mercredi 27 avril 2016

O quadrívio

O quadrívio

E SEUS DESAFIOS HERMENÊUTICOS
[Elementos para um discurso] 

Jorge Pinheiro, PhD



Ó Deus, oramos por tua Igreja, que está vivendo hoje em meio às perplexidades de constantes mudanças e se encontra diante de um novo e grande trabalho. Lembramo-nos com gratidão de como ela nos nutriu no começo de nossa vida espiritual, das tarefas que ela nos deu para que ficássemos mais fortes, da influência que recebemos das pessoas que ela reúne e do poder constante do bem que ela exerce. Quando a comparamos com todas as outras instituições, nós nos alegramos, porque não há nenhuma outra que se iguale a ela. Mas quando a julgamos com a mente de seu Mestre, nos curvamos com piedade e contrição. Batiza-a novamente no Espírito de Jesus! Permite que ela renasça, ainda que para isso tenha de passar pelas dores de parto do arrependimento e da humilhação. Dá-lhe sensibilidade maior para seus deveres, compaixão mais intensa pelo sofrimento e lealdade total para com a vontade de Deus. (...) Dá-lhe força para aceitar a causa do povo e para reconhecer nas suas mãos, que tateiam em busca da liberdade e da luz, as mãos feridas de Cristo. Ordena que ela pare de procurar sua própria vida, para que ela não a perca. Dá-lhe coragem para se dedicar à humanidade, e, como o Senhor crucificado, que ela possa andar pelo caminho da cruz em direção a uma glória mais alta. 

Oração Pela Igreja, do teólogo batista Walter Rauschenbusch. 


1.  Que desafios são esses?

Ao percorrer os caminhos da brasilidade, ao longo dos últimos cinco séculos, podemos encontrar as raízes que explicam a miséria da nação. As bandeiras da emancipação, da democracia e da justiça social continuam presentes hoje com tanta força como em épocas passadas. Essas bandeiras, sociais e políticas, traduzem a fragilidade do cristianismo no Brasil, que no correr das últimas décadas parece ter crescido muito, mas pouco tem feito em relação aos miseráveis e excluídos.

No entanto, essas bandeiras emancipatórias são indissociáveis do cristianismo e da ética do amor cristão. E precisam ser vividas, enquanto tradução do cristianismo que professamos. 

Ética cristã e democracia não são excludentes. Ao contrário, se completam e precisam ser vividas na Igreja e na denominação, se desejamos fazer a diferença, fazer com que o significado histórico do projeto batista marque nossa presença no futuro da nação.


2.  O texto bíblico e a hermenêutica

Jesus respondeu: 
-- Um homem ia descendo de Jerusalém para Jericó. No caminho alguns ladrões o assaltaram, tiraram a sua roupa, bateram nele e o deixaram quase morto. Por acaso um sacerdote estava descendo por aquele mesmo caminho. Quando viu o homem, passou pelo outro lado da estrada. Também um levita passou por ali. Olhou e também foi embora pelo outro lado da estrada. Mas um samaritano estava viajando por aquele caminho e chegou até ali. Quando viu o homem, ficou com muita pena dele. Chegou perto e fez curativos, pondo azeite e vinho nas feridas. Depois disso, colocou o homem no seu próprio animal e o levou para uma pensão, onde cuidou dele. No dia seguinte, entregou duas moedas de prata ao dono da pensão, dizendo:
-- Tome conta dele. Na volta, quando eu passar por aqui, pagarei o que você gastar a mais com ele.
Então Jesus perguntou ao professor da Lei:
-- Na sua opinião, qual desses três foi o próximo do homem assaltado?
-- Aquele que o socorreu – respondeu o professor da Lei.
-- Pois vá e faça a mesma coisa – disse Jesus. 

Parábola do bom samaritano, 
Evangelho de Lucas 10.30-37, 
versão da Bíblia na Linguagem do Hoje.


Dentro dos limites possíveis, vamos trabalhar com a teorização produzida a partir da hermenêutica patrística, que chegou ao seu momento mais alto com a lectio scolastica e lectio divina da escolástica de Tomás de Aquino. Essa hermenêutica que ficou conhecida como quadrivium, parte da compreensão de que o texto ensina os fatos, a alegoria projeta em direção à teologia, o sentido ético mostra o que se deve fazer e o sentido anagógico aponta para o que tende a ser.

Quadrivium é uma palavra latina derivada da junção de duas outras: quattuor, que significa quatro, e via, que quer dizer caminho. Temos assim, quatro vias, quatro sentidos, quatro caminhos. Quadrívio/quadrivium é então encruzilhada em forma de + e, por extensão, lugar freqüentado, praça pública. Mas quadrívio é também hermenêutica.

O sentido primeiro ou sentido literal do quadrívio apresenta fatos e acontecimentos. O sentido simbólico traduz verdades teológicas do texto percebido primeiramente em seu sentido literal. O sentido ético diz respeito àquilo que o crente deve fazer. E por último, o sentido escatolõgico aponta para os fins últimos.

É claro que esses quatro sentidos formam um processo, que vão num crescendo, embora cada um dependa do outro. Assim, é preciso guardar-se da simplificação das categorias. Quando a exegese é fraca e desprezamos o sentido literal, o sentido simbólico que leva ao teológico, tende a descolar-se da realidade produzindo conclusões disparatadas. E se não entendermos o sentido teológico, da mesma maneira, o fazer ético deixa de ser objetivo e prático. Por fim, quando não vivemos o sentido ético, o escatológico passa a ser um sonho, ou um pesadelo, por não ter relação com a vida cristã.

Os caminhos do quadrívio

A tomada de decisão na vida pessoal e social é uma exigência constante. Vivemos sob um bombardeio de encruzilhadas. Quando possuímos desejo de mudança, advindo dos erros cometidos, postura e atos mudam a vida até aqui levada. Invertem-se então os papéis. De qualquer maneira, é incontestável o defrontar-se com a necessidade de solucionar difíceis questões no correr de nossa vida. 

Nossas perplexidades diante das circunstâncias e do mundo têm sempre solução na encruzilhada da cruz, que nos apresentam caminhos novos a percorrer. Mas o sentido desse caminhar é desafiador. 

A encruzilhada surge quando precisamos percorrer os quatro caminhos que nos levam à mudança: a escolha de opções, a renúncia da indiferença, a renúncia do status quo e a escolha da pessoa. 

O primeiro caminho é o da opção ou a via das opções

É preciso ter em mente que a partir do momento em que tomamos esse caminho, temos as opções práticas de escolha para a decisão.

Quando estamos diante de um desafio, estamos também diante de alternativas de escolha, quer seja uma só ou várias. Toda opção exige liberdade de escolha, preferência, tomada de decisão. Por isso é tão difícil. 

Mas, diante da indecisão, temos de escolher dentre as opções a que melhor soluciona o desafio que se levanta diante de nós. Quando entendemos isso, já demos o primeiro passo no caminho das opções. E esse primeiro passo é um progresso. 

Quando tomamos uma decisão é preciso refletir até que ponto ela é inquestionável. Quando descobrimos sua incontestabilidade as dificuldades tornam-se mais fáceis de serem resolvidas, porque temos a convicção de que a melhor opção já foi tomada. Mas ainda faltam caminhos a percorrer.

O segundo caminho é o da renúncia à indiferença

Renúncia a tomar posições é uma tentação presente em nossas vidas. É algo demoníaco e só se justifica em casos não vitais e passíveis de aprazamento. Muitas vezes, renunciamos à tomada de decisão quando ela nos parece traumática, não cabível ou impossível à primeira vista, assim protelamos porque nos traz um aparente conforto. Mas, na maioria dos casos, este é o pior caminho. Através dele ignoramos a decisão e optamos pela indiferença: fingimos que a decisão não se refere a nós e preferimos não enxergá-la.

Normalmente, quando ignorarmos a decisão, a situação tende a se complicar ainda mais. Além, é claro, da possibilidade de sermos considerados covardes e irresponsáveis por aqueles que nos observam.

Ao escolhermos a via da renúncia à indiferença, procuramos mudar o cenário da decisão a fim de mudar paralelamente as opções de escolha. Ao percebermos que as opções disponíveis não bastam ou não nos atende de maneira satisfatória, procuramos uma mudança nas premissas que estabeleceram a decisão. E é esta situação que nos leva ao terceiro caminho.

O terceiro caminho é o da renúncia ao status quo

Quando trilhamos o caminho das opções e avançamos através da renúncia à indiferença somos, muitas vezes, desafiados a fazer um terceiro caminho: percorrer a via da resignação da dignidade de posições aparentemente inquestionáveis. Renúncia aos privilégios do status quo é isso... sacrifício para que possamos superar circunstâncias e tomar decisões.

