vendredi 15 mars 2013

As 95 teses de Martinho Lutero

A "Disputação do Doutor Martinho Lutero sobre o Poder e Eficácia das Indulgências", conhecida como as 95 Teses, desafiou os ensinamentos da Igreja Católica quanto à natureza da penitência, a autoridade do papa e da utilidade das indulgências. As 95 teses impulsionaram o debate teológico que acabou por resultar no nascimento das tradições luteranas, reformadas e anabatistas dentro do cristianismo. Este documento é considerado por muitos como um marco da Reforma Protestante.

A ação de Lutero foi em grande parte uma resposta à venda de indulgências (perdão) por João Tetzel, um frade dominicano, delegado do Arcebispo de Mainz e do papa. O objetivo desta campanha de angariação de fundos foi o financiamento da Basílica de S. Pedro em Roma.

Mesmo apesar de o príncipe-eleitor (soberano) de Lutero, Frederico, o Sábio, e o príncipe do território vizinho, o duque Georg da Saxônia, terem proibido a venda de indulgências em seu território, muitas pessoas viajaram para as poder adquirir. Quando estas pessoas vieram confessar-se, apresentaram a indulgência, afirmando que não mais necessitavam de penitenciar pelos seus pecados, uma vez que o documento as perdoava de todos os pecados.


As 95 Teses


Movido pelo amor e pelo empenho em prol do esclarecimento da verdade discutir-se-á em Wittemberg, sob a presidência do Rev. padre Martinho Lutero, o que segue. Aqueles que não puderem estar presentes para tratarem o assunto verbalmente conosco, o poderão fazer por escrito. Em nome de nosso Senhor Jesus Cristo. Amém.


1ª Tese

Dizendo nosso Senhor e Mestre Jesus Cristo: Arrependei-vos...., certamente quer que toda a vida dos seus crentes na terra seja contínuo arrependimento.

2ª Tese

E esta expressão não pode e não deve ser interpretada como referindo-se ao sacramento da penitência, isto é, à confissão e satisfação, a cargo do ofício dos sacerdotes.

3ª Tese

Todavia não quer que apenas se entenda o arrependimento interno; o arrependimento interno nem mesmo é arrependimento quando não produz toda sorte de modificações da carne.

4ª Tese

Assim sendo, o arrependimento e o pesar, isto é, a verdadeira penitência, perdura enquanto o homem se desagradar de si mesmo, a saber, até a entrada desta para a vida eterna.

5ª Tese

O papa não quer e não pode dispensar outras penas, além das que impôs ao seu alvitre ou em acordo com os cânones, que são estatutos papais.

6ª Tese

O papa não pode perdoar divida senão declarar e confirmar aquilo que já foi perdoado por Deus; ou então faz nos casos que lhe foram reservados. Nestes casos, se desprezados, a dívida deixaria de ser em absoluto anulada ou perdoada.

7ª Tese

Deus a ninguém perdoa a dívida sem que ao mesmo tempo o subordine, em sincera humildade, ao sacerdote, seu vigário.

8ª Tese

Canones poenitendiales, que não as ordenanças de prescrição da maneira em que se deve confessar e expiar, apenas aio impostas aos vivos, e, de acordo com as mesmas ordenanças, não dizem respeito aos moribundos.

9ª Tese

Eis porque o Espírito Santo nos faz bem mediante o papa, excluído este de todos os seus decretos ou direitos o artigo da morte e da necessidade suprema

10ª Tese

Procedem desajuizadamente e mal os sacerdotes que reservam e impõem aos moribundos poenitentias canonicas ou penitências para o purgatório a fim de ali serem cumpridas.

11ª Tese

Este joio, que é o de se transformar a penitência e satisfação, Previstas pelos cânones ou estatutos, em penitência ou penas do purgatório, foi semeado quando os bispos se achavam dormindo.

12ª Tese

Outrora canonicae poenae, ou sejam penitência e satisfação por pecadores cometidos eram impostos, não depois, mas antes da absolvição, com a finalidade de provar a sinceridade do arrependimento e do pesar.

13ª Tese

Os moribundos tudo satisfazem com a sua morte e estão mortos para o direito canônico, sendo, portanto, dispensados, com justiça, de sua imposição.

14ª Tese

Piedade ou amor Imperfeitos da parte daquele que se acha às portas da morte necessariamente resultam em grande temor; logo, quanto menor o amor, tanto maior o temor.

15ª Tese

Este temor e espanto em si tão só, sem falar de outras cousas, bastam para causar o tormento e o horror do purgatório, pois que se avizinham da angústia do desespero.

16ª Tese

Inferno, purgatório e céu parecem ser tão diferentes quanto o são um do outro o desespero completo, incompleto ou quase desespero e certeza.

17ª Tese

Parece que assim como no purgatório diminuem a angústia e o espanto das almas, nelas também deve crescer e aumentar o amor.

18ª Tese

Bem assim parece não ter sido provado, nem por boas ações e nem pela Escritura, que as almas no purgatório se encontram fora da possibilidade do mérito ou do crescimento no amor.

19ª Tese

Ainda parece não ter sido provado que todas as almas do purgatório tenham certeza de sua salvação e não receiem por ela, não obstante nós termos absoluta certeza disto.

20ª Tese

Por isso o papa não quer dizer e nem compreende com as palavras "perdão plenário de todas as penas" que todo o tormento é perdoado, mas as penas por ele impostas.

21ª Tese

Eis porque erram os apregoadores de indulgências ao afirmarem ser o homem perdoado de todas as penas e salvo mediante a indulgência do papa.

22ª Tese

Pensa com efeito, o papa nenhuma pena dispensa às almas no purgatório das que segundo os cânones da Igreja deviam ter expiado e pago na presente vida.

23ª Tese

Verdade é que se houver qualquer perdão plenário das penas, este apenas será dado aos mais perfeitos, que são muito poucos.

24ª Tese

Assim sendo, a maioria do povo é ludibriada com as pomposas promessas do indistinto perdão, impressionando-se o homem singelo com as penas pagas.

25ª Tese

Exatamente o mesmo poder geral, que o papa tem sobre o purgatório, qualquer bispo e cura d'almas o tem no seu bispado e na sua paróquia, quer de modo especial e quer para com os seus em particular.

26ª Tese

O papa faz muito bem em não conceder às almas o perdão em virtude do poder das chaves (ao qual não possui), mas pela ajuda ou em forma de intercessão.

27ª Tese

Pregam futilidades humanas quantos alegam que no momento em que a moeda soa ao cair na caixa a alma se vai do purgatório.

28ª Tese

Certo é que no momento em que a moeda soa na caixa vêm o lucro e o amor ao dinheiro cresce e aumenta; a ajuda, porém, ou a intercessão da Igreja tão só correspondem à vontade e ao agrado de Deus.

29ª Tese

E quem sabe, se todas as almas do purgatório querem ser libertadas, quando há quem diga o que sucedeu com Santo Severino e Pascoal.

30ª Tese

Ninguém tem certeza da suficiência do seu arrependimento e pesar verdadeiros; muito menos certeza pode ter de haver alcançado pleno perdão dos seus pecados.

31ª Tese

Tão raro como existe alguém que possui arrependimento e, pesar verdadeiros, tão raro também é aquele que verdadeiramente alcança indulgência, sendo bem poucos os que se encontram.

32ª Tese

Irão para o diabo juntamente com os seus mestres aqueles que julgam obter certeza de sua salvação mediante breves de indulgência.

33ª Tese

Há que acautelasse muito e ter cuidado daqueles que dizem: A indulgência do papa é a mais sublime e mais preciosa graça ou dadiva de Deus, pela qual o homem é reconciliado com Deus.

34ª Tese

Tanto assim que a graça da indulgência apenas se refere à pena satisfatória estipulada por homens.

35ª Tese

Ensinam de maneira ímpia quantos alegam que aqueles que querem livrar almas do purgatório ou adquirir breves de confissão não necessitam de arrependimento e pesar.

36ª Tese

Todo e qualquer cristão que se arrepende verdadeiramente dos seus pecados, sente pesar por ter pecado, tem pleno perdão da pena e da dívida, perdão esse que lhe pertence mesmo sem breve de indulgência.

