lundi 6 juin 2016

Um pastor batista!

Jovem batista, você quer ser um pastor?
Lembre-se, não basta fazer uma faculdade ou seminário teológico ... Você deve ter sido chamado, ter sido vocacionado por Deus!

Um pastor batista vive na comunidade como Jesus ...


No projeto da família cristã, o pai tem como missão ajudar a construir o bem-estar da família, provendo financeiramente suas necessidades, transmitindo valores cidadãos e cuidando para que todos tenham saúde e alegria de viver. É ele quem deve se preocupar para que a família se desenvolva física, moral, social e espiritualmente.

Na comunidade cristã local, cabe ao pastor orientar o povo. A função do pastor é ouvir, orientar e reunir as famílias, atender os doentes, administrar os memoriais e transmitir a Palavra. As tarefas ministeriais do pastor batista são:

1 Pregar a Palavra.
2 Celebrar os cultos de adoração ao Deus trino.
3 Liderar o povo de Deus.

O povo testemunha sua fé e a Palavra de Deus, publicamente, através da vida cotidiana. O pastor tem o dever de ensinar o Evangelho ao povo, convidando-o a uma vida piedosa e santa.

O pastor serve os memoriais entregues por Jesus, a Ceia do Senhor, que nos remete, enquanto celebração, ao sacrifício vicário do Cristo; e realiza o Batismo bíblico, que é testemunho público da aceitação do Cristo como Salvador e Senhor. Mas também procura levar alívio e consolo aos enfermos, realiza a cerimônia religiosa do matrimônio, que confere à união dos esposos a bênção do Deus trino, e é quem também realiza o culto fúnebre, a fim de lembrar a familiares e amigos que a vida é passageira como o orvalho da manhã e que todos prestaremos conta de nossas vidas ao Criador. 

O pastor batista prega a Palavra, exorta e orienta com amor. Sob a unção do Espírito alimenta espiritualmente o rebanho entregue a ele pelo Senhor Jesus, vive uma vida digna, cuida com carinho de sua família e, através do exemplo, ensina suas ovelhas a tornarem-se fraternas e solidárias.

vendredi 3 juin 2016

Poder e secularização

Uma análise do conservadorismo político evangélico
no Brasil, a partir de Poder e Secularização, as categorias do tempode Giacomo Marramao

Jorge Pinheiro [1]


Em 1983, o cientista político italiano Giacomo Marramao[2] lançou Potere e secolarizzazione [3], em que de forma contundente trabalha a controvérsia sobre tempo pagão e tempo cristão e, como consequência, a questão das imagens do mundo e as representações do tempo.

No Brasil de hoje e, sem dúvida, no mundo da globalidade, podemos falar de uma multidimensionalidade do tempo na cultura. Ora, antes, sem dúvida, o tempo deveria ser distintamente diferente para crentes e não-crentes, mas agora com a criação e combinação dos tempos artificiais produzidos pela tecnologia, os ritmos e tempos se interpenetram.

O conceito secularização não é apenas uma metáfora, que expressa o distanciamento progressivo da esfera religiosa enquanto poder, já que seu significado semântico continua em permanente construção. Para Marramao (1997), "a impossibilidade de reconduzir essa noção a uma concepção unitária não depende meramente, como no caso de outros termos característicos da modernidade, da sua polissemia ou polivalência semântica", mas necessita de uma "estrutural ambivalência de significado, a qual dá lugar a premissas antitéticas ou diametralmente inversas". [4]

Assim, o paradoxo maior da secularização mostra-se enquanto conflito Igreja versus secularidade, já que a Igreja assume uma caráter burocrático e a secularidade, cada vez mais, discute, opina e legisla sobre questões religiosas. Ou seja, há ou não um interseccionalidade de valores? A Igreja, e aqui estamos a falar dos evangélicos brasileiros, posa enquanto institucionalidade estatal e a secularidade cria características religiosas.

Assim, é de se entender que a secularização, enquanto fenômeno interseccional, possui significado de afirmação e de oposição entre o espiritual e o secular. Dessa maneira, a secularização se apresenta hoje, na hipermodernidade sob três formas, o princípio da ação eletiva, o princípio da diferenciação/especialização progressiva, e o princípio da legitimação. E se falamos do princípio da ação eletiva, estamos a falar da emersão progressiva da pessoa na busca do significado do seu "eu" e da "consciência de si mesmo". Por isso, para Marramao (1995), "este aspecto comporta um modo cultural particular de estabelecer a linha de demarcação entre subjetividade e objetividade e, portanto, de construir a realidade social."

Já o princípio da diferenciação/especialização progressiva nos mostra que quando o princípio eletivo se torna afirmativo, a adoção do critério de escolha fica em aberto. Esse critério de escolha está no âmbito da racionalidade instrumental, assim, Marramao (1995) nos dirá que "a consequência disto é a relação estreitamente biunívoca que a se instaurar entre secularização e aumento de complexidade do mundo social."

Ao analisar a politica evangélica no Brasil, dois autores traçam linhas bem demarcadas, sobre como se lançaram contra os direitos civis, democráticos, seculares. Para Cowan, “a direita política evangélica no Brasil tornou-se presuntiva, mas foram prefiguradas durante os processos simultâneos de redemocratização nacional e de politização evangélica na década de 1970. 

Nesta encruzilhada, os líderes de várias denominações religiosas adotaram a linguagem de uma crise moral aguda, lançando as bases para uma direita evangélica. A própria crise moral tornou-se “nosso terreno”, o ponto de inserção dos evangélicos de direita na esfera política, e uma das várias questões-chave que dividem evangélicos reacionários e seus correligionários progressistas. Até o momento da Constituinte, a posição dos Batistas e Assembleianos, como vozes dos conservadores que apoiaram amplamente o regime militar e se opuseram às iniciativas de justiça social do ecumenismo de esquerda e ao comunismo, tinha sido estabelecida após anos de pronunciamentos que ligavam essas questões à crise moral.” [5]

E para Carneiro, “no Brasil, a formação da Assembleia de Deus por missionários suecos trouxe o que já se chamou de uma mistura do pietismo sueco com o patriarcalismo nordestino forjando a imagem popular do rigorismo do “crente” como alguém abstinente de todos os prazeres e de vestuário austero, que não gostava de dança nem de música e menos ainda de adornos corporais.

“Os novos cultos pentecostais acrescentaram, além dos elementos de transe e de práticas extáticas e de possessão, uma relativa abertura para um aggiornamento que levou algumas igrejas a se especializarem em segmentos jovens, de surfistas, rockeiros, etc. A diversidade de congregações traz as mais diversas atitudes, mas permanece nos grupos dominantes a identidade comum de abstinência como valor de pureza cristã. Quando essa atitude se torna um lobby político elegendo parlamentares e até candidatos presidenciais com a intenção de impor à sociedade os critérios particulares dessas igrejas estamos diante de um tipo de fundamentalismo religioso.

“No Brasil, o evangelicalismo evoluiu cada vez mais para a direita ao longo do período ditatorial e pós-ditatorial, constituindo o que já foi chamado de uma “nova direita” baseada na reação moral e cultural. Na ditadura houve uma distinção clara entre setores protestantes e evangélicos democráticos que se opuseram ao regime, como o pastor presbiteriano James Wright, fundador do Brasil Nunca Mais, e os grupos mais conservadores e anti-ecumênicos que apoiaram os governos militares.

“Esta ala direita se aproveitou de benesses do regime, cresceu e predominou. Sua atuação política mais destacada se deu em torno ao combate à pornografia, o alcoolismo, o tabagismo, o jogo, o divórcio, e a emancipação feminina. Defensores de que o lugar da mulher é no lar, se juntaram à Igreja Católica para se opor ao controle populacional e aos anticonceptivos.” [6]

Mas temos que ver, a partir de Marramao, que tal realidade se expressa de forma imagológica na política, fazendo com que as propostas evangélicas interseccionadas enquanto governamentais, quer no que se relaciona à pessoa, à família ou às comunidades, se entrelacem e produzam, como diz Giner, “mutações na vivencia e qualidade desses tempos”. [7] Assim, a bancada evangélica, presente hoje no Congresso brasileiro, expressa produções imagológicas de tempos, que apesar de suas volatilidades, acumulam de forma caleidoscópica mudanças no momento presente.

Em seu livro Passagem ao Ocidente, filosofia e globalização, de 2003, Marramao faz uma análise do pensamento contemporâneo e como este se debruçou sobre a investigação da globalização. Mas procura evitar a ocidentalização da abordagem, delineando uma política global.

