dimanche 11 septembre 2016

Desafio a um jovem pastor batista

[Este sermão foi apresentado por ocasião da ordenação ao ministério pastoral do querido amigo e colega André Sass Farias. JP.]

A graça e a paz de Jesus Cristo esteja em todos os corações. É uma alegria estar com os irmãos e irmãs neste momento de comunhão cristã e adoração ao nosso Criador, o Deus Eterno. E eu trago uma saudação calorosa da Igreja Batista em Perdizes, da Ordem dos Pastores Batistas do Brasil e da Convenção Batista Brasileira a todos os presentes, mas, em especial, à Igreja Batista de Montpellier. 

Nossa palavra desta manhã recebeu um título:

A missão radical
Desafio a um jovem pastor batista
Pr. Jorge Pinheiro, PhD

Vamos abrir nossas bíblias em Lucas 4.16 a 21.

“Il se rendit à Nazareth, où il avait été élevé, et, selon sa coutume, il entra dans la synagogue le jour du sabbat. Il se leva pour faire la lecture, et on lui remit le livre du prophète Ésaïe. L'ayant déroulé, il trouva l'endroit où il était écrit: L'Esprit du Seigneur est sur moi, parce qu'il m'a oint pour annoncer une bonne nouvelle aux pauvres; il m'a envoyé pour guérir ceux qui ont le coeur brisé, pour proclamer aux captifs la délivrance, et aux aveugles le recouvrement de la vue, pour renvoyer libres les opprimés, pour publier une année de grâce du Seigneur. Ensuite, il roula le livre, le remit au serviteur, et s'assit. Tous ceux qui se trouvaient dans la synagogue avaient les regards fixés sur lui. Alors il commença à leur dire: Aujourd'hui cette parole de l'Écriture, que vous venez d'entendre, est accomplice”.

Estamos em Montpellier, na França, mas somos desafiados a olhar um país do hemisfério sul chamado Brasil. E nos fazemos duas perguntas:

Qual o papel de um jovem pastor batista brasileiro, depois de dois anos de imersão na cultura francesa, de volta a seu país, numa sociedade em desenvolvimento, mas em profunda crise ética e social?

Como Cristo, centralidade da ação e fé batista, pode ser a solução para os problemas brasileiros?

E diante dessas interrogações que acabamos de levantar, 

Três questões devem ser levadas em conta

• A primeira é que existe de fato uma revolta generalizada dos brasileiros das grandes cidades contra a atual situação em que vive grande parte da população. Por isso, somos exortados pensar uma reforma radical, no sentido protestante, batista, diante do grito de revolta de uma população que desperta para a consciência de que a exclusão de bens e possibilidades não pode ser uma situação irreversível e permanente. 

• A segunda questão, é que as manifestações e mobilizações apontam para aquilo que Tomás de Aquino afirmava: “há um mínimo de condições exigidas para a prática da virtude”. Assim, a existência de vidas em condições desumanas, injustas, inferiores, leva milhões de brasileiros à prática de atos contrários aos padrões morais.

• E a terceira questão é que o Brasil quer definir sua identidade enquanto nação: o que somos? Qual o papel que podemos ter no concerto das nações? 

Ora, como todos sabemos, há um choque hoje, no Brasil, entre o desejo de Reformas e uma forte resistência à mudança social. Mas é bom esclarecer que o Brasil não enfrenta um problema de subdesenvolvimento, mas outro, mais complexo, que é o do desenvolvimento desigual.

A resistência à mudança no Brasil localiza-se predominantemente na natureza patrimonialista do Brasil de pensamento arcaico. E tal pensar não está apenas nas zonas rurais tradicionais – do Nordeste e outras regiões --, mas dentro do próprio Brasil urbano.

Diante de tal situação, qual a missão de um jovem pastor batista? Será possível uma resposta coerente, que apresente saídas para os grandes dilemas brasileiros? 

A situação brasileira se insere num contexto mundial, que é fruto das transformações sociais e dos imperativos morais e religiosos decorrentes da ampla utilização da ciência aos meios de produção. Em última instância, a técnica é boa pois modifica as condições de vida das pessoas, mas, paradoxalmente, virou o mundo de ponta cabeça.

Somos exortados a viver a reforma radical, no sentido batista, em marcha, já que não é mais possível tolerar a exclusão de possibilidades de milhões de brasileiros. 

Os jovens pastores batistas não podem divorciar-se da luta pela justiça. E essa luta traduz ao nível do real, atributos do próprio Cristo, já que ele fez do brasileiro mordomo e não dono absoluto deste quase continente. Esse Cristo redentor lança sobre nós o desafio do Brasil, já que é impossível adotar a criança da manjedoura e esquecer a realidade, colocar-se sob a cruz e esquecer a sociedade em que vivemos.

A vida é o primeiro passo para a construção de uma centralidade do Cristo. Vamos pensar o texto de Lucas 4. 16-21. 

"Jesus foi para a cidade de Nazaré, onde havia crescido. No sábado, conforme o seu costume, foi até a sinagoga. Ali ele se levantou para ler as Escrituras Sagradas, e lhe deram o livro do profeta Isaias. Ele abriu o livro e encontrou o lugar onde está escrito assim: “O Senhor me deu o seu Espírito. Ele me escolheu para levar boas notícias aos pobres e me enviou para anunciar a liberdade aos presos, dar vista aos cegos, libertar os que estão sendo oprimidos e anunciar que chegou o tempo em que o Senhor salvará o seu povo.” Jesus fechou o livro, entregou-o para o ajudante da sinagoga e sentou-se. Todas as pessoas ali presentes olhavam para Jesus sem desviar os olhos. Então ele começou a falar. Ele disse: — Hoje se cumpriu o trecho das Escrituras Sagradas que vocês acabam de ouvir".

Estudos sobre a marginalidade social de Jesus, a partir das acusações feitas a ele pela hierarquia sacerdotal da época (conforme João 8.41, eles afirmam: “Ils lui dirent: Nous ne sommes pas des enfants illégitimes; nous avons un seul Père, Dieu”.), nos levam a algumas considerações interessantes. Ao não ter, por exemplo, pai reconhecido, Jesus não tinha direito a um sobrenome. Por isso, era visto como alguém de genealogia desconhecida. E o fato de ser nomeado “de Nazaré” (Lucas 4.34, 18.37, 24.19; e João 8.48), oriundo de uma vila de camponeses e artesãos, de mínima relevância, e afastada das rotas comerciais, fazia com que sua identidade geográfica também o desclassificasse como alguém que pudesse jogar papel de importância na vida política e social da Palestina. Por isso, os senhores da lei o acusam dizendo: “N'avons-nous pas raison de dire que tu es un Samaritain, et que tu as un démon?”, conforme João 8.48.

A genealogia não reconhecida e geografia periférica faziam de Jesus um palestino socialmente à margem, que, por suas origens, não merecia crédito. 

E sobre a leitura do rolo de Isaias, que marca sua entrada no seu ministério político e social, é bom lembrar que na época, não havia nas sinagogas uma leitura dos profetas regularmente prescrita. E o fato de essa passagem não estar presente nos lecionários conhecidos posteriormente, tende a indicar que Jesus a escolheu de propósito. Essa hipótese repousa sobre a afirmação de Lucas: “abrindo o livro, achou o lugar onde estava escrito”. Aqui dois detalhes merecem ser realçados: primeiro, é a única referência clara nos Evangelhos de que Jesus sabia ler. E, segundo, por que, ao ler Isaías 61.1-2, ele omitiu uma frase, curar os contritos de coração e acrescentou outra, libertar os oprimidos, que está em Isaías 58.6? Na verdade, utilizou os textos que considerou mais úteis à exposição de sua plataforma político social.

No curso de seu ministério, o uso que fez de termos políticos, como Evangelho e Reino, mostram que tal seletividade tinha uma finalidade: falar de uma promessa política de intervenção social alternativa àquelas dos poderes presentes na época. Assim, se lermos o texto apresentado por Jesus, numa perspectiva rabínica, estamos diante de uma recorrência às promessas do Jubileu, quando as injustiças acumuladas durante anos deveriam ser sanadas. A fala daquele homem de identidade questionada não afirmava que a Palestina seria resgatada na escala temporal, mas que deveria entrar na vida palestina o impacto solidário do ano sabático. 

Da mesma maneira, o Reino vindouro surgia enquanto compreensão profética do ano sabático. Nesse sentido, o shabat da semana ampliava-se no shabat dos anos, onde o sétimo deveria ser de descanso e reforma, já que restaurava o que tinha sido exaurido, a natureza e as pessoas. Essa coleção de regulamentos presente em Levítico 25.1 a 26.2 concernia ao direito de propriedade da posse da terra e de pessoas, que constituíam a base da riqueza. O propósito era fixar limites ao direito de posse, já que toda propriedade, natureza e pessoas, pertenceria a Deus. Assim, ninguém poderia possuir a natureza e as pessoas de forma permanente, pois tal direito pertencia a Deus. E o ciclo de sete anos sabáticos desaguava no quinquagésimo ano, o Jubileu messiânico (conforme Levítico 25.8-24), que só vai aparecer de novo em todo o Antigo Testamento apenas em Números 36.4. Mas, Jeremias, no capítulo 34.8-17 falou de uma reforma social na Jerusalém sitiada, quando Zedequias proclamou a liberdade dos escravos hebreus. Da mesma maneira, em Isaías 58.6-12 encontramos a reforma como parte da visão profética. Nesse sentido, a reforma do Jubileu apontava para a reestruturação econômica e sócio-política das relações entre os povos da Palestina.

É interessante que o historiador judeu Flávio Josefo tenha afirmado anos depois do ministério de Jesus em Nazaré, que “não existe um único hebreu que, mesmo hoje em dia, não obedeça à legislação referente ao ano sabático como se Moisés estivesse presente para puni-lo por infrações, e isso mesmo em casos que uma violação passaria despercebida”.

Apesar da afirmação de Flávio Josefo, sabemos que um enquadramento econômico e social a partir das disposições de Levítico 25, o que incluía inclusive a redistribuição da propriedade, nunca foi literalmente vivido entre os judeus. Por isso, coube a um “retirante sem-terra” levantar o discurso do ano da libertação. 

A proposta de reforma do Jesus marginal era a anunciação profética da entrada em vigor de uma era nova, caso os ouvintes aceitassem a notícia. Não estava a se referir a um evento histórico, mas reafirmava uma esperança conhecida de seus ouvintes: a da reforma econômica e sócio-política que deveria mudar as relações entre os povos palestinos.

E aquele homem de genealogia questionada e geografia periférica colocou a centralidade da reforma sobre ele próprio ao afirmar que naquele momento, na sinagoga de Nazaré, a promessa profética se cumpria. E é isso que Lucas vai mostrar na sequência de seu Evangelho: o reformador marginal era o Messias prometido.

E assim o Messias, retirante sem nome, homem sem terra, apresentou aos judeus e palestinos um programa político-social de reforma radical. Esse programa é apresentado e justificado pelo evangelista Lucas (4.14-30) e tem o exercício da justiça como centralidade.