37ª Tese

Todo e qualquer cristão verdadeiro, vivo ou morto, é participante de todos os bens de Cristo e da Igreja, dádiva de Deus, mesmo sem breve de indulgência.

38ª Tese

Entretanto se não deve desprezar o perdão e a distribuição por parte do papa. Pois, conforme declarei, o seu perdão constitui uma declaração do perdão divino.

39ª Tese

É extremamente difícil, mesmo para os mais doutos teólogos, exaltar diante do povo ao mesmo tempo a grande riqueza da indulgência e ao contrário o verdadeiro arrependimento e pesar.

40ª Tese

O verdadeiro arrependimento e pesar buscam e amam o castigo: mas a profusão da indulgência livra das penas e faz com que se as aborreça, pelo menos quando há oportunidade para isso.

41ª Tese

É necessário pregar cautelosamente sobre a indulgência papal para que o homem singelo não julgue erroneamente ser a indulgência preferível às demais obras de caridade ou melhor do que elas.

42ª Tese

Deve-se ensinar aos cristãos, não ser pensamento e opinião do papa que a aquisição de indulgência de alguma maneira possa ser comparada com qualquer obra de caridade.

43ª Tese

Deve-se ensinar aos cristãos proceder melhor quem dá aos pobres ou empresta aos necessitados do que os que compram indulgências.

44ª Tese

Ê que pela obra de caridade cresce o amor ao próximo e o homem torna-se mais piedoso; pelas indulgências, porém, não se torna melhor senão mais seguro e livre da pena.

45ª Tese

Deve-se ensinar aos cristãos que aquele que vê seu próximo padecer necessidade e a despeito disto gasta dinheiro com indulgências, não adquire indulgências do papa. mas provoca a ira de Deus.

46ª Tese

Deve-se ensinar aos cristãos que, se não tiverem fartura , fiquem com o necessário para a casa e de maneira nenhuma o esbanjem com indulgências.

47ª Tese

Deve-se ensinar aos cristãos, ser a compra de indulgências livre e não ordenada

48ª Tese

Deve-se ensinar aos cristãos que, se o papa precisa conceder mais indulgências, mais necessita de uma oração fervorosa do que de dinheiro.

49ª Tese

Deve-se ensinar aos cristãos, serem muito boas as indulgências do papa enquanto o homem não confiar nelas; mas muito prejudiciais quando, em conseqüência delas, se perde o temor de Deus.

50ª Tese

Deve-se ensinar aos cristãos que, se o papa tivesse conhecimento da traficância dos apregoadores de indulgências, preferiria ver a catedral de São Pedro ser reduzida a cinzas a ser edificada com a pele, a carne e os ossos de suas ovelhas.

51ª Tese

Deve-se ensinar aos cristãos que o papa, por dever seu, preferiria distribuir o seu dinheiro aos que em geral são despojados do dinheiro pelos apregoadores de indulgências, vendendo, se necessário fosse, a própria catedral de São Pedro.

52º Tese

Comete-se injustiça contra a Palavra de Deus quando, no mesmo sermão, se consagra tanto ou mais tempo à indulgência do que à pregação da Palavra do Senhor.

53ª Tese

São inimigos de Cristo e do papa quantos por causa da prédica de indulgências proíbem a Palavra de Deus nas demais igrejas.

54ª Tese

Esperar ser salvo mediante breves de indulgência é vaidade e mentira, mesmo se o comissário de indulgências, mesmo se o próprio papa oferecesse sua alma como garantia.

55ª Tese

A intenção do papa não pode ser outra do que celebrar a indulgência, que é a causa menor, com um sino, uma pompa e uma cerimônia, enquanto o Evangelho, que é o essencial, importa ser anunciado mediante cem sinos, centenas de pompas e solenidades.

56ª Tese

Os tesouros da Igreja, dos quais o papa tira e distribui as indulgências, não são bastante mencionados e nem suficientemente conhecido na Igreja de Cristo.

57ª Tese

Que não são bens temporais, é evidente, porquanto muitos pregadores a estes não distribuem com facilidade, antes os ajuntam.

58ª Tese

Tão pouco são os merecimentos de Cristo e dos santos, porquanto estes sempre são eficientes e, independentemente do papa, operam salvação do homem interior e a cruz, a morte e o inferno para o homem exterior.

59ª Tese

São Lourenço aos pobres chamava tesouros da Igreja, mas no sentido em que a palavra era usada na sua época.

60ª Tese

Afirmamos com boa razão, sem temeridade ou leviandade, que estes tesouros são as chaves da Igreja, a ela dado pelo merecimento de Cristo.

61ª Tese

Evidente é que para o perdão de penas e para a absolvição em determinados casos o poder do papa por si só basta.

62ª Tese

O verdadeiro tesouro da Igreja é o santíssimo Evangelho da glória e da graça de Deus.

63ª Tese

Este tesouro, porém, é muito desprezado e odiado, porquanto faz com que os primeiros sejam os últimos.

64ª Tese

Enquanto isso o tesouro das indulgências é sabiamente o mais apreciado, porquanto faz com que os últimos sejam os primeiros.

65ª Tese

Por essa razão os tesouros evangélicos outrora foram as redes com que se apanhavam os ricos e abastados.

66ª Tese

Os tesouros das indulgências, porém, são as redes com que hoje se apanham as riquezas dos homens.

67ª Tese

As indulgências apregoadas pelos seus vendedores como a mais sublime graça decerto assim são consideradas porque lhes trazem grandes proventos.

68ª Tese

Nem por isso semelhante indigência não deixa de ser a mais Intima graça comparada com a graça de Deus e a piedade da cruz.

69ª Tese

Os bispos e os sacerdotes são obrigados a receber os comissários das indulgências apostólicas com toda a reverência-

70ª Tese

Entretanto têm muito maior dever de conservar abertos olhos e ouvidos, para que estes comissários, em vez de cumprirem as ordens recebidas do papa, não preguem os seus próprios sonhos.

71ª Tese

Aquele, porém, que se insurgir contra as palavras insolentes e arrogantes dos apregoadores de indulgências, seja abençoado.

72ª Tese

Quem levanta a sua voz contra a verdade das indulgências papais é excomungado e maldito.

73ª Tese

Da mesma maneira em que o papa usa de justiça ao fulminar com a excomunhão aos que em prejuízo do comércio de indulgências procedem astuciosamente.

74ª Tese

Muito mais deseja atingir com o desfavor e a excomunhão àqueles que, sob o pretexto de indulgência, prejudiquem a santa caridade e a verdade pela sua maneira de agir.

75ª Tese

Considerar as indulgências do papa tão poderosas, a ponto de poderem absolver alguém dos pecados, mesmo que (cousa impossível) tivesse desonrado a mãe de Deus, significa ser demente.

78 ª Tese

Bem ao contrario, afirmamos que a indulgência do papa nem mesmo ao menor pecado venial pode anular o que diz respeito à culpa que constitui.

77ª Tese

Dizer que mesmo São Pedro, se agora fosse papa, não poderia dispensar maior indulgência, significa blasfemar S. Pedro e o papa.

78ª Tese

Em contrario dizemos que o atual papa, e todos os que o sucederam, é detentor de muito maior indulgência, isto é, o Evangelho, as virtudes o dom de curar, etc., de acordo com o que diz 1Coríntios 12.

79ª Tese

Afirmar ter a cruz de indulgências adornada com as armas do papa e colocada na igreja tanto valor como a própria cruz de Cristo, é blasfêmia.

80ª Tese

Os bispos, padres e teólogos que consentem em semelhante linguagem diante do povo, terão de prestar contas deste procedimento.

81ª Tese

Semelhante pregação, a enaltecer atrevida e insolentemente a Indulgência, faz com que mesmo a homens doutos é difícil proteger a devida reverência ao papa contra a maledicência e as fortes objeções dos leigos.

82 ª Tese

Eis um exemplo: Por que o papa não tira duma só vez todas as almas do purgatório, movido por santíssima' caridade e em face da mais premente necessidade das almas, que seria justíssimo motivo para tanto, quando em troca de vil dinheiro para a construção da catedral de S. Pedro, livra um sem número de almas, logo por motivo bastante Insignificante?

83ª Tese

Outrossim: Por que continuam as exéquias e missas de ano em sufrágio das almas dos defuntos e não se devolve o dinheiro recebido para o mesmo fim ou não se permite os doadores busquem de novo os benefícios ou pretendas oferecidos em favor dos mortos, visto' ser Injusto continuar a rezar pelos já resgatados?