O quarto caminho é a escolha da pessoa

Quando nos deparamos com circunstâncias adversas, é fundamental que a escolha de opções e nossas renúncias nos levem à pessoa. É claro que os fatores externos precisam ser levados em conta, a mudança dos paradigmas pessoais é prioritária, mas se permanecermos neles como únicas bases para nossa escolha, o futuro será implacável. A criatura humana, imagem de Deus, ser consciente de si mesmo, senhor dos seus atos e, por isso, responsável por eles, é o quarto momento do quadrívio. Mas, esta pessoa é também unidade social que se expressa no agrupamento humano organizado. No caminhar, o caminhante faz o caminho. E esta é uma questão radical.

É isso que Jesus nos ensina nesta belíssima parábola do Bom Samaritano. E é por isso que ele finaliza a história dizendo:

-- Vá e faça a mesma coisa.


Ou fazendo uma outra leitura, vejamos a 
A ética do amor cristão 

O cristianismo é em sua essência uma experiência transcendente ao nível da materialidade humana, uma experiência que acontece em todos os tempos e em todas as situações e é em si mesma independente de formas sociais e econômicas. Nesse sentido, o cristianismo não pode ser identificado com um tipo determinado de organização social, em detrimento de seu caráter transcendente e universal.

Mas, ao mesmo tempo, o cristianismo é portador de poder e oferece à humanidade uma mensagem de vida, de conhecimento e de verdade, tanto para a pessoa como particularidade, como para a sociedade como um todo. Exatamente por isso, apresenta-se como capenga toda forma de cristianismo que se fecha na pura interioridade. 

Também não se pode dizer que o cristianismo é um movimento que mecanicamente parte da interioridade em direção à exterioridade, apropriando-se de formas culturais ou simplesmente passando ao largo delas. Na verdade, dá forma às expressões culturais e, concomitantemente, toma novas formas a partir delas. 

A ética do amor, translúcida no texto de Lucas 10.30-37, leva o cristianismo a ter uma postura crítica diante da ordem social que se apóia na opressão e na exclusão social. 

A ética do amor cristão faz a crítica da ordem social que está erigida sobre o egoísmo político e econômico, e proclama a necessidade de uma nova postura, na qual o sentido de comunidade seja o fundamento da organização social.

Essa ética denuncia o egoísmo pessoal e social, assim como as estruturas que mantêm e favorecem esse egoísmo, e que, em última instância, levam à exclusão de grandes parcelas de pessoas em nosso estado e em nosso País. A ética do amor, ao contrário, propõe uma parceria solidária onde a alegria não seja fruto do lucro, mas do próprio trabalho.

Da mesma maneira, a ética do amor cristão condena o egoísmo de grupo, quando fechamos nossa igreja entre quatro paredes, para não ver, sentir e sofrer com a miséria e a exclusão de homens e mulheres, que para nós são apenas paisagens dos cenários urbano e rural. 

A ética do amor cristão condena o egoísmo que justifica a violência e o abandono. E, ao contrário, prega a submissão à idéia do direito à cidadania, à vida e à construção de uma consciência comunitária.

Não somos os primeiros cristãos a viver os tempos difíceis. A igreja no correr de sua história viveu tempos terríveis. Mas agora, no terceiro milênio da história cristã, somos mais uma vez desafiados. E tendemos a oscilar entre dois perigos: a desesperança, ou seja, viver como se Cristo nunca fosse voltar, ou esperar o clímax iminente da história humana. Em ambos os casos, caímos numa cilada, que é virar às costas para a realidade social.

É impressionante notar, que o Brasil ocupa um lugar de destaque em população cristã evangélica em todo o mundo. O que pode ter um significado estratégico para a causa da justiça social. Mas para que isso aconteça é necessário uma compreensão da ética cristã em relação próximo.

Omissão e indiferença, esses dois inimigos ameaçam o evangelho de Cristo. O primeiro deixa o amor ao próximo para depois, e o segundo está tão ausente que nem o próximo consegue enxergar. Por isso, precisamos desenvolver uma teologia que mostre às nossas igrejas que não existe cristianismo pleno sem compromisso social.

O amor cristão parte da compreensão de Deus. Ele é o Deus da justiça, é o Deus da misericórdia. Os cristãos em comunidade formam a igreja e ela é o corpo de Cristo na terra. É através da comunidade cristã que se dá o exercício terreno da graça de Deus. 

Definida a necessidade de uma teologia e ética do amor, somos levados a estudar a viabilidade da prática dessa atividade cristã.

É importante ficar claro que nossa responsabilidade social deve levar em conta dois princípios: a justiça e a paz. Está claro que toda decisão a favor da justiça exige não somente uma decisiva postura cristã, mas coragem para renunciarmos ao status quo. 

Posicionar-se no Brasil de hoje, a partir de uma ética do amor, implica em entender uma contradição essencial, que muito possivelmente só poderá ser resolvida no longo prazo: vivemos num país onde imperam a herança do autoritarismo colonial escravista (a ética da casa grande & senzala) e uma moral da sensualidade absoluta (a moral do “não existe pecado do lado de baixo do Equador / vamos fazer um pecado rasgado, suado, a todo vapor”).

Do lado oposto, entendemos que o uso ególatra de bens e posses, a corrupção, a discriminação social e a depravação só produzem miséria e sofrimentos. Não dizemos que a pessoa brasileira está impossibilitada de criar e produzir coisas boas e belas, mas que esta ação é efêmera. Assim, temos um ser ambíguo (como o resto da humanidade), que produz uma cultura também ambígua, por vezes plena de beleza e criatividade, mas também maligna e destruidora.

Nossa atuação no campo social implica em entendermos a realidade cultural e optarmos por trilhar a via dolorosa das opções, das renúncias e do encontro com nosso próximo. 

Só assim, a construção de uma ética do amor produzirá frutos eternos, que florescerão através dos anos para a honra e a glória do nosso Senhor. Por isso, não falamos de um momento, mas de um processo, que crescerá conforme cresça também a consciência ética dos batistas, de que fomos chamados pelo Cristo para desenvolver uma tarefa histórica, juntos com os setores éticos da sociedade, que é o de transformar o Brasil num país onde todos tenham acesso a cidadania, à justiça e às condições dignas de vida. 

O encontro com o excluído é encontro com a pessoa e sua espiritualidade

A cultura brasileira, fruto direto da escravidão, tem um caráter mágico, fortemente empapado no maravilhoso. Isto se dá porque o dia-a-dia da pessoa brasileira está ligado à busca da transcendência. Nesse sentido, o elemento que vai além e ultrapassa o concreto do dia-a-dia do brasileiro é o transcendente.

Essa presença do maravilhoso caldeia toda a malha relacional, indo do brasileiro simples e pobre ao sofisticado e rico. No entanto, é preciso entender que o maravilhoso relacional da cultura brasileira não nasceu de um processo pacífico, mas violento, do choque entre o universo transcendental de brancos e a matriz sacralizadora da natureza, de índios e negros. A contra-reforma católica produziu genocídio indígena e escravidão negra, macerando o universo religioso de povos e nacionalidades. Mas nós batistas não ficamos longe disso, já que assimilamos e aceitamos como paisagem cultural a exclusão resultante da escravidão.

A recuperação da história dos povos indígenas e do povo negro realizada enquanto tradição e cultura ligam-se à necessidade de conscientização da identidade brasileira. Aquele que esquece nega o esquecido, reprimindo ou suprimindo. A identidade está imbricada à memória. Evocar a memória é convocar e provocar, é transformar.

Dessa maneira, conhecendo e reconhecendo o negativo da cultura relacional brasileira, que se traduz na tentativa de esconder as injustiças sociais, podemos resgatar o que ela construiu de positivo. Afirmar a cultura à qual pertencemos é o primeiro passo para construir uma teologia batista que responda às necessidades da pessoa brasileira, compreender a identidade desse povo e a sua busca de felicidade e transcendência.

Fruto dessa cultura relacional e da presença evangélica estamos presenciando em nosso País a descoberta da realidade da vida espiritual e da dimensão religiosa. 

Diante disso, sugerimos a formulação de uma prática que deve partir de duas tarefas: uma de negação e outra de afirmação. 

1. A negação consiste em realizar a crítica da tendência à privatização da igreja. O Iluminismo rompeu a unidade entre existência religiosa e existência social. Por isso, a igreja acabou por refugiar-se na esfera do privado. Privatizou a mensagem da salvação e reduziu o exercício da fé à pessoa separada da vida social e do mundo em que vive. Para a consciência batista, determinada por essa teologia, as realidades social e política têm apenas uma existência efêmera. As categorias que essa teologia utiliza para explicar a mensagem cristã são as categorias do íntimo, do privado, do não social, do não político.