E nessa pregação pela justiça, todos, judeus e palestinos, deveriam gozar concretamente de liberdade e usufruir dos bens da natureza – dom de Deus para suprir às necessidades humanas. E ao recorrer às promessas do jubileu (Lucas 4.19), aquele “nazareno” – e isso era um xingamento – sem terra e sem nome disse que a natureza era de todos e para todos, e condenou o monopólio que impossibilitava este destino universal. Dessa maneira, a justiça, tão presente no texto referido de Lucas, nasce da mensagem profética presente no discurso de Jesus, e consiste em reconhecer a gratuidade do amor de Deus na Palestina, e, posteriormente, no mundo. Por isso, o discurso de Jesus é o discurso da justiça, da ação justa que remete à paz.

Se o discurso de Jesus apresentou um alcance palestino imediato, a partir da própria realidade vivida pelo nazareno, tal discurso remete à catolicidade da promessa messiânica: a restauração do mundo. Ou seja, tal discurso visto sob a ótica teológica do referido texto de Lucas fala do fim da discriminação e da violência.

A proposta de reforma do Jesus marginal foi a anunciação profética da entrada em vigor de uma era nova, caso os ouvintes aceitassem a notícia. Não estava a se referir a um evento histórico, mas reafirmava uma esperança conhecida de seus ouvintes: a da reforma econômica e sócio-política que deveria mudar as relações entre os povos palestinos.

E o Messias colocou a centralidade de uma reforma radical sobre ele próprio ao afirmar que naquele momento, na sinagoga de Nazaré, a promessa profética se cumpria. E é isso que Lucas vai mostrar na sequência de seu Evangelho: o reformador marginal era o Cristo universalmente prometido. 

A partir da compreensão do texto de Lucas podemos dizer que se os três primeiros itens do programa se referem aos aspectos materiais da vida humana, o quarto – que nos chama a anunciar que chegou o tempo em que o Senhor salvará o seu povo -- trata do compromisso da centralidade do Cristo na vida cristã, a opção por estar na trincheira ao lado daqueles que lutam por dignidade e justiça. 

Aqui estão, à maneira protestante radical, as sementes da centralidade do Cristo em nossas vidas e na vida da nação.

E podemos tirar algumas conclusões desta abordagem profética. 

Alef. A fé deve interpretar a condição humana à luz do propósito de Cristo. E por isso somos porta-vozes de Cristo para as condições específicas da vida humana. 

Bet. Exercemos uma ação ética e social à luz da compreensão do destino do povo de Cristo. E o fundamento de nossa pregação social é a aliança no sangue do Cristo.

Guimel. A Justiça e o Juízo, o Amor e a Integridade são fundamentais para a construção da estrutura política e a organização das instituições econômicas de nosso país. 

Dalet. Por isso, podemos dizer, sem sombra de dúvida, que o compromisso é com Cristo. E que ele participa dos combates pela Justiça, e é a centralidade de todo clamor e ação. 

Ou seja, queridos irmãos e irmãs, Cristo é a centralidade da reforma radical

Assim, os jovens pastores batistas são chamados a se colocar na brecha social e a considerar fundamental a participação na vida real do país. Mas, de novo, voltamos à questão: em que sentido podemos falar da centralidade do Cristo numa reforma radical da sociedade brasileira?

E o que significa, em última instância, a centralidade do Cristo?

Teologicamente, fazemos a proclamação da soberania de Cristo, depositando sobre os ombros de nossa juventude a tarefa de aceitar o desafio do momento, a fim de demonstrar a evidência da ação do Cristo no mundo.

O perigo é, em meio às rápidas transformações sociais, ficar atrás em nosso pensamento social e pregar um evangelho que não seja compreensível e adequado às necessidades do sociedade em mudança.

O papel dos jovens pastores batistas numa sociedade em crise é seguir os passos de Cristo, amante apaixonado dos excluídos de bens e possibilidades.

E atenção André Sass Farias, querido pastor batista, brasileiro, amigo e colega, mas já também francês, e também todos os irmãos e irmãs aqui presentes:

Cristo é a centralidade para a solução dos problemas brasileiros, e por extensão de toda a globalidade, porque sob sua soberania está nossa ação ética, a favor da vida, na reforma permanente do reinar de Deus. E neste que fazer, o fazemos todos, juntos, a partir de nosso atuar transformador em Cristo Jesus, o Senhor.









dimanche 4 septembre 2016

Fé cristã e ação política

A relação entre fé cristã e presença no Partido dos Trabalhadores manifestou-se na forma de um paradoxo, no sentido de um modo de pensar que estava à margem das opiniões aceitas e mesmo em oposição a elas. O paradoxo inicial da fé cristã residiu no fato de ser ela uma obra da cultura na forma de um saber que tem a intenção de explicar a realidade e, por extensão, a própria cultura da qual procede. Essa universalidade da fé cristã foi designada como sendo o predicado da interrogação cristã que se dirige ao ser da nossa brasilidade. Ela determina o caráter paradoxal da relação entre cultura e fé cristã na medida em que é origem e uma das instâncias fundadoras da cultura brasileira. 

Há aqui uma correlação de causalidades históricas, mas é importante assinalar que outras produções culturais, como a política e a democracia de participação apresentam essa originalidade de ostentarem os traços do que serão as suas essências como intenção de conhecimento. Nesse sentido, a fé cristã no Brasil deve ser considerada não só um caminho para se penetrar no espírito da cultura proletária, mas meio para se compreender o pensamento libertário em um partido de trabalhadores. Mas, para isso é necessário ter presente a relação dialética que existe entre o dinamismo da cultura proletária e a produção da fé cristã brasileira, que juntas construíram nossa história recente.[1] E, ainda hoje, a sobrevivência dessas construções mostra que a fé cristã é um dos elos que asseguram a continuidade da tradição humana que chamamos de cultura cristã brasileira. 

Assim, a fé cristã esteve inscrita no destino da cultura petista e fez parte do seu espírito. Por isso, é necessário perguntar qual a razão que conduziu a esse destino. Ora, a própria fé cristã brasileira nos dá motivos para essa interrogação. Ela nomeia a razão debaixo da qual a cultura proletária caminhou, sendo a única que fez de tal razão a sua marca, embora sejamos obrigados a levar em conta os tristes caminhos que essa razão ofereceu no suceder histórico da brasilidade. Mas, é fato que a descoberta do instrumento pelas duas grandes correntes formadoras do pensamento cristão brasileiro, o catolicismo e o protestantismo, e a legitimação social de seus usos, foram a causa do aparecimento de um conhecimento de fé e de vida, que se apresentaram marcados pelo paradoxo da interrogação sobre o ser brasileiro e pela utopia. 

Como vimos, há um choque entre a utopia e o kairós, que se traduz enquanto clamor crítico diante da responsabilidade que não pode ser esquecida. E é a partir da compreensão do que significa o espírito da autonomia crítica no tempo presente, que voltamos ao kairós, que irrompe no instante concreto, no sentido de clamor desestabilizador, enquanto plenitude no tempo certo. Este kairós é o tempo onde se completa aquilo que é absolutamente significativo, é o tempo da destinação. A relação entre utopia e kairós está caracterizada pela necessidade do desenvolvimento de uma utopia que aceitou legitimar socialmente a autonomia. O kairós passou a ser, então, a forma exemplar da vida segundo a autonomia. 

Ora, a intenção de universalidade que move um partido de trabalhadores, levando-o a voltar-se reflexivamente sobre si próprio e sobre a utopia que lhe dá origem, opera aqui uma inversão na significação dos termos da relação entre a utopia e kairós como sua própria criação. Inicialmente a utopia é o termo fundante nessa relação, se considerarmos o kairós revolução que se determina a si própria. Considerado, porém, na sua natureza de interrogação sobre aquilo que deve ser a sociedade brasileira, portanto, intencionalmente universal, kairós assume, na sua relação com a utopia, a posição de termo fundante, já que a utopia se torna objeto a ser explicado pelo kairós no tribunal do que é essencial e inescusável. Essa explicação nos leva a estabelecer, de modo sistemático, a ordem das razões segundo a qual a utopia pode ser pensada na sua natureza, na sua unidade e nos seus fins. Assim, como termo fundante da sua relação com a utopia, o kairós descobre seu propósito essencial na construção histórica de partido de trabalhadores. 

Pensar a utopia significa para o kairós, de um lado, examinar a solidez do edifício da utopia, os conceitos ontológicos que tornam possível a atividade espiritual do ser humano: o ser e a essência, e definir segundo o seu estatuto ontológico, as condições de exercício dessa construção, sua razão e justiça. Nesse sentido, a utopia, em sua acepção mais ampla, leva o kairós a ser um kairós da utopia. Por isso, podemos afirmar que a relação entre utopia e kairós apresenta uma forma dialética, pois nela a utopia e o kairós invertem, no movimento do conceito, o papel de termo fundante da relação. 

Essa estrutura dialética caracteriza a tensão histórica entre utopia e kairós que é um paradoxo tanto no ato de pensar a fé cristã, quanto na intenção de ser socialista. Ela obriga o kairós, ao constituir-se como termo fundante da sua relação com a utopia, a passar além das esferas de interesse dentro das quais ocorrem os momentos diversos do pensar utópico. Assim, o lugar da tensão dialética entre utopia e kairós, nesse impulso de remoer as origens, encontrará satisfação no kairós, enquanto história que conhece diferentes tentativas de superação dessa tensão, que está no começo e no anunciado ato final do destino histórico. Existe assim uma regência da utopia pelo kairós, não só simbólica, mas política. É o de tornar-se mundo pelo advento daquilo que é novo na história, da qual ele é a coroa. Donde, a inevitabilidade da pergunta pelo futuro, inscrita como destino e como condição de sobrevivência de um partido de trabalhadores. Portanto, a situação do kairós na utopia socialista nos convida a conviver com essa tensão que assume feições diversas ao ser o kairós confrontado com os universos utópicos que constituem a realidade complexa da utopia: particulares, mas universal. Talvez, por isso, o futuro do kairós e o da existência de um partido de trabalhadores permaneçam problematizados: o kairós vive essa tensão e é a partir dele que se articulam as questões fundamentais do futuro do movimento socialista no alvorecer do novo milênio.

  • A primeira práxis do cristianismo social dentro do Partido dos Trabalhadores foi a crítica no sentido original da justificação, enquanto integridade que conduz à dúvida tanto sobre a utopia, como sobre o próprio kairós. No caso da utopia essa tarefa se desenvolveu no terreno da tensão dialética da qual é o kairós que deveria refletir criticamente sobre a própria utopia. Nos últimos anos, o paradoxo dessa situação voltou a se manifestar dentro do PT, quando setores do cristianismo social, que se opunham à política majoritária, disseram que é o kairós que deve julgar a utopia. Essa pretensão foi condenada em razão da relatividade dos paradigmas que possibilitavam o kairós e que se dissolviam na pluralidade das utopias. Tratava-se, porém, de uma pluralidade quantitativa no espaço e no tempo históricos, mas qualitativamente relativas. Dessa maneira, a reflexão sobre a utopia colocou o kairós em face de um questionamento: o problema da unidade e diversidade do ser socialista, que está presente no fundamento das diferentes versões do viver utópico e político dentro do PT. 