84ª Tese

Ainda: Que nova piedade de Deus e dó papa é esta, que permite a um ímpio e inimigo resgatar uma alma piedosa e agradável a Deus por amor ao dinheiro e não resgatar esta mesma alma piedosa e querida de sua grande necessidade por livre amor e sem paga?

85ª Tese

Ainda: Por que os cânones de penitencia, que, de fato, faz muito caducaram e morreram pelo desuso, tornam a ser resgatados mediante dinheiro em forma de indulgência como se continuassem bem vivos e em vigor?

86ª Tese

Ainda: Por que o papa, cuja fortuna hoje é mais principesca do que a de qualquer Credo, não prefere edificar a catedral de S. Pedro de seu próprio bolso em vez de o fazer com o dinheiro de fiéis pobres?

87ª Tese

Ainda: Quê ou que parte concede o papa do dinheiro proveniente de indulgências aos que pela penitência completa assiste o direito à indulgência plenária?

88ª Tese

Afinal: Que maior bem poderia receber a Igreja, se o papa, como Já O faz, cem vezes ao dia, concedesse a cada fiel semelhante dispensa e participação da indulgência a título gratuito.

89ª Tese

Visto o papa visar mais a salvação das almas do que o dinheiro, por que revoga os breves de indulgência outrora por ele concedidos, aos quais atribuía as mesmas virtudes?

90ª Tese

Refutar estes argumentos sagazes dos leigos pelo uso da força e não mediante argumentos da lógica, significa entregar a Igreja e o papa a zombaria dos inimigos e desgraçar os cristãos.

91ª Tese

Se a Indulgência fosse apregoada segundo o espírito e sentido do papa, aqueles receios seriam facilmente desfeitos, nem mesmo teriam surgido.

92ª Tese

Fora, pois, com todos estes profetas que dizem ao povo de Cristo: Paz! Paz! e não há Paz.

93ª Tese

Abençoados sejam, porém, todos os profetas que dizem à grei de Cristo: Cruz! Cruz! e não há cruz.

94ª Tese

Admoestem-se os cristãos a que se empenhem em seguir sua Cabeça Cristo através do padecimento, morte e inferno.

95ª Tese

E assim esperem mais entrar no Reino dos céus através de muitas tribulações do que facilitados diante de consolações infundadas.
-----------------------------------------------------------------------------------------------------------

Consideracões

Lutero afixou as 95 teses na porta da igreja castelo em Wittenberg, Alemanha, a 31 de Outubro de 1517. Alguns académicos questionaram a veracidade desta noção, notando que não existem relatos de contemporâneos para ela. Outros afirmaram que não houve necessidade de tais relatos pois esta acção era nos dias de Lutero o modo comum de anunciar eventos nas universidades do tempo. As portas de igrejas funcionavam na altura como os placares informativos funcionam hoje nos campos universitários. Outros ainda sugeriram que as 95 teses podem muito bem ter sido afixadas em novembro de 1517. A maioria é unânime pelo menos em que Lutero teria remetido estas teses por correio ao Arcebispo de Mainz, ao papa, a amigos e a outras universidades nessa data, enquanto historiadores como Gottfried Fitzer, Erwin Iserloh e Klemens Houselmann contestaram essa versão e disseram que não houve de fato a fixação das 95 teses em Wittemberg. Do relato de Johannes Schneider, um criado de Lutero, é que se extraiu a notícia da afixação das teses. Escreveu apenas: "No ano de 1517, Lutero apresentou em Wittenberg, sobre o EIba, segundo a antiga tradição da universidade, certas sentenças para discussão, porém modestamente e sem haver desejado insultar ou ofender alguém". Assim, alguns concluem que não houve esse evento.


Fontes
Wikipedia
Monergismo

mercredi 13 mars 2013

O que estou fazendo aqui?


AfinaL, Tem sentido?
Por Jorge Pinheiro

Introdução

 O caminho de Santiago

I. A questão da existência: por que vivo?

1. A angústia diante da vida

Por que não morri eu na madre? Por que não expirei ao sair dela? Por que houve regaço que me acolhesse? E por que peitos, para que eu mamasse? Jó 3.11-12.

O SER E O NADA -- a angústia do filósofo Jean-Paul Sartre.

2. O amor dá sentido

Assim como nos escolheu, nele, antes da fundação do mundo, para sermos santos e irrepreensíveis perante ele; e em amor nos predestinou para ele, para a adoção de filhos, por meio de Jesus Cristo, segundo o beneplácito de sua vontade. Efésios 1.4-5.

Lição 1: Criado para ser amado


II. A questão do significado: O QUE TEM valor?


 
1. O que dá significado dá vida? Atividades, bens, recursos?

Eu mesmo disse: debalde tenho trabalhado, inútil e vãmente gastei as minhas forças; todavia, o meu direito está perante o SENHOR, a minha recompensa, perante o meu Deus. Isaías 49.4.

Um exemplo trágico: o trabalho inútil no  campo de concentração

Você pode viver de três modos:

Modo sobrevivência - levado pelas circunstâncias.
Modo sucesso - levado pelos padrões do materialismo pós-moderno.
Modo significância - alicerçado em propósitos que vão além da materialidade.

2. Um projeto que dá valor à vida

Os teus olhos me viram a substância ainda informe, e no teu livro foram escritos todos os meus dias, cada um deles escrito e determinado, quando nem um deles havia ainda. Salmo 139.16.

Lição 2: Feito para viver uma vida plena.


III. A questão da intenção: há um propósito?
           
1. Conhecer aquele que criou.

O temor do SENHOR é o princípio da sabedoria, e o conhecimento do Santo é prudência. Provérbio 9.10.

2. Conhecer o projeto do Criador

Nele, digo, no qual fomos também feitos herança, predestinados segundo o propósito daquele que faz todas as coisas conforme o conselho da sua vontade. Efésios 1.11.

O exemplo de Obede Edom: se dispôs a receber a presença do Senhor e foi abençoado.

Pelo que Davi não trouxe a arca para si, para a Cidade de Davi; mas a fez levar à casa de Obede-Edom, o geteu.  14 Assim, ficou a arca de Deus com a família de Obede-Edom, três meses em sua casa; e o SENHOR abençoou a casa de Obede-Edom e tudo o que ele tinha. 1Crônicas 13.13-14.

3. Aquele que é Eterno está à espera. Ele enche a vida de sentido.

Pelo contrário, em qualquer nação, aquele que o teme e faz o que é justo lhe é aceitável. Atos 10.35.

Lição 3: A vida se enche de sentido quando repousamos no Criador.

dimanche 3 mars 2013

Somos corruptos?


A pensar a corrupção
a partir de um diálogo dos fariseus e herodianos
com Jesus de Nazaré

samedi 2 mars 2013

A ideologia de ficar rico com Jesus -- última parte

Última parte

A cegueira espiritual
Mas a cegueira frente ao não-estar é cegueira do mundo: leva a não enxergar o sentido existencial das vidas. Podem as comunidades evangélicas superar tal cegueira espiritual? Podem olhar, ver a realidade, e dar uma contribuição relevante para a libertação das pessoas? Os líderes das igrejas evangélicas que buscam poder, e oferecem a promessa do ficar rico com Jesus aprofundam a cegueira. Estão no vazio espiritual, imersos na cultura do dinheiro, do consumo e do mercado.

Diante de nós se abrem dois caminhos, um caminho de vida e um caminho de morte, um caminho de igualdade e um caminho de domi­nação, um caminho de justiça coletiva e um caminho de tirania disfarçada, um caminho de sustento global e um caminho de suicídio global. O caminho da morte é o sistema econômico predominante, construído sobre o cinismo e o desejo da destruição, satisfeito em desfrutar o poder e a afluência às custas do Terceiro Mundo e das gera­ções futuras. O caminho da vida exige conversão, mudança de dire­ção, escolha de novas opções, como ocorreu para aqueles que ouviram os pregadores deuteronomistas. Naquele tempo era o futuro de Israel que estava em jogo, agora é o futuro da humanidade e do planeta.
[1]

Como ouvir o clamor dos caídos à beira do caminho nessa gritaria neoliberal que reduziu tudo ao discurso do mercado transcendentalizado? Precisamos voltar ao discurso profético, bem ao estilo do homem de Nazaré, o discurso do pensamento divergente, criativo e dinâmico.