2. A afirmação consiste em desenvolver as implicações sociais da mensagem cristã. Não se trata de dar as costas ao problema levantado pelo Iluminismo, mas em responder teologicamente aos desafios, assumindo a tarefa de desenvolver uma nova relação entre teoria e prática. A Igreja pode e deve fazê-lo, pois as promessas escatológicas da tradição bíblica, de liberdade, de paz, de justiça e de reconciliação, não constituem um horizonte vazio na expectativa cristã, mas têm uma dimensão política, que é preciso fazer valer na sua função crítica do processo histórico-social.

Assim, na elaboração de uma prática batista, à igreja cabe a tarefa de proclamar o evangelho da salvação, exercendo função crítica diante da sociedade. A igreja pode e deve assumir essa tarefa. Esta tarefa deve ser exercida na defesa da pessoa e de sua pessoalidade -- que não podem ser vistas como paisagens de um cenário -- e na mobilização do poder crítico do amor que está no centro da tradição cristã.

A função crítica dos batistas frente à miséria e exclusão produzirá repercussões na própria igreja: promoverá uma nova consciência no interior da igreja e criará uma transformação das relações da igreja com a sociedade.

Mas, se deve haver uma ação para fora, deve também haver uma ação para dentro. Isto porque, herdamos em nossas relações sociais, religiosas e denominacionais o padrão autoritário. Tal padrão nos leva a transformar, conscientes ou não, a democracia em discurso ideológico, sem tradução prática com o conjunto da denominação, que não tem como eleger democraticamente, por voto direto e universal, os executivos de nossas empresas, definir mandatos, propor programas e apresentar candidaturas, chapas e programas para essas empresas e suas gestões. Reproduzimos assim o padrão autoritário, impossibilitando que jovens participem dele, que a criatividade e gente melhor capacitada participem do processo democrático da gestão e governo da denominação e suas empresas. 

Por isso, podemos dizer que a ética do amor, democracia e transparência não são excludentes. Ao contrário, se complementam e precisam ser vividas também nas empresas da denominação, se desejamos fazer a diferença, fazer com que o significado histórico do projeto batista marque presença no futuro da nação.

Afinal, quando nos deparamos com circunstâncias adversas, é fundamental que a escolha de opções e nossas renúncias nos levem à pessoa. É claro que os fatores externos precisam ser levados em conta, a mudança dos paradigmas pessoais é prioritária, mas se permanecermos neles como únicas bases para nossa escolha, o futuro será implacável. A criatura humana, imagem de Deus, ser consciente de si mesmo, senhor dos seus atos e, por isso, responsável por eles, é o momento especial do quadrívio. Mas, esta pessoa é também unidade social que se expressa no agrupamento humano, denominacional ou não. No caminhar, o caminhante faz o caminho. E esta é uma questão radical.

É isso que Jesus nos ensina na parábola do Bom Samaritano. E é isso que ele enfatiza ao dizer:

-- Vá e faça a mesma coisa.


São Paulo, 23 de julho de 2002.
Jorge Pinheiro.


mardi 26 avril 2016

Elvis Presley - Amazing Grace

O Espírito e seus dons


Para entender o Espírito e seus dons
Pr. Jorge Pinheiro

Quem é o Espírito?

O Espírito é Pessoa da tri/unidade de Deus. É Pessoa que dá vida nova (Is 63.11-14) e consola os que sofrem (Jo 14.16; 16.7). O Espírito adota (Rm 8.15) e enche de amor (2Tm 1.7). Transmite conhecimento, sabedoria e justiça (Is 11.2-5). Derrama arrependimento e graça (Zc 12.10; 13.1), dá poder e torna as pessoas prudentes (2Tm 1.7). Ele vive em nós (Jo 14.17; 16.13; 1Jo 4.6): pertencemos a Ele (Ef 1.13).

“Mas foi a nós que Deus, por meio do Espírito, revelou o seu segredo. O Espírito Santo examina tudo, até mesmo os planos mais profundos e escondidos de Deus. Quanto ao ser humano, somente o espírito que está nele é que conhece tudo a respeito dele. E, quanto a Deus, somente o seu próprio Espírito conhece tudo a respeito dele. Não foi o espírito deste universo que nós recebemos, mas o Espírito mandado por Deus, para que possamos entender tudo o que Deus nos tem dado. Portanto, quando falamos, nós usamos palavras ensinadas pelo Espírito de Deus e não palavras ensinadas pela sabedoria humana. Assim explicamos as verdades espirituais aos que são espirituais. Mas quem não tem o Espírito de Deus não pode receber os dons que vêm do Espírito e, de fato, nem mesmo pode entendê-los. Essas verdades são loucuras para essa pessoa porque o sentido delas só pode ser entendido de modo espiritual”. 1Coríntios 2.10-14.

O Espírito é Ação e Voz

A ação e voz do Espírito são evidentes na vida dos profetas. Tornavam-se porta-vozes de Deus, quando o Espírito descia sobre eles. Isaías profetizou sobre a vinda de Jesus Cristo e disse que o Espírito do Senhor estaria sobre ele (Is 61.1). Ezequiel revelou que o Espírito o levou a lugares, numa visão dada pelo próprio Espírito de Deus lhe dera (Ez 11).

Embora algumas pessoas não tivessem o título de profeta, mesmo assim proferiram mensagens por meio do Espírito Santo. O rei Davi pronunciou seu último testemunho poético antes de morrer, quando disse: "O Espírito do Senhor fala por meio de mim, e a sua mensagem está nos meus lábios" (2Sm 23.2). Quando José interpretou os sonhos de Faraó, este exclamou que o Espírito de Deus estava sobre o filho de Jacó (Gn 41.38,39).

Depois que Samuel ungiu a Saul rei de Israel, o Espírito do Senhor desceu poderosamente sobre ele e profetizou. Deus o transformou numa pessoa diferente, de maneira que os israelitas perguntaram: “Será que Saul também virou profeta?”. (1Sm 10.5-13). Essa pergunta foi repetida quando o Espírito do Senhor desceu novamente sobre Saul enquanto perseguia Davi sem trégua. O rei tirou sua túnica e profetizou (1Sm 19.23,24).

No acampamento de Israel, durante o Êxodo, Deus retirou parte do Espírito que estava sobre Moisés e a colocou sobre 70 anciãos: eles então profetizaram, bem como Eldade e Medade. Quando ouviu sobre isso, Moisés disse que seu desejo era que o Senhor colocasse o seu Espírito sobre todo o povo, para que todos profetizassem (Nm 11.25-29).

O profeta Miquéias opôs-se aos falsos profetas em seus dias. Disse que estava repleto do Espírito do Senhor, de sua justiça e força, para convencer Israel de seus pecados (Mq 3.8). Moisés é o protótipo do Messias, pois foi considerado um profeta e revelou o Espírito do Senhor. Ele predisse o advento de Cristo, quando falou ao povo que Deus levantaria um profeta como ele próprio, do meio deles (Dt 18.15,18). Além disso, ele repetidamente introduziu a revelação do Senhor com as palavras "disse o Senhor a Moisés" (Nm 8.1,5, 23).

O Espírito é Paradoxal

“O Senhor Deus diz a seu povo: Depois disso, eu derramarei o meu Espírito sobre todas as pessoas: os filhos e as filhas de vocês anunciarão a minha mensagem, os velhos sonharão e os moços terão visões. Até sobre os escravos e as escravas eu derramarei o meu Espírito naqueles dias”. Joel 2.28-29.

O derramamento do Espírito no dia de Pentecostes é início e fim. É o fim da antiga aliança e o surgimento de uma nova. É o fim de uma velha era e o início de uma nova. O que era escrito em pedras agora é escrito no coração. O povo de Deus agora é uma raça, é roça: é a colheita do Espírito que semeia a palavra no coração das pessoas.

No Pentecostes, ao citar o profeta Joel, Pedro deixa claro: os últimos dias começaram. A compreensão de que o Pentecostes marca o tempo do fim e o fim dos tempos, traz para nós duas lições:

A primeira, é que somos chamados à vigilância, pois o fim se abrevia: o tempo da partida está cada dia mais próximo. A segunda é que devemos fazer a crítica daqueles que pensam poder apresentar os tempos e as épocas que Deus reservou para si.

“Pois o Espírito que Deus nos deu não nos torna medrosos, pelo contrário, o Espírito nos enche de poder e de amor e nos torna prudentes”. 2Timóteo 1.7.