  • A segunda práxis do cristianismo social no PT foi a busca do fundamento da unidade da cultura socialista no PT, que só poderia estar na ontologia, enquanto ontologia do ser humano. Para esse fundamento refluiu a interrogação sobre a unidade ontológica da cultura socialista e a questão se formulou nesses termos: qual é o princípio antropológico daquilo que a cultura socialista produz? É certo que o humano cria seu próprio universo de significação, que é a cultura, e é nela que vamos encontrar o ato e a forma da nossa expressividade. Dessa maneira, a reflexão do cristianismo social sobre a cultura socialista no Partido dos Trabalhadores consistiu em assegurar no ato dessa produção petista a unidade que só poderia ser pensada em oposição ao fluxo do tempo e à dispersão do espaço onde a experiência se situava. Essa intuição já tinha inaugurado o pensar da Teologia da Libertação na America Latina. Donde, a unidade ontológica da cultura socialista, aquilo que é inteligivel no seu ser, reside na relação dialética entre a estrutura transcendental da pessoa e aquilo que é ideal no que a cultura de trabalhadores e excluídos produz, que se manifesta na forma transtemporal e transespacial que lhe dá perenidade simbólica. O próprio cristianismo social apresentou-se, então, como paradigma da utilidade ontológica da cultura socialista, pois nela foi tematizada a transcendência da ação.[2]

Assim, a natureza da unidade da cultura socialista foi entendida como unidade analógica, porque a produção cultural socialista se apresentou como expressão da abertura do trabalhador à universalidade do ser brasileiro e foi no horizonte dessa universalidade que essa produção cultural se situou e adquiriu sua idealidade simbólica. Por isso, a unidade da cultura socialista apresentou-se, num primeiro momento, como possibilidade a ser assegurada pelas categorias de estrutura e relação estabelecidas pelo cristianismo social e outras compreensões socialistas e articuladas pelo movimento dialético da expressão da pessoa excluída. 

Dessa maneira, para os cristãos sociais, a unidade passou a ser defendida como uma unidade na diferença e por isso analética,[3] que permitiria aos trabalhadores e socialistas realizarem-se na pluralidade das culturas brasileiras e na profusão de formas por elas produzidas. Foi, pois, a não compreensão do caráter analético da unidade da cultura socialista que deu origem à não compreensão dos universos culturais petistas. Falar do caráter analético dos universos culturais petistas significava afirmar a exterioridade: superar a totalidade a partir da transcendentalidade interna ou da exterioridade daquele que nunca esteve dentro das tendências petistas. O caráter analético é crítico porque leva à superação da dialética. Afirmar a exterioridade da militância partidária, dos movimentos sociais, realizaria o que era aparentemente impossível para o partido, imprevisível para a totalidade, aquilo que deveria surgir a partir da liberdade não condicionada, revolucionária.

Como a analética é prática, torna-se uma pedagogia e uma política de massas, que trabalham para a realização da alteridade humana, alteridade que nunca é solitária, mas a epifania de todos os trabalhadores e excluídos. E essa analética, então, leva à questão dos universos culturais brasileiros, ao problema das categorias antropológicas que exprimem as relações de trabalhadores e socialistas com a realidade, no âmbito da sua abertura transcendental ao ser brasileiro. A diferenciação dessas categorias obedece à diferenciação do ser na realidade e incide na diferenciação dos modos de relação do trabalhador e socialista com o ser humano brasileiro, de maneira que a categoria de objetividade delimita o campo da relação de produção enquanto campo da relação teórica e campo de relação da práxis. O entrelaçamento dessas relações no existir histórico do PT deveria definir a cultura socialista no partido, pois as diferentes correntes de um partido de trabalhadores como seres em relação são, ontologicamente, seres da cultura socialista, assim como a realidade é, para eles, uma realidade da cultura socialista. A unidade analética da cultura socialista em um partido de trabalhadores deve ser pensada segundo a analogia de atribuição, ordenada em direção à inteligibilidade,[4] porque a determinação dessa direção orienta a discussão sobre a relação entre teoria e práxis. 

  • A terceira práxis do cristianismo social no Partido dos Trabalhadores teve em vista o estatuto ontológico que rege a atividade cultural socialista do ser petista. Esse estatuto ontológico exprime-se como unidade da cultura socialista que encontra sua efetivação nos diversos ciclos da história de um partido de trabalhadores. Mas, ao colocar em evidência a dimensão da realização do brasileiro, o cristianismo social descobriu o caráter normativo que lhe é inerente. E como a ontologia prolonga-se numa ética da cultura, o brasileiro fundou o mundo da cultura brasileira tendo em vista o seu próprio bem. Por isso, o ético não deve ser entendido como um predicado externo à cultura: os dois conceitos tornam-se complementares porque a produção encontra seu lugar no espaço daquilo que é morada do ser humano.[5]

Ethos, então, passa a ser a forma de vida da cultura e é por sua própria natureza conhecimento normativo da cultura. Fazendo-se reflexão ética, a reflexão do cristianismo social sobre a cultura socialista teve a função constitutiva de operar no ser do trabalhador e em sua produção cultural e política. Assim, o cristianismo social tem por objeto a ontologia e a ética do ser militante da cultura socialista petista. É por isso que a tematização ontológica e ética da cultura socialista ocorreu no âmbito do Partido dos Trabalhadores ao nível da sua autojustificação em termos de razão. No momento em que a cultura socialista colocou no seu espaço simbólico os sistemas criados pela razão, entre os quais está o cristianismo social, ela definiu o estatuto dessa produção simbólica, as regras e as normas do seu uso em vista da realização daquilo que é humano. 

Desde o momento em que o campo simbólico da cultura socialista dilatou-se no espaço universal da razão, os limites do ethos tradicional tornaram-se estreitos e coube ao cristianismo social a proposta de um outro ethos, a ética cristã. Por isso, o cristianismo social foi o produtor dessa instauração no PT. O roteiro da ética na cultura petista acompanhou o roteiro seguido pelo pensamento cristão. Ele reflete as dificuldades da cultura petista nessa hora de crise de identidade que é vivida como crise da cultura socialista, mas também como crise ética.[6] Mas tal crise tem um paradigma que traduz este momento especial: esta crise é uma enfermidade da modernidade capitalista. Diante dessa crise, o cristianismo social tinha dois caminhos a seguir: participar do fechamento do sistema sobre si mesmo, favorecendo a totalização do sistema, e cumprir a função de ocultar a dominação. Isto significaria desistorificar a realidade social, desdialetizar um processo que teve gênese e dinâmica próprias. Tal divinização levaria à fetichização, que consiste na identificação da estrutura atual com a vontade divina. Outro caminho seria ver a própria fé cristã como clamor daquele que está excluído, e que precisa de fé para abandonar as ilusões sobre sua própria situação. Por isso, a crítica do cristianismo social no Partido dos Trabalhadores levantou a anterioridade da responsabilidade prática que se tem com o excluído dentro do sistema capitalista brasileiro. Essa anterioridade parte da exigência de que o cristão social deve transcender o sistema vigente de dominação[7] e ver como responsabilidade sua o serviço ao excluído. A fé cristã nesse caso é a instauração de uma nova práxis. E o fato de que a práxis cristã possa chegar ao poder e tornar-se superestrutural não nega o fato de que a crítica profética continue a irromper na história. 

Essa presença de responsabilidade social com o excluído mostra a vigência do clamor crítico e autônomo e funciona como freio das pressões alienantes e superestruturais. Por isso, consciente de seu papel de profeta, dom Hélder Câmara, um dos pais do cristianismo social no país, disse que quando falava da pobreza todos o chamavam de cristão, “mas quando eu falo da causa da pobreza, me chamam de comunista. Quando eu falo que os ricos devem ajudar os pobres, me chamam de santo, mas quando eu falo que os pobres têm que lutar pelos seus direitos, me chamam de subversivo”.[8]

Assim, a crítica do cristianismo social desmitifica para que as pessoas pensem, para que atuem e transformem suas realidades como seres humanos conscientes. Um exemplo dessa crítica cristã social à crise e enfermidade do capitalismo brasileiro, em nossa história recente, foi a decisão da CNBB em criar o Grito dos Excluídos, fazendo um paralelo com o Grito do Ipiranga, de Dom Pedro I, que teria sido um grito de “liberdade ou morte”. A Igreja católica, com o apoio de entidades como a CUT e o MST, fez com que o Sete de Setembro passasse a ser comemorado com mobilizações centradas nas reivindicações dos trabalhadores. Da mesma forma, foram os temas sociais da Campanha da Fraternidade, que ainda no governo do presidente Fernando Henrique Cardoso perguntou: “Desemprego, por quê?”, chamando assim a atenção para um problema estrutural da sociedade brasileira. Naquele momento o país tinha um desempregado em cada cinco trabalhadores brasileiros. O índice na grande São Paulo, segundo o DIEESE, era de 18% da mão-de-obra. E o índice nacional aproximava-se dos 8%, e o próprio índice oficial falava de aproximadamente 10 milhões de trabalhadores desempregados. Isso, sem levar em conta que os novos trabalhadores, os jovens que deveriam entrar anualmente no mercado de trabalho eram cerca de dois milhões. O país, no entanto, só conseguia criar quinhentos mil novos empregos por ano.

Ora, o clamor crítico e autônomo procede porque em nosso país o cristianismo é a primeira consciência que a pessoa tem de si mesmo, e as relações morais são relações de formatação cristã. Tal realidade, de forma paradoxal, se expressa também no cristianismo conservador e fundamentalista. Isto explica porque as massas, enquanto oprimidas e passivas, vivem a ideologia das classes dominantes e aceitam as respostas que o sistema oferece de forma ambígua para as suas necessidades. Ao aceitar esse cristianismo superestrutural das classes dominantes, enquanto rito simbólico do triunfo dos dominadores, as massas se colocam sob resignação passiva. Por isso, é tarefa dos socialistas verificar a realidade e desmascarar a santidade da auto-alienação. Devem, sem dúvida, fazer a crítica do céu para que se transforme em crítica da terra. Mas, também procede a crítica que o cristianismo social faz, quando diz que o ateísmo, por negar a necessidade da essencialidade perde sentido, pois, ao negar afirma, através da negação, a existência do humano. Ora, o socialismo não necessita dessa mediação, já que surgiu como consciência sensível, teórica e prática do ser humano e da natureza como essência. O socialismo, então, deve fazer a negação da negação da emancipação e da recuperação humana, enquanto princípio dinâmico, embora não seja nem o fim do desenvolvimento humano, nem a forma última da sociedade humana. 

Diante disso, os cristãos sociais precisam entender que sua militância faz parte de uma luta mais ampla, onde o cristianismo infraestrutural é aliado estratégico de trabalhadores e socialistas e que o ateísmo, por isso, é ocultamento, pois fecha as portas ao aliado estratégico, ao cristianismo, que se fará presente enquanto houver seres humanos obstinados pela responsabilidade diante do excluído, sentido incondicional de justiça, esperança de um novo kairós. Assim, para o cristão social a história brasileira e nela as possibilidades de um partido de trabalhadores são uma produção das massas em movimento, a partir da ação de milhões de trabalhadores e excluídos, que transforma, cria uma nova cultura e produz o nascimento de uma nova sociedade. É num processo permanente que os trabalhadores e seus partidos constróem sua essencialidade: do ser humano em direção ao ser humano. Mas, o êxito nesse processo depende das condições de possibilidade, donde é impossível separar teoria e práxis. Por isso, os cristãos sociais num partido de trabalhadores devem propor a integração dos princípios na escolha de fins que permitam levar à práxis de libertação aqueles que estão excluídos. E diante da crise, o cristianismo social deve chamar pessoas e comunidades à co-responsabilidade pela construção de uma nação com identidade própria, e estimular os cristãos, em nome da sua fé, a se engajaram na política, pois vale a pena servir a uma causa que ultrapassa o momento da crise: tal política é um exercício de amor. 


