (como limite antropológico fatual) anuncia-se ao pensamento depois do fim do homem (como abertura determinada ou infinidade de um telos). O homem é o que tem relação como o seu fim, no sentido fundamentalmente equívoco desta palavra. Desde sempre. O fim transcendental só pode aparecer e desdobrar-se sob a condição da mortalidade, de uma relação com a finitude como origem da idealidade. O nome do homem sempre se inscreveu na metafísica entre estes dois fins. Só tem sentido nessa situação escato-teológica”.[16]

Assim para Derrida, a unidade destes dois fins do homem, a unidade da sua morte, do seu acabamento, do seu cumprimento, envolve os conceitos de telos, eidos, ousia e alethéia. Dessa maneira, o pensamento do fim do ser humano sempre esteve prescrito na metafísica, no pensamento da verdade do ser humano. E o que hoje é difícil pensar é um fim do ser humano que não seja uma teleologia na primeira pessoa do plural. O nós que articula a consciência natural e a consciência filosófica assegura a proximidade a si entre fixo e central, para a qual se produz essa reaproximação circular. O nós é a unidade da antropologia e do saber absoluto, do homem e de Deus, do humanismo e da teologia.[17]

O niilismo reconhece que a reductio ad hominem é percebida atualmente como uma reductio hominis. A noite trazida pelo fim do fundamento é uma noite em que toda identidade individual perece. Quando o fundamento desaparece, o ser humano não se levanta autônomo e só. Ele deixa de estar de pé, deixa de colocar-se a si próprio e ao mundo, deixa de ser autônomo e separado. Já não conserva individualidade e autoconsciência, já não conserva identidade e autonomia em si mesmo. O fim do fundamento encarna a morte do toda individualidade autônoma, um fim de tudo que é humanidade criada à imagem de Deus.[18]
   
Mas será que a realidade, que se pensava firme e objetiva, que sustentava o mundo das incertezas, desmoronou sob imagens? Em 1991, durante a primeira conferência sobre Realidade Virtual feita na Grã Bretanha, os participantes constataram que a tecnologia podia trabalhar a realidade a ponto de criar uma realidade que vai além. E a relação imagem versus realidade se tornou preocupação teológica, quando se descobriu que ela abria a possibilidade de uma reflexão que rompe as tradicionais relações entre imanência e transcendência.

Taylor, em um de seus trabalhos, “O fim da Teologia”, mostra que na modernidade a teologia oscilou entre enfatizar a transcendência ou imanência divinas. Os exemplos que dá para ilustrar esses extremos são Karl Barth, que procurou reafirmar a transcendência diante da degradação da realização humana, e Thomas Altizer que tentou restabelecer imanência divina como afirmação dos valores humanos. Em resposta a esses projetos, Taylor pergunta:  

“O que não pensaram Barth e Altizer? O que a alternativa transcendência versus imanência omite? Há um elemento não dialético que vaga entre a dialética de um e de ambos? Este elemento poderia não ser nem transcendente, nem imanente? Este elemento abre o tempo-espaço de uma diferença diferente e outro outro -- uma diferença e um outro que não inverte, mas subverte as polaridades da reflexão teológica e da filosofia ocidental”.[19]

Tal questionamento nos leva a um modo de pensar que nos mantém “abertos a uma diferença que não podemos controlar e nunca poderemos dominar”.[20] Isto significa falar dos limites, uma parapráxis que resiste ao fechamento e niilismo do fundamentalismo religioso, que denigre o mundo, e do antifundamentalismo religioso, que santifica o mundo. Nem a não-declaração da religião fundamentalista, nem a declaração positiva do humanismo religioso criam espaços através do qual o sagrado pode ser olhado brevemente, uma afirmação de alteridade e diferença sem fim.

Taylor, como Nietzsche, mostra as falhas das estruturas totalizantes da verdade e explora os restos que sobraram.[21] Em um movimento consoante com Nietzsche, Taylor em seu livro “Erring, A Postmodern A/theology”, e em seus escritos posteriores, expõe a relação entre estruturas lingüísticas de representação amarrada à “presença atual ou possível de um significado transcendental” e estruturas sociais, políticas, econômicas de dominação (Tears, 206). Assim, a noção de resto é explorada por Taylor em sua apresentação dos escritos de Derrida em “Altarity” (255-303).  

Para Jaci Maraschin, cientista da religião, Taylor tem chamado a atenção para a falácia da visão platônica da vida e do mundo.