Assim fez leituras de F. Fukuyama e Kojève e, consequentemente, ao fim da História e à universalidade do individualismo competitivo. Atravessa, então, o conflito de civilizações que, após o colapso do Muro de Berlim, viu o globo mergulhado num conflito intercultural mundial. E, chegou com S. Latouche, à concepção da expansão planetária de dominação da tecnologia sob o controle da razão instrumental.

Mas, para Marramao, a globalização deve ser vista como pressuposto típico da modernidade, na transição de um mundo fechado a um universo circum-navegável, que possibilita o encontro, mas também o choque de culturas, levando a sociedade a ser transformada por esse encontro diário, que se espraia a partir das megalópolis, mas que permanentemente desafia a nossa identidade.

No percurso dessa compreensão da globalidade, vai além da crise do Estado-nação, agora personificada pelo Leviatã democratizado de John Rawls[8]. Aqui temos a reconstrução do princípio de universalidade da diferença, que se dá em esfera global, onde o mundo aparece como presença-imagem da racionalidade técnica e econômica, que influencia tudo e todos através da criação de um modelo único de sociedade e pensamento. E que, ao mesmo tempo, tira proveito da riqueza das diferenças para construir uma globalidade cosmopolita, onde todos podemos cultivar nossos politeísmo de valores. 

Mas globalidade e temporalidade, para Marramao, estão imbricadas. E para chegar à sua construção da temporalidade da globalização, fez a reconstrução das concepções de tempo nascidas na reflexão ocidental a partir da análise de Timeu de Platão, até chegar às discussões sobre a flecha do tempo na física. Mas, construindo uma reflexão sobre temporalidade/identidade, onde busca os pontos de contato entre as abordagens focadas na pessoa e as sociais.

Assim, faz a crítica da sociedade contemporânea, onde o presente é dominado pelo movimento incessante, onde ninguém consegue saborear o presente. E reconstrói a etimologia do tempo latino, onde são colocados o sentido interno de tempo, a síndrome temporal da pressa e a busca insana para se recuperar a posse da existência.

Donde, o tempo kairós, tão caro à escatologia judaico-cristã, se apresenta como interseção entre a realidade divergente de tempo privado e tempo público. Isto porque o tempo privado deixa de ser humano e passa a depender de condições e variáveis que incluem desde a situação mundial às situações físicas e psíquicas, plasmando tempos esmagam pessoas e comunidades.

Dessa maneira, a síndrome da pressa, do tempo que falta, tornou-se parte do projeto moderno, numa racionalização da escatologia judaico-cristã, onde se busca o fim último do domínio da razão instrumental. Essa homogeneização, que se procura planetária, responde à síndrome da pressa repetindo, eternizando, a mesma cena neurótica, por não ser capaz de parar, considerando normal chegar sempre fora do tempo certo, tarde demais, vivendo a angústia e o trauma permanente da perda da oportunidade certa.

Mas este projeto moderno, afirma Marramao, está em crise, e devemos olhá-lo com distanciamento, superando Weber, já que a racionalidade instrumental é um fenômeno típico do Ocidente, que não surgiu em nenhuma outra cultura, nem mesmo na China. É com este distanciamento que devemos analisar o capitalismo, nos debruçando sobre outras culturas, humildes na certeza de que têm algo a dizer e que podem nos ensinar a escapar da sociedade contemporânea e aprender a viver no presente, debruçados sobre um presente escatológico, renunciando à idéia de que lá na frente algo bom e definitivo deve acontecer.

Michael Löwy trabalha esta questão a partir de uma leitura weberiana, o que matiza os contornos aparentemente demoníacos da presença evangélica na política brasileira. Para ele, “os evangélicos são, no fundo, uma religião mágica. Eles acreditam que, fazendo certos rituais, orações ou mesmo dando dinheiro para a igreja, terão seus problemas resolvidos. Isso, para parte da população, sempre foi assim. Mas devemos reconhecer que os evangélicos, pela ética protestante, calvinista, impõem uma série de proibições aos fiéis: não podem consumir álcool, drogas, ir a prostíbulos, jogar cartas. E isso melhora a situação da família, é fato. Por outro lado, essas igrejas são conservadoras, intolerantes, fundamentalistas e, na maioria das questões sociais, regressivas. Além do quê, desenvolvem uma pretensa teologia da prosperidade que faz elogios ao capitalismo, ao neoliberalismo, ao mercado e ao consumo, que é bastante negativo.” [9]

Ou seja, podemos, caso utilizemos critérios modernos de análise, falar em tempo da mentalidade conservadora versus tempo da mentalidade progressista. Mas tais critérios de análise, embora sejam aparentemente agradáveis e facilitadores, já não cabem na multidimensionalidade do tempo na cultura, que nos leva, a partir de Marramao, a falar de conflitualidade endêmica do mundo e, como consequência, dos dilemas que traz para a política e para a religião. 

Ou como diz Barrera, “a contraposição mecânica entre a efervescência religiosa, que carateriza hoje as sociedades latino-americanas, e o conceito de secularização leva ao erro comum de negar o processo de secularização e esconde uma superficial compreensão do conceito. Muito pelo contrário, a discussão de conceitos como “secularização”, “desencantamento do mundo” e “saída da religião” mostram que é precisamente nas sociedades secularizadas onde tornou-se possível a pluralidade religiosa que, ao nosso ver, é a maior evidência do enfraquecimento da influência social do outrora poder institucional religioso“. [10]


Notas

[1] Pós-Doutor em Ciências da Religião pela Universidade Metodista de São Paulo (2011) e pela Universidade Presbiteriana Mackenzie (2008), Doutor em Ciências da Religião pela Universidade Metodista de São Paulo (2006), Mestre em Ciências da Religião pela Universidade Metodista de São Paulo (2001) e Graduado em Teologia pela Faculdade Teológica Batista de São Paulo (2001). É professor de tempo integral na Faculdade Teológica Batista de São Paulo e Jornalista Profissional. Atua na área de Ciências da Religião, com especialização nas relações entre religião e política, e filosofia, teologia e cristianismo. 
[2] Nasceu em Catanzaro, a 18 de outubro de 1946, e é filósofo, professor de Filosofia Política na Universidade de Roma III, diretor da Fundação Lelio Basso e membro do Colégio Internacional de Filosofia em Paris. Seus estudos se iniciaram com o marxismo e atualmente versam sobre questões políticas, culturais e simbólicas da globalização. 
[3] Giacomo Marramao, Poder e secularização, as categorias do tempo, São Paulo, UNESP, 1995. 
[4] Saulo Barbosa, A secularização e seus problemas conceituais. webartigos.com. Acesso 03/10/2015. 
[5] Benjamin Arthur Cowan, Nosso Terreno, crise moral, política evangélica e a formação da “Nova Direita” brasileira, VARIA HISTORIA, Belo Horizonte, vol. 30, no 52, pp.101-125, jan/abr 2014. 
[6] Henrique Carneiro, O proibicionismo na gênese do evangelicalismo na política: a nova direita. WEB: blogconvergência.org. Acesso 03/10/2015. 
[7] Salvador Giner in Marramao, op. cit., p. 13. 
[8] John Rawls, A theory of justice, Steven M. Cahn (ed.), 1999. 
[9] Michael Löwy, À brasileiros, sociólogo Michael Löwy propõe outra alternativa: o ecossocialismo. WEB: Brasileiros. Acesso em 03/10/2015. 
[10] Paulo Barrera Rivera, Desencantamento do mundo e declínio dos compromissos religiosos. A transformação religiosa antes da pós-modernidade. Ciencias Sociales y Religión/Ciências Sociais e Religião, Porto Alegre, ano 4, n. 4, p.87-104, out 2002.

Imago Dei, uma introdução necessária

Uma introdução necessária
Jorge Pinheiro, Phd


Para estudar e pensar a teologia do ser humano, ou seja, a imago Dei, devemos nos debruçar sobre questões fundantes para este estudo: o desafio do Cristo, o desafio do humano e o desafio da interpretação. Mas, ainda assim, é necessário pensar duas outras questões que estão imbricadas numa relação causal e definitiva -- revelação e teologia.

E nessa introdução necessária, desejamos analisar com você, caro leitor, ainda que a voo de pássaro, o fato de que a teologia que nasce dos textos antigos da tradição hebraica muitas vezes é abordada apenas sob um de seus aspectos, a auto-manifestação da divindade, deixando de lado seu aspecto fundante: de que nos textos primeiros da teologia judaico-cristã estamos diante de um diálogo, pois toda construção desses textos implicou em interação, na existência de um personagem, que muitas vezes deixamos de ver sua centralidade, a espécie humana, que não somente participa do diálogo, mas vive. E é a partir daí, da teologia que nasce da construção dos textos antigos enquanto diálogo, que deve partir toda e qualquer análise da imago Dei, enquanto teologia do ser humano.