A teologia da vida, expressa no programa de Jesus, tem força e direção moral para a caminhada pastoral das comunidades de fé. Clama na perspectiva global da reforma radical.

E uma das constatações é que essa igreja evangélica rica, espelho de Laodicéia, carece ela própria ser libertada pelo Espírito da liberdade em Cristo Jesus, fonte de sentido. Aos olhos da fé cristã, que o sentido da vida se perca é dramático, mas resta uma esperança, ainda que extrema, a escatológica. Mas que a ação e proclamação de Jesus desapareçam é muito pior: é trágico. Quando não se responde à pergunta “para que sou evangélico?", o próprio viver cristão é posto em xeque e, faltando-lhe a esperança, perde sua força.

A igreja tem pela frente não só a questão da miséria material, mas também a da miséria existencial. Ela não é só chamada a ser profética, mas também kerigmática. As demandas que lhe são dirigidas não são apenas por pão, mas também por sentido. A isso a Jesus chama palavra e diz que disso também vivem os humanos!

Isso significa que a igreja é chamada não só a ser libertadora, mas a afirmar sua específica teologicidade. São suas bases que devem ser renovadas e de novo garantidas. A tradição da fé não acontece por vias da tradição cultural. O mundo não é apenas injusto, mas também sem-sentido. Em nome de que mudar as estruturas, se a vida não vale a pena? A fé cristã nunca foi totalmente funcional a qualquer cultura ou sociedade. A fé é essencialmente crítica já ao nível antropológico e existencial, justamente porque põe em xeque o destino do humano, confrontando-o com o mistério transcendente. Por isso será, em princípio, disfuncional ao sistema do mundo. Mas na sociedade secularizada, a criticidade intrínseca da fé se duplica em criticidade cultural e histórica. E o clamor se desloca da libertação cultural e social para o sentido espiritual da vida. E isso não apenas para as pessoas, mas para as próprias comunidades de fé.

Sob as asas do Espírito

A busca de sentido é a da fome e sede do Espírito. Partindo dessa perspectiva teológica, a questão do sentido da vida, colocada pelo sábio de Eclesiastes, não é típica das classes privilegiadas, nem exclusiva delas. Mas envolve a todos.

E aqui entra a dimensão existencial da questão. Os que estão à margem, caídos no não-estar, são gente. E é porque são gente que, mesmo quando pelo viés da resposta às necessidades imediatas, buscam as igrejas de milagres para a solução de seus problemas.

Mas, então, sob as asas do Espírito, fica superada a dimensão existencial da questão? Claro que não, pois a fé enfatiza com vigor a liberdade específica. Em relação aos novos desafios, o importante é discernir. Para isso, cumpre manter um pensamento forte frente às convicções, ao que se refere à identidade, consciente de que a tentação da igreja é capitular aos deuses do mercado.

Sem dúvida, vivemos num mundo de desolação, mas diante disso é o caso de perguntar: que desafios o programa de Jesus coloca. Os filósofos choram as dores do mundo, como Schopenhauer, porém a igreja é chamada a analisar a realidade e a viver o clamor profético. Por isso, o Espírito é vida na igreja herdeira do profetismo bíblico, que clama nos momentos de desolação e levanta a esperança escatológica.

E a esperança não é mero desejo, parte do conhecimento da realidade, da compreensão dos movimentos a favor da vida que, ainda minoritários num determinado momento, se levantam. A esperança coloca-se acima do momento presente.

Movido pelo Espírito da vida, Lucas destacou que o ano do Senhor teve início naquele kairós pronunciado na sinagoga de Nazaré. O kairós de Jesus significa o nascimento de uma nova época, um tempo que se caracteriza pelo anúncio de uma boa notícia. Mas como anunciar esta novidade quando, aparentemente, fazemos parte de uma geração alienada e apática?

Quando comparamos o texto analisado com dois outros de Lucas (At. 2.42-47 e 4.32-35), vemos que a comunidade de Jerusalém entendia que a ecclesia devia ser construída sob uma ordem de convivência que possibilitasse vida plena a todos.

É aqui que as águas se dividem: o culto a Mamon, príncipe do inferno, congela os corações e paralisa as ações, mas homens e mulheres têm a urgência de um recém-nascido, clamam por vida em abundância. Somos chamados a nos deixar despertar pelo choro e pelo grito dos que não-estão, excluídos e oprimidos pelo mundo, pela carne e pelo diabo.

É tempo de levar a boa notícia aos que existencialmente não-estão: Jesus integra os excluídos (Ef 1.3-14), liberta os subjugados (Gl 5.1), dá olhos aos cegos (8.12) e sentido aos angustiados (Mt 11.29-30; 1Pe 5.7).

Naquele sábado, na sinagoga de Nazaré, Jesus expôs o programa do seu estar entre nós. A graça do Senhor deve ser noticiada aos que não-estão. A ressurreição deu o imprimatur do Eterno àquele programa e à igreja cabe, sob as asas do Espírito, levá-lo às gentes.





Bibliografia 
ALVES, Rubem, Da Esperança, Campinas, Papirus Editora. Título original em inglês: Towards a Theology of Liberation, Corpus Book, Washington, 1969. Tradução: João-Francisco Duarte Jr.
ASH, A. L. O Evangelho Segundo Lucas. São Paulo: Vida Cristã, 1980.
ASSMANN, H. & HINKELAMMERT, F., Idolatria do mercado, Petrópolis: Vozes, 1989.
BARBOSA, Lívia, Igualdade e meritocracia: a ética do desempenho nas sociedades modernas. Rio de Janeiro: Ed. Fundação Getúlio Vargas, 1999.
BOFF, Clodovis, A Teologia da Libertação e a crise de nossa época, in Teologia e Cultura, AESTE, Associação Ecumênica de Estudos Teológicos (no site Serviços Koinonia).
BOFF, Leonardo, Jesus Cristo, Libertador, 16ª edição Petrópolis, Vozes.
BRATCHER, R. A Translator’s Guide to The Gospel of Luke. London: UBS, 1982.
CASTELLS, Manuel. O poder da identidade, A era da informação: economia, sociedade e cultura. Vol. 2. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1999.
COMBLIN, José, Cristãos rumo ao século XXI: nova caminhada de libertação, São Paulo: Paulus, 1996.
_____________, A teologia na presente perspectiva,
www.redemptor.com.br/~soter.
CROSSAN, John Dominic, O Jesus Histórico, a vida de um camponês judeu do Mediterrâneo, São Paulo, Imago, 1994.
DREIFUSS, René A., A época das perplexidades. Mundialização, globalização e planetarização: novos desafios, Petrópolis: Vozes, 1996.
DUSSEL, Enrique, Teologia da Libertação, um panorama de seu desenvolvimento, Petrópolis, Editora Vozes, 1999.
______________, Ética da Libertação na idade da globalização e da exclusão, Petrópolis, Editora Vozes, 2000.
ECHEGARAY, Hugo, A Prática de Jesus, Petrópolis, Vozes, 1982.
FITZMYER, J. A. The Gospel According to Luke I-IX. New York: Doubleday, 1981.
FUKUYAMA, F., O fim da história e o último homem, Rio de Janeiro, Rocco, 1992. FURTADO, Celso, O mito do desenvolvimento econômico, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1974.
GALBRAITH, John Kenneth, A sociedade justa: uma perspectiva humana, Rio de Janeiro: Campus, 1966.
_______________________, A cultura do contentamento, São Paulo, Pioneira, 1992.
GODET, F. A Commentary on The Gospel of St. Luke. Edinburgh: T. & T. Clark, s. d.
GORRINGE, Timothy J. O Capital e o Reino, ética teológica e ordem econômica, São Paulo, Paulus, 1997.
GUTIERREZ, Gustavo, Falar de Deus a partir do sofrimento do inocente: uma reflexão sobre o livro de Jó, Petrópolis, Vozes, l987.
__________________, Teologia e Sociedade, in Congresso da Sociedade de Teologia e Ciências da Religião/SOTER, Teologia na América Latina: Prospectivas, Belo Horizonte, 24-28 de julho de 2000.
HABERMAS, J., Discurso filosófico da modernidade, Lisboa, D. Quixote, 1990.
HIGUET, Etienne, Medellín e o método da Teologia da Libertação, in A maioridade da Teologia da Libertação, Estudos de Religião nº 6, abril de 1989, p. 69.
HUNTINGTON, Samuel, O choque das civilizações. Rio de Janeiro, Objetiva, 1997.
JONES, E. Stanley, Christ alternative to communism, New York, 1953.
JOSEFO, F.
História dos Hebreus: Obra Completa. Tradução do grego de Vicente Pedroso. 9. ed. Rio de Janeiro: Casa Publicadora das Assembléias de Deus, 2005.
MARASCHIN, Jaci, A Teologia da Libertação torna-se adulta, in A maioridade da Teologia da Libertação, Estudos de Religião nº 6, abril de 1989, pp. 7-8. 
MONDIN, Batista, Os teólogos da libertação, São Paulo, Edições Paulinas, 1980.
MORRIS, L. Lucas – Introdução e comentário. São Paulo: Vida Nova, 1990.
NORTH, Robert S. J., Sociology of Biblical Jubilee, Roma, Instituto Bíblico Pontifício, 1954.
NOVAK, M., O Espírito do capitalismo democrático, Rio de Janeiro: Nórdica, s/d.
SEGUNDO, Juan Luis, Massas e minorias na dialética divina da libertação. São Paulo: Loyola, 1975.
PIKAZA, Xabier, A Figura de Jesus: Profeta, Taumaturgo, Rabino, Messias, Petrópolis, Vozes, 1995.
PLUMMER, A. Gospel According to St. Luke. ICC. New York: Charles Scribner’s Sons, s. d.
REILING, J. & SWELLENGREBEL. A Translator’s Handbook on The Gospel of Luke. Leiden: UBS, 1971.
SANTA ANA, Júlio de, Teologia e modernidade, in A maioridade da Teologia da Libertação, Estudos de Religião nº 6, abril de 1989, p. 31.  
SCHMID, J. El Evangelio Según San Lucas. Barcelona: Herder, 1968.
SOROS, George, A crise do capitalismo. Rio de Janeiro: Campus, 1999.
SUNG, Jung Mo, Teologia e economia, 2ª ed.,Petrópolis: Vozes, 1995.
TROCMÉ, Etienne, Jésus-Christ et la révolution non-violente (vv.aa.), cap. III, Genebra, Labor et fides, 1961.
VERMÉS, G., Jesus, O Judeu, São Paulo, Loyola, 1990.
WITHERINGTON III, Ben, The Christology of Jesus, Minneapolis, Fortress, 1990.
WEBER, Max, A ética protestante e o espírito do capitalismo, 3a. ed., São Paulo: Pioneira, 1983.
YODER, John Howard, A política de Jesus, São Leopoldo, Sinodal, 1988.
Citação

