Quando o fascismo
e a intolerância ressurgem, como resposta à crise cultural, econômica
e social do Ocidente, este texto do filósofo francês Jean Baudrillard apresenta algumas
questões que devem ser analisadas. Eis um bom desafio para essas dias de chuva.
Jorge Pinheiro, véspera do 1º. de
maio de 2012.
O que pode impedir o êxito desse sistema de violência mundial não são alternativas, mas singularidades que não obedecem a um juízo de valor ou a um princípio político. Impedem o sucesso do pensamento único e dominante, mas não são um contrapensamento único. Jean Baudrillard, 1º. de novembro de 2002.
Jean
Baudrillard
Seria a globalização uma
fatalidade? De alguma forma, todas as outras culturas que não a nossa escapavam
à fatalidade da troca indiferente. Onde se situará o limiar crítico da passagem
ao universal e, depois, ao mundial? Que vertigem será esta que impulsiona o
mundo para a abstração da Idéia, e esta outra vertigem que incita à realização
incondicional da Idéia?
Porque o universal era uma Idéia. Quando se realiza no mundial, ela se suicida
enquanto Idéia, enquanto fim ideal. Como o humano se tornou a única instância
de referência e a humanidade imanente a si mesma passou a ocupar o vazio
deixado por Deus morto, o humano agora reina sozinho, mas já não tem motivação
final. Não tendo mais inimigo, engendra-o do interior e secreta todos os tipos
de metástases inumanas.
Conquistas da modernidade e do progresso
Donde a violência do mundial - violência de um sistema que persegue qualquer
forma de negatividade, de singularidade, inclusive a forma última de singularidade
que é a própria morte - violência de uma sociedade em que estamos virtualmente
proibidos de conflito, proibidos de morte - violência que, de certa maneira,
põe fim à própria violência e que
trabalha para instalar um mundo livre de qualquer ordem natural, seja a do
corpo, a do sexo, a do nascimento ou a da morte.
Mais do que de violência, seria necessário falar de virulência. Trata-se de uma
violência que é viral - que atua por contágio, por reação em cadeia, e destrói,
pouco a pouco, todas as nossas imunidades e nossa capacidade de resistência.
Entretanto, nada está decidido, e a globalização não ganhou por antecipação.
Diante desse poder homogeneizante e dissolvente, se vê, em toda parte,
levantarem-se forças heterogêneas - não só diferentes, mas também antagônicas.
Por trás das resistências cada vez mais intensas à globalização, sociais e
políticas, é preciso ver mais do que uma rejeição arcaica: uma espécie de
revisionismo dilacerante quanto às conquistas da modernidade e do “progresso”,
de recusa não apenas da tecno-estrutura mundial, como também da estrutura
mental de equivalência de todas as culturas.
Este ressurgimento assume aspectos violentos, anômalos, irracionais em relação
a nosso pensamento esclarecido - formas coletivas étnicas, religiosas,
lingüísticas - mas, igualmente, formas individuais de perturbação do caráter ou
neuróticas. Seria um erro condenar esses sobressaltos como populistas, arcaicos
ou mesmo terroristas. Tudo o que faz um acontecimento hoje o faz contra essa
universalidade abstrata - inclusive o antagonismo do islamismo com os
valores ocidentais (pelo fato de ser a mais veemente contestação desses
valores, é que, hoje, o Islã é seu inimigo número um).
Vingança de culturas singulares
Quem poderia impedir o sucesso do sistema mundial? Certamente não o movimento
antiglobalização, que só tem por objetivo frear a desregulamentação. Seu
impacto político pode ser considerável, mas o impacto simbólico é nulo. Essa
violência é também uma espécie de peripécia interna que o sistema pode superar
sem perder o controle da situação.
O que pode impedir o êxito do sistema não são alternativas positivas, são
singularidades. Ora, estas não são positivas nem negativas. Não são uma
alternativa; são de outra ordem. Não obedecem mais a um juízo de valor nem a um
princípio de realidade política. Podem, pois, ser o melhor ou o pior.