Deixemos de lado cálculos, estimativas, projeções e repousemos sobre a certeza de que o Dia do Senhor se aproxima, e que a igreja o aguarda desde o dia de Pentecostes. Aquele derramar do Espírito foi o esperado que aconteceu inesperadamente.

É interessante observar que Lucas (Atos 1.4) diz que os discípulos deveriam esperar o tempo da promessa em Jerusalém. Depois (Atos 2.2), fala que de repente o Espírito Santo se fez presente. Eles esperavam, mas não sabiam quando. Eles tinham certeza, mas não sabiam a hora.

O Espírito não é companheiro de horas marcadas, anunciadas em anúncios e cartazes. Ele vem quando não esperamos. E não vem da forma que esperamos. Quem quiser andar com o Espírito tem que estar preparado para surpresas, para o inesperado. Ele não falha com as suas promessas, mas não fará o que esperamos nem quando esperamos.

Quando o Espírito vem ninguém O controla. Mas ele controla a todos. Naquela hora ninguém escolheu nem determinou os seus atos. Mas ninguém estava sem controle. O Espírito controlava a todos. Era conforme o Espírito concedia. Ser cheio do Espírito não é ser como um avião sem piloto. Ser cheio do Espírito é ser conduzido por ele que na sua soberania faz o que quer quando quer e como quer. Eis o paradoxo de Deus, aquilo que contraria a crença compartilhada pela maioria.


“Mas quem não tem o Espírito de Deus não pode receber os dons que vêm do Espírito e, de fato, nem mesmo pode entendê-los. Essas verdades são loucura para essa pessoa porque o sentido delas só pode ser entendido de modo espiritual”. 1Coríntios 2.14.

samedi 23 avril 2016

Eclesiologia e revolução

A saga anabatista

Professor Dr. Jorge Pinheiro[1]

Texto e ilustração de Paloma Pinheiro

A história anabatista é uma saga ao estilo do cristianismo antigo, anterior à estabilização imperial pós-Constantino, de sangue, perseguições e martírios. E os eventos notáveis e feitos heróicos do movimento anabatista até hoje repercutem no imaginário protestante, levando alguns historiadores e teólogos a exorcizarem o movimento e seus líderes. 

Segundo Weber, o ascetismo laico do movimento anabatista[2] espraiou-se pela Europa Ocidental e Estados Unidos, nos séculos 16 e 17, dando origem, quer diretamente, quer por adoção, a novas formas de pensamento religioso, como aqueles dos batistas, menonitas e quakers. Um processo semelhante se deu no Brasil através dos batistas. Por isso, os evangélicos brasileiros não podem voltar as costas à história dos anabatistas. Afinal, as influências eclesiológicas e teológicas do anabatismo, herdadas pelos batistas, foram repassadas para as comunidades, igrejas e pensadores evangélicos brasileiros que em algum momento de sua história comungaram com o pensamento batista.[3]

Por isso, nesse trabalho, vamos fazer uma abordagem das origens do anabatismo, principalmente daquele de forte conteúdo social, a partir da leitura história e do uso da sociologia da religião como ferramentas, com a intenção de demonstrar que em sua prática o anabatismo construiu uma eclesiologia que formatou uma teologia e não o contrário. Mas como o nosso texto trabalha a relação entre a eclesiologia e a revolução camponesa e plebéia liderada pelos anabatistas, convém entender o que significa eclesiologia. Nós a consideramos o estudo teológico da realidade de comunidades de fé em seus aspectos estruturais: sua forma de se relacionar com o mundo, seu papel social e sua forma de governo. Por isso, vamos analisar o comunitarismo, que mais tarde foi caracterizado por Karl Marx e Friedrich Engels como socialismo utópico, enquanto construção político/religiosa marcante e central do movimento anabatista.

Os anabatistas eram cristãos reformados que se levantaram contra a hegemonia da Igreja católica e dos príncipes alemães. A partir da frase do Evangelho de Marcos (16.16), “quem crer e for batizado será salvo, mas quem não crer será condenado”, deduziram que quem não crê de nada adiantou o batismo que recebeu quando pequeno. Então, negaram valor ao batismo de crianças, afirmando que aquele sacramento católico e reformado, só deveria ser recebido quando a pessoa tivesse plena consciência do que estava a fazer. Por isso, aqueles que tinham sido batizados antes de terem consciência do bem e do mal deveriam ser batizados de novo. 

O fato de levantarem a importância de escolha pessoal na opção pela caminhada cristã levou grupos e comunidades anabatistas a crescerem rapidamente. Mas, o crescimento dos anabatistas na Alemanha e na Europa central se tornou um problema para as autoridades eclesiásticas, afinal propunham às pessoas não batizar os filhos. Logicamente, os católicos e os reformados se colocaram em oposição direta a essa idéia. E como o poder eclesiástico estava ligado às forças do feudalismo ou às forças da burguesia emergente, ambos os lados optaram pelo extermínio dos anabatistas.

Primeira aproximação: Thomas Münzer

Para Engels, a descentralização, a autonomia local e regional, a diversidade comercial e industrial das províncias alemães e a insuficiência das comunicações foram os fatores que explicam o agrupamento das classes sociais da Alemanha no início do século 16 em três campos: o feudal nucleado ao redor do catolicismo; o burguês reformista, ao qual se aliaram os luteranos; e o plebeu/camponês liderado pelos anabatistas.[4]

É bom lembrar que na Alemanha medieval a Igreja católica tinha o monopólio da educação, o que fazia com que todo o ensino tivesse um caráter religioso. Nas mãos do clero católico estavam a política, a jurisprudência e o conhecimento, que era visto como extensão da teologia. E os dogmas do catolicismo, assim como a compreensão católica das Escrituras tinham força de lei em todos os tribunais. Dessa maneira, críticas ou ataques ao feudalismo traduziam-se em confronto com o catolicismo. 

A oposição ao feudalismo, começou bem antes do século 16, com os valdenses, albigenses, com as insurreições nos cantões suíços e foi tomando conta da Alemanha com as reivindicações religiosas, sociais e políticas que tomaram corpo como pensamento divergente. Os plebeus e camponeses alemães queriam o estabelecimento da igualdade cristã, que devia se traduzir em igualdade civil e social. Ou seja, a nobreza devia colocar-se ao nível dos camponeses, e os patrícios e burgueses no mesmo nível dos plebeus. Ou seja, reivindicavam, pela primeira vez na história, direitos cidadãos universais. Além disso, exigiam o fim das leis feudais, tais como obrigatoriedade dos serviços pessoais, tributos, privilégios e nivelamento das escandalosas diferenças no que se referia à propriedade. Dessa maneira, essas reivindicações democráticas levaram às reivindicações pelo estabelecimento de comunidades onde a propriedade e os bens fossem comunitários, o que era visto como a realização da promessa do Reino de Deus. 

Até 1525-1526, o movimento protestante era mais ou menos informal na Alemanha. Mas com as guerras camponesas, os conventos foram secularizados, o direito canônico abandonado e, com a recusa dos bispos de se associarem ao movimento pelas reformas, as autoridades civis foram empurradas a se tornar favoráveis às novas orientações e a se envolver na reorganização da igreja. Estas ações se inspiraram nas antigas visitas pastorais efetuadas antes pelos bispos. Os príncipes passaram, então, a visitar as paróquias, com delegações compostas de juristas e teólogos. A partir de 1530, criaram instituições permanentes com superintendentes, levando as igrejas a ficarem dependentes do príncipe que, de fato, substituiu o bispo. Nasceu assim a igreja territorial reformada. 

Em 1555, a Dieta de Augsbourg proclamou o princípio do “cujus regio, ejus religion” segundo o qual o príncipe ou uma outra autoridade podia determinar a religião das pessoas. A legislação e o órgão jurisdicional, em especial matrimonial, passaram para o poder do príncipe, que o entregava a uma instância jurídica: e o príncipe ou o magistrado das cidades passaram a ser a autoridade última em matéria de liturgia, doutrina ou nomeação de sacerdotes. Os bens eclesiásticos secularizados foram incorporados às possessões dos príncipes, ou geridos por administradores autônomos, em especial as escolas. Dessa maneira, passou a existir um controle sobre o comportamento religioso, e o estado jurídico e financeiro das paróquias, bem como sobre a doutrina e a vida moral dos pastores. 

Thomas Münzer e outros dissidentes do protestantismo reformado procuraram mobilizar seus pares e exigir das autoridades políticas liberdade de expressão e de ação religiosas e criaram comunas autônomas, proibindo os seus adeptos de exerceram funções políticas no Estado. Entre suas ações, Münzer suprimiu completamente o uso do latim, em 1522, antes de Lutero. Em Altstadt, nos cultos que dirigia vinha gente de todas as partes ouvi-lo. Seus ataques voltaram-se em especial contra o clero católico, chamando os príncipes e o povo à intervenção armada contra a Igreja católica.