[1] Gorringe, Timothy J. O Capital e o Reino, ética teológica e ordem econômica, São Paulo, Paulus, 1997, Quarta Parte, Dois Caminhos, pp. 211-227.


vendredi 1 mars 2013

A ideologia do ficar rico com Jesus (II)

Segunda parte
A liberdade radical

O programa de Jesus em Lucas 4 destaca duas idéias: a de anunciar a boa notícia e a de libertar os dominados pelo não-estar existencial.

A idéia de anunciar estava presente na antiga tradição judaica, já que a tarefa profética era, sobretudo, proclamatória. De Samuel a Jeremias – incluídos nesse período homens como Samuel, Natã, Gade, Azarias, Elias, Eliseu, Joel, Miquéias, Micaías, Isaías e Jeremias -- esses anunciadores da palavra do Eterno falaram aos reis e ao povo. Advertiam e encorajavam. Falavam de juízos e promessas espetaculares. E assim também foi o último período da profecia hebraica, de Ezequiel a Malaquias. No período helênico, graças às reuniões nas casas de oração, sinagogas, a proclamação se generalizou. Os textos antigos eram lidos e comentados.

João, o batista, foi um anunciador da chegada do reino. E Jesus, ali na sinagoga de Nazaré, colocou em seu programa a tarefa do anunciar.

E o que significa libertar? O conceito de libertação na antiga tradição judaica partiu da idéia de livramento e de segurança. A pessoa de um libertador traduzia a imagem do rei-herói, alguém que arrancava o povo da destruição (Jz 18.28). E no testamento cristão, o salvador é aquele que liberta os escravos do não-estar (At 7.35) e que arranca a nação do estado da não-vida (Rm 11.26).

Para o judeu, no momento de Jesus, o ato característico de liberdade ocorrera sob a liderança de Moisés, quando o Eterno salvou seu povo do estado de escravidão sob os egípcios e o pousou no deserto do Sinai (Ex 12.31—14. 31).

É fundamental entender que a libertação do domínio egípcio definiu para os judeus do período helênico o paradigma da liberdade como ato do Eterno, que não visava apenas o alívio de uma situação desastrosa, mas estar em abundância. Aí estava a chave do conceito de aliança, livres pora adorar. Essa idéia fundamentou o conceito de aliança e da espiritualidade judaica até o primeiro século.

A partir do programa de Jesus entendemos o estar existencial como sentido pleno de vida, liberdade no Espírito, gerador de alegria, justiça e paz, pessoal e comunitária. E não-estar existencial como exclusão de bens e possibilidades, escravidão sob as suas mais diferentes formas e cegueira espiritual, que geram perda do sentido de vida.

O uso que o homem de Nazaré fez de termos políticos, como reino e evangelho, mostram que tinha o objetivo de falar de uma promessa existencial de intervenção alternativa àquelas dos poderes presentes na época. Quando lemos o texto apresentado por Jesus, numa perspectiva rabínica, estamos diante de uma recorrência às promessas do jubileu, quando a não-vida deveria ser banida. A fala daquele homem de identidade questionada não afirmava que a Palestina seria resgatada de imediato na escala da geografia e do tempo, mas que deveria entrar no estar palestino o impacto solidário do ano sabático.

Da mesma maneira, o reino surgiria enquanto compreensão do ano sabático. Nesse sentido, o sábado da semana ampliava-se no sábado dos anos, onde o sétimo deveria ser de alegria, justiça e paz, já que restauraria o que fora exaurido, natureza e pessoas. Essa coleção de propostas radicais presente em Levítico 25.1-26.2 concernia ao direito de propriedade da posse da terra e de pessoas, que constituíam a base da riqueza. O objetivo era fixar limites ao direito de posse, já que toda propriedade, natureza e pessoas, pertenceria a Deus. Assim, ninguém poderia possuir a natureza e as pessoas, pois tal direito pertencia a Deus. E o ciclo de sete anos sabáticos desagüava no qüinquagésimo ano, o jubileu messiânico (Levítico 25.8-24), que aparecer também em Números 36.4. Também Jeremias, 34.8-17, falou de uma reforma social na Jerusalém sitiada, quando Zedequias proclamou a liberdade dos escravos hebreus. Da mesma maneira, em Isaías 58.6-12 a liberdade radical como parte da visão profética. Mas, existem outros textos sobre o ano sabático, como Êxodo 23.10 e Neemias 10.32. Nesse sentido, o jubileu apontava para a reestruturação do estar pleno nas relações entre os povos da Palestina.

Flávio Josefo afirmou, depois da presença de Jesus em Nazaré, que não existe um único hebreu que, mesmo hoje em dia, não obedeça à legislação referente ao ano sabático como se Moisés estivesse presente para puni-lo por infrações, e isso mesmo em casos que uma violação passaria despercerbida.
[1]

Apesar da afirmação de Josefo, sabemos que o enquadramento do estra pleno a partir das disposições de Levítico 25, que incluía inclusive a reforma agrária, nunca foi de fato vivido entre os judeus. Por isso, coube a um sem-terra-santa levantar o discurso do ano da liberdade frente à escravidão do não-estar.

O jubileu, dessa maneira, se insere na antiga tradição dos judeus. E através da tradição rabínica, essa tradição foi adaptada às novas situações enfrentadas pelos judeus na diáspora. Mas, esses novos aspectos do jubileu e seu desenvolvimento na tradição judaica partem do texto de Levítico 25.10.