Não é possível, portanto, confederá-las numa ação histórica conjunta. Impedem o
sucesso de todo pensamento único e dominante, mas não são um contra-pensamento
único - elas inventam seu jogo e suas próprias regras do jogo.
As singularidades não são necessariamente violentas, e algumas são sutis, como
as da língua, da arte, do corpo ou da cultura. Mas há algumas violentas - como
a do terrorismo. É a que vinga todas as culturas singulares que pagaram com seu
desaparecimento a instauração desse único poder mundial.
Despeito feroz entre culturas
Não se trata, portanto, de um “choque de civilizações”, mas de um confronto -
quase antropológico - entre uma cultura universal indiferenciada e tudo o que,
em qualquer área, conserva algo de uma alteridade irredutível.
Para o poder mundial, tão radical quanto a ortodoxia religiosa, todas as formas
diferentes e singulares constituem heresias. Por esta razão, estão condenadas a
entrar, querendo ou não, na ordem mundial ou a desaparecer. A missão do
Ocidente (ou melhor, do ex-Ocidente, visto que há muito deixou de ter valores
próprios) é submeter, por todos os meios, as múltiplas culturas à lei da
equivalência.
Uma cultura que perdeu seus valores só pode se vingar nos valores das outras.
Inclusive as guerras - como a do Afeganistão - visam primeiro, para além das
estratégias políticas ou econômicas, a normalizar a barbárie, a obrigar todos
os territórios a se alinharem. O objetivo é dominar toda e qualquer região refratária,
colonizar e domesticar todos os espaços selvagens, tanto no espaço geográfico
quanto no universo mental.
A instalação do sistema mundial resulta de um despeito feroz: o de uma cultura
indiferente e de baixa definição em relação a culturas de alta definição; o dos
sistemas desencantados, que perderam a intensidade, em relação a culturas de
alta intensidade; o das sociedades dessacralizadas em relação a culturas ou
formas sacrificiais.
Humilhação contra humilhação
Para tal sistema, qualquer forma refratária é virtualmente terrorista. É o caso
ainda do Afeganistão. Que, num território, todas as permissões e liberdades
“democráticas” - a música, a televisão, inclusive o rosto das mulheres - possam
ser proibidas, e que um país possa tomar o contrapé total do que chamamos de
civilização - qualquer que seja o princípio religioso invocado -, tudo isso é
insuportável para o resto do mundo “livre”.
Não se considera que a modernidade possa ser renegada em sua pretensão
universal. Que ela não seja vista como a evidência do bem e o ideal natural da
espécie, que se conteste a universalidade de nossos costumes e de nossos
valores - ainda que por algumas mentes imediatamente caracterizadas como
fanáticas -, tudo isso é um crime em relação à visão do pensamento único e do
horizonte consensual do Ocidente.
Esse confronto só pode ser compreendido à luz da obrigação simbólica. Para
compreender o ódio do resto do mundo em relação ao Ocidente, é preciso inverter
todas as perspectivas. Não se trata do ódio daqueles de quem se tirou tudo e
aos quais nada se retribuiu mas, sim, do ódio daqueles a quem tudo se deu sem
que eles pudessem retribuir. Não é, portanto, o ódio da espoliação e da
exploração, é o ódio da humilhação.
E é a este que responde o terrorismo do 11 de setembro: humilhação contra
humilhação. O pior para a potência mundial não é ser agredida ou destruída, é
ser humilhada. E a potência foi humilhada pelo 11 de setembro, porque os
terroristas lhe infligiram, então, alguma coisa que ela não pode retribuir.
Todas as represálias são apenas um aparelho de coação física, ao passo que ela
foi desfeita simbolicamente.
A guerra responde à agressão, mas não ao desafio. O desafio só pode ser aceito
humilhando o outro em resposta (mas, de modo algum, esmagando-o sob bombas, nem
trancando-o como cães em Guantânamo).