“Não disse Cristo, vim trazer-vos não a paz, porém a espada? E que deveis fazer com ela? Nada, senão afastar a gente má que se opõe ao Evangelho. Cristo ordenou com grande severidade (Lucas 19.27): quanto, porém, a esses meus inimigos, que não quiseram que eu os governasse, trazei-os aqui e matai-os diante de mim... Não vos valhais do vão pretexto de que o braço de Deus deve faze-lo sem ajuda da vossa espada que bem poderia enferrujar-se na bainha. Os que se oponham à revelação divina que sejam aniquilados sem piedade, como Ezequiel, Ciro, Josias, Daniel e Elias destruíram os pontífices de Baal; de outro modo a Igreja cristã não pode retornar à sua origem. Na época da vindima temos que arrancar a erva daninha das vinhas do Senhor. Deus disse (Deuteronômio 7.5): nem terás piedade dos idólatras;... deitarás abaixo seus altares... e queimarás a fogo as suas imagens de escultura... Porque tu és um povo santo e Jeová teu Deus...” [5]

Münstzer, segundo Tillich, foi o mais criativo dos evangélicos radicais e acreditava que o Espírito podia sempre falar por meio das pessoas. No entanto, para se receber o Espírito era preciso participar da cruz. 

“Lutero, dizia ele, prega um Cristo doce, um Cristo do perdão. Devemos também pregar o Cristo amargo, o Cristo que nos chama a carregar sua cruz.” [6]

Assim, os anabatistas atacavam a teologia de Lutero a respeito das Escrituras, porque consideravam que Deus não falara apenas no passado, tornando-se mudo no presente. Mas que sempre falou e fala nos corações ou nas profundezas de qualquer ser humano preparado para ouvi-lo por meio de sua própria cruz. O Espírito habita nas profundezas do coração. A cruz, explica Tillich, representava a situação limite, era externa e interna. 

“Surpreendentemente, Münzer expressa esta idéia em termos existencialistas modernos. Quando percebemos a finidade humana, desgostamo-nos com a totalidade do mundo. E nos tornamos pobres de espírito. O homem é tomado pela ansiedade de sua existência de criatura e descobre que a coragem é impossível. Nesse momento Deus se manifesta e ele é transformado. Quando isso acontece, o homem pode receber revelações especiais. Pode ter visões pessoais não apenas a respeito de teologia como um todo, mas sobre assuntos de vida diária”.[7]

Nessa conjuntura de choque, em Zurique, na Suíça, no meio dos seguidores do reformador Zwinglio, surgiu um grupo de cristãos que rejeitou o poder eclesiástico, fosse ele católico ou reformado, exigindo a autonomia das comunidades cristãs. Assim, os anabatistas fundaram sua primeira comunidade no dia 21 de janeiro de 1525. E eles próprios passaram a escolher seus pastores e a construir comunidades separadas do estado. 

Mas, no sul da Alemanha, sem dúvida, foi Thomas Münzer quem se levantou como defensor de uma proposta de revolução social camponesa. Em 1521, liderou um grupo de anabatistas que se somaram aos camponeses sublevados ao redor da reivindicação de terra e liberdade. Münzer criou, assim, pela primeira vez na história um movimento de libertação camponês anabatista. 

Münzer não foi apenas um pensador, mas um militante que praticava a fé. Acreditava ser um profeta, chamado para implantar o Reino de Deus. Considerava ser seu dever denunciar e executar as sentenças contra os governantes que exploravam o povo. Suas pregações estavam impregnadas de conteúdo social e político: o fim da velha Igreja deveria marcar o inicio de uma nova ordem social. 

Engels, que junto com Marx foi um dos pais do socialismo científico, considerou as guerras camponesas lideradas pelos anabatistas como combates sociais. Afirmou que “se, em termos gerais, a burguesia podia arrogar-se o direito de representar, em suas lutas com a nobreza, além dos seus interesses, os das diferentes classes trabalhadoras da época, ao lado de todo grande movimento burguês que se desatava, eclodiam movimentos independentes daquela classe que era o precedente mais ou menos desenvolvido do proletariado moderno. Tal foi na época da Reforma e das guerras camponesas na Alemanha, a tendência dos anabatistas e de Thomas Münzer”.[8]

Considerou que, apesar de terem uma face cristã reformada, as reivindicações anabatistas iam além da expressão religiosa que apresentavam. Para Engels,[9] a política de Münzer nasceu de seu pensamento revolucionário, que caminhava adiante da situação social e política de sua época. Seu programa propunha o estabelecimento do Reino de Deus, com o milênio de justiça, paz e felicidade, com a supressão de todas as instituições que se encontravam em contradição com o mandamento do amor.

Para Münzer, o céu estava aqui no chão. E, por isso, o cristão deveria construí-lo na vida. A esse cristão anabatista cabia a missão de estabelecer o Reino de Deus sobre a terra. Seus sermões eram clamores políticos e estavam dirigidos a instaurar uma nova ordem social. A partir de Münzer, os anabatistas fizeram dos sermões proféticos, elaborados a partir da realidade social em que estavam inseridos, manifestos revolucionários, cujas propostas atemorizavam as autoridades, governantes eclesiásticos e príncipes de toda a Europa. 

A crise econômica fruto exploração agrícola predatória e extensiva; a crise demográfica, por causa das epidemias e fome; a crise social gerada com o surgimento da burguesia e dos assalariados; a crise clerical, devido às contradições e o enfraquecimento da Igreja católica e a crise espiritual ocasionada pelo surgimento de novas leituras do cristianismo fizeram da baixa Idade Média um período de alta instabilidade e angústia coletiva. Milhares de camponeses sem terra e plebeus desempregados vagavam pelos campos e cidades. Essa situação levou às propostas de construção de comunidades formadas por camponeses e plebeus, onde pudessem viver e trabalhar juntos, num sistema de vida em comum com os bens partilhados, disponíveis segundo as necessidades das pessoas e famílias. E, de fato, os anabatistas organizaram comunidades com este formato, organizações baseadas na propriedade social autônoma em relação ao Estado e aos poderes eclesiásticos e laicos da época, em primeiro lugar católico e depois reformado.

Dessa maneira, a compreensão que os anabatistas tiveram de que o cristianismo era uma ferramenta para a mudança da condição social em que se encontravam os camponeses e deserdados da terra, sem dúvida, partiu de suas próprias experiências de vida e trabalho e quebraram o paradigma de que a fé devia estar alienada da vida social e política. 

Mais tarde, em combate, e exército d e Münzer foi derrotado e ele foi preso, torturado e executado. Mas a guerra camponesa na Alemanha se estendeu até 1525, quando os anabatistas revolucionários foram afogados em sangue. O conflito, que teve lugar nas áreas do sul, centro e oeste da Alemanha, também afetou regiões vizinhas na Suíça e Áustria, e envolveu no seu auge, no verão de 1525, cerca de 300 mil camponeses. Estimativas da época situaram o número de mortes em torno de 100 mil camponeses e plebeus.

O sonho anabatista, porém, não morreu aí, subsistiu no coração de milhares de cristãos. Vejamos alguns exemplos. Sete anos depois da morte de Münzer, em 1532, uma insurreição tomou conta da cidade de Münstzer. Ela foi iniciada por um ex-padre da Catedral de Münstzer, que se tornou luterano, Bernard Rothmann, e acabou sendo expulso da cidade. Dois anos depois, em 1534, o pastor anabatista Jan Matthys, junto com outros líderes, entre os quais Jan van Leiden e Gert Tom Kloster, declarou a cidade de Münstzer livre do domínio dos príncipes e do poder eclesiástico. 

Matthys iniciou uma revolução social: os proprietários de terras foram expropriados e suas terras e bens distribuídos entre os camponeses. Dando seqüência à revolução, ele e um grupo de anabatistas atacaram a guarnição liderada pelo príncipe Franz von Waldeck, que era bispo de Münstzer e também chefe do exército. No confronto Matthys foi morto. Foi, então, sucedido por Jan van Leiden. Após um ano de resistência, Waldeck liderou um exército bem equipado e assaltou a cidade. Jan van Leiden e seus oficiais foram presos, torturados e executados. Os combatentes anabatistas foram lançados às prisões e, posteriormente, deportados para outras regiões da Alemanha e Suíça. 