A questão antropológica no processo da construção dos textos antigos da tradição hebraica é determinante, pois não basta ouvir, o desafio é viver. Nesse processo desigual e combinado presente nos textos antigos da literatura hebraica podemos distinguir elementos que se sobrepõem e se complementam. Dentre eles, o mais fascinante é a questão do significado e da significação que estes textos constroem na história do povo hebreu e por extensão no imaginário da tradição cristã. A construção dos textos antigos da tradição hebraica dá-se através de um processo de adequação histórica e linguística.

Entretanto essa construção não demanda unicamente a apreensão de uma determinada realidade. Faz-se necessário que esta realidade seja lida através de uma construção de análise e síntese. Como premissa fundante, temos que reconhecer uma justaposição entre compreensão intuitiva e conhecimento discursivo. A compreensão intuitiva vem de imediato à mente sem que se tenha à frente uma determinada realidade, palpável e visual, ao passo que o conhecimento discursivo requer passar de algo conhecido, através de uma série de juízos, à apreensão do ainda não apreendido. Ao primeiro processo chamamos juízo sintético e ao segundo juízo analítico.

Tal construção dos textos antigos hebraicos não se deu simplesmente como processo de adequação da mente humana, individual e coletiva, ao novo que lhe era apresentado. Impôs-se que o novo inerente ao processo cognoscitivo tivesse um significado. Uma relação em que o ser humano operou como ser significante e o novo como significado. Desta forma, a construção dos textos antigos não se processaram entre realidades que não são históricas, mas em relação espacial e temporal, exigindo para que a interação entre o ser humano e a realidade se estabelecesse como algo maior, alguma coisa além de ambos, da pessoa coletiva e da própria realidade em que estava situada esta coletividade, deixando assim de ser causal e tornando-se essencial. 

No processo da construção dos textos antigos o ser humano, enquanto pessoa e coletividade, também encontrava-se em construção, pois não havia senhorio pleno do processo. Era um ser colocado no tempo e no espaço, que estabelecia relação com a realidade que o circundava, que o cercava dentro do processo cognoscitivo enquanto dimensão humana e histórica.

Outro pressuposto é a natureza genética da linguagem, que se encontrava em constante construção. Dessa maneira, significante e significado estavam intimamente ligados à linguagem, enquanto construção cultural e histórica. Assim, compreendemos que dependendo da utilização de determinado objeto ou realidade o ser humano constrói conhecimento de determinada forma e no processo pode construir conceitos diferentes a partir de um objeto ou realidade anteriores. Podemos inferir ao que isso conduz. 

A construção dos textos antigos está ligada à vida do ser humano, já que será a própria experiência humana que agregará valor ao objeto ou realidade antes conhecidos e vividos. Dessa maneira, o velho gerará o novo, uma essência que transcende, uma universalidade, a partir da própria experiência de vida, que teologicamente podemos chamar de obediência ao mandamento de Deus. Mas ainda não definimos a importância do ser significante e do significado dentro do processo da construção dos textos antigos. Se tal construção é histórica, é importante notar que ela própria age sobre a vida humana, pessoal e coletiva, sobre a historicidade do ser humano. 

E mais do que isso, ao definir a historicidade humana muda o próprio meio onde o ser humano vive e atua. Dessa forma, a construção dos textos antigos cria processos de formação, escalas de valores, normas e condicionamentos. E é aí que reside toda a problemática dessa construção enquanto conhecimento: como o ser humano, a partir da construção dos textos, num primeiro momento presa à oralidade e só depois gravada em pedra e registrada em manuscritos, pode conhecer a Deus e dar um sentido ao mundo que o cerca, assim como achar seu papel dentro de todo esse complexo?

A verdade da construção dos textos antigos é o significado que uma determinada realidade tem para a comunidade e a pessoa. Há uma construção intuitiva, quando a experiência da própria construção produz uma interação entre o humano, pessoal e coletivo, e a divindade, sem que essa experiência necessariamente influa no processo discursivo de conhecimento. Mas mesmo neste caso o ser humano não abandona ou perde sua formação. Não deixa de ser aquilo que é: pessoa inserida em determinada comunidade. Mesmo quando esse processo dá-se sem elaboração discursiva, é intuitiva, o ser humano está condicionado pela historicidade de ser cognoscente. 

E dentro dessa condicionante sempre se processa a interação ser humano e realidade. Aqui, afetividades e sentimentos, que geralmente passam despercebidos, são realçados. Isso porque nesse momento específico, determinada realidade passa a ter significado, que mesmo não sendo inerente, exige que se lhe dê um. E nesse caso o conhecimento da construção faz do ser humano um ser significante. Assim a construção dos textos antigos dá ao mundo um significado imanente. 

O ser humano, enquanto pessoa e comunidade, através da construção do texto passa a ter significado, contudo este conhecimento e o significado dado não se dão sem história, mas dentro das limitações de sua própria obediência dos limites e regras que vão sendo definidos. Podemos, então, concluir que a partir da construção da antiga literatura hebraica, teológica e religiosa, o ser humano torna-se significante na construção da comunidade, pois através do conhecimento construído é ele quem historicamente pode modificar causas e efeitos, imprimindo ao processo nova direção.

Como se processa a relação entre significado e significante quer no caso isolado da interação entre ser humano e realidade, quer no caso de todo o processo da construção dos textos antigos? Se dentro do conhecimento da construção do texto o ser humano é um ser significante podemos, então, ver que a escala de valores do sistema ético, oferecido por esta construção à comunidade, torna-se parte integrante do significado dado ao mundo pela própria construção. Portanto, dentro de uma interação significante/significado existem elementos dinâmicos de transformação. O universo é o mundo do ser humano, em que ele constrói seu habitat. Através do significado dado pelo ser humano à natureza, dentro de um significado de utilização que lhe empresta, ele atua sobre ela produzindo cultura e transformação.

A construção dos textos antigos, enquanto relação entre significante e significado é dialética. Pois se ela faz da pessoa e da comunidade ser significante, permite a ambas transferir ao mundo que as cercam a cosmovisão que utiliza essa mesma significação. Ao fazer significante a sua realidade, o ser humano dá origem a transformações, engendra causas e passa à construção do futuro, já não como sonho, mas como realidade. Para viabilizar tais transformações é necessário que transfira, enquanto comunidade, novos significados aos processos históricos e sociais. Através da relação estabelecida entre significante e significado encontraremos as causas de conotações. 

Um dos exemplos desse processo encontramos no livro das Origens, quando a divindade ordena a circuncisão do clã de Abraão. A circuncisão, antes um costume presente em algumas tribos da Palestina, recebe a conotação de aliança. E a circuncisão, enquanto aliança, passa a ser marca de uma comunidade especial, separada, é mandamento do Eterno. Mas isso só acontece historicamente, quando pessoas e comunidade vivem tal ordenança. É, então, que a circuncisão faz de cada homem hebreu significante dessa construção, dando significado cultural, histórico e teológico ao ato de corte do prepúcio. 

Nesse sentido, revelação traduz o processo de construção dos textos antigos judaico-cristãos, conforme exposto acima, e, por isso neste trabalho damos a devida importância à linguística e à antropologia, para podemos construir uma teologia do ser humano, enquanto imago Dei. Por isso, consideramos que quando deixamos de colocar os desafios do Cristo, do humano e da interpretação em diálogo com a imago Dei compreendemos de forma fraturada questões fundantes quanto ao destino humano. 

Por isso, assim definimos nosso caminhar na construção dessa teologia do ser humano, construída com três momentos: o metodológico, o da leitura dos textos antigos, e o contextual-contemporâneo, quando a teologia do ser humano invade nossa vida, como desafio de ação e transformação.

Assim, desejamos que o leitor compreenda este processo de construção dos textos antigos, enquanto desafio ético, e possa caminhar nesta teologia do ser humano, que desafia à ação e transformação.





lundi 30 mai 2016

Il n'y a pas trace de péché originel dans le récit de la genèse

http://www.lemondedesreligions.fr/savoir/il-n-y-a-pas-trace-de-peche-originel-dans-le-recit-de-la-genese-19-05-2011-1516_110.php

INTERVIEW

"Il n'y a pas trace de péché originel dans le récit de la Genèse"

Rencontre avec James Kugel, professeur émérite de littérature hébraïque à l’université de Harvard et enseignant à la Bar Ilan University de Jérusalem, à l’occasion de la parution de son livre, La Bible expliquée à mes contemporains.