A teologia da vida, em Lucas, subentendida a partir do discurso de Jesus em Nazaré, está ligada, como vimos, ao sábado e ao ano sabático, que se situa em Levítico 25.2, no leque dos sete anos, assim como o dia de sábado se situa na semana. Para os rabinos da diáspora existe um sábado desde o começo e um sábado da terra, da mesma forma como na sexta-feira à tarde o trabalho cotidiano era interrompido pela adoração ao Eterno. Assim em Israel, e acreditavam que apenas em Israel, o povo judeu tinha a obrigação de restituir a terra ao Eterno, já que em Israel a terra pertencia ao Eterno.

Daí, o tríplice imperativo do estar cotidiano, da existência no jubileu: a liberdade da terra, a liberdade das dívidas e a liberdade dos excluídos. Na teologia da vida, presente no evangelho de Lucas, implícita nas palavras de Jesus, o jubileu concentra uma temática existencial que repousava sobre a expansão do estar.

Uma primeira constatação era a impossibilidade de que qualquer escravidão da terra fosse permanente. Ao cumprir o sábado, o proprietário estava impedido de possuir a natureza além de um certo tempo. O sábado do jubileu levava o proprietário a uma relação de submissão, que o impedia de reduzir a natureza a objeto de dominação. A soberania do eterno era, então, compreendida como a afirmação de que Ele era o senhor e criador da natureza. Donde se deduz que o ser humano não pode se colocar na posição de dono, como esclarece Levítico 25.23. Ou seja, na terra onde o Eterno é proprietário, o ser humano é hóspede. A gratuidade leva, então, à afirmação de que o ser humano vive em terra que não é sua propriedade, onde é objeto da gratuidade, conforme Levítico 25.19-21.

E a justiça para com os semelhantes, que devem usufruir das benesses, mostrava que a natureza era presente do Eterno para suprir as necessidades humanas. E apresentava a natureza como de todos e para todos. Assim, o monopólio que impossibilita este destino universal é um erro de alvo diante do Eterno do próximo. Dessa maneira, a justiça, tão presente na teologia da vida em Lucas, nasce da mensagem profética, presente no discurso de Jesus, e consiste em reconhecer o amor gratuito do Eterno na Palestina, e, posteriormente, no mundo. Por isso, o discurso de Jesus é o discurso da alegria e da justiça, destas duas ações que remetem à paz.

Mas, se o discurso da alegria e da justiça é a afirmação de que a natureza pertence ao Eterno e que o domínio sobre o próximo deve desaparecer, outra constatação teológica do jubileu é a remissão da culpa, que parte da reforma radical da existência em direção à reconciliação de pessoas e povos, no caso do discurso de Jesus, palestinos. Assim, o jubileu possibilita um novo começo, pois não rompe apenas com o não-estar existencial, mas elimina a culpa.

Se o discurso de Jesus apresentou um alcance palestino imediato, a partir da própria realidade vivida pelo nazareno, tal discurso remete à globalidade da esperança de restauração do mundo. Ou seja, tal discurso, visto sob a ótica teológica, fala do fim dos sofrimentos e da violência.

Assim, a teologia da vida reconhece o jubileu judaico e sua realização nas palavras e atos de Jesus na Galiléia, mas remete às ações jubilares da igreja cristã na reforma do mundo. Podemos, dessa maneira, falar numa volta à espiritualidade do jubileu, como forma de enfrentar a secularização escravizante, a apropriação injusta de recursos e a generalização da violência. E preconizar os direitos das minorias e o respeito pela vida.

E a partir da teologia da vida, lida neste discurso de Jesus em Nazaré, podemos compreender que os bens naturais foram confiados pelo Eterno aos seres humanos e que a salvação é liberdade no estar existencial, mas também alegria, justiça e paz.

O jubileu é reforma radical e a proposta do Jesus marginal foi a anunciação da possibilidade de uma era nova, caso os ouvintes aceitassem a notícia. Não estava a se referir a um evento imediato, histórico, mas reafirmava uma esperança conhecida de seus ouvintes: a da reforma existencial que deveria mudar as relações entre os povos.

E aquele homem de genealogia desconhecida e geografia marginal colocou a centralidade da reforma sobre ele próprio ao afirmar que naquele momento, na sinagoga de Nazaré, a esperança se cumpria. E é isso que Lucas vai mostrar na sequência do seu evangelho da vida: o reformador marginal era o Cristo universalmente prometido.

As caras do não-estar
Ao partir da compreensão de que o programa de Jesus estava dirigido às pessoas que enfrentavam a ameaça do não-estar, começamos a pensar o destino existencial dessa humanidade brasileira. E vimos que o não-estar existencial tem muitas faces, que pode ser cultural, social, mas também espiritual.


Hoje entendemos que a não-vida não acontece por acaso, mas é fruto das lógicas culturais, sociais e, por isso, também religiosas. Esta primeira compreensão do não-estar, do repousar sobre a morte, que não é fruto apenas de opções individuais separadas da comunidade e da história, nos levou à teologia da vida, que consiste em ver a necessidade de uma ação radical, que atue de conjunto sobre os diferentes fatores que alienam e matam a fé, a esperança e o amor. Por isso, dizemos, que o não-estar existencial é um fenômeno de massa gerado por fatores culturais e sociais, entre os quais estão as igrejas que servem a Mamon.

Por isso, a teologia da vida confronta a realidade cultural, econômica, política, social e religiosa. Vimos, numa leitura contextualizada do programa de Jesus, que a morte é parte integrante de um sistema de não-vida e que, embora seja apresentado como gerador de felicidade e riqueza, de fato, é gerador de vítimas lançadas fora da estrada.

Os problemas humanos, focados pelo sábio do Eclesiastes, reproduzem padrões que repousam sobre o não-estar existencial. Hoje, um quinto da humanidade não têm condições mínimas de estar com plenitude: não têm onde morar, não têm água limpa, não têm cuidados médicos, não têm oportunidades na área de educação e emprego e estão condenadas à não-existência, sem qualquer possibilidade de promoção pessoal para si próprias e para suas famílias. Todas essas situações têm suas raízes no errar o alvo e exige uma radical resposta de amor. Somente o evangelho pode transformar o coração humano. Mas não podemos nos restringir à proclamação. É necessário criar as condições para que a liberdade gere alegria, justiça e paz.

Embora a reconciliação do humano com o humano, de um povo com outro povo, não seja reconciliação com o Eterno, nem a ação social evangelização, nem a libertação política salvação, boas notícias de vida plena e envolvimento existencial são parte da reforma radical proposta pelo homem de Nazaré.

A mensagem de liberdade é também uma mensagem de juízo sobre toda forma de alienação, de opressão e de discriminação, e não devemos ter medo de denunciar o mal e a injustiça. Quando alguém recebe a Cristo, nasce de novo no seu reino e, conseqüentemente, buscará não somente divulgar como também manifestar a justiça. A liberdade que temos deve transformar responsabilidades pessoais e sociais.

Por isso, o protestantismo evangélico deve viver uma mudança radical: não se perder na ideologia do enriquecer com Jesus, nem adorar a Mamon, mas fluir para o exercício da alegria, justiça e paz.

Isto porque o não-estar, denunciado pelo sábio no Eclesiastes, existe como cultura da morte. E o que agrava a questão é o distanciamento das igrejas evangélicas do programa da vida proposto por Jesus, que leva à omissão e à insensibilidade. O não-estar da população brasileira não é visto, então, como problema, quando muito como objeto de caridade.

Essa não-existência imersa no sem-sentido deveria catalisar os diálogos entre as confissões do protestantismo evangélico. Qualquer crise do evangelicalismo pode ser superada na medida em que assumamos os problemas da humanidade brasileira como objeto de proclamação e salvação.

A insensibilidade evangélica não pode ser explicada apenas pela decadência religiosa. Pois esta insensibilidade não é exclusividade das pessoas que, momentaneamente, estão fora da geografia da salvação. Mesmo pessoas sensíveis, piedosas, compartilham a atmosfera da insensibilidade em relação aos problemas existenciais dos que não conhecem as possibilidades da vida em abrndância.