A partir desse momento as comunidades anabatistas passaram a viver umas isoladas das outras, de forma clandestina. Seus líderes eram leigos que pregavam em roupas civis. Adotaram uma disciplina e uma ética rígidas a fim de sobreviverem na clandestinidade. Essas pequenas comunidades se refugiaram no interior da Europa e se estruturaram de forma autônoma. Cada comunidade de fé sobrevivia do compromisso de serviço e financeiro de seus afiliados.

Segunda aproximação: a Confissão ante o Concílio de Nuremberg

Depois da morte de Münzer, Hans Denck (1500-1527) surgiu como o reformador do destino anabatista. Em 21 de janeiro de 1525, Denck deixou Nuremberg para nunca mais retornar. No curso do ano e meio seguinte, sofreu o mesmo destino em outras cidades no sul da Alemanha e Suíça: foi expulso delas devido ao seu espiritualismo radical. Uniu-se aos anabatistas do sul da Alemanha e se tornou seu líder mais eloqüente até sua morte precoce pela peste em 1527. 

A diferença entre Münzer e Denck repousou sobre o Cristo internalizado. E é a partir do Cristo internalizado que Denck construiu uma eclesiologia alternativa à hierarquia católica, à exegese dos reformadores e apontou um novo caminho para o anabatismo. Para Denck, a presença do Cristo internalizado era mais importante do que o próprio batismo de adultos e, inclusive, as Escrituras. E essa transformação interna do cristão deveria ser construída através das experiências de vida, das lutas internas e externas que enfrenta e do sofrimento. Se a teologia de Münzer tinha duas faces, uma de transformação interna, pessoal, no poder do Espírito, e outra de transformação social, que se correlacionavam numa visão revolucionária do Reino de Deus, a teologia de Denck foi construída em cima de uma única via, a da revolução interna das pessoas. Assim, a teologia de Denck repousou sobre a renovação das pessoas, de expressão não violenta, e não sobre a revolução da sociedade. 

Foi a partir dessa concepção que Denck modificou as perspectivas revolucionárias de Münzer, exortando os fiéis a manter suas espadas embainhadas até que Deus desse a ordem para que as utilizassem. Denck, no sul da Alemanha, abriu o caminho para o anabatismo da não violência, sugerindo também que os fiéis não mais se organizassem em comunidades separatistas, isoladas da sociedade. 

Sua “Confissão Ante o Concílio de Nuremberg” é parte da herança teológica dos irmãos hutteritas, dos menonitas e dos pietistas alemães, e seus escritos influenciaram os trabalhos de espiritualistas como Frank[10] (1495–1592) e Schwenckfeld[11] (1490-1561). Nessa Confissão ele expõe sua compreensão da fé, das Escrituras Sagradas, do Espírito Santo, da justiça, do batismo e da ceia do Senhor. Vejamos alguns trechos da Confissão de Denck.

“Eu, Hans Denck, confesso que verdadeiramente considero, sinto e percebo que por natureza sou uma pessoa pobre de espírito, sujeito a toda doença do corpo e da alma. (...) Eu queria muito ter fé, isto é, vida. Mas, como isso não é alicerçado completamente dentro de mim, não posso enganar nem a mim mesmo, nem aos outros. De fato, se digo hoje, eu creio, eu posso, contudo, amanhã reprovar a mim mesmo por mentir, ainda que não eu, mas a verdade, que percebo imperfeitamente em mim. (...) Quanto a essa fé, não ouso dizer que a tenho, pelo motivo declarado. Pois vejo que a minha incredulidade não pode estar diante Dele. Por isso, digo: Muito bem, então, no nome do onipotente Deus, a quem eu temo do fundo do meu coração. Senhor, eu creio, ajuda-me na minha incredulidade!” 

“A Sagrada Escritura, o farol, brilha na escuridão, mas não pode por si mesma (por ser escrita por mãos humanas, falada por boca humana, vista por olhos humanos e ouvida por ouvidos humanos) remover plenamente a escuridão. Mas, quando o dia, essa luz eterna, amanhece, quando a estrela da manhã – que a fé como um grão de mostarda anuncia para breve o sol da justiça do Cristo – nasce em nossos corações, como a Sagrada Escritura também testemunha acerca do patriarca Jacó, então apenas assim a escuridão da incredulidade é superada. Isso ainda não está em mim. Enquanto tamanha escuridão está em mim, é impossível que possa entender completamente a Sagrada Escritura. Mas, se não a entendo, como deveria então tirar a fé disso? Isso significaria que a fé origina-se de si mesma se eu alegasse isso antes de ser revelado a mim por Deus. De fato, aquele que não quer esperar a revelação de Deus, mas presume o trabalho que pertence unicamente ao Espírito de Deus, certamente faz pouco do mistério de Deus, documentado na Sagrada Escritura -- uma abominação dissoluta diante de Deus -- e perverte a graça do nosso Deus em libertinagem, como é apontado nas epístolas de Judas e 2Pedro”.

“Essa é a minha posição com a qual me apego, de bom grado, para o amor e a honra de Deus e para o mal e a desgraça de ninguém, exceto o que não está na verdade. Disto é em parte percebido facilmente por aquilo que me atém com respeito à Sagrada Escritura: pecado, justiça de Deus, lei, e evangelho. Contudo, para brevemente me explicar, falo dessas quatro últimas da seguinte forma: incredulidade sozinha é pecado, o qual a justiça de Deus extirpa através da lei. Tão logo a lei perde essa função, o evangelho toma o seu lugar. Pelo ouvir da mensagem a fé vem. Fé não tem pecado. Onde não há pecado, a justiça de Deus habita. Assim, a justiça de Deus é o próprio Deus. Pecado é o que cresce sozinho contra Deus; isto na verdade não é nada”.

“A justiça trabalha através da palavra que estava desde o início e é dividida em duas, subsequentemente, lei e evangelho, por causa da posição dupla a qual Cristo como Rei da justiça pratica, a saber: extirpar a incredulidade e trazer a vida aos crentes. Sendo assim, todos os crentes eram outrora incrédulos. Consequentemente, tornando-se crentes, desse modo primeiro tiveram que morrer na condição de que eles não poderiam mais viver para si mesmos como um não crente faz, mas para Deus através de Cristo é que eles podem caminhar de fato não sendo tanto na terra, mas no céu, como disse Paulo. Davi também comprovou isso quando ele disse: “O Senhor faz descer à sepultura e dela resgata”. Em tudo isso eu creio (Senhor, esmague minha incredulidade) verdadeiramente, agora na expectativa, de quem quer que deseje negar e derrubar isso. Por isso, eu intento também registrar que eu creio no batismo e na ceia do Senhor. Agora meu tempo é curto. O Senhor esteja conosco. Amém”. 

“A poderosa palavra de Deus sozinha é capaz de sobrevir e penetrar dentro do abismo da impureza do homem, exatamente como um solo árido é preparado pela boa chuva. Onde isso acontece, nasce o conflito no homem antes da natureza ceder, e resulta em desespero, então se presume que ele deve perecer de corpo e alma e que poderá não suportar o trabalho que Deus começou. Como acontece quando chega uma grande enchente que a terra não pode agüentar, mas é lavada. Em grande desespero Davi disse: ´Senhor Deus, ajuda-me, pois as correntezas subiram até a minha alma´. Mas tamanho desespero, embora grande ou pequeno, dura tanto quanto o eleito está em seu corpo, e o trabalho de Cristo começa imediatamente após isso. Por isso, não apenas João Batista, mas também os apóstolos de Cristo batizaram-se nas águas. A razão: tudo que não sobrevive à água pode de fato tolerar menos o fogo, pois o batismo de Cristo é no Espírito, a perfeição de seu trabalho. Essa água ou batismo santifica (1 Pe 3), não que ela remova a sujeira do corpo, mas por causa do compromisso de uma boa consciência diante de Deus”.

“Esse compromisso significa que, aquele que se deixa ser batizado o faz perante a morte de Cristo, que morreu assim como este também morre para Adão; como Cristo ressuscitou, ele também caminhará na nova vida de Cristo, de acordo com Romanos 6. Onde está esse compromisso, o Espírito de Cristo está junto e acende o fogo do amor, que consome completamente o que permanece enfermo, e completa a obra de Cristo. Depois disso acontece o Sabbath, o eterno descanso em Deus, acerca do qual todas as línguas se calam. Onde o batismo formal exala o compromisso anteriormente mencionado, é bom. Onde não acontece isso não serve para a razão indicada. O batismo formal não é preciso para a salvação; como Paulo disse, ele não foi enviado para batizar, o que seria desnecessário, mas para pregar o evangelho é necessário. Mas, o batismo interno, acima mencionado, é necessário. Como está escrito, quem crer e for batizado será salvo”. 