"Il n'y a pas trace de péché originel dans le récit de la Genèse"

En quoi est-il important de connaître et comprendre la Bible aujourd’hui?

Depuis cent cinquante ans, il y a eu une révolution dans notre connaissance de la Bible. Le monde dans lequel elle a été créée est désormais accessible, grâce à l’archéologie, la philologie sémitique ainsi que toutes les autres sciences appliquées à la Bible.

Le milieu universitaire propose désormais une conception tout à fait nouvelle de ces textes et de leurs significations. J’ai voulu rendre le fruit de ces recherches accessible au travers de mon livre, mais j’ai cherché en même temps à les voir dans une perspective plus large, celle de l’histoire de l’interprétation biblique.

Le livre porte, dites-vous, sur "l’intelligence de la Bible de deux points de vue radicalement différents, celui des anciens interprètes et celui des biblistes modernes". Expliquez-nous.

Je crois que le deuxième courant est plus ou moins connu, et la plupart des gens savent qu’il y a eu une révolution quant à l’étude moderne de la Bible. Par contre, la Bible telle qu’elle était lue dans les milieux religieux, soit chrétiens soit juifs, est tout à fait différente. Elle a elle-même été modifiée par un acte de réinterprétation qui s’est opérée dans l’Antiquité, vers la fin de la période biblique.

A dire vrai, cette relecture des textes bibliques (dont une grande partie remontait déjà à plusieurs siècles auparavant) était aussi radicale que celle des chercheurs modernes, et la transformation du sens apparent de ces textes n’était guère moins significative.

Il existait en effet plusieurs écoles d’interprètes, à la fin de la période biblique, entre le IIIe et le Ier siècles avant l’ère chrétienne, dont le but était de modifier le sens évident du texte, en faveur d’une lecture plus actuelle et souvent plus moralisante. Pour ce faire, ils cherchaient partout un sens caché derrière le sens apparent.

L’un des exemples parmi beaucoup d’autres, c’est l’histoire d’Adam et Eve. Tout le monde sait que cette histoire traite du péché originel et de la chute de l’homme. Au début, Adam et Eve étaient censés vivre une vie éternelle et sans péché dans un merveilleux jardin.

Mais le diable, sous la forme d’un serpent, serait venu tenter Eve avec la pomme de l’arbre interdit, et aurait provoqué la chute de ce premier couple d’humains, et depuis, les hommes vivent une vie mortelle et douloureuse. Tout le monde connait cela, pourtant, aucun de ces détails ne figurent dans le récit de la Genèse.

Il n’y a pas trace de péché originel, ni de la "chute de l’homme". Le texte ne parle jamais d’une existence éternelle, il n’y a pas non plus trace de diable, mais seulement d’un serpent parlant. Même la présentation du fruit comme une pomme ne se trouve pas dans le texte. Tous ces détails sont le fait des anciens interprètes, et ils se sont imposés sur le récit biblique et continuent à s’y imposer de nos jours.

L’Ancien Testament est rempli d’exemples similaires : l’interprétation traditionnelle a présenté Abraham comme le premier monothéiste et Jacob comme "Jacob le Juste", mais un examen scrupuleux de l’Ecriture révèle que ces idées ne proviennent pas du texte écrit. A nouveau, elles sont le fruit des anciens interprètes.

Comment ces interprétations du texte biblique ont-elles été véhiculées?

Des commentaires bibliques apparaissent déjà dans les manuscrits de la mer Morte et chez Philon d’Alexandrie par exemple. Pourtant, la forme choisie par les anciens interprètes n’est pas celle du commentaire, mais plutôt le choix de raconter d’une nouvelle manière le texte.

Cela fonctionnait au niveau de la phrase, en substituant par exemple un mot actuel à un mot désuet, afin de rendre accessible le texte. Mais cela se passait surtout au niveau du récit. Des choses qui n’étaient pas comprises, dans la Genèse ou l’Exode, étaient racontées avec toute sorte de détails inédits.

On trouve cela dans le Livre des Jubilés par exemple, un texte apocryphe rédigé au début du IIe siècle avant l’ère chrétienne, et qui raconte presque tout le livre de la Genèse et une partie de l’Exode avec des détails nouveaux.

Je crois que l’homme qui l’a écrit avait l’intention qu’on l’accepte comme partie intégrante du corpus mosaïque. D’ailleurs, le texte est écrit en imitant de manière très rigoureuse l’hébreu biblique, une langue qui n’était plus d’usage quotidien pour l’auteur et ses lecteurs.

Comment la recherche biblique moderne et le judaïsme ou le christianisme traditionnel peuvent-ils se concilier?

Dans le judaïsme comme dans le catholicisme, l’interprétation biblique a toujours été quelque chose de très traditionnel, et le vrai sens du texte était dans une large mesure celui des anciens interprètes. Les deux religions ont donc résisté aux connaissances modernes, qui dans une grande mesure s’opposaient a l’interprétation traditionnelle.

Par contre, le protestantisme était dès le début beaucoup plus positif vis-à-vis la nouvelle connaissance de la Bible; celle-ci leur offrait un argument de poids pour dénigrer l’autorité du pape, et elle entraînait un réexamen des doctrines chrétiennes les plus fondamentales, ce qui était après tout l’un des buts principaux de la Réforme.

Il est vrai que dans les dernières cinquante ou soixante années, le catholicisme et le judaïsme réformé se sont montrés plus ouverts vers cette nouvelle connaissance de la Bible, mais le judaïsme orthodoxe a continué à lui tourner le dos. A mon avis, on ne peut pas ignorer l’existence de ce que l’archéologie, la philologie et les autres disciplines ont pu découvrir à propos de la Bible.

Personne ne veut faire partie d’une religion qui ferme les yeux face à la réalité. Mais en même temps, la substitution de cette nouvelle compréhension archi littérale du texte représente une déformation de ce que la Bible a toujours été. Dès le début, avant même que les dernières parties de l’Ancien Testament aient vu le jour, et bien avant que le canon biblique ait été fixé de façon définitive, on lisait ces textes de la manière autorisée par les anciens interprètes.

La Bible ne se réduisait jamais aux seuls mots sur la page. La chose est tout à fait claire en ce qui concerne le judaïsme. L’idée principale du judaïsme comme religion, c’est que toutes les actions de chaque homme et femme dans la vie quotidienne devraient être adressées à Dieu. Pour ce faire, il existe la Bible, bien sûr, qui sert de guide.

Mais le judaïsme ne se réduit jamais à ce qui est écrit dans le Pentateuque. Il y a des bénédictions, des prières, à réciter, et tous les autres actes -rituels et autres- à faire au long de la journée, en passant par une multitude de prescriptions pour le shabbat, les fêtes, etc. En obéissant à ces lois, en s’y conformant au mieux, on tourne -en théorie tout du moins- son attention vers Dieu.

Pour ce faire, le texte littéral de la Bible n’était qu’un point de départ, et très souvent, il était évident que l’on ne pouvait pas prendre le texte au pied de la lettre. Dans le livre, je donne l’exemple de la fameuse loi du talion, où l’injonction œil pour œil est réinterprétée par les rabbins dans le sens contraire.

Un œil perdu doit être dédommagé, mais en aucun cas vengé par le même acte. On retrouve toujours, dans les interprétations, cette idée que le texte dit ceci, mais qu’en vérité il signifie cela. Et bien souvent entre le texte et son interprétation, de grandes différences se font sentir.

Existe-t-il un danger à séparer la science biblique moderne, qui permet de contextualiser historiquement, d’une compréhension selon laquelle tout ce qui est écrit doit forcément s’appliquer directement à notre vie d’aujourd’hui?

Ce danger existe surtout en l’absence d’une interprétation traditionnelle, car tout est alors ouvert. On a par exemple vu, surtout après la Réforme protestante, des interprétations justifiant la peine de mort pour la violation du shabbat, ou qui légitimaient l’esclavage par exemple.

A dire vrai, je crois que ce danger peut surgir même dans les milieux de l’interprétation la plus traditionnelle. Quiconque connaît l’histoire de l’interprétation biblique sait, hélas, que les gens ont toujours eu tendance à détourner le sens du texte pour favoriser leur propres idées politiques et autres.

Est-ce que la science biblique moderne n’a pas tendance à diminuer la force de la Bible pour les lecteurs contemporains?