Notas
[1] Jorge Pinheiro, Somos a imagem de Deus, caminhos para o diálogo da teologia com a brasilidade, op.cit., pp. 94-104. 
[2] Jorge Pinheiro, “É possível dialogar?”, Coluna Opinião, Biblia World Net, São Paulo, 07.2004. Site: www.bibliaworldnet.com.br/index.asp
[3] Enrique Dussel, “Para una fundamentación analéctica de la liberación latinoamericana” (Apéndice 4), Método para una Filosofía de la Liberación, Salamanca, Ediciones Sígueme, 1974, p. 281. 
[4] Gildardo Díaz Novoa, “O Método Analético”, in Enrique Dussel en la Filosofía Latinoamericana y frente a la Filosofía Eurocéntrica, Valladolid, 2001, pp. 151-152. 
[5] Jorge Pinheiro, “Exclusão e liberdade no século 21, a relevância do sentido espiritual da vida”, Coluna Opinião, Biblia World Net, São Paulo, 01.2005. Site: www.bibliaworldnet.com.br/index.asp
[6] Jorge Pinheiro, “Lições da história: finalidade ou tempo de fim?”, Coluna Opinião, Biblia World Net, São Paulo, 04.2005. Site: www.bibliaworldnet.com.br/index.asp
[7] Jorge Pinheiro, “Domínio globalizante e defesa da vida”, São Paulo, Teológica, Faculdade Teológica Batista de São Paulo, vol. 4, pp. 74 - 93, 2001. 
[8] Frei Betto, “Política e religião”, João Pessoa, Universidade Federal da Paraíba, Campus I, 03.02.1999. Site: www.dhnet.org.br/direitos/militantes/freibetto (Acesso em 06.12.2005).


Ou como dissemos acima: diante da crise, o cristianismo social deve chamar pessoas e comunidades à co-responsabilidade pela construção de uma nação com identidade própria, e estimular os cristãos, em nome da sua fé, a se engajaram na política, pois vale a pena servir a uma causa que ultrapassa o momento da crise: tal política é um exercício de amor. 



vendredi 2 septembre 2016

PT, a questão proletária e seus conflitos internos

A questão proletária e seus conflitos internos
Jorge Pinheiro, PhD



Ora, fazer uma leitura teológica desse espectro do vermelho e das possibilidades de um partido dos trabalhadores implica em fazer uma discussão sobre as origens proletárias do partido e o que isso significa. Foram condições especiais que levaram a massa proletária e a pessoalidade de jovens sindicalistas, cristãos e socialistas a formarem uma síntese, que correspondeu ao ideal da teonomia. Essa massa orgânica, que nem sempre caminha em direção ao ideal da teonomia, no final dos anos 1970 plasmou-se enquanto massa dinâmica no tempo histórico do final do regime militar. Essa massa em movimento é revolucionária,[1] não só no seu sentido político, mas no sentido de fé espiritual e social, gerou um movimento que a levou a ir além do estado de massa, o que se concretizou na organização do Partido dos Trabalhadores.

Apesar do caminho que fez através da democracia de participação e das mobilizações, isto não evitou que o Partido dos Trabalhadores vivesse desde sua origem os conflitos internos do socialismo,[2] que tiveram como ponto de partida a própria condição proletária do partido. Os conflitos da situação proletária no PT surgiram do fato de que esse proletariado industrial e suas direções sindicais tiveram que se apoiar no princípio burguês de gestão da vida cultural, política e social, e, ao mesmo tempo, se opor ao princípio burguês. Ou seja, os conflitos tiveram por base o fato de que esse proletariado industrial deveria ir além, sobrepujar o princípio burguês com os meios deste mesmo princípio. Esta oposição foi inevitável, porque a existência proletária é expressão do princípio burguês. Estão presentes na própria existência do proletariado e, em especial, em suas direções sindicais, o processo de permanente objetivação, reificação e a ruptura com sua própria origem. 

Então, o proletariado, mesmo estando organizado em sindicatos, não pode reagir ao pensamento burguês com total liberdade e independência. Isto porque não se pode responder à reificação apenas com o ethos, é necessário usar meios políticos. Mas, ao mesmo tempo, a situação dos trabalhadores, a cada ação e manifestação, mostrava a milhões de brasileiros que suas existências estavam em contradição com o destino humano. Foi essa realidade, que o conjunto da sociedade brasileira vivia e sentia, que deu força ao movimento operário e o ligou às reivindações democráticas da sociedade. Foi por isso que o princípio protestante da autonomia teve função especial na compreensão da situação brasileira, pois ao ser olhado a partir da situação proletária, mostrou que a realidade brasileira nos anos da ditadura militar se apresentava como cisão demoníaca ou alienação. Estes elementos que desde o início estiveram correlacionados à situação de classe dos trabalhadores, que formaram a base social do PT, ligados à consciência da necessidade de lutar pelo socialismo, tiveram para os brasileiros uma significação universal. 

E são esses elementos que nos permitem falar de espectro do vermelho, que vão além dos atributos de classe, mas fizeram parte do conteúdo humano levantado nas bandeiras de luta do Partido dos Trabalhadores. Dessa maneira, como em outros momentos da história, setores do proletariado brasileiro descobriram que esses direitos que brotam da autonomia o ligavam a outros grupos humanos e que a miséria tocava tanto seus corpos como suas almas. E que esses elementos originais daquilo que é humano são realidades presentes que os levam à luta contra o princípio burguês. Esta é a razão porque o cristianismo social deve dialogar com o materialismo proletário pela construção de uma nova sociedade. E nesse diálogo deve, também, lembrar ao socialismo que a miséria dos trabalhadores e excluídos não é somente uma miséria econômica e social, mas humana.

Nos primeiros vinte anos da história do PT vimos que a oposição entre a fé cristã e o socialismo não estava na utilização do método dialético e nem mesmo no materialismo, mas na leitura dos fatores intra-históricos, já que para os cristãos sociais a história é definida pela combinação de fatores intra e supra-históricos. A ausência desse elemento transistórico no socialismo materialista tende a levar as correntes socialistas a caminharem numa direção contrária a do próprio socialismo, pois ao não entendem a irrupção do kairós, caminham para o desencantamento. O kairós é um tempo carregado de tensão e transformação, já que nem tudo é possível sempre, nem tudo é verdade em todos os tempos. O kairós reina no tempo presente, que é diferente dos tempos do passado. É nessa viva consciência da história que está enraizada a idéia de kairós, e é a partir dela que deve ser construída uma ação política consciente da história, a revolução.

A concepção conservadora, que se plamou na corrente sindicalista do PT, liderada pela tendência Articulação, perdeu o sentido supratemporal do kairós, e, por isso, o pensamento conservador petista congelou as possibilidades de transformação da realidade brasileira. O mito fundador do PT expressou com profunda riqueza este estado de coisas, com o testemunho de eventos nos quais o partido pode perceber sua origem. Mas, em seu mito fundador ressoam as leis cíclicas do nascimento e da morte, que promete a segurança da origem e o coloca debaixo de seu império. 

Por isso, a raiz do pensamento político conservador petista é essa consciência mítica original. Esse é o nó de origem do Partido dos Trabalhadores: a partir da utopia que lhe deu nascimento, parte da militância quis congelar sua saga de origem, eternizando os momentos de vitória do início dos anos 1980. Mas o sentido supratemporal daquele kairós abala o tempo e seus conteúdos e é por isso que a utopia leva à decepção. Ela esquece o presente e se lança à frente, mas este estar no passado ou no futuro faz do presente um tempo pobre, e é isso que desencanta a utopia, principalmente as lideranças sindicais, que estão sob forte pressão do princípio burguês. Daí que a realização da espera socialista não pode ser entendida como um conceito meramente empírico, pois a utopia é impotente para enfrentar os poderes da sociedade. Quando o PT não se questiona a respeito da promessa socialista, sua espera deixa de estar orientada em direção à realização, pois a esperança exorta a luta política a caminhar na direção do presente prometido. A ação dinâmica dos trabalhadores deve criar novas possibilidades de existência, provocar antecipações significativas do futuro. Na ação animada pela espera, há transformações e superações, mas não se alcança uma existência humana isenta de ameaça. Por isso, o princípio último da justiça é o reconhecimento da dignidade do ser humano como pessoa e dos ameaçados pela injustiça.

O PT, sem dúvida, foi além do colocar-se como realidade dada. Fez a experiência de uma exigência que o separou do imediato da concepção socialista e o levou a colocar-se diante da pergunta: por que o PT é assim?[3] Esta pergunta quebrou o ciclo nascimento/morte e lançou o PT numa realidade nova e desconhecida. A pergunta pela razão de ser do PT é a exigência de algo que tem que se tornar realidade. Quando se faz a experiência desse tipo de exigência não se está mais colado à origem. Vai-se além da afirmação do que já está. A exigência nomeia o que deve ser. E o que deve ser não é determinado com a afirmação daquilo que é, significa que tal exigência impôs ao PT o incondicional. 

O questionamento pela razão de ser do PT está fora dos limites da origem e através dela o partido deve alcançar algo incondicionalmente novo. Este é o sentido da exigência: quando o Partido dos Trabalhadores, por ser um partido dividido, que tem contradições, faz esta experiência, ele detém um conhecimento próprio, por isso é possível ir além daquilo que o cerca. Tal é a liberdade do partido: suas lideranças e suas bases não têm vontades livres de circunstâncias e situações, mas também não estão presas ao que está dado. A existência e ação petistas não estão amarradas na simples propagação de sua origem. Quando esta consciência se impõe, para lideranças e bases, podem ser rasgados os laços da origem, o mito original será quebrado. Essa ruptura do mito original pelo incondicional da exigência é a raiz do surgimento do pensamento democrático no Partido dos Trabalhadores. Mas, essa concepção democrática, que é progressista, tem seus limites, pois considera a utopia um alvo colocado à frente, que se realiza a conta-gotas, que não se apresenta enquanto revolução. Assim, os tempos tornam-se sem decisão. 

Nessa concepção democrática, e aqui estão representados os socialismos reformistas no PT, existe uma tensão diante daquilo que o partido foi, pois a consciência de que o alvo se dá por etapas leva a um compromisso continuado com o passado, por isso a concepção democrática em si mesma não oferece opção ao que está dado. Transforma-se em crítica pontual desprovida de tensão, onde não há nenhuma responsabilidade última. Esse progressismo mitigado é a atitude característica das tendências do socialismo reformista no PT e é uma ameaça, pois significa a supressão do kairós, do anúncio da plenitude dos tempos. Esse socialismo reformista é o grande adversário da autonomia crítica.

Mas, a exigência que o Partido dos Trabalhadores faz na experiência diante do que é incondicional não é estranha a sua história. Se fosse estranha, o PT não poderia entender tal coisa como exigência. Se ela toca sua militância é porque coloca diante de seus olhos a sua essência enquanto exigência. Funda-se, então, a incondicionalidade, a irrevogabilidade com que o dever-ser confronta a cada dia o partido e exige ser afirmado por ele. Se a exigência da incondicionalidade do PT é sua própria essência de um partido de trabalhadores, nascido das lutas sociais, a essência do PT encontra seu fundamento na sua origem e, então, a providência e o destino não pertencem a mundos diferentes. 