“Aquele que, portanto, em lembrança come o invisível pão vivo, sempre será fortalecido e capacitado na vida justa. Aquele que, portanto, em lembrança bebe do vinho invisível do cálice invisível, o qual Deus desde o início verteu através de seu Filho, através da palavra, torna-se exaltado e não mais sabe nada sobre si mesmo, mas através do amor de Deus torna-se divino e Deus está humanizado nele. Isso é denominado ter comido o corpo de Cristo e ter bebido o sangue de Cristo, João 6. De fato, aquele que, portanto, em lembrança, tão frequentemente quanto lembra do que o Senhor diz, isto é, tão frequentemente come o pão e bebe do cálice, celebra e proclama a morte do Senhor. Assim sendo, para aquele que, entretanto, fisicamente também come e bebe, isso é verdadeiramente benéfico e saudável para o corpo porque o corpo se sujeita ao Espírito e também o serve em verdade”. 

“O comer alegra e fortalece, o beber acende o amor e aperfeiçoa aquilo para o que Cristo veio, a purificação do pecado que realizou-se no derramamento do sangue de Cristo. Assim sendo, o que foi dito acima diz respeito ao pão visível, também podendo ser aqui referente ao cálice. O mesmo pode viver sem esse pão exterior através do poder de Deus onde quer que sua glorificação o requerer, como fez Moisés no Monte Sinai e Cristo no deserto. Sem o pão interior ninguém pode viver. O justo vive pela fé. Aquele que não crê, não vive. Tudo isso eu confesso do fundo do meu coração diante da face do Deus invisível, para quem através dessa confissão devo me submeter humildemente; não deveria dizer “eu”, mas ele propriamente me sujeita a Ele, não por Ele mesmo, mas para todas as criaturas Nele. Não obstante, eu imploro a todas as criaturas e a sua sabedoria, que está nas mãos de Deus, através do terrível e grande nome de Deus, para julgar-me e aos meus irmãos presos, a quem amo em verdade, não de acordo com a aparência, mas de acordo com a verdade. Assim também o Senhor julgará quando ele vier em sua glória no dia da revelação de todos os mistérios. Amém. Amém”.[12]

Assim, Denck na sua Confissão caminhou na direção de uma ética do Novo Testamento internalizada nos corações, que deveria levar os crentes a aplicá-la no dia-a-dia. Não eliminou o poder formativo da eclesiologia comunitária, mas privilegiou uma compreensão carismática da espiritualidade. Essa internalização da fé deslocou a proposta de revolução religiosa, social e política. Se antes, com Münzer o combate aos poderes do mundo nasciam do caráter incondicional da justiça de Deus e do caráter concreto da situação histórica, com Denck a realidade da graça era espiritualidade privatizada. De todas as maneiras, permanecia a compreensão de que nenhuma hierarquia pode se apoderar do direito à graça e exigir que os cristãos se submetam ao arbítrio na busca pela salvação. E, assim, o sonho anabatista permaneceu: a fé é humana, mas não vem do humano, embora se realize no humano. A graça é pregada e assim vem a fé. Ter fé significa ser tomado e transformado pela graça, e isso acontece na materialidade das vidas.

Terceira aproximação: a Confissão de Schleitheim

A derrota da revolução e as idéias espiritualistas, de Denck e de outros pregadores, levaram a uma síntese. De fato, o anabatismo tinha vindo para ficar. E mesmo perseguidos ou clandestinos, continuavam a celebrar o batismo adulto por infusão como símbolo de reconhecimento e obediência a Cristo. E o apelido pejorativo transformou-se em definição teológica: anabaptista, "re-baptizador", do grego "ana" e "baptizo". Em alemão, Wiedertäufer, porque seus convertidos eram batizados em idade adulta. Continuavam a celebrar, também, a Ceia do Senhor, que para eles não transmitia graça, mas era ato in memoriam à morte e ressurreição de Jesus Cristo. Continuavam, ainda, a afirmar a autoridade da comunidade em disciplinar seus membros e até mesmo definir sua expulsão, a fim de manter a pureza das pessoas e da comunidade de fé. E quanto à salvação, caminhando no sentido contrário ao da Reforma, acreditavam no livre-arbítrio, defendendo que todas as pessoas têm a capacidade de se arrepender de seus pecados, que Deus as regenera e as ajuda a andar em uma vida transformada. 

Essa proposta eclesiológica/teológica foi expressa na Confissão de Schleitheim, de 1527,[13] que reagrupou comunidades anabatistas ao redor das sete teses de Schaffhouse, que podem ser sintetizadas assim: (1) o batismo está reservado aqueles que aceitam a fé, quer dizer, aos adultos seguros da redenção, que desejam viver fielmente a mensagem do Cristo; (2) a ceia do Senhor não é simbólica: é uma cerimônia de lembrança feita com pão e vinho, mas nela não há nem consubstanciação, nem transubstanciação; (3) o pastor é eleito livremente pela comunidade e não está investido do sacerdócio; (4) estão excluídos da ceia do Senhor todos os fiéis que caíram em erro ou pecado; (5) a separação do mundo é total: tanto eclesiástica como política. É necessário se separar de todas as instituições que não vivem o Evangelho; (6) um anabatista não pode exercer funções civis e nunca servir às forças militares do mundo; (7) ele não deve jamais fazer juramento.

A partir desse documento, um dos mais divulgados do anabatismo, possivelmente redigido pelo mártir Miguel Sattler,[14] a eclesiologia anabatista está definida: o batismo só deveria ser concedido aos que conheceram o arrependimento e mudaram de vida, para que entrassem na ressurreição de Jesus Cristo. Os que estavam no erro não podiam ser excomungados sem antes serem advertidos três vezes e isto deveria ser feito antes do partir o pão, para que a comunidade permanecesse unida. A ceia do Senhor era só para os batizados e era um serviço comemorativo. Entre os alertas que fazia, estavam: os membros deviam deixar o culto católico e protestante; não deviam tomar parte dos negócios públicos, que eram na sua maioria imoral; deviam renunciar à guerra e às armas de fogo. Os pastores deviam ser sustentados pelas congregações, a fim de poderem ler as Escrituras, assegurar a disciplina da comunidade e dirigir a oração. Se um pastor fosse expulso ou martirizado, deveria imediatamente ser substituído, e ordenado outro, para que o rebanho de Deus não fosse destruído. A espada destinava-se aos magistrados temporais, a fim de poderem castigar os maus, mas os cristãos não deviam usá-la, mesmo em legítima defesa, como também não deviam recorrer à lei ou tomar o lugar dos magistrados. Eram proibidos os juramentos.

Na confissão de Schleitheim vemos que eclesiologia, teologia e política se correlacionaram formando um todo teórico coerente. E essa confissão se tornou a coluna mestra do movimento anabatista e, no século seguinte, marcou o pensamento dos Batistas Gerais na Inglaterra.[15]

A olhar o futuro

À guisa de finalização, é necessário dizer que, ao analisar a teoria social dos anabatistas, de contrapor as políticas de poder ao amor cristão, vemos que desejavam o estabelecimento do Reino de Deus na terra, o reino milenar dos profetas. Tal Reino seria uma sociedade sem diferenças de classes, sem propriedade privada e sem autoridade estatal independente ou externa aos membros da sociedade. É claro, que na construção dessa eclesiologia sócio-política não podemos esquecer a dimensão religiosa do milenarismo de Münzer, sua força espiritual e moral, sua experimentada e autêntica profundidade mística. Sem dúvida, encontramos nas propostas anabatistas uma síntese das reivindicações plebéias e camponesas daqueles tempos, que antecipou os movimentos socialistas de outras revoluções camponesas e proletárias. Mas essa dimensão sócio-política não pode ser entendida em toda a sua riqueza se for separada da dimensão utópica milenarista dos cristãos anabatistas.

As comunidades de fé anabatistas rejeitaram qualquer forma de poder representado na ordem econômica e política sob o poder do Estado. Mas ao rejeitar as políticas de poder da sociedade feudal e de submissão ao poder dos príncipes, optaram pela construção de uma nova sociedade, de uma nova política, de uma eclesiologia, e, por extensão, de um novo cristianismo. E, nesse contexto, até mesmo a expressão “movimento anabatista” precisa ser reconsiderado, já que não podemos falar de uma reforma anabatista como falamos de uma reforma luterana, zwingliana ou calvinista. Os anabatistas não estabeleceram chefes espirituais, nem código de doutrina amplamente aceito e de consenso, nem órgão central dirigente. Não influenciaram governos, não modelaram sociedades nacionais, não conservaram uma administração política. 