Si notre texte n’est que le produit d’auteurs et de rédacteurs anonymes, et si ce qu’il raconte est contredit par nos connaissances en histoire, science, etc., comment peut-on continuer à prétendre qu’il s’agisse d’un texte inspiré par Dieu? J’ai coutume de dire que l’inspiration divine, qui, pour les croyants, définit le texte, est la seule chose sur laquelle la recherche moderne n’a rien à dire. Car, en effet, comment pourrait-on distinguer un texte avec ou sans inspiration de Dieu?

Cela n’est évidemment pas possible, et il est tout à fait raisonnable d’accepter l’existence d’éditeurs, de rédacteurs humains, sans abandonner la croyance en l’inspiration divine du texte. Cela signifie que la science biblique n’est pas un danger pour le croyant, puisque l’une et l’autre ne s’occupent pas du texte sur le même plan. Chacun considère le livre, la Bible, à un niveau différent.

Pour aller plus loin

James Kugel, La Bible expliquée à mes contemporains (Bayard, 1003 p., 49 euros

O mal! Ah! o mal, essa construção cultural!

O mal enquanto construção cultural

Pelágio e Paul Tillich, elementos para uma leitura libertária da natureza humana
Professor Dr. Jorge Pinheiro dos Santos[1]

Sumário

A pesquisa parte da Carta à Demétria (Pelagius, “Letter to Demetrias” in B.R. Rees, The Letters of Pelagius and His Followers, pp.35-70), escrita por Pelágio a uma adolescente. As reflexões de Pelágio sobre a pessoa consideravam existir uma bondade inata na natureza humana, fruto da imago Dei. Dirá que podemos avaliar a bondade humana pela referência ao Criador (2.2), já que Deus transmitira ao ser humano o atributo da vontade livre, que possibilita a escolha livre e o domínio próprio. E Paul Tillich, em sua Teologia Sistemática, afirmou que a alienação é um estado da existência. Nesse sentido, quando o ser humano exerce sua liberdade, sob o estado de alienação presente na existência, sempre tem diante de si a possibilidade do mal. Para ambos teólogos, cada um a sua maneira e em contextos diferentes, o mal não tem existência em si, mas será fruto cultural. Essa leitura liga a feitura do mal à ausência de educação e retira dos ombros humanos a maldição herdada dos primeiros pais. E, como conseqüência, exorta à construção de políticas educacionais formadoras de sociedades solidárias.

Introdução

O debate teológico a respeito da origem do mal e suas conseqüências faz parte da própria história da Teologia. Mas em nossa pesquisa vamos partir de Justino Mártir quando afirmou que o ser humano, por ser racional e livre, é responsável por seus próprios atos. Tal afirmação levou a discussão para a relação existente entre Adão e a alienação existencial. Dentro da tradição teológica da Igreja oriental, no primeiro ser humano estavam tipificadas as separações humanas e o distanciamento humano do Criador. Já para a Igreja ocidental, que a partir do debate com os donatistas, precisava formular a questão dos sacramentos e o papel sacerdotal, Adão passou a ser visto como fonte do mal humano e não protótipo. Assim, essa discussão foi polarizada no debate de dois teólogos: o monge Pelágio e Agostinho de Hipona. Séculos mais tarde, a crítica da Reforma ao racionalismo tomista trará o debate à tona. Só que tal discussão foi feita sob novas abordagens, tais como: qual é o destino que Deus reservou ao ser humano? Assim, a discussão a origem do bem e do mal levarão ao tema do destino humano. 

Pelágio e a liberdade

Aqui vamos voltar no tempo e procurar reconstruir o pensamento do monge Pelágio[2] (354-418). Sabemos que saiu da Grã-Bretanha,[3] onde tinha jogado um papel importante na formação do cristianismo celta. Era monge e muito respeitado na Grã-Bretanha tanto entre o clero como entre os líderes celtas não religiosos. Nunca foi visto como herege ou alguém que não merecesse a confiança de seus companheiros. Foi um precursor do humanismo, pois acreditava nas possibilidades da pessoa e via o mal como um produto social. O que para a época era simplesmente um pensamento revolucionário. Estas idéias de Pelágio não combinavam com o momento teológico vivido pela Igreja ocidental. Nessa época, a Igreja enfrentava o pensamento donatista na África do Norte. Para os donatistas a eficácia dos sacramentos dependia do estado espiritual dos sacerdotes que os ministravam. Essa idéia trouxe um problema para a Igreja cristã ocidental. Se ela concordasse com tal visão, quem garantiria o estado de santidade do clero que ministrava os sacramentos? E se não concordasse, por que então os sacramentos não poderiam ser ministrados também pelos leigos? Mas, se a declaração dos donatistas fosse falsa, então os sacramentos poderiam ser ministrados pelo clero, sem que se cogitasse seu estado espiritual diante de Deus. A acusação de heresia conservaria, desta forma, a estrutura da Igreja. Naquela época, muitos homens da Igreja, inclusive Agostinho, defendiam que ela era uma instituição cuja santidade vinha dos sacramentos e não da fé das pessoas. Assim os sacramentos produziam santificação e não eram frutos da vida piedosa de homens santos. A igreja celta, porém, não viu a discussão dessa maneira. Para Pelágio e seu discípulo Caelestius, a questão girava ao redor do livre arbítrio. Não concordavam com a idéia defendida por Agostinho, que até aquele momento não era majoritária, de um pecado original que contaminou a humanidade. 

Como os trabalhos de Pelágio foram proibidos de circulação e posteriormente queimados, chegou até nós pouquíssimo de sua produção. Mas, ainda temos condições de examinar a Carta à Demétria[4], escrita a uma adolescente e que nos possibilita estudar sua visão sobre a natureza humana.

"Sempre que eu tenho que falar no assunto da instrução moral e na conduta de uma vida santa -- disse o monge --, costumo demonstrar o poder e a qualidade da natureza humana e primeiramente o que ela é capaz de realização" (2.1).

Uma vida de pureza moral, para Pelágio, só podia ser conseguida a partir de dois componentes, aquilo que é bom na natureza humana e o dom da graça (9.1). Esse é o tema central dessa sua epístola.

“[Em vez de considerar os mandamentos de Deus como privilégio] ... lamuriamos a Deus e dizemos: Isso é muito duro! Isso é difícil demais! Não podemos fazê-lo! Somos apenas humanos e, portanto, somos impedidos pela fraqueza da carne! Que loucura! Que ostensiva presunção! Ao agir assim, acusamos o Deus da sabedoria de dupla ignorância – ignorância de sua própria criação e de seus próprios mandamentos. Seria como se Deus, esquecendo-se da fragilidade da humanidade – a qual, afinal de contas, foi criada por ele mesmo! -- nos tivesse ordenado algo que não pudéssemos fazer. E, ao mesmo tempo (que Deus nos perdoe!), imputamos ao justo injustiça e crueldade Aquele que é santo, primeiro, ao reclamar que Deus nos ordenou o impossível e, segundo, por imaginar que alguns serão condenados por Deus pelo que não poderiam evitar; de outra forma, que – e essa é a blasfêmia suprema! -- concebe-se que Deus esteja buscando nossa punição, em vez de nossa salvação”.[5]

As reflexões de Pelágio sobre o ser humano não estão distante daquelas apresentadas pelos pais da Igreja oriental, que também consideravam existir bondade na natureza humana, fruto da imago Dei. Por isso, dirá que podemos inferir a bondade do ser humano a partir do amor do Criador (2.2). Assim, a divindade transmitiu à humanidade os atributos da liberdade, que possibilitam a livre escolha e o domínio próprio. Isto porque Deus desejava para o ser humano a liberdade de ação e não a ação sob coerção. Por esta razão, deixou-o livre para fazer suas próprias decisões e para escolher entre vida e morte, entre bem e mal, e viver conforme lhe parecesse melhor (2.2). Pelágio, no entanto, sabia que boa parte dos cristãos acreditava que se o ser humano tinha sido criado com a possibilidade de realizar o mal, então não tinha sido criado perfeito. Ao contrário, o monge celta acreditava que o ser humano tinha sido criado para realizar o bem, mas não compulsoriamente. E a partir dessa compreensão afirmava que se não fosse assim não haveria humanidade real e nem virtude verdadeira (3.1). Aqui está o centro da espiritualidade pelagiana: a crença de que se negarmos a liberdade finita do ser humano negamos a possibilidade da vida moral.