A pura consciência mítica original ignora todas as ambigüidades da origem. É por isto que esta consciência está presa à origem e considera sacrilégio toda a ultrapassagem da origem. Só a consciência que faz a experiência da exigência daquilo que é incondicional se livra dos laços de origem e se apercebe da ambigüidade da origem. Por isso, um partido de trabalhadores não recebe sua exigência incondicional de partidos não-operários e não-socialistas: é no encontro com as massas em movimento que a exigência torna-se concreta. Seu conteúdo é reconhecido pelas massas com a dignidade de partido dos trabalhadores, dignidade para ser livre, portador da realização daquilo que aponta à origem. 

Reconhecer nas massas em movimento uma dignidade igual ao de partido dos trabalhadores é justiça: e a exigência que arrasta um partido de trabalhadores à ambigüidade da origem é a exigência de justiça. A origem não rompida conduz a poderes em tensão que procuram a dominação tanto do partido como a imobilização das massas. Quando a origem é rompida vem o poder de ser partido dos trabalhadores, o declínio dos poderes julgados por seu sacrilégio, de acordo com a ordem do tempo. 

Diante do poder e da impotência de ser partido de trabalhadores, opõe-se a justiça, que provém do dever-ser. Portanto, não há uma simples oposição, porque o dever-ser é a realização do ser partido de trabalhadores. A justiça é o verdadeiro poder de ser PT. Nisto se torna realidade o que é apontado na origem. Na relação entre as diferentes tendências existentes no partido e as duas grandes vertentes de pensamento político, democracia radical versus socialismo, a exigência deve predominar sobre a origem, e a justiça sobre o poder de ser partido de trabalhadores. 

A pergunta pela razão será superior à da providência. O mito original não deve representar no pensamento político mais do que uma crença desvelada. Esse é o caminho da utopia socialista. Sem o espírito utópico socialista não há protesto, nem transformação. Assim, a realização do criticismo profético se encontra além do tempo, lá onde a utopia socialista pode perder força, mas sua ação continua presente. Mas toda transformação exige uma compreensão do momento vivido, deve entender que há um choque entre a utopia socialista e o kairós. É a partir dessa compreensão do que significa o espírito crítico do profetismo no tempo presente, que se deve voltar ao kairós, à revolução que abala o tempo e os lugares, mas agora com novos conteúdos, construído enquanto responsabilidade inetulável. 

E tal desafio não pode ser resolvido por um líder, por mais que expresse a utopia petista: o sujeito da transformação será, em última instância, a comunidade dos excluídos em movimento. Ora, as raízes do pensamento político petista mantêm relações que vão além da soma de diferenças, porque a exigência predomina sobre a origem. E quando decisões são requeridas, o conceito tradicional de compreensão da realidade não é aplicável, porque não é possível entender o socialismo quando não se experimenta a exigência da justiça como uma exigência incondicional. Quem não é confrontado por esta exigência não pode falar de socialismo, a não ser enquanto expressão externa. Aqui reside a polarização de opiniões que a discussão sobre socialismo e democracia gerou dentro do Partido dos Trabalhadores. 

Frente à realidade das tendências e das diferentes raízes de pensamento político, está posto que toda ação política dentro do partido, mas também diante da sociedade, requer autoridade, não só no sentido do uso do poder, mas também em termos de consentimento manifesto das pessoas. Tal consentimento só é possível quando o partido representa uma idéia que tenha significado para todos. Existe, pois, na esfera política uma relação entre a autoridade e a autonomia. Exatamente por isso, autoridade e autonomia estão presentes no Partido dos Trabalhadores e não podem existir sem a correção da democracia, enquanto mediação, e do direito de tendências. 

Isto porque o socialismo proposto pelo PT colocou a questão da possibilidade de que a vida tenha sentido para todas as pessoas e que deveria se esforçar para responder a esta questão no plano da realidade e do pensamento. Já os cristãos sociais dentro do PT acrescentaram algo a essa compreensão ao dizer que o socialismo não deve ser apenas um movimento político, pois é maior que o próprio movimento das massas trabalhadores: deve ser um movimento que procure apreender cada aspecto da vida e cada grupo da sociedade. 

Para os cristãos sociais dentro de um partido de trabalhadores este seria o desafio: manter o socialismo de origem, sem se deixar congelar por ele; projetar seus sonhos, sem sacrificar vidas no altar da utopia; ser democrático, participativo e representativo, quando a intolerância e o arbítrio marcaram e fazem parte da tradição política brasileira. E ser voz do criticismo profético que se projeta além das classes, neste agora onde a utopia socialista deve parir o kairós, a revolução.


Notas
[1] Paul Tillich, “Masse et Esprit. Études de philosophie de la masse” in Christianisme et Socialisme, Écrits socialistes allemands (1919-1931), Paris, Genebra, Québec, Les Éditions du Cerf, Éditions Labor et Fides, Les Presses de l’Université Laval, 1992. 
[2] Jorge Pinheiro dos Santos, “Socialismo e religião no processo de fundação do Partido dos Trabalhadores, uma leitura a partir de Paul Tillich”, Correlatio 4, dezembro 2004, São Bernardo do Campo. Site: www.metodista.br/correlatio 
[3] Jorge Pinheiro, “Politique et religion, un éclairage tillichien sur le socialisme brésilien”, in Marc Boss, Doris Lax, Jean Richard (orgs.), Ethique sociale et socialisme religieux, Munique, LIT Verlag Munster, 2005.



Ou como dissemos acima, para os cristãos sociais dentro de um partido de trabalhadores este seria o desafio: manter o socialismo de origem, sem se deixar congelar por ele; projetar seus sonhos, sem sacrificar vidas no altar da utopia; ser democrático, participativo e representativo, quando a intolerância e o arbítrio marcaram e fazem parte da tradição política brasileira. E ser voz do criticismo profético que se projeta além das classes, neste agora onde a utopia socialista deve parir o kairós, a revolução.



jeudi 1 septembre 2016

Brasil hoje, a questão do poder e seus desdobramentos

A questão do poder e seus desdobramentos

Uma leitura a partir do Partido dos Trabalhadores

Jorge Pinheiro, PhD


Quando trazemos esta discussão para a realidade brasileira, vemos que a partir dos anos 1960 com o engajamento de católicos e protestantes na luta contra o regime militar tomou corpo o debate sobre a responsabilidade política da comunidade cristã. Foi e continua sendo importante para o cristianismo brasileiro que tal discussão se faça, mas expressivos setores da comunidade cristã ainda não ultrapassaram a espiritualidade privatizada em direção ao compromisso social. Por isso, é necessário reconstruir aqui o caminho desse diálogo da fé cristã com a política, já que se o ser é o poder de ser, mesmo em seu sentido metafórico, o poder supõe um objeto sobre o qual possa exercer seu poder. A política tem uma essência: o uso do poder. E o poder determina os caminhos da sociedade. E esse poder político recorre à autoridade social instituída e possibilita ao Estado exercer coerção em nome do direito dos cidadãos. Mas as convicções pessoais sobre a transcendência e sua soberania, numa leitura reducionista da espiritualidade, quando vê apenas sua dimensão negativa, têm implicações no pensar a política. Ao optar por uma espiritualidade privatizada,[1] ofusca-se caminhos e mascaram-se práticas, às vezes, não éticas, mas de atitudes aparentemente piedosas. E dessa maneira, a política não tem sido aceita por essa espiritualidade negativa brasileira, que apresenta propostas de uma ordem política onde o amor sem poder supere o poder sem amor.[2]

Ao analisar tais propostas, que ressuscitam entre os protestantes a teoria social dos anabatistas, de contrapor as políticas de poder ao amor cristão, vemos que para o negativismo é impossível integrar política e estilo de vida cristão. Chamam, então, à igreja a rejeitar qualquer forma de poder representado na ordem econômica e política sob o poder do Estado. Mas ao rejeitarem as políticas de poder da sociedade, aceitam, por exclusão, já que a política também se faz por omissão, o uso do poder que está instituído, pois, ao não defenderem uma retirada do mundo, colocam-se sob o poder presente. Neste sentido, diferem do separatismo batista, que historicamente propôs a radical separação entre Igreja e Estado em nome da liberdade de consciência. Este separatismo acreditava que o fracasso das políticas de poder são impedimentos para a manifestação da transcendência. Era um fundamentalismo de cunho liberal, fazia a crítica da política e propunha o distanciamento físico dos poderes do mundo. O que nos obriga a admitir que traduzia uma atitude política consciente. Hoje, a espiritualidade cristã brasileira não é separatista e não foge do mundo: acredita ter uma missão moral de transformação, mas, muitas vezes, nega a possibilidade de real envolvimento político, por temer o poder político. Ora, se a comunidade cristã tem uma ética política, deve utilizar os meios que possibilitam chegar aos fins que busca. Rejeitar o poder é rejeitar políticas. Tal rejeição pode até ser aceita, desde que seus agentes tenham consciência do que estão fazendo e, coerentemente, proponham o abandono do mundo. Quando uma comunidade acredita que a omissão diante da política e do poder favorece à instalação do reino de Deus, tem-se a negação da política como política cristã, o que fortalece aqueles grupos que buscam o poder em benefício próprio. E, ao contrário do que crê o negativismo, tal postura não estabelece o reino de Deus. 

Se não é possível falar de política sem falar de poder, outra questão se coloca: amor e poder são compatíveis?[3] A pergunta procede porque a espiritualidade remete à prática do serviço ao próximo, mas, em nome da espiritualidade e do amor ao próximo, comunidades cristãs negam a possibilidade de todo e qualquer poder. Tal postura apresenta-se como equívoco, pois o poder não é uma identidade morta, mas um movimento reflexivo, onde o ser se separa dele para depois retornar a ele de novo. O poder, dessa maneira, é tão maior quanto maior for a separação vencida. E o movimento que reúne aquilo que estava separado é o amor. Mas se há um amor reunificador, há o não-ser vencido e há o poder de ser, por isso, o amor é a base e não a negação do poder. Tal amor é um ato da vontade, porém, não se pode forçar uma pessoa a amar alguém. Já os atos políticos contêm elementos não voluntários, porque o poder do Estado está associado a ações que podem estar fora da vontade da pessoa, enquanto o ato de amor está associado a ações do querer. Outro fato importante é que o amor deve ser mediado pessoalmente. Como a natureza voluntária do amor necessita da existência de uma pessoa que o ative, o amor sempre necesita de um agente moral livre. O Estado, como qualquer outra ordem social instituída, tem uma existência objetiva e alcança seus fins indiscriminadamente.

A relação da pessoa com o Estado é uma relação cidadão/instituição em lugar da relação eu/você, que possibilita a mediação pessoal que ativa o amor. Além disso, o amor tem um caráter sacrificial. Ou seja, possibilita ações que a despeito dos interesses particulares, imediatos, responde ao bem-estar do outro. Conscientemente, é um perder para que outro ganhe. Sacrificam-se direitos, sem estar forçados por obrigação legal, para que o outro seja beneficiado. Ou seja, por ser livremente determinado, o amor vai além de uma obrigação moral ordinária. Cumprir obrigação moral é responder à necessidade moral, é um ato de dever em lugar de um testemunho moral livre. É importante entender que esse processo de ir além da obrigação moral envolve, como paradoxo, uma vontade moral implícita. É por isso que o amor pode se transformar segundo as exigências concretas das pessoas e das instituições sociais, sem perder a dignidade incondicional. Assim, podemos dizer que o amor é voluntário e livremente entregue, que envolve volição moral, deve ser mediado pessoalmente, é sacrificial. E, finalmente, que o amor vai além do dever ou da obrigação moral, embora implique, paradoxalmente, em obrigação moral ou realização de um dever de origem. 