“Permitam-me citar este trecho de um de seus livros: ‘No fim, tudo se reduz à questão da pele. E dos ossos. A questão da pele e dos ossos é a questão do esconderijo e da procura. E essa é também a questão da detecção. Será a detecção ainda possível? Quem são os detetives? Quem são os detectados? Existe ainda alguma coisa que possa ser escondida? Existirá ainda algum esconderijo? Poderá ainda alguém continuar a viver escondido? Será que a pele esconde alguma coisa ou tudo não passa de pele? Peles roçando peles... peles, peles, peles, peles...’”.[22]

Assim, continua Maraschin, nos anos 1970, Barthes já suspeitava do que Taylor iria afirmar no final do século:

"Na multiplicidade dos escritos, tudo precisa ser desenredado e nada decifrado; a estrutura pode ser percebida, "desenrolada" (como a linha das meias) em todos os pontos e níveis, mas nada haverá debaixo disso; o espaço da escrita é para ser percorrido, não violado; a escrita oferece incessantemente o sentido para evaporá-la, da mesma forma, incessantemente, desenvolvendo a extinção sistemática do sentido. Precisamente dessa maneira a literatura (seria melhor daqui para a frente falar de escrita) ao recusar aceitar determinado ‘segredo’, transforma-se em atividade última, atividade essa verdadeiramente revolucionária posto que a recusa de fixar sentidos é, afinal, a recusa de Deus e de sua hipótese – razão, ciência e lei".[23]

Assim, para Taylor, o fim do fundamento é seguido pela morte do assunto autônomo.[24] O desaparecimento de um requer o desaparecimento do outro. Mas, o fundamento não desapareceu simplesmente, ele foi lançado fora. Esta é a questão: o fundamento não morreu, mas torna-se humano.

“Uma das coisas que precisam ser pensadas neste contexto é globalização. É o caso de perguntar qual será o impacto das tecnologias na noção tradicional de estado-nação. Podemos antever tais problemas quando vemos como os processos econômicos globais criam dificuldades para as economias locais e nacionais. Outra questão é a relação entre espaço físico  e identidade política, já que a identidade geográfica e cultural é fundamental para a pessoa, enquanto mediação simbólica. Parte do processo de globalização seguramente é a globalização do capital, o fluxo livre de capital via fibra óptica através de redes no mundo inteiro, e por isso não restrito aos limites nacionais”.[25]

As pessoas não falam sobre o outro lado da globalização, que é a questão do trabalho. Quando tecnocratas, uma elite empresarial internacional, ou trabalhadores pobres têm que sair de seus países para encontrar trabalho, estamos diante da nomadização do trabalho neste mercado global que está inseparavelmente ligado à globalização de capital. A desterritorialização do trabalho coloca de um lado a relação entre lugar físico e identidade política e de outro a noção de espaço simbólico. Da mesma maneira que as redes sofisticadas são para a comunicação, o lugar primário de comunidade e identidade pode ser trocado de lugar físico para espaço telemático,[26]  criando um tipo diferente de configuração política. 
  
Espaço telemático é o espaço mediado pelas tecnologias de telecomunicações, televisão, rádio e internet. Aliás, Taylor em um de seus seminários procurou criar um espaço desterritorializado para suas aulas, o que o levou a considerar que esse processo não pode ser visto apenas como negativo.
 
Os processos de desterritorialização não são totalmente negativos. Se a pessoa olha para a Iugoslávia, e o tipo de lutas territoriais que acontecem lá, exemplifica Taylor, o esforço para retificar o choque territorial pode ser considerado positivo. Uma das oportunidades das novas tecnologias é criar um espaço para a troca global. E isso é muito importante para pedagogos que podem entrar nesse espaço para apresentar modos construtivos e criativos.
 
Há uma conexão entre os tipos de discussões da academia e da cultura relativo às perguntas do cânon literário. Há uma certa semelhança entre os debates dentro dos Estados Unidos e os tipos de desenvolvimentos que vemos em lugares como a Bósnia. As forças que emergem da globalização são irresistíveis. A internet criou um foro que nunca existiu. O mundo no qual nossos estudantes estão vivendo e trabalhando não é o mundo no qual fomos educados. Nós temos a tarefa de preparar os estudantes para o mundo no qual estão se movendo. O mundo seria melhor se nós e nossos estudantes nos encontrássemos no espaço comum de salas de aula globais.