Para uma aproximação a este problema, vamos focar a ideologia do enriquecer com Jesus. Tal ideologia, conceito aqui entendido como consciência alienada, surgiu como idéia evangélica de emancipação da pobreza e da promessa de retribuição do Eterno. Mas a ideologia do enriquecer com Jesus não escapou aos paradoxos culturais. Como foi baseada numa leitura primitiva da seleção dos escolhidos por seus desempenhos pessoais, esta ideologia funcional se converteu em idolatria do enriquecimento.

Tal ideologia, aumentada pela presença do neoliberalismo, é um engodo porque afirma para milhões de pessoas que o evangelho de Cristo descarta a lei da alternância. Por essa lógica, o fracasso ou o sucesso das pessoas são vistos como diretamente proporcionais às habilidades, aos talentos e à fé-esforço de cada um, independentemente do contexto.

Assim, não há razão para a proclamação e a liberdade dos que estão caídos. A ideologia do enriquecer com Jesus é expressão dessa leitura primitiva da retribuição do Eterno, que tem como fim fazer de cada fiel uma pessoa rica. O dinheiro e a quantidade dele passam a ser o padrão para a avaliação da própria espiritualidade.

Nesta versão neoliberal da retribuição, o Eterno distribui as rendas das pessoas conforme suas capacidades e fé-esforço. Mas, quando o poder econômico se torna critério da dignidade humana, a busca pelo dinheiro torna-se finalidade última da vida. Estamos então idolatrando um dos príncipes do inferno: Mamon.

E o mais interessante é que os que conquistam o poder e dinheiro não necessariamente sabem o que fazer com isso, donde Mamon leva o cativo do não-estar a outro demônio –ao ídolo do consumo. Dessa maneira, a obsessão pelo dinheiro tem um espelhismo com a obsessão pelo consumo como fim em si, independente da utilidade da mercadoria.

Ora, se o consumo se transformou em medida, nenhuma quantidade de aquisições tem a possibilidade de trazer satisfação real, pois não há padrões a se manter: as metas permanecem distantes, mesmo quando se corre para alcançá-las. E o nome certo para isso, conforme nos diz Jesus, é ganância, pois o seu olho se fez mau, e toda sua vida está imersa na malignidade.

Servir a Mamon, um dos príncipes do inferno presente nas igrejas evangélicas e adorado publicamente, é correr sem destino, buscar objetos de desejo que mudam rapidamente. Consome-se para sentir-se vivo, mas a vida é um permanente não-estar. Os objetos de desejo deixam rapidamente de ser portadores de reconhecimento. A busca recomeça quando se consegue adquirir o objeto do desejo. A utilidade dos produtos e o usufruir as suas qualidades não são importantes. O importante é consumir mercadorias, bens materiais ou simbólicos, que causem inveja nos outros.

A ideologia do enriquecer com Jesus leva as pessoas a não verem o não-estar como problema existencial, não deixa as pessoas enxergarem que o não-estar existe, é morte.

 
Citação
[1] Josefo, Flávio, História dos Hebreus, Antigüidades Judaicas III, 15, 3.

jeudi 28 février 2013

A ideologia do ficar rico com Jesus

Primeira parte

Falar da ideologia do ficar rico com Jesus nos leva a falar sobre Mamon e a discutir a vida plena. O sábio do Esclesiastes disse que compreendeu que não há nada melhor do que ter prazer naquilo que se faz. Esta é a recompensa. Pois como é que podemos saber sobre o não-estar? O sábio procurou a felicidade e a paz. Foi objetivo e prático na avaliação de seu tempo e constatou que o evento humano está sujeito à lei da alternância, que vai além da explicação imediata: o humano não tem domínio sobre as dinâmicas que governam a vida e a morte. E procurou refúgio na sabedoria grega. O texto hebraico do Eclesiastes, com a presença de palavras aramaicas e persas, sugere autoria anônima, situada entre 450 e 200 antes de Cristo, mas foi registrado como texto de um rei antigo, Shlomo.

O estar e o não-estar

O sábio procurou entender o estar e o não-estar, ou seja, a existência e aquilo que está fora e além da existência, no jogo de seus movimentos. Percebeu que não tinha controle sobre o movimento dos fenômenos do universo e viu que era preciso respeitar o espaço e o tempo para poder existir dentro do ritmo dos eventos.

Mas ele não foi o único a pensar nessas coisas. A pergunta pelo não-estar, presente na história do humano desde que ele é sapiens, levou à pergunta pelo sentido do estar. Qohélet, em português Eclesiastes, e segundo Haroldo de Campos, O-que-sabe, de forma magnífica, quase à maneira de Nietzsche, trabalhou o tema da vida e da morte e nos leva a pensar sobre a única realidade a que de fato temos acesso: a existência -- terreno afetivo e emocional que produz e repousa sobre a riqueza material das humanidades. O sábio numa abordagem existencial discute o estar, sua integralidade e potencialidades.

Ele não foi o único a pensar a existência e a não-existência. Górgias (480-375 a.C.) traduziu no pensamento pré-socrático a dúvida sobre o não-ser e, por extensão, sobre o ser. Disse que se houvesse alguma coisa, seria ser ou não-ser, ou ser e não-ser juntos. E se o não-ser existe, ele é e não-é ao mesmo tempo. Mas é absurdo dizer que alguma coisa existe e não-existe ao mesmo tempo. Para Górgias, o não-ser não existe. Górgias disse mais do que isso, mas essa constatação, o não-ser não existe, é o que nos interessa nesse momento. Mas como nossa reflexão é teológica, vamos trabalhar com o conceito de estar, que é estado da existência, e não de ser que é essência do único que é, o Eterno -- Eu sou o que sou (Êxodo 3.14).

É interessante que o sábio apresentou o não-estar, aquilo que está fora, além da existência, de uma maneira que nos lembra Górgias. Disse que ninguém se lembra do que aconteceu no passado e que até as coisas que acontecerão no futuro também serão esquecidas. Que ninguém se lembra dos sábios, assim como ninguém se lembra dos imbecis, pois no futuro todos estaremos esquecidos. Há tempo para nascer e tempo de morrer, mas todos caminham para um mesmo lugar, pois tudo vem do pó e tudo volta ao pó.

Disse, ainda, que felicitava os que já morreram mais do que os que estavam vivos. E considerou que mais vale o dia da morte do que o dia do nascimento. Ou, mais vale ir a uma casa em luto do que ir a uma casa em festa. Que ninguém é senhor do dia da própria morte e que nessa guerra não há trégua. Por isso, um cão vivo vale mais que um leão morto, já que os vivos sabem que irão morrer; mas os mortos não sabem de nada e não tem recompensa nenhuma: sua memória já está no esquecimento. O amor, ódio e ciúmes pereceram com eles. E nunca mais participarão de qualquer coisa que se faz debaixo do sol.

Mas é a consciência do não-estar que remete ao sentido do estar. E aqui há uma diferença básica com Górgias, porque para ele a negação do não-ser é também a negação do ser e, por isso, fez três afirmações que marcaram o pensamento lógico-matemático e balizaram o ceticismo: (1) não dá para dizer que algo existe; (2) se alguma coisa existe não temos como conhecer sua existência; (3) e se o ser existe não temos como explicar sua existência aos outros.

Já o argumento do sábio, a partir do não-estar, afirma o sentido do estar, único conhecido. A negação do não-estar do sábio expressa o desejo de estar em abundância, porque tem por limites as bordas do tempo de ser. O estar existe, mas tem espaço e tempo – hoje diríamos é existencial e histórico. Por isso, é melhor o sentido do estar, a intensidade das ações do estar do que ficar na espera do não-estar. Assim, quando o não-estar sinalizar que está chegando e se aproximar, teremos o prazer de ter estado plenamente, com intensidade, de forma abundante.

E, por isso, o sábio nos aconselha a aproveitar a vida, a ir em frente. A comer com prazer e beber alegremente o nosso vinho, pois o Eterno já aceitou deliciado o nosso bem-fazer. Sejamos felizes, diz O-que-sabe. Enquanto vivermos na fumaça deste mundo, curtamos a vida com a pessoa amada, pois essa é a recompensa pelo nosso fazer debaixo do sol. E o que tivermos para fazer, façamos ótimo, porque o não-estar é nada e no nada não se faz, e no não-estar não existe pensamento, nem conhecimento, nem sabedoria. E depois do estar, vamos repousar no nada.