A política implica em servidão não voluntária, já que sua natureza baseia-se no uso da coerção e da força para alcançar seus fins. É organização formal e opera impessoalmente, e os políticos, mesmo quando são trabalhadores e socialistas, se ocupam de ações que levam terceiros ao sacrifício, por isso a necessidade da força e da coerção e, em última instância, do próprio Estado. Nessas condições, a maioria da população geralmente se considera satisfeita quando vive sob uma ordem política, seja ela dirigida por trabalhadores e socialistas ou não, que responde às exigências de sua obrigação moral. E quando isso não acontece podem levantar um chamado à rebelião contra o Estado, a fim de exigir dele a realização daquilo que é sua obrigação moral. Fazendo assim atuam no sentido de que não se torne totalitário, ou seja, negue os limites de seu poder de Estado ou passe por cima das obrigações que tem com as pessoas. Não obstante, mesmo para um governo dos trabalhadores, usar o poder do Estado como meio de realizar o amor entre as pessoas é um contra-senso, pois moralmente não se pode coagir ninguém ao amor. Tal coerção destruiria também a obrigação moral do Estado, que baliza a diferença entre poder limitado e governo totalitário.

Dado a dualidade entre poder e amor e o conflito aparente entre poder sem amor e amor sem poder, como a comunidade cristã, católica ou evangélica, deve se situar frente à política implementada por um partido de trabalhadores? Colocada a questão nestes termos, de fato é difícil escolher entre ser massa, mas cidadão do reino, e ser um militante atuante à margem da salvação. Como seguir o caminho cristão sem rebaixar a nobreza do amor no altar do poder político? A alternativa de reconciliação entre poder sem amor e amor sem poder é o conceito de justiça. E justiça, num sentido amplo, significa dar às pessoas aquilo que por direito lhes pertence. Mas aqui outra questão se levanta: o que por direito lhes pertence? Uma possibilidade de resposta é entender a justiça como a maneira através da qual o poder deve ser realizado. Nesse caso, a justiça deve estar em sintonia com o movimento do poder, deve ser capaz de dar forma ao encontro da pessoa com outra pessoa. O problema da justiça no encontro surge do fato de que é impossível dizer como se organizará a relação de forças nesses encontros. A cada momento existem inúmeras possibilidades. E cada uma dessas possibilidades exige uma forma particular de justiça. Assim, as reivindicações da justiça só podem ser operacionais numa comunidade se forem definidas com um grau significante de particularidade, pois a justiça requer julgamentos diferentes diante de reivindicações contraditórias. Donde, não basta justiça como generalidade. É necessário trabalhar a compreensão de justiça no particular, para não cair no moralismo, quando não se tem nada a oferecer por se falar de forma idêntica em tempos, espaços e situações particulares diferentes.

Muitas vezes o Partido dos Trabalhadores, em especial sua corrente cristã, considerou que fazer justiça significava dar a cada pessoa aquilo que lhe é por direito, mas essa afirmação colocava algumas questões: se todas as pessoas têm igualdade moral, então essa igualdade deve se estender a todo grupo social, às relações econômicas e políticas em que se fazem presentes. E se as pessoas são desiguais nas contribuições que fazem à sociedade, então essas desigualdades devem se traduzir nos grupos sociais e nas relações econômicas e políticas. Ambos os argumentos, sem dúvida, têm suas razões de ser e fizeram parte dos debates políticos entre os cristãos e o socialismo reformista no Partido dos Trabalhadores. 

Por encontrar dificuldades na formulação prática do conceito de justiça, as correntes cristãs fundamentalistas têm rejeitado o conceito de justiça enquanto ordem possível na humanidade. A justiça enquanto ordem possível na humanidade traduz a idéia de que o ser humano tem um conhecimento universal do bem e por isso compreende a necessidade de justiça. O novo conceito defendido pelas comunidades fundamentalistas é o de que a justiça é uma ordem apenas possível através da redenção e, por isso, não existiria um conhecimento seguro de justiça fora da revelação. Dentro dessa leitura teológica, só houve justiça na origem. Assim, ao rejeitar a possibilidade de uma ordem universal fora da revelação, tal compreensão teológica leva a um problema epistemológico, pois afirma que a razão não tem nada a dizer fora da revelação.[4]

Essa visão teve e tem conseqüências práticas na elaboração de estratégias para a ação política, porque define que só a partir da fé se pode falar com autoridade sobre justiça. Ou seja, os cristãos não poderiam, como conseqüência, militar politicamente com não-cristãos, pois não há base secular para o envolvimento político dos cristãos. Desse modo, ao negar o conhecimento natural do bem político, a única alternativa é omitir-se, porque política é coisa mundana, ou estabelecer uma política cristã sectária. Por isso, o fundamentalismo no Brasil buscou impor normas redentivas, favorecendo o distanciamento dos fiéis da política, ao contrário daqueles que defendem uma teologia do conhecimento universal do bem, que rechaça a negatividade das ordenanças da redenção por isolar, alienar e separar a pessoa e a comunidade da prática política. 

Ora, numa leitura teológica do conhecimento universal do bem, a justiça deve estar baseada em reivindicações universais de direito, pois estabelecer justiça em base de autoridade sectária é violentar a compreensão de que todas as pessoas têm um conhecimento do bem: donde, todas as pessoas compreendem a necessidade de justiça. Assim, a justiça deve ser definida dentro do contexto de uma determinada ordem social e deve ser aplicada em termos de particulares, pois fundamentar o argumento da justiça apenas na pessoa não é o bastante. E devido à universalidade das normas de justiça e à universalidade da consciência de justiça, uma pessoa pode ter procedimentos e práticas que aprofundem políticas e programas que favorecem a justiça. É exatamente isso que os direitos cidadãos buscaram trazer para as democracias representativas. É o reconhecimento de que os meios empregados não devem violentar os fins procurados. É necessário, ainda, reconhecer que as normas de justiça são objetivas e que existem independentemente da volição humana. Conseqüentemente, podem ser feitas reivindicações em nome da justiça e podem ser rejeitadas reivindicações em nome da justiça. Considerando que o amor deve ser volitivamente entregue, justiça exige reconhecimento independente da vontade. 

Essa discussão sobre a justiça nos leva à questão da democracia. A partir da Revolução Francesa de 1789, as declarações de direitos passaram a se abrir com o enunciado de que os seres humanos são livres e iguais. Foi assim que a Europa assumiu a realidade da dimensão universal do direito à liberdade e à igualdade, que mobilizou os movimentos de libertação de escravos, mulheres e povos. A constatação desse direito à liberdade e à igualdade legitimou as revoluções burguesas, e a democracia representativa apresentou-se como a forma política através da qual essas liberdades se exprimiriam. Mas, a democracia representativa enquanto expressão da justiça entrou em crise, porque cultura da modernidade burguesa se encontrava em crise. No Brasil, recentemente, tal situação foi presenciada no final do governo militar, com a campanha pelas Diretas, que mobilizou dois milhões de pessoas nos atos realizados em São Paulo e no Rio de Janeiro. Mas, diante do possível desmoronamento do regime militar, iniciou-se um processo onde a democracia representativa funcionou não como forma política de expressão dos direitos à liberdade e igualdade, mas como elemento de controle e restrição dessas liberdades. E as eleições surgiram, então, como alternativa para que o fim do regime militar não desembocasse numa derrocada fragorosa e a mobilização das massas levasse a uma ampliação da democracia participativa. Essa democracia de amplo espectro, participativa, que surge à galope do movimento das massas dinâmicas, é o que chamamos de revolução democrática. 

No Brasil a revolução democrática, entendida como dinâmica que leva ao socialismo e defendida pelos democratas radicais e socialistas reformistas, já tinha sido abortada em 1964, e o foi de novo em 1984, quando ficou claro que as mobilizações conduziriam à extinção do autoritarismo militar e civil. Em 1964, assim como em 1984, o Brasil arrancou na direção de uma democracia de participação. No correr da década de 1990, no entanto, voltaram a surgir condições para uma expansão da democracia de participação, onde a classe trabalhadora, sob a liderança do PT, poderia marchar em direção ao governo, já que a Constituição de 1988 abrira essa possibilidade, e as mobilizações das massas surgidas a partir da deterioração da ordem legal davam às pessoas e aos movimentos o lugar de atores sociais. De fato, as eleições possibilitaram a conquista de espaços democráticos representativos, e permitiram que a voz social e política dos trabalhadores fosse ouvida nacionalmente. E, possibilitou também que as intervenções dos trabalhadores fossem num crescendo diante do debilitamento da política neoliberal. Assim, os trabalhadores começaram a enfrentar seus adversários no próprio campo da luta eleitoral, conquistando espaços democráticos representativos, mas essas vitórias políticas foram aos poucos, dentro do PT, fortalecendo as teses de que o objetivo era a revolução democrática, nesta etapa democrático-burguesa da revolução, e não a conquista do poder e a construção de uma nova sociedade socialista.

A democracia representativa não é um fim em si, mas instrumento de mediação das relações de poder. Isto pode ser compeendido quanto se constata que a democracia representativa enquanto objetivo da revolução burguesa encontra-se em crise, porque se tornou escrava das leis de mercado. Assim, como toda a sociedade burguesa, ela astá submetida à economia. Essa enfermidade crônica da democracia representativa levou os trabalhadores a viverem num mundo sem garantias. Logicamente, se há crise cabe perguntar se pode haver transformação, embora se saiba que transformar não signifique necessariamente restaurar valores que já não respondem às necessidades de trabalhadores e excluídos. Fazer assim seria heteronomia, que só reafirma o autoritarismo. 

Transformar o princípio de liberdade e igualdade significa construir uma democracia participativa, o que se traduz na idéia solidária da incondicionalidade da justiça. Os valores devem e precisam ser construídos, mas isso significa dizer que as massas em movimento, autônomas, devem participativamente tomar a democracia representativa de assalto, pois ela não é um estado natural da sociedade, é sempre uma construção. Por isso, necessita ser vivida criativamente, sempre, e diante da ditadura das leis do mercado, dos fundamentalismos e das mídias controladas pelos grandes grupos, a democracia tem que ser liberdade e igualdade para aquela maioria que não tem voz e vez. Se a democracia é mediadora, embora não seja um fim em si, não basta que as pessoas votem, elejam governantes, e permaneçam distante das ações do poder: democracia vivida implica em participação. Mas a democracia não pode ser vivida exclusivamente a partir daquilo que é pré-estabelecido. Dizer que a democracia é uma mediação fundamental nas relações entre classes e partidos não significa que em todos os lugares ela será igual. Se os seres humanos podem ser livres e iguais, as sociedades têm que se articular para a maioria excluída, e este é o caso brasileiro, os direitos à liberdade devem levar aos direitos sociais, à igualdade. Mas se não existirem as mesmas condições de possibilidade não pode funcionar a democracia, pois se não garante a realização da liberdade não se pode esperar que funcione enquanto mediação fundada sobre os princípios da justiça social. E não basta os mitos fundantes da democracia afirmarem o caráter universal de que “todos os seres humanos são livres e iguais”: esta só pode se realizar enquanto comunidade internacional ativamente participante. Essa é a base do internacionalismo defendido pelos trabalhadores e socialistas. E tal discussão nos remete, mais uma vez, à questão da transcendência da justiça.