Neste sentido, a revolução anabatista desembocou na reflexão não violenta de Denck, que não podemos caracterizar como pacifismo. Sem dúvida, diferia do separatismo anabatista, revolucionário e de confronto, que historicamente propôs a radical separação entre igreja e Estado em nome da liberdade e da justificação pela fé, mas não era ainda uma proposta pacifista. Afinal, o separatismo revolucionário, que via o fracasso das políticas de poder como impedimento para a manifestação do Reino de Deus, ainda estava muito presente na vida e memória dos fiéis. 

A teologia anabatista, que podemos dizer existencial e humanista, fazia a crítica da política vigente e propunha o enfrentamento físico dos poderes do mundo. Traduzia uma atitude política consciente. Tal espiritualidade permaneceu sob a proposta não violenta e espiritualista de Denck e da confissão de Schleitheim e se espraiou pela Europa, traduzindo-se em novas construções religiosas, entre as quais podemos citar menonitas e batistas. 

Na Inglaterra, principalmente durante o período de Oliver Cromwell (1599-1658) e da revolução puritana (1625-1660) as idéias anabatistas retornaram com força, não mais com sua marca separatista, mas como missão moral de transformação. Aliás, o próprio Cromwell foi criticado por ter franca empatia pelos anabatistas. E são nesses anos que cobrem a primeira metade do século 17, que os batistas, muitos dos quais antigos anabatistas, vão construir uma nova identidade religiosa. E talvez o batista que melhor expressou essa realidade foi William Dell, que considerou o uso da coação uma invenção humana, algo deletério que não tinha lugar no Reino de Deus. Dell escreveu um livro chamado “Uniformidade Examinada” e apoiou a revolução dirigida por Cromwell.

Assim, podemos dizer que fatores religiosos, sociais e políticos, entre os quais a revolução camponesa e plebéia de 1525, levaram à construção da eclesiologia anabatista. Tal eclesiologia traduziu a realidade das comunidades anabatistas nos seus confrontos e relacionamentos com o mundo feudal e burguês reformado, em seu papel social e na forma comunitária e democrática de governo dessas comunidades.

A matriz eclesiológica anabatista permanece presente hoje, com releituras e contextualizações, em parte das igrejas evangélicas brasileiras. Por isso, entender que tal eclesiologia não deve estar separada de uma ética política e social é caminho para repensar a missão das comunidades de fé nesta alta modernidade. Tal eclesiologia deve utilizar os meios que possibilitam chegar aos fins que busca. Mas, é necessário entender que quem rejeita todo poder, rejeita políticas. Tal rejeição pode até ser aceita, como no caso da revolução anabatista, desde que as comunidades de fé tenham consciência do que estão fazendo e, coerentemente, proponham a revolução do mundo. Mas as comunidades de fé que repousam sua relação com o mundo numa eclesiologia de tipo anabatista não precisam se omitir diante da política e do poder, mas a partir da não violência ativa podem favorecer a expansão do Reino de Deus, ou seja, trabalhar pela justiça, pela paz e pela alegria. Têm-se, então, uma política cristã, que nasce participativa e se espraia como representativa.


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Wilhelm Zimmermann, Allgemaine Geschichte des grassen Bauernkrieges (História da Grande Guerra Camponesa), vols 1-3, Sttutgart, 1841-1843. 


Notas
[1] Jorge Pinheiro dos Santos é Pós-Doutor em Ciências da Religião pela Universidade Presbiteriana Mackenzie, Doutor e Mestre em Ciências da Religião pelo Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião da Universidade Metodista de São Paulo. Tem graduação em Jornalismo pela Faculdade de Ciências Sociais da Universidade do Chile e em Teologia pela Faculdade Teológica Batista de São Paulo. É professor de Teologia e História na Graduação e no Mestrado da Faculdade Teológica Batista de São Paulo. Entre seus livros publicados estão “Deus é Brasileiro, as brasilidades e o Reino de Deus”, São Paulo, Fonte Editorial, 2008; “História e Religião de Israel, origens e crise do pensamento judaico”, São Paulo, Editora Vida, 2007; “Teologia e Política, Paul Tillich, Enrique Dussel e a Experiência Brasileira”, São Paulo, Fonte Editorial, 2007; “A Forma da Religião”, Etienne Higuet e Jaci Maraschin (orgs,), vv.aa., São Bernardo do Campo, Universidade Metodista de São Paulo, 2006; “Teologia e Modernidade”, Etienne Higuet (org.), vv.aa., São Paulo, Fonte Editorial, 2005; “Ética e Espírito Profético, revisitando a História com Paul Tillich”, São Paulo, Ed. Igreja sem fronteiras, 2002; e “Somos a imagem de Deus, ensaios de antropologia teológica”, São Paulo, Ágape Editores, 2001. 
[2] Max Weber, «Anticritique à propos de l´esprit du capitalisme» (1910), in L’Ethique protestante et l’esprit du capitalisme, Paris, NRF Gallimard, 2003, traduction de Jean-Pierre Grossein, pp. 344-380. Ver também: Max Weber, A ética protestante e o espírito do capitalismo, São Paulo, Editora Pioneira, 2000, pp. 102, 196-197. 
[3] John Smyth (†1617), ministro anglicano, desejava uma radical reforma do cristianismo inglês. Discordava da organização episcopal anglicana por considerá-la superficial. Formou em Gainsborough uma comunidade dissidente no ano de 1604. Foi perseguido pelo anglicanismo oficial e obrigado a exilar-se com seus companheiros, fugindo para Amsterdã, na Holanda. Ali passou a residir na casa de um padeiro menonita, que lhe expôs a eclesiologia e a teologia anabatistas. De volta à Inglaterra, ele e seus companheiros fundaram a primeira Igreja batista, que ficou conhecida como a igreja dos Batistas Gerais, porque ensinava que Cristo salvara na cruz todos os fiéis e não apenas os predestinados. Segundo Weber, dos batistas, só os Batistas Gerais tiveram suas origens no movimento anabatista (Weber, op.cit. p. 196). 
[4] Friedrich Engels, As guerras camponesas na Alemanha, São Paulo, Editorial Grijalbo, 1977, p. 37. 
[5] Friedrich Engels, idem, op. cit., p. 47. 
[6] Paul Tillich, História do pensamento cristão, O conflito de Lutero com os evangélicos radicais, São Paulo, ASTE, 2000, p. 238.
[7] Paul Tillich, idem, op. cit., p. 238. 
[8] Friedrich Engels, Do socialismo utópico ao socialismo científico, in Karl Marx e Friedrich Engels, Textos, volume I, São Paulo, Edições Sociais, 1975, p. 28. 
[9] No prefácio do seu livro As guerras camponesas na Alemanha, Engels conta que utilizou como fonte para as pesquisas das insurreições camponesas e de Thomas Münzer o trabalho do historiador Wilhelm Zimmermann (1807-1878), que publicou Allgemaine Geschichte des grassen Bauernkrieges (História da Grande Guerra Camponesa), em três volumes, em Sttutgart nos anos 1841-1843. 
[10] Sebastian Frank foi escritor e impressor. Expulso de Strasbourg por ordem das autoridades de Ulm, em 1544, reeditou a Vulgata latina a partir de uma versão revista por Servet. Em 1557, foi preso em Frankfurt por ter impresso um texto sobre a guerra de Schmalkalden. Também editou poetas latinos expurgados pela Igreja Católica. 
[11] Caspar Schwenckfeld von Ossig foi um nobre alemão que se converteu ao protestantismo reformado, mais especificamente ao espiritualismo anabatista. Foi um dos promotores da Reforma na Silésia. Schwenckfeld chegou às idéias reformadas através de Thomas Müntzer e Andreas Karlstadt. Divergiu de Lutero em relação à Ceia do Senhor (1524) e seu pensamento influenciou o anabatismo, o puritanismo na Inglaterra, e o pietismo. 
[12] Hans Denck, "Confession before the Nuremberg Council, 1525", in Jaroslav Pelikan, Valerie Hotchkiss (orgs.), Creeds and Confessions of Faith in the Christian Tradition , vol. II, New Haven, Connecticut, Yale University Press, 2003, pp. 665-672. Tradução para o português de Paula Coatti. 
[13]"The Schleitheim Confession, 1527", in Jaroslav Pelikan, Valerie Hotchkiss (orgs.), Creeds and Confessions of Faith in the Christian Tradition , vol. II, New Haven, Connecticut, Yale University Press, 2003, pp. 694-703. 
[14] "The Schleitheim Confession, 1527", in Jaroslav Pelikan, Valerie Hotchkiss (orgs.), op. cit., p. 695. 
[15] “As seitas batistas desenvolveram a mais radical desvalorização de todos os sacramentos como meios de salvação e realizaram assim, até as últimas conseqüências, a desmistificação religiosa do mundo”. Weber, op. cit., p. 104.