Nossa amnésia cultural é extraordinária.[27] Esquecemos que a universidade é uma invenção moderna. A fotocópia azul da universidade moderna foi posta abaixo por Kant no fim do século 18. A estrutura da universidade moderna tem como modelo a indústria moderna. Parece ingênuo pensar que as mudanças associadas ao modelo industrial, fabricando economia para um contexto pós-industrial de informação não leve a uma universidade da alta-modernidade. 

E aqui Taylor arrisca-se a entrar no campo da futurologia, ao afirmar que a universidade da alta-modernidade será caracterizada por muitas das práticas pós-industriais. O número de universidades será reduzido. Haverá uma crescente especialização dentro das universidades. Como fica cada vez mais difícil para as universidades fazer todas as coisas, a noção de que cada universidade deve ser um todo se desmoronará. O que significa isso? Departamentos serão eliminados, programas serão reconstruídos e reconfigurados.
 
Mas há oportunidades nesta situação.[28] Tipos diferentes de oportunidades educacionais surgirão para as instituições, não só para compartilharem recursos dentro uma nação, mas globalmente. Talvez nem toda universidade precisará de departamento de Filosofia. Tipos diferentes de instituições vão surgir. Será discutida a viabilidade da educação residencial. Terminou a idéia  de alguém que recebe educação após o secundário deva ter entre 18 e 22 anos. Pessoas serão educadas em fases diferentes e ao longo de suas vidas e sempre poderão cursar uma faculdade residencial. Atualmente, cybercolleges já existem. Um dia não só terão cursos on-line, mas a pessoa poderá participar das discussões de sala de aula sem sair de suas casas.

Como estudioso de religião, diz Taylor, tenho que ser cauteloso em relação a reflexões milenaristas. Um dos desafios em relação a essas  mudanças não está em divinizar nem em demonizar propostas. Penso que tais mudanças são inevitáveis e devemos refletir como a tecnologia pode ser usada para promover os valores com os quais estamos comprometidos.

Gosto da relação entre oportunidade e otimismo. É crucial entender o que está emergindo como oportunidade e não somente como ameaça. O fantasma de Hegel nunca está longe: a resistência ao processo de globalização é uma negação,  e a negação se negará, afirmando os processos que está tentando resistir. Minha alma intelectual está suspensa entre Hegel e Kierkegaard. O trabalho que fiz em áreas do pós-estruturalismo, foi um esforço para repensar um encontro entre o Hegel e Kierkegaard. Penso que a desconstrução de Derrida e o pós-estruturalismo abarcaram todos os campos. Derrida entende assim, embora seus seguidores não necessariamente. Derrida entende a tradição filosófica, mas seus seguidores tendem à tradição filosófica só por causa dele. Não entendem a riqueza da tradição dentro da qual o pensamento de Derrida emergiu. 
 
Para Taylor, dado a situação histórica do pós-estruturalismo, que emergiu em meio ao século 20 europeu, a persistência da crítica aos sistemas e estruturas como totalizantes é compreensível. Isto foi importante, porque permitiu abrir para a diferença e alteridade de modos novos e criativos. Tem sido política, intelectual e culturalmente importante ter feito o movimento da desconstrução. O problema agora é que o gesto da crítica aos sistemas e estruturas também se fez totalizante. Embora as estruturas hegemônicas não tenham desaparecido, temos uma tendência a fetichizar alteridade e diferença, de modo que não permite comunalidade e conexão. Esta é a razão que levou o pós-estruturalismo a viver um tipo de fechamento.  

O desafio é repensar sistema e estrutura de tal um modo que possamos imaginar estruturas não-totalizantes, que possam criar possibilidades para conexão e cooperação, que reconhecem a necessidade e a inevitabilidade de interconexões sem ter essas estruturas repressivas. 

Se não podemos imaginar aquela estrutura não-totalizante, parece que o futuro é escuro. Na lógica de redes e teias há um modelo alternativo para sistemas e estruturas. Pensar e cultivar estas redes poderiam criar a possibilidade para superar o impasse no qual nos achamos social  e politicamente. Este é o terreno que precisa ser explorado. Políticos conservadores acharão um tal movimento insatisfatório. Resistirão porque imaginar a estrutura não-totalizante vai contra tudo o que eles consideram querido, conclui Taylor.[29]