Se a transcendência da justiça está correlacionada à transcendência do amor, em termos teológicos amor e justiça não podem ser contrapostos. O amor pode ir além da justiça, mas nunca pode buscar menos que a justiça. O amor pode inspirar reverência à justiça, mas nunca pode ser desculpa para esquecer as reivindicações da justiça. E se a justiça é uma qualidade objetiva que estabelece direitos e obrigações, projetos podem e devem ser desenvolvidos pelas pessoas e comunidades para criar ações que sirvam às reivindicações da justiça. Dado o fato que nem todas as pessoas buscam a justiça de boa vontade, o poder pode ser usado legitimamente quando serve à causa de justiça. Isso significa dizer que o amor não pode usar o poder para alcançar seus fins, mas que a justiça têm que usar o poder para alcançar seus fins. Tais distinções são necessárias porque não se pode dizer a um governo dos trabalhadores que ame, porque suas ações têm por base o poder, e porque as reivindicações do amor estão arraigadas em reconhecimento pessoal e particular ao invés de normas universais de justiça. Mas como os cristãos sociais proclamam, as boas noticías da autonomia, sensibilizam as comunidades para as demandas da justiça. Conseqüentemente, permanece a justiça enquanto serviço de amor. Assim, usar o Estado como um instrumento de amor está fora do objetivo de um partido de trabalhadores, pois levaria a um Estado sectário, quando não totalitário. Por causa disso, as normas distintivas da justiça serão usadas pelo partido para delimitar o que é meu e o que é teu. Negar a justiça em nome do amor seria negar os direitos das pessoas, que são a base de qualquer democracia representativa e participativa. O conceito de justiça, então, aliado aos de amor e poder apresentam as alternativas para as comunidades cristãs ao pensar a ação política em um partido de trabalhadores. A política, com base no poder, cumpre uma função legítima quando serve as reivindicações da justiça. Amar, sem rejeitar o poder, indo além dos direitos e deveres estabelecidos pela justiça, possibilita um testemunho de justiça e uma motivação moral que coroam o ato justo. Amar, através da mediação pessoal, complementa a justiça em suas demandas objetivas. Por isso, Herbert de Souza, Betinho, que foi ativista da Juventude Universitária Católica e combatente da Ação Popular, disse que a fome é exclusão, da terra, da renda, do salário, da educação, da economia, da vida e da cidadania. Porque, quando uma pessoa chega a não ter o que comer, tudo o mais já lhe foi negado. Ou seja, é morte em vida. E concluiu que a alma da fome é política.[5] O clamor de Betinho foi um clamor para que a justiça desse sentido humano à política. E acreditou nessa possibilidade: Disse que o ato solidário é um movimento no sentido oposto a tudo o que se produziu até agora, que é uma mudança de paradigma: “como um olhar novo que mostra todas as relações, (...) restabelecendo as bases de uma reconstrução radical de toda a sociedade. Se a exclusão produziu a miséria, a união destruirá a produção da miséria, produzirá a cidadania plena, geral e irrestrita”.[6]

Quando a justiça é negada, a política torna-se escrava do poder. Perde o eixo da vida da ação política, já que a injustiça só será vencida pelo reconhecimento da dignidade da pessoa, e essa é uma tarefa política. Para conquistar tal dignidade, o poder deve ser exercido. Assim, a síntese deste diálogo pertinente entre cristianismo e política é a justiça. Esta é razão de ser de um partido de trabalhadores. Mas para entender tal relação é necessário compreender o mito fundante petista e o que ele representou. O mito de origem do Partido dos Trabalhadores é o socialismo, traduzido principalmente na experiência da revolução cubana. Essa realidade pode ser vista na preocupação sempre presente de defesa da revolução cubana, de seus líderes e de suas ações políticas, mesmo as mais discutíveis. 

A origem é o que faz emergir. Este aparecimento dá lugar a algo que não existia antes, que produz uma consciência própria, diferente da origem. A realidade daquilo que um partido de trabalhadores é está colocado, mas também é algo que lhe é próprio. É uma tensão entre o ser-posto e o ser-próprio, já que a origem não liberta. Não se pode dizer que o PT era e que não é mais. Isto porque, a origem puxa, segura firme: é ela que estabelece o PT como algo, mas, também para o PT ser-posto no mundo significa amadurecer, envelhecer e, inclusive, morrer. 


Notas

[1] Jorge Pinheiro dos Santos, “Teologia da Libertação e exclusão no século 21”, in Etienne Higuet (org.), Teologia e Modernidade, São Paulo, Fonte Editorial, 2005, pp. 171-182. 
[2] Paul Tillich, Amor, poder e justiça, São Paulo, Novo Século, 2004, p. 109. Amour, pouvoir et justice, Analyses ontologiques et applications éthiques, Revue d’Histoire et de Philosophie Religieuses, Paris, Presses Universitaires de France, 1963 et 1964, números 4 e 5. Love, Power and Justice, Ontological Analyses and Ethical Applications, Nova York, Londres, Oxford University Press, 1954. 
[3] Paul Tillich, Amor, poder e justiça, op. cit., p. 109. 
[4] Jorge Pinheiro, Somos a imagem de Deus, caminhos para o diálogo da teologia com a brasilidade, São Paulo, Editora Ágape, 2001, pp. 58-62. 
[5] Herbert de Souza e Carla Rodrigues, “A Alma da Fome é Política”, Jornal do Brasil, 12.09.1993, apud, Ética e cidadania, São Paulo, Moderna, 1995, pp.22-25. 
[6] Herbert de Souza e Carla Rodrigues, “A Alma da Fome é Política”, op. cit. pp. .22-25.



E como dissemos acima: a origem é o que faz emergir. Este aparecimento dá lugar a algo que não existia antes, que produz uma consciência própria, diferente da origem. A realidade daquilo que um partido de trabalhadores é está colocado, mas também é algo que lhe é próprio. É uma tensão entre o ser-posto e o ser-próprio, já que a origem não liberta. Não se pode dizer que o PT era e que não é mais. Isto porque, a origem puxa, segura firme: é ela que estabelece o PT como algo, mas, também para o PT ser-posto no mundo significa amadurecer, envelhecer e, inclusive, morrer


samedi 27 août 2016

Um pouco de economia, para pensar o mundo hoje

Giovanni ARRIGHI 
La globalización, la soberanía estatal y la interminable acumulación del capital

Versión revisada de la ponencia presentada en la Conferencia sobre “Estados y Soberanía en la Economía Mundial,” Universidad de California, Irvine, del 21 al 23 de febrero de 1997. Con el agradecimiento del autor a Beverly Silver, David Smith, Dorie Solinger y Steven Topik por sus muy útiles comentarios sobre la anterior versión del texto.

Publicado en Iniciativa Socialista número 48, marzo 1998, con el agradecimiento de la revista al autor por autorizar la traducción y publicación del trabajo.

“Los tiempos de cambio son también tiempos de confusión”, observa John Ruggie. “Las palabras pierden su significado habitual, y nuestros pasos se vuelven inseguros sobre el que era, anteriormente, un terreno conocido” (1994: 553). Cuando lo que buscamos es caminar firmemente sobre conceptos aparentemente bien establecidos, como Stephen Krasner (1997) hace con el de “soberanía”, descubrimos que su uso tradicional está en sí mismo preso en una confusión irremediable. Y cuando acuñamos nuevos términos, tales como “globalización”, para capturar la novedad de las condiciones emergentes, agravamos la confusión con un vertido negligente de vino viejo en nuevas botellas. El propósito de este trabajo es mostrar que, a fin de aislar lo que es verdaderamente nuevo y anómalo en las transformaciones en marcha del capitalismo mundial y en la soberanía estatal, debemos previamente reconocer qué aspectos clave de estas transformaciones no son totalmente nuevos o lo son en cierto grado pero no en su naturaleza.

Comenzaré por argumentar que mucho de lo que se conoce con la denominación de “globalización” ha sido de hecho una tendencia recurrente del capitalismo mundial desde el inicio de los tiempos modernos. Esta recurrencia hace que la dinámica y el (los) resultado(s) probable(s) de las transformaciones actuales sean más predecibles de lo que serían si la globalización fuera un fenómeno nuevo, como piensan muchos observadores. Por tanto, yo desplazaré mi atención al modelo evolutivo que ha permitido al capitalismo mundial y al sistema subyacente de estados soberanos llegar a ser, como señala Immanuel Wallerstein (1997), “el primer sistema histórico en incluir el globo entero dentro de su geografía”. Mi pretensión será destacar que la auténtica novedad de la ola actual de globalización es que este modelo evolutivo se encuentra ahora en un “impasse”. Concluiré especulando sobre las salidas posibles de este “impasse” y sobre los tipos de nuevo orden mundial que pueden surgir como resultado de los recientes procesos de acumulación de capital a escala mundial en el Este de Asia.

I Como han señalado los críticos del concepto de globalización, muchas de las tendencias que abarca ese nombre no son nuevas del todo. La novedad de la llamada “revolución de la información” es impresionante, “pero la novedad del ferrocarril y el telégrafo, el automóvil, la radio, y el teléfono impresionaron igualmente en su día” (Harvey, 1995: 9). Incluso la llamada “virtualización de la actividad económica” no es tan nueva como puede parecer a primera vista.

Los cables submarinos del telégrafo desde la década de 1860 en adelante conectaron los mercados intercontinentales. Hicieron posible el comercio cotidiano y la formación de precios a través de miles de millas, una innovación mucho mayor que el advenimiento actual del comercio electrónico. Chicago y Londres, Melbourne y Manchester fueron conectados en tiempo real. Los mercados de obligaciones también llegaron a estar estrechamente interconectados, y los préstamos internacionales a gran escala tanto inversiones de cartera como directas- crecieron rápidamente durante este período (Hirst, 1996: 3).

En efecto, la inversión directa extranjera creció tan rápidamente que en 1913 supuso por encima del 9% del producto mundial -una proporción que todavía no había sido superada al comienzo de la década de 1990 (Bairoch y Kozul-Wright, 1996: 10). Similarmente, la apertura al comercio exterior -medido por el conjunto de importaciones y exportaciones en proporción del PIB- no era notablemente mayor en 1993 que en 1913 para los grandes países capitalistas, exceptuando a los Estados Unidos (Hirst 1996: 3-4).

Seguramente, como resaltan desde perspectivas diferentes las aportaciones de Eric Helleiner (1997) y Saskia Sassen (1997), la más espectacular expansión de las últimas dos décadas, y la mayor evidencia en el arsenal de los defensores de la tesis de globalización, no ha estado en la inversión directa extranjera o en el comercio mundial sino en los mercados financieros mundiales. Señala Saskia Sassen que “desde 1980 el valor total de los activos financieros ha aumentado dos veces y media más rápido que el PIB agregado de todas las economías industriales ricas. Y el volumen de negocio en divisas, obligaciones y participaciones de capital ha aumentado cinco veces más rápido”. El primero en “globalizarse”, y actualmente “el mayor y en muchos sentidos el único auténtico mercado global” es el mercado de divisas. Las transacciones por cambio de divisas fueron diez veces mayores que el comercio mundial en 1983; sólo diez años después, en 1992, esas transacciones eran sesenta veces mayores” (1996: 40). En ausencia de este explosivo crecimiento de los mercados financieros mundiales, probablemente no hablaríamos de globalización, y seguramente no lo haríamos hablando de un nuevo rumbo del proceso en marcha de reconstrucción del mercado mundial producido bajo la hegemonía de Estados Unidos como resultado de la Segunda Guerra Mundial. Después que todo:

Bretton Woods era un sistema global, así que lo que realmente ha ocurrido ha sido un cambio desde un sistema global (jerárquicamente organizado y en su mayor parte controlado políticamente por los Estados Unidos) a otro sistema global más descentralizado y coordinado mediante el mercado, haciendo que las condiciones financieras del capitalismo sean mucho más volátiles e inestables. La retórica que acompañó a este cambio se implicó profundamente en la promoción del término” globalización” como una virtud. En mis momentos más cínicos me encuentro a mí mismo pensando que fue la prensa financiera la que nos llevó a todos (me incluyo) a creer en la “globalización” como en algo nuevo, cuando no era más que un truco promocional para hacer mejor un ajuste necesario en el sistema financiero internacional (Harvey, 1995: 8).