Esta bondade da pessoa, para Pelágio, não foi destruída com a alienação existencial. O ser humano continua a carregar dentro de sua natureza a bondade da criação, uma graça, uma santidade natural (4.2). E isso pode ser visto na vida de pessoas que não são cristãs. Muitas delas são tolerantes, generosas e rejeitam os prazeres do mundo. São amantes da justiça e buscam o conhecimento (3.3). O que o levou a considerar que é impossível trilhar o caminho da virtude se não houver nos corações a esperança de alcançá-la. Não haveria virtude se em seu esforço as pessoas achassem que nunca haveriam de encontrá-la (2.1). Por isso, Pelágio abominava a covardia diante dos desafios da vida. Ao contrário, exatamente porque a carne é frágil, todos são exortados a vencê-la e isso é possível (16.2). A bondade e a capacidade de viver uma vida santa estava e está nos planos de Deus porque ele não criou o ser humano para a punição ou para a danação, mas para a liberdade. Negar a possibilidade da bondade humana e a capacidade de viver uma vida santa não é somente pessimismo moral, é uma blasfêmia: significa que Deus não sabe o que fez, ou que não levou em conta a fragilidade humana, ou que ordenou algo impossível e deseja não a salvação humana, mas a punição (16.2).

O monge celta não responsabilizava a natureza por aquilo que é a escolha de pessoas livres. Considerava que não se pode culpar a natureza, pois em ambos testamentos tanto o bem como o mal são apresentadas como ações voluntárias (7). Isto é demonstrado na vida de Caim e Abel, e Esaú e Jacó, irmãos de sangue que fazem escolhas diferentes. O monge dizia que quando os méritos diferem na mesma natureza, a escolha é a causa da ação (8.1). Logo, a alienação existencial não poderia ter corrompido a natureza humana ao ponto de incapacitá-la de escolher entre fazer o bem ou fazer o mal. O efeito da alienação existencial deve ser entendido mais em seus efeitos ambientais do que éticos.

Pelágio não acreditava que a natureza humana estivesse degenerada pela alienação existencial dos primeiros seres humanos. Defendia que eram os atos e não a natureza que levavam o ser humano a herdar o mal. Por isso, discordou de Agostinho quando este afirmou que o ser humano só poderia ganhar a salvação através da Igreja. Considerou a idéia de pecado original sem base neotestamentária e afirmou que todos são concebidos sem pecado e, diante de seus delitos, são salvos pela graça de Deus, que não merecemos, que nos é entregue através de Jesus Cristo e sua Igreja. Até aquele momento, a visão de Pelágio e seus seguidores traduziam a idéia da liberdade de escolha, e da natureza humana que tinha sido alienada, mas não degradada.[6]

A compreensão da proposta pelagiana nos remete à importância da educação na construção da ética cristã. A partir daí, a ênfase não estará no conhecimento de Deus, mas na imitação dele. Nesse sentido, a teologia de Pelágio é uma teologia do caminho, onde está presente a afirmação da vida, e como consequência, do amor, da justiça e da verdade. E se o ser humano é colocado entre as alternativas da vida e da morte, do bem e do mal, é porque pode escolher a vida e o bem. E o princípio da vida aponta para o amor, porque se o ser humano deve ser imitador de Cristo, a ênfase recairá sobre a justiça e a misericórdia. Ora, a justiça é inseparável da liberdade e, por isso, o caminho se faz ao andar: deve ser trilhado, porque aí estão os desafios da existência humana. E é esse sentido de realidade e sua prática no cotidiano que leva a teologia cristã à política. Aqui, o discurso contra-autoritário de Pelágio cobra força, pois o cristianismo deixa de ser religiosidade privada e de padrões de pensamentos para se articular com as demandas das comunidades. 

Tillich e a liberdade

Para o teólogo teuto-americano Paul Tillich, o estado da existência é o estado da alienação. Ou seja, o ser humano se encontra alienado do fundamento do seu ser, dos outros seres humanos e de si mesmo.[7] E essa alienação é fruto de sua ruptura com o mundo ideal da criação, da natureza perfeita, o que dá origem à consciência. Mas, para Tillich, é importante entender a relação entre alienação e a sociedade. Para ele, uma comunidade é uma estrutura de poder, onde existe conflito potencial ou real, mesmo que exista ação solidária da comunidade como um todo. Na comunidade não existe culpa coletiva, embora exista destino universal e, por isso, as pessoas participam deste destino. E, para Tillich, o destino se acha inseparavelmente unido à liberdade[8], que para ele é experimentada como deliberação, decisão e responsabilidade.[9]

Numa abordagem teológica, a questão da origem é fundamental para o estudo do mal, pois posiciona o mal em condições e momentos diferentes, conforme a leitura que se faça de Gênesis. De todas as maneiras, a relação origem versus mal sublinha o surgimento do ser humano como imago Dei, o que permite a leitura de que aquele ser era pessoa e que, por isso, poderia usar sua liberdade como melhor lhe aprouvesse. Mas no uso da liberdade estava contida a possibilidade de se opor ao que estava definido e nomeado. A alienação consiste nisso, na decisão autônoma do ser humano de distanciar-se da ordem e do estabelecido. Esse deslocamento, de ruptura com a natureza, permitiu ao ser humano colocar-se como centro de sua vontade e de seu fazer, produzindo distanciamento da natureza, mas consciência de sua existência. Nesse sentido, essa ruptura, esse distanciamento é um encontro, e aí está colocado o mal. Ou, como diz La Boétie, “que mau encontro foi esse que pode desnaturar tanto o ser humano, o único nascido de verdade para viver francamente, e fazê-lo perder a lembrança de seu primeiro ser e o desejo de retomá-lo?”.[10] E Clastres, analisando o texto desse libertário do século 16, que influenciou o pensamento huguenote francês, nos apresenta uma definição do mal existencial: 

“Mau encontro: acidente trágico, azar inaugural cujos efeitos não cessam de ampliar-se, a tal ponto que é abolida a memória do antes, a tal ponto que o amor da servidão substituiu-se ao desejo de liberdade. O que diz La Boétie? Mais do que qualquer outro clarividente, afirma inicialmente que essa passagem da liberdade à servidão deu-se sem necessidade, afirma acidental – e, desde então, que trabalho pensar o impensável mau encontro!”.[11]

Assim para Clastres, antropologicamente, o mal é corrupção da liberdade do ser humano por ele próprio que, por essa corrupção, se coloca em estado de servidão voluntária. Teologicamente, podemos dizer que é deixar-se dominar por suas próprias paixões. Assim, o entendimento do mau encontro enquanto alienação e abertura à perda de liberdade forma o pilar de uma teologia libertária, já que o problema do mau encontro passa a estar ligado à liberdade do ser humano.

A alienação humana tem como conseqüência descrença, hybris e concupiscência, expressões de um estado que se opõe ao ser essencial do humano, sua potencialidade para o bem.[12] Essa compreensão está presente na tradição judaico-cristã. Assim, no Antigo Testamento temos uma tríade conceitual nas idéias de aliança, fidelidade e constância, cujo centro epistemológico é a liberdade. E no Novo Testamento o vértice dessa discussão é o conceito de destino.

Paralelamente ao pensamento hebraico, a cultura grega apresentou uma leitura especial e trágica do conceito de destino, que traduzia a maneira de pensar e viver do helenismo. Na sua época, por razões apologéticas, o apóstolo Paulo apresentou um conceito de destino que resgata, mas vai além do conceito veterotestamentário de aliança. Entre os gregos, a religião e os cultos de mistérios traduziam uma luta contra o destino, era uma tentativa de colocar-se acima dele. Para o ser humano helênico a luta com o destino era inevitável, porque se apresentava como poder sagrado, mas destrutivo. Envolvia o ser humano numa culpa objetiva. Os cultos de mistério, dessa forma, ofereciam uma purificação das mãos de deuses que manipulando o destino, excluíam do seres humanos qualquer possibilidade de liberdade. 

Da mesma maneira, a filosofia helênica, através do conhecimento, procurava elevar o ser humano à transcendência, despojando-o dos objetivos e formas da vida imediata, para lançá-lo através da abstração em direção ao ser puro. Mas, nunca conseguiu tal objetivo, e o mundo helênico permaneceu um mundo de culpa objetiva, castigo trágico e profundo pessimismo, que atravessou a produção teológica de gênios como Anaximandro, Pitágoras, Demócrito, Sócrates, Platão e Aristóteles. Nas discussões do helenismo pós-platônico, possibilidade e necessidade foram conceitos chaves. Mas o medo de demônios continuou a obscurecer o espírito helênico. O epicurismo tentou, em vão, libertar seus seguidores do medo, mas ao definir o conceito de possibilidade absoluta [ou azar], abriu o espaço para o medo em sua argumentação filosófica.