O fazer da existência vale a pena. O Eterno aprecia esse bem-fazer humano, que tem seu próprio tempo, que integra a existência de cada pessoa na história dos fazeres humanos. É por isso que Bereshit, o primeiro texto na Torah, apresenta um ponto zero. O tempo zero vai do entardecer à meia-noite. É quando o sol desilumina o nosso espaço de forma gradual. O tempo do não-estar não é uma fratura do tempo, é tempo da história. O sábio não contempla a passagem do tempo, mas a vinda do tempo. O tempo significa nada ou pouco para o Eterno, mas há um sentido de tempo para o humano. A conclusão do sábio é que temos de estar no tempo para dar valor à eternidade que brota do nada do não-estar.

Jesus nos fala do não-estar existencial, daquilo que parece que é, mas, na verdade, é ilusão, ídolo. E esse não-estar não fez parte do discurso dele e tem um nome Mamon. O tema lá era o dinheiro, mas aqui é neoliberalismo evangélico. Mamon foi a expressão utilizada por Jesus para descrever a cobiça ou a riqueza material, personificada como divindade, e que em hebraico significava literalmente dinheiro. Representa, assim, o alvo errado da avareza e da ganância. E na mitologia judaico-cristã transformou-se num dos sete príncipes do inferno, de aparência nobre, mas deformado, que carrega um saco de moedas de ouro nas costas e suborna os humanos. Então, o nosso tema aqui é o não-estar do dinheiro, enquanto deus que estraçalha as vidas e, por outro lado, a plenitude do estar, consubstanciada no programa de Jesus para a expansão do reino do Eterno.

Jesus disse no Sermão do Monte: Se o teu olho direito te faz tropeçar [literalmente, se o teu olho for mau], arranca-o e lança-o de ti; pois te convém que se perca um dos teus membros, e não seja todo o teu corpo lançado no inferno. (Mateus 5.29).

Mas, o que é um “olho mau”? Aparentemente, fora da cultura judaica, soa como algo esotérico, mas não é isso: em hebraico, possuir um ‘ayin ra‘ah, “olho mau”, significa ser avarento, ganancioso. E ter um ‘ayin tovah, um “olho bom”, equivale a ser generoso. Jesus está condenando a avareza, a adoração a Mamon, e incentivando à generosidade. E é por isso que vai acrescentar: onde estiver seu tesouro, aí também estará seu coração [...] você não pode ser escravo de Deus e do dinheiro.

Do estar em plenitude nasceu o programa de Jesus. Eis o texto.

Então Jesus, pelo poder do Espírito, voltou para a Galiléia e a sua fama se espalhou em toda a região. Ensinava nas suas sinagogas, sendo glorificado por todos. Ele veio a Nazaré, onde tinha sido criado. Entrou, segundo o seu costume, no dia do sábado na sinagoga, e levantou-se para fazer a leitura. Deram-lhe o livro do profeta Isaías e, desenrolando-o, encontrou a passagem onde está escrito: “O Espírito do Senhor está sobre mim, porque me conferiu a unção [A] para anunciar a boa nova aos pobres. Enviou-me [B] para proclamar aos cativos a libertação e [C] aos cegos, a recuperação da vista, [D] para despedir os oprimidos em liberdade, para proclamar um ano de acolhimento da parte do Senhor”. Enrolou o livro, entregou-o ao servente e se assentou; todos na sinagoga tinham os olhos fixos nele. Então, ele começou a lhes dizer: "Hoje, esta escritura se realizou para vós que a ouvis”. Todos lhe prestavam testemunho, espantavam-se da mensagem da graça que saía de sua boca, e diziam: "Não é esse o filho de José?” Então ele lhes disse: "Por certo ireis me citar este provérbio: ‘Médico, cura-te a ti mesmo’. Soubemos de tudo o que se passou em Cafarnaum, faze, pois, o mesmo aqui em tua pátria". E acrescentou: "Em verdade, eu vos digo: nenhum profeta é bem acolhido em sua pátria. É verdade o que vos digo: havia muitas viúvas em Israel nos dias de Elias, quando o céu ficou fechado três anos e seis meses e sobreveio uma grande fome sobre a terra toda. No entanto, não foi a nenhuma delas que foi enviado Elias, mas sim a uma viúva em Sarepta de Sidom. Havia muitos leprosos em Israel no tempo do profeta Eliseu, no entanto, nenhum deles foi purificado, mas sim Naamã, o sírio". Todos na sinagoga ficaram tomados de cólera, ouvindo essas palavras. Eles se levantaram, lançaram-no fora da cidade, e o conduziram até uma escarpa da colina sobre a qual estava construída sua cidade, para daí o precipitarem abaixo. Mas Jesus, passando no meio deles, seguiu seu caminho. (Lucas 4.14-30).

Esse estar de Jesus com a vida (Lucas 4.14–9.50) situou-se, em primeiro lugar, na Galiléia (cf. 23.5; At 10.37). E Lucas, ao contrário de Mateus (15.21; 16.13) e Marcos (7.24-31; 8.27), abriu a ação de Jesus com o discurso na sinagoga de Nazaré (4.16-30), onde leu Isaías 61.1-2 e Isaías 58.6, que descortina a seqüência do evangelho: o anúncio da plenitude fundado sobre as promessas antigas da tradição judaica.

No texto, Lucas descreve duas questões centrais para a compreensão do estar em plenitude: há um programa e há um destinatário da mensagem. Assim, os versículos 18-19 apresentam o programa e os versículos 23-27 o público, aqueles que estavam fora da geografia da liberdade.

Segundo Lucas, Jesus foi marcado, escolhido peplo Eterno, e sob a ação do Espírito, ação esta que caracteriza o vero profeta, teve como objetivo anunciar a boa notícia de que chegara o momento de viver o estar em abundância e de libertar aqueles que estavam dominados pelo não-estar. Seu programa foi estruturado ao redor de quatro questões: anunciar a boa notícia do estar em abundância aos excluídos da vida; proclamar a liberdade aos cativos: dar olhos aos cegados pelo não-estar; e libertar os que, por causa do não-estar, perderam o sentido da vida.

O programa destaca duas idéias: a de anunciar a boa notícia e a de libertar os dominados pelo não-estar existencial.

A idéia de anunciar estava presente na antiga tradição judaica, já que a tarefa profética era, sobretudo, proclamatória. De Samuel a Jeremias – incluídos nesse período homens como Samuel, Natã, Gade, Azarias, Elias, Eliseu, Joel, Miquéias, Micaías, Isaías e Jeremias -- esses anunciadores da palavra do Eterno falaram aos reis e ao povo. Advertiam e encorajavam. Falavam de juízos e promessas espetaculares. E assim também foi o último período da profecia hebraica, de Ezequiel a Malaquias. No período helênico, graças às reuniões nas casas de oração, sinagogas, a proclamação se generalizou. Os textos antigos eram lidos e comentados.

João, o batista, foi um anunciador da chegada do reino. E Jesus, ali na sinagoga de Nazaré, colocou em seu programa a tarefa do anunciar.

E o que significa libertar? O conceito de libertação na antiga tradição judaica partiu da idéia de livramento e de segurança. A pessoa de um libertador traduzia a imagem do rei-herói, alguém que arrancava o povo da destruição (Jz 18.28). E no testamento cristão, o salvador é aquele que liberta os escravos do não-estar (At 7.35) e que arranca a nação do estado da não-vida (Rm 11.26).

Para o judeu, no momento de Jesus, o ato característico de liberdade ocorrera sob a liderança de Moisés, quando o Eterno salvou seu povo do estado de escravidão sob os egípcios e o pousou no deserto do Sinai (Ex 12.31—14. 31).

É fundamental entender que a libertação do domínio egípcio definiu para os judeus do período helênico o paradigma da liberdade como ato do Eterno, que não visava apenas o alívio de uma situação desastrosa, mas estar em abundância. Aí estava a chave do conceito de aliança, livres pora adorar. Essa idéia fundamentou o conceito de aliança e da espiritualidade judaica até o primeiro século.

A partir do programa de Jesus entendemos o estar existencial como sentido pleno de vida, liberdade no Espírito, gerador de alegria, justiça e paz, pessoal e comunitária. E não-estar existencial como exclusão de bens e possibilidades, escravidão sob as suas mais diferentes formas e cegueira espiritual, que geram perda do sentido de vida.