[1] Friedrich Nietzsche, Além do Bem e do Mal, São Paulo, Companhia das Letras, 2002, p. 205.
[2] Mark C. Taylor, Awe and Anxiety, Los Angeles, Los Angeles Times, 28.09.2001.
[3] Mark C. Taylor, About Religion: Economies of Faith in Virtual Culture, University of Chicago Press, 1999.
[4] Mark C. Taylor, The Moment of Complexity, Emerging Network Culture, Chapter 1, From Grid to Network, University of Chicago, 2002 p. 19-46. 
[5] Um sistema complexo é um sistema único composto de várias partes compatíveis, que interagem entre si e que contribuem para sua função básica, sendo que a remoção de uma das partes faria com que o sistema deixasse de funcionar de forma eficiente. Um sistema de tal complexidade não pode ser produzido diretamente, isto é, pelo melhoramento contínuo da função inicial, que continua a atuar através do mesmo mecanismo, mediante modificações leves, sucessivas, de um sistema precursor. O exemplo mais popular de complexidade irredutível é apresentado por Michael Behe (A caixa preta de Darwin) é a ratoeira. Ela tem uma função simples, pegar ratos, e possui várias partes, uma plataforma, uma trava, um martelo, uma mola e uma barra de retenção. Se qualquer uma dessas partes for removida, o aparelho não funciona. Portanto, é irredutivelmente complexo. Um automóvel, em contrapartida, pode funcionar com os faróis queimados, sem as portas, sem pára-choques, etc, embora chegará um momento em que haverá um mínimo de peças essenciais para seu funcionamento.
[6] The Moment of Complexity,op. cit., p. 19-46.
[7] The Moment of Complexity,op. cit., p. 19-46.
[8] The Moment of Complexity,op. cit., p. 19-46.
[9] The Moment of Complexity,op. cit., p. 19-46.
[10] The Moment of Complexity,op. cit., p. 19-46.
[11] “A metáfora é, portanto, determinada pela filosofia como perda provisória de sentido, economia sem prejuízo irreparável de propriedade, desvio certamente inevitável, mas história com vista e no horizonte da reapropriação circular do sentido próprio. É por isso que a avaliação filosófica foi sempre ambígua: a metáfora é ameaçadora e estranha ao olhar da intuição (visão ou contato), do conceito (alcance ou própria presença do significado), da consciência (proximidade da presença a si); mas é cúmplice do que a ameaça, é-lhe necessária na medida em que o desvio é um regresso guiado pela função de semelhança (mimesis e homoiosis), sob a lei do mesmo”. Jacques Derrida, Margens da Filosofia, Campinas, Papirus, 1997, p.312. E por isso, Derrida dirá que a metafísica é a superação da metáfora.
[12] Mark C. Taylor e Esa Saarinen, Imagologies, Routledge, New York, 1994.
[13] Erring, op. cit., p. 51.
[14] Erring, A postmodern A/theology, p. 29.
[15] The Moment of Complexity,op. cit., p. 19-46. 
[16] Margens da Filosofia, op. cit., p. 163.
[17] Margens da Filosofia, op. cit., pp. 161-162.
[18] Erring, op. cit., p. 33.
[19] The End(s) of Theology, p. 242.
[20] The End(s) of Theology, op. cit. , p. 248.
[21] “A crença fundamental dos metafísicos é a crença nas oposições de valores. Nem aos mais cuidadosos entre eles ocorreu duvidar aqui, no limiar, onde mais era necessário: mesmo quando haviam jurado para si próprios de omnibus dubitandum [de tudo duvidar]. Pois pode-se duvidar, primeiro, que existam absolutamente opostos; segundo, que as valorações e oposições de valor populares, nas quais os metafísicos imprimiram seu selo, sejam mais que avaliações de fachada, perspectivas provisórias, talvez inclusive vistas de um ângulo, de baixo para cima talvez.” Nietzsche, op. cit., p. 10.
[22] Jaci Maraschin, Religião e Alta-modernidade: a possibilidade da expressão do sagrado, in Correlatio nº 1, www.metodista.br/Noticias/correlatio/num_01/a_marasc.htm
[23] The Moment of Complexity, op. cit. , p. 149.
[24] Entrevista de Mark C. Taylor, em janeiro de 1997, a David Lionel Smith, decano da Faculdade de Inglês no Williams College e vice-presidente do Massachusetts Foundation for the Humanities. 
[25] Idem, entrevista de Mark C. Taylor a David Lionel Smith.
[26] Idem, entrevista de Mark C. Taylor a David Lionel Smith.
[27] Idem, entrevista de Mark C. Taylor a David Lionel Smith.
[28] Idem, entrevista de Mark C. Taylor a David Lionel Smith.
[29] Idem, entrevista de Mark C. Taylor a David Lionel Smith.