Apesar dessa visão trágica, os gregos eram apaixonados pela vida e é esse paradoxo que dará riqueza a esta que será uma das mais expressivas culturas da humanidade. Mas, em última instância, a luta do filósofo -- superar o destino -- permaneceu inalterada em todo o helenismo. 

Dessa maneira, a filosofia grega caminhou para ceticismo, já que a presença do mal na existência humana se mostrava avassaladora. Ao mesmo tempo, enquanto força sobre-humana do destino e personificação do mal, as nações eram submetidas ao poderio romano. Diante desse destino trágico, o mundo helênico ansiava por um destino libertador.

E foi assim que o cristianismo se apresentou como vitória do humano sobre o medo trágico e sobre a matéria que resiste. Colocou-se como negação radical do caráter demoníaco da existência em si, dando a esta um valor essencialmente positivo e valorizando os acontecimentos da ordem temporal. Assim, para o cristianismo, ao contrário do que pensava Anaximandro, a ordem do tempo não levava apenas ao transitório e perecível, mas também à possibilidade de algo totalmente novo, um propósito e um fim que dá pleno significado à vida humana.

Para esse jovem cristianismo, o tempo triunfa sobre o espaço. O caráter irreversível do tempo bom, do kairós, substitui o tempo cíclico, transitório e perecível do pensamento helênico. A partir desse momento, destino traz libertação no tempo e na história. Antes, a filosofia buscava desesperadamente a libertação, agora a libertação apodera-se da filosofia dando origem à teologia. Assim, a teologia jogou fora o destino demoníaco e se apropriou de suas formas lógicas e de seus conteúdos empíricos. O transitório e perecível da filosofia helenística perdeu importância na construção do pensamento cristão oriental, que se desenvolveu a partir da idéia da liberdade se constrói historicamente e acontece num tempo bom. 

Mas voltemos um pouco atrás, para entendermos esse processo. Dentro da visão do apóstolo Paulo, que fez a correlação entre o pensamento cristão palestino e o helenismo, destino traduz a idéia de que os limites estão dados de antemão, ou seja, da lei transcendente na qual está imbricado o conceito de liberdade. Assim, destino implica numa tríade conceitual: (1) o destino está sujeito à liberdade; (2) destino significa que a liberdade também está sujeita à lei, e aqui vamos entender lei como natureza; (3) destino significa que liberdade e lei ou natureza são interdependentes e complementares.

Analisando o conceito cristão exposto por são Paulo[13], podemos dizer que a liberdade humana está ligada às leis universais, de tal forma que liberdade e natureza se encontram intrinsecamente entrelaçadas. Aqui Paulo trabalha com um conceito judaico, de que lei é imposição de limites, que faz parte da revelação, e que se expressa pela primeira vez como criação de Deus. Mas para Paulo, se o mal é uma probabilidade que surge da dialética lei/natureza versus graça/liberdade, o julgamento, a decisão, é inerente ao ato humano. Ou, nas palavras de Tillich: “destino é aquilo do qual surgem nossas decisões. É a base indefinidamente ampla de nosso eu centrado; é a concretude de nosso ser que torna todas nossas decisões nossas decisões”.[14]

Assim, a certeza de que o destino é a liberdade e não o mal e tem um significado realizador e não destruidor é a peça chave do pensamento paulino, que coloca o Cristo, aquele que possibilita a escolha certa, acima do destino. Mas, devido à alienação, em nós humanos há sempre um elemento de aventura e risco diante da realização da liberdade. Ainda assim, devemos correr este risco, sabedores de que este é o único meio através do qual a construção daquilo que é bom pode ser viabilizado. Por isso, o Novo Ser, aquele que pode ser buscado fora da história e pode ser entendido como alvo da história, que apresenta a universalidade da expectativa humana por uma nova realidade,[15] deve se refletir no pensamento humano, embora não exista um ato do pensamento sem a premissa de sua verdade incondicional.[16]

Quando mantemos relação com o Novo Ser, que leva o finito à plenitude, deixamos de temer a ameaça do destino demoníaco, aceitamos o lugar que cabe ao destino em nosso pensamento. Podemos reconhecer que desde o princípio estivemos submetidos ao destino e que o nosso pensamento sempre desejou livrar-se dele. Tarefa teológica da maior importância, na análise cristã do destino é saber relacionar Novo Ser, a busca de um novo estado de realidade, e kairós, a plenitude do tempo. O Novo Ser deve alcançar o kairós, o tempo oportuno, tempo de agir.[17] O Novo Ser deve envolver e dominar as leis universais, a plenitude do tempo, a verdade e o destino da existência. Para o cristianismo paulino, a separação entre Novo Ser e existência chegou ao fim. O Novo Ser alcançou a existência, penetrou no tempo e no destino. E isso aconteceu não como algo extrínseco a ele próprio, mas porque é a expressão de seu próprio caráter intrínseco, sua liberdade.

É necessário, porém, entender que tanto a existência como o conhecimento humano estão submetidos ao destino e que o imutável e eterno reino da verdade só é acessível ao conhecimento liberto do destino. Dessa maneira, para o ovem cristianismo, ao contrário do que pensavam os gregos, todo ser humano possui uma potencialidade própria, enquanto ser, para realizar seu destino. E quanto maior a potencialidade do ser, que cresce à medida que é envolvido pelo Novo Ser, mais profundamente está implicado seu conhecimento no destino.

Assim, destino passa a ser compreendido como serviço àquilo que liberta, ao Novo Ser, num novo kairós, que emerge das crises e desafios de nossos dias. Quanto mais profundamente entendermos nosso destino, no sentido grego de prokeimai, estar colocado, ser proposto, e o de nossa comunidade, tanto mais livres seremos. Então, a ação humana será plena de força e verdade.

Mas, a vontade humana não é neutra e a liberdade humana sempre se dá dentro de uma realidade condicionada. Assim, a liberdade entende-se como relação dialética entre lei/natureza e graça/liberdade. Quando Hegel afirmava que a liberdade é a consciência da necessidade cometia um erro porque descartava a realização da liberdade. É por isso que para Marx liberdade é práxis. Ora, para Marx, práxis é consciência da necessidade mais ação transformadora. Ou seja, em termos teológicos, consciência da lei/natureza diante da alienação existencial se traduz no conceito grego metanóia, ação transformadora.

Por isso, para a jovem Igreja cristã, o mal, ao contrário do que pensavam os gnósticos, não é um ser, mas um fazer. Em relação ao imediato é um estado e no que se refere à espécie humana é um domínio. Numa definição teológica, o mal acontece perante aquilo que minha liberdade é desafiada, quando meu julgamento tem a possibilidade de escolha entre aquilo que é bem e aquilo que é mal. Ou seja, o mal surge como feitura humana. Nesse sentido, o mal não se apresenta sem agente moral e nem pode acontecer fora da cultura. Toda vez que o ser humano realiza sua escolha, a lei/natureza está presente: assim o mal é um antítipo da liberdade.

Por isso só podemos responder ao mal reconhecendo que o mal é feitura minha e de minha espécie. A partir daí, não podemos perguntar porque o mal existe, como se fosse um ser. Mas devemos nos perguntar, como fez Agostinho, o que me leva a fazer mal? O que nos exorta à ação libertária, já que o mal é o que não devia estar. É a partir daí que nasce um ética libertária, de combate a este estado e domínio na vida de meu próximo e da comunidade.

Conclusão

Em 1970, Ballestero[18] ao analisar o caráter radical da liberdade no pensamento de três gênios da modernidade, Nicolas de Cusa, Lutero e Marx, disse que “neles, em um e outro plano, liberdade significa abolição da lei, colapso da determinação exterior, e não – à maneira conservadora – comportamento que se adequou aos limites da ordem. Liberdade para os pensadores que aqui analisamos significa a destruição de toda ordenação que seja exterior e anterior ao próprio ato livre.”

Os ensaios de Ballestero mostram que a revolução teórica empreendida por Cusa e Lutero não era gratuita, nem produto de um simples ato ideal, mas se enraizou no tecido histórico do movimento de decomposição global da formação social pré-capitalista. Cusa e Lutero clamam por essa destruição. Sem entrar nos detalhes das mutações vividas no século 16, com a ruptura do equilíbrio cidade/campo, o surgimento das manufaturas e consolidação do sistema de trabalho assalariado, vemos que a dimensão negativa da condição humana na incipiente sociedade capitalista será percebida por Cusa e Lutero: a autonomia do sujeito se dá como dor. Mas ambos consideram essa subjetividade liberada pelo início da arrancada capitalista como desequilíbrio. Assim, tanto Cusa quanto Lutero partem da negação dessa subjetividade alienada do nascente capitalismo, considerando que deve ser superada para que o Espírito floresça. Aí, então, teríamos o fim da inessencialidade do sujeito alienado e a inserção deste na totalidade objetiva. Mas isso não pode acontecer sem a transformação dessa realidade objetiva em realidade espiritual, que sustém o ser humano. Dessa maneira, para os dois pensadores, o Espírito constrói num nível superior o universo anteriormente negado.