Saturação da existência
A base de qualquer dominação é a ausência de contrapartida - sempre segundo a
regra fundamental. O dom unilateral é um ato de poder. E o “império do bem”, a
violência do bem, consiste exatamente em dar - sem contrapartida possível.
Consiste em ocupar a posição de Deus. Ou do Senhor, que deixa a vida ao escravo
em troca de seu trabalho (mas o trabalho não é uma contrapartida simbólica;
portanto, as únicas respostas, afinal, são a revolta e a morte). Deus, pelo
menos, dava espaço para o sacrifício.
Na ordem tradicional, sempre existe a possibilidade de retribuir - a Deus, à
natureza ou a qualquer outra instância, sob a forma do sacrifício. É o que
garante o equilíbrio simbólico dos seres e das coisas. Não temos, hoje, mais
ninguém a quem retribuir, a quem restituir a dívida simbólica - e é essa a
maldição de nossa cultura.
Não que nela seja impossível o dom e, sim, que nela o contra-dom é impossível,
visto que todas as vias sacrificiais foram neutralizadas e desmontadas (resta
apenas uma paródia de sacrifício, visível em todas as formas atuais da condição
de vítima).
Estamos, desse modo, na situação implacável de receber, receber sempre, não
mais de Deus ou da natureza, mas através de um dispositivo técnico de troca
generalizada e de gratificação geral. Tudo nos é virtualmente dado e, queiramos
ou não, temos direito a tudo. Estamos na situação de escravos aos quais se
deixou a vida e que estão ligados por uma dívida insolúvel.
Tudo isso pode funcionar durante muito tempo graças à inserção na troca e na
ordem econômica mas, num dado momento, a regra fundamental a vence, e a essa
transferência positiva corresponde, inevitavelmente, uma contratransferência
negativa, uma ab-reação violenta a essa vida cativa, a essa existência
protegida, a essa saturação da existência. Tal reversão assume a forma de uma
violência aberta (o terrorismo faz parte dela), ou da negação impotente,
característica de nossa modernidade, do ódio de si e do remorso - todas paixões
negativas que são a forma degradada do contra-dom impossível.
Veredicto e condenação da sociedade
Aquilo que detestamos em nós, o obscuro objeto de nosso ressentimento, é esse
excesso de realidade, esse excesso de poder e de conforto, essa disponibilidade
universal, essa realização definitiva - o destino que, no fundo, o “grande
inquisidor” reserva às massas domesticadas em Dostoievski. Ora, é exatamente
isso que os terroristas criticam em nossa cultura - donde a repercussão que o
terrorismo encontra e o fascínio que exerce.
Tanto quanto no desespero dos humilhados e dos ofendidos, o terrorismo se
baseia, por exemplo, no desespero invisível dos privilegiados da globalização,
em nossa própria submissão a uma tecnologia integral, a uma realidade virtual
esmagadora, a um domínio das redes e dos programas que traça, talvez, o perfil
involutivo da espécie inteira, da espécie humana tornada “mundial” (a
supremacia da espécie humana sobre o resto do planeta não seria à imagem da
supremacia do Ocidente sobre o resto do mundo?). E esse desespero invisível - o
nosso - é irremediável, pois decorre da realização de todos os desejos.
Se o terrorismo decorre, pois, desse excesso de realidade e de seu prazo
impossível, dessa profusão sem contrapartida e dessa resolução forçada dos
conflitos, então a ilusão de extirpá-lo como um mal objetivo é total, dado que,
sendo como é, em seu absurdo e em seu contra-senso, ele é o veredicto e a
condenação que esta sociedade emite em relação a si mesma.
Tradução: Iraci D. Poleti
Jean Baudrillard é
filósofo, autor, dentre outros livros, de “La Guerre du Golfe n’a pas eu Lieu”
(1991), “Le Crime Parfait” (1994) e “L’Esprit du Terrorisme” (2002), todos
editados pela Galilée. Este texto foi extraído de seu novo ensaio, “Power
Inferno” (ed. Galilée, Paris, 94 páginas).