O jovem Marx, seguindo os passos de Hegel, partirá dessa discussão. Para ele, a religião é a realização imaginária da essência do ser humano, já que essa essência do ser humano não tem realidade alguma. Mas há um ponto de interligação nessa perspectiva, quando vê, assim como Cusa e Lutero, a liberdade como abolição da legalidade, como coincidência do momento subjetivo com o momento objetivo, e como responsabilidade suprema do ser humano. Esse ponto de vista marxiano está expresso na Introdução à Crítica da Economia Política[19], texto que só foi descoberto em 1902 e publicado por Kautsky em 1903.

Já para Lutero, “o cristão é senhor de todas as coisas e não está submetido a ninguém. O cristão é servo em tudo e está submetido a todo mundo”[20]. Livre e não submisso, mas servo e escravo do ideal da liberdade. Para Lutero, o ser humano existe como estrutura ontológica dual. Sua conceituação traduz a ansiedade teórica do século 16, mas traduz-se em superação da subjetividade alienada. O cristão é senhor de todas as coisas, não está submetido a ninguém e esse senhorio radical é produto da graça/liberdade. A apropriação da liberdade é fruto da certeza que transforma a subjetividade alienada em realidade objetiva. Nesse sentido, o caráter espiritual da autonomia do cristão se dá como processo. Morre o imediato, o alienado, e tem início a construção de uma segunda natureza. A liberdade surge como deslocamento do ser humano natural, como distanciamento crítico daquilo que foi naturalmente dado. O primeiro momento da liberdade parte de uma concepção trágica, porque o senhorio num primeiro momento implica em servidão, criando tensão e luta... “É necessário desesperar-se por você mesmo, fazer com que você saia de dentro de você e escape de sua prisão”[21]. Superada a tensão, temos a liberdade enquanto destino, uma dimensão de combate. Mas, se não existe vida pessoal sem o encontro com outras pessoas dentro de uma comunidade, e não existe comunidade sem a dimensão histórica de passado e futuro,[22] é aí, na comunidade, que o ser humano constrói a liberdade que vai além, a liberdade que é fonte de realidade e ação.

Bibliografia

Azkoul, Fr Michael, The Teachings of the Holy Orthodox Church. Vol. I. Dormition Skete Publications: Buena Vista, Colorado, 1986.
Ballestero, Manuel, La Revolución del Espíritu (Tres pensamientos de libertad), Madri, Siglo XXI, 1970.
Ferguson, John, "In Defense of Pelagius," in Theology, Vol. 83, March 1980.
______________, Pelagius: A Historical and Theological Study. W. Heffer and Sons: Cambridge, 1956.
Pelagius, "Letter to Demetrias" in B.R. Rees, The Letters of Pelagius and His Followers, pp. 35-70.
Tillich, Paul, Teologia Sistemática, São Leopoldo, Sinodal, 2005.
____________, La dimension religieuse de la culture, 1919-1926, Paris, Genebra, Québec, Les Éditions du Cerf, Éditions Labor et Fides, Les Presses de l’Université Laval, 1990. Trad. fr., Nicole Grondin e Lucien Pelletier, 1992.
____________, “Kairos II. Idées à propos de la situation spirituelle du temps présent”, in Christianisme et Socialisme, Écrits socialistes allemands (1919-1931), Paris, Genebra, Québec, Les Éditions du Cerf, Éditions Labor et Fides, Les Presses de l’Université Laval, 1992, pp. 253-267. Artigo aparecido na obra coletiva Kairos. Zur Geisteslage und Geisteswendung, em 1926. “ Kairos II, Ideen zur Geisteslage der Gegenwart ”, Die widerstreit von raum und zeit, Gesammelte Werke, VI, pp. 29-41. Trad. fr. Nicole Grondin e Lucien Pelletier, 1992.
____________, A Era Protestante, São Bernardo do Campo, Ciências da Religião, 1992. Texto original: The Protestant Era, Chicago, Illinois, University of Chicago, 1948. Trad. pt. de Jaci Maraschin. “Die protestantische Ara”, Der Protestantismus als Kritik und Gestaltung, Gesammelte Werke VII, Evangelische Verlag Stuttgart, 1962, pp. 105-123. Trad. al. W. De Gruyter.
_____________, Teologia de la cultura y otros ensayos, A dimensão religiosa na vida espiritual do homem, Buenos Aires, Amorrortu Editores, 1974. Man’s right to knowledge, Columbia University Press, 1954.
La Boétie, Etienne, Discurso da servidão voluntária, São Paulo, Brasiliense, 1982.
Luther, Martin, Les grands écrits reformateurs, Paris, Aubier, 1955.
Mackay, James P., ed., An Introduction to Celtic Christianity, , T & T Clark, Edinburgh, 1989, p. 386.
Marx, Karl, Introdução à Crítica da Economia Política, São Paulo, Abril Cultural, 1982.
McGrath, Alister E., Teologia sistemática, histórica e filosófica, Uma introdução à Teologia Cristã, São Paulo, Editora Shedd, 2005. 
Rees, B.R., The Letters of Pelagius and His Followers. The Boydell Press: Woodbridge, Suffolk, 1991.
_ ________, Pelagius: A Reluctant Heretic. The Boydell Press: Woodbridge, Suffolk, 1988.

Notas

[1] Jorge Pinheiro dos Santos é Doutor em Ciências da Religião pela Universidade Metodista de São Paulo, Mestre em Ciências da Religião pela Universidade Metodista de São Paulo, Graduado em Teologia pela Faculdade Teológica Batista de São Paulo e Graduado em Jornalismo pela Universidade do Chile. É professor de Teologia e Filosofia e faz Pós-Doutorado na Universidade Presbiteriana Mackenzie. 
[2] John Ferguson, "In Defense of Pelagius," in Theology, Vol. 83, March 1980, p. 115; e H. Forthomme Nicholson, "Celtic Theology: Pelagius," in An Introduction to Celtic Christianity, James P. Mackay, ed., T & T Clark, Edinburgh, 1989, p. 386. 
[3] John Ferguson, "In Defence of Pelagius," in Theology (Vol. 83, March 1980), p. 115. 
[4] Pelagius, "Letter to Demetrias" in B.R. Rees, The Letters of Pelagius and His Followers, pp. 35-70. 
[5] Pelágio, “Letter to Demetrias”, 16 apud Alister E. McGrath, Teologia sistemática, histórica e filosófica, Uma introdução à Teologia Cristã, São Paulo, Editora Shedd, 2005, p. 508. 
[6] John Ferguson, "In Defence of Pelagius," in Theology (Vol. 83, March 1980), p. 115. 
[7] Paul Tillich, Teologia Sistemática, São Leopoldo, Sinodal, 2005, p. 339. 
[8] Paul Tillich, idem, op. cit., p.352. 
[9] Paul Tillich, idem, op. cit., p.193. 
[10] Etienne La Boétie, Discurso da servidão voluntária, São Paulo, Brasiliense, 1982, p. 19 
[11] Pierre Clastres, Liberdade, Mau Encontro, Inominável, apud Etienne La Boétie, Discurso da servidão voluntária, São Paulo, Brasiliense, 1982, pp. 110-111. 
[12] Paul Tillich, idem, op. cit., p. 353; 
[13] Apóstolo são Paulo, Carta aos Romanos 8.31-39; e 9. 
[14] Paul Tillich, idem, op. cit., p. 193-194. 
[15] Paul Tillich, idem, op. cit., p. 380. 
[16] São Paulo, Carta aos Romanos 12.2 e I Coríntios 2.16. 
[17] Paul Tillich, idem, op. cit., p. 800. 
[18] Manuel Ballestero, La Revolución del Espíritu (Tres pensamientos de libertad), Madri, Siglo XXI, 1970. 
[19] Karl Marx, Introdução à Crítica da Economia Política, São Paulo, Abril Cultural, 1982. 
[20] Martin Luther, Les grands écrits reformateurs, Paris, Aubier, 1955, p. 225. 
[21] Martin Luther, idem, op. cit., p. 259. 
[22] Paul Tillich, idem, op. cit., p. 423.