Truco o no, la idea de globalización estuvo desde el comienzo entretejida con la idea de intensa competencia interestatal por la creciente volatilidad del capital y por la consiguiente subordinación más estricta de la mayoría de los estados a las dictados de las agencias capitalistas. No obstante, es precisamente en este aspecto donde las tendencias actuales recuerdan más la belle époque del capitalismo mundial, entre finales del siglo diecinueve y comienzos del siglo veinte. Como reconoce la misma Sassen:

En muchos aspectos el mercado financiero internacional desde finales del siglo XIX hasta la primera guerra mundial fue tan masivo como el de hoy...El alcance de la internacionalización puede observarse en el hecho de que en 1920, por ejemplo, Moody calificaba obligaciones emitidas por alrededor de cincuenta gobiernos para obtener fondos en los mercados de capitales de EEUU. La Depresión supuso un radical declive de esta internacionalización, hasta el punto de que sólo muy recientemente Moody ha vuelto a calificar de nuevo las obligaciones de tantos gobiernos (1996: 42-3).

En suma, los defensores cuidadosos de la tesis de la globalización coinciden con sus críticos en no considerar las transformaciones actuales como una novedad, a excepción de su escala, alcance y complejidad. Sin embargo, como he argumentado y documentado en otra parte (Arrighi, 1994), las especificidades de las transformaciones actuales sólo pueden apreciarse completamente mediante un alargamiento del horizonte de tiempo de nuestras investigaciones para comprender la vida entera del capitalismo mundial. En esta perspectiva más larga, la “financierización”, el aumento de la competencia interestatal por la movilidad del capital, el rápido cambio tecnológico y organizacional, las crisis estatales y la inusitada inestabilidad de las condiciones económicas en que operan los estados nacionales -tomados de forma individual o conjuntamente como componentes de una particular configuración temporal, todos estos son aspectos recurrentes de lo que he llamado “ciclos sistémicos de acumulación”.

En cada uno de los cuatro ciclos sistémicos de acumulación que podemos identificar en la historia del capitalismo mundial desde sus más tempranos comienzos en la Europa medieval tardía hasta el presente, los períodos caracterizados por una expansión rápida y estable de la producción y el comercio mundial invariablemente terminan en una crisis de sobreacumulación que hace entrar en un período de mayor competencia, expansión financiera, y el consiguiente fin de las estructuras orgánicas sobre las que se había basado la anterior expansión del comercio y la producción. Tomando prestada una expresión de Fernand Braudel (1984: 246) -el inspirador de la idea de los ciclos sistémicos de acumulación- estos períodos de competición intensificada, expansión financiera e inestabilidad estructural no son sino “el otoño” que sigue a un importante desarrollo capitalista. Es el tiempo en el que el líder de la expansión anterior del comercio mundial cosecha los frutos de su liderazgo en virtud de su posición de mando sobre los procesos de acumulación de capital a escala mundial. Pero es también el tiempo en el que el mismo líder es desplazado gradualmente de las alturas del mando del capitalismo mundial por un emergente nuevo liderazgo. Esta ha sido la experiencia de Gran Bretaña entre el final del siglo diecinueve y el comienzo del veinte; de Holanda en el siglo dieciocho, y de la diáspora capitalista genovesa en la segunda mitad del siglo dieciséis. ¿Puede ser también la experiencia de los Estados Unidos hoy?

Hasta el momento, la tendencia más destacada para Estados Unidos sigue siendo cosechar los frutos de su liderazgo del capitalismo mundial en la era de la Guerra Fría. Desde luego, diversos aspectos del aparente triunfo global del americanismo que resultó de la desaparición de la URSS, más que ser señales de la globalización, tienen entidad propia . Las señales más ampliamente reconocidas son la hegemonía global de cultura popular de los Estados Unidos y la importancia creciente de las agencias mundiales de gobierno influidas, desproporcionadamente, por los Estados Unidos y sus aliados más cercanos, tales como el Consejo de Seguridad de la ONU, la OTAN, el Grupo de los Siete (G-7), el FMI, el BIRF y la OMC. Menos ampliamente reconocido pero también importante es la ascendencia de un nuevo régimen legal en transacciones comerciales internacionales dominado por las firmas legales americanas y las concepciones angloamericanas de las normas mercantiles (Sassen, 1996: 12-21).

No debe minimizarse la importancia de estas señales de una americanización adicional del mundo. Pero no deben tampoco exagerarse, particularmente en lo que se refiere a la capacidad de los intereses norteamericanos para continuar configurando y manipulando en beneficio propio las estructuras orgánicas del sistema capitalista mundial. Lo más probable es que la victoria de los Estados Unidos en lo que Fred Halliday (1983) ha llamado la Segunda Guerra Fría y la americanización adicional del mundo aparecerán de forma retrospectiva como los momentos de cierre de la hegemonía mundial de Estados Unidos, así como la victoria de Gran Bretaña en la Primera Guerra Mundial y la expansión adicional de su imperio en el extranjero fueron los preludios de la desaparición final de la hegemonía mundial británica en las décadas de 1930 y 1940. Como veremos en la sección III, hay buenas razones para esperar que la desaparición de la hegemonía de EEUU siga una trayectoria diferente a la desaparición de la hegemonía británica. Pero hay igualmente buenas razones para esperar que el presente liderazgo de EEUU de la fase de expansión financiera sea un fenómeno temporal, como la análoga fase de liderazgo británico de hace un siglo.

La razón más importante es que la presente belle époque del capitalismo financiero, no menos que todos su precedentes históricos -desde la Florencia del Renacimiento a la era eduardiana de Gran Bretaña, pasando por la época de los genoveses y el período de “las pelucas” de la historia holandesa- se basa en un sistema de profundas y masivas redistribuciones de renta y riqueza desde toda clase de comunidades hacia las agencias capitalistas. En el pasado, redistribuciones de este tipo engendraron una considerable turbulencia política, económica y social. Por lo menos inicialmente, los centros organizadores de la expansión anterior de la producción y comercio mundial estaban mejor situadas para dominar y, desde luego, para beneficiarse de la turbulencia. Con el paso del tiempo, sin embargo, la turbulencia socavó el poder de los viejos centros organizadores, y preparó su desalojo por nuevos centros organizadores, capaces de promover y mantener una nueva expansión importante de la producción y el comercio mundial (Arrighi, 1994).

Resulta incierto, como veremos, si alguno de tales nuevos centros organizadores están emergiendo hoy bajo el brillo de la expansión financiera conducida por EEUU. Pero los efectos de la turbulencia engendrada por la expansión financiera actual han comenzado a preocupar incluso a los promotores e impulsores de la globalización económica. David Harvey (1995: 8, 12) señala varias de esas preocupaciones, indicando que la globalización se está convirtiendo en “un tren sin frenos causando estragos”, preocupado ante la “creciente reacción” contra los efectos de tal fuerza destructiva, sobre todo por “el ascenso de un nuevo tipo de políticos populistas” fomentado por la “sensación...de impotencia e inquietud” que se está fortaleciendo incluso en los países ricos. Más recientemente, el financiero cosmopolita de origen húngaro George Soros se ha unido al coro para señalar que la generalización global del capitalismo del “laissez-faire” ha sustituido al comunismo como la principal amenaza a una sociedad abierta y democrática.

Pese a haber amasado una gran fortuna en los mercados financieros, temo ahora que la irrefrenable intensificación del capitalismo de “laissez-faire” y la extensión de los valores de mercado a todas las esferas de la vida están poniendo en peligro nuestra sociedad abierta y democrática. El principal enemigo de la sociedad abierta ya no es, en mi opinión, la amenaza comunista sino el capitalismo.... El exceso de competencia y la escasa cooperación pueden ocasionar desigualdades insoportables e inestabilidad.... La doctrina del capitalismo de “laissez-faire” sostiene que la mejor manera de obtener el bien común es con la búsqueda sin trabas del propio interés. A menos que el propio interés sea moderado por el reconocimiento de un interés común, que debe prevalecer sobre intereses particulares, nuestro actual sistema...puede venirse abajo (Soros 1997: 45, 48).

Informando de la proliferación de escritos en la línea del de Soros, Thomas Friedman -un temprano impulsor de la idea de las virtudes de la globalización, y quien luego inventó la metáfora del “tren sin frenos”- reitera la visión de que “la integración del comercio, las finanzas y la información, que están creando una cultura y un mercado global únicos” es inevitable e imparable. Pero mientras la globalización no puede ser parada -se apresura a añadir “hay dos cosas que pueden hacerse”, presumiblemente por su propio bien: “podemos ir más rápido o más lento... Y podemos hacer más o menos para amortiguar [sus] efectos negativos” (1997: I, 15).

Hay mucho déjà vu en estos diagnósticos de la autodestructividad de los procesos no regulados de formación del mercado mundial y en los pronósticos conectados de lo que debería hacerse para remediar tal capacidad de autodestrucción. El mismo Soros compara la época actual de capitalismo triunfante de “laissez-faire” con la época similar de hace un siglo. En su visión esa época anterior fue, en cualquier caso, más estable que la presente, a causa del dominio del patrón-oro y de la presencia de un poder imperial, Gran Bretaña, dispuesto a despachar cañoneras a cualquier lugar remoto para mantener el sistema. Y aun así, el sistema se vino abajo ante el impacto de las dos guerras mundiales y el ascenso de intervencionistas “ideologías totalitarias”. Hoy, en contraste, los Estados Unidos están poco dispuestos a ser el gendarme del mundo, “y las principales monedas flotan y chocan unas contra otras como placas continentales” haciendo que la ruptura del régimen actual sea mucho más probable “a menos que aprendamos de la experiencia” (1997: 48).

Nuestra sociedad abierta y global carece de las instituciones y mecanismos necesarios para su preservación, y no hay voluntad política para crearlos. Yo culpo a la actitud predominante, la cual sostiene que la búsqueda sin obstáculos del propio interés traerá finalmente un equilibrio internacional...Tal y como están las cosas, no hace falta mucha imaginación para darse cuenta de que la sociedad abierta y global que predomina en la actualidad es probablemente un fenómeno temporal (Soros, 1997: 53-4).

Soros no hace ninguna referencia al relato, ahora clásico, del ascenso y desaparición del capitalismo decimonónico de “laissez faire”, realizado por su compatriota Karl Polanyi. No obstante, cualquier persona familiarizada con ese relato no puede dejar de resultar impactada por su anticipación de los argumentos actuales sobre las contradicciones de la globalización (sobre la permanente trascendencia del análisis de Polanyi para una comprensión de la ola actual de globalización véase, entre otros, Mittelman, 1996). Como Friedman, Polanyi vio en una ralentización del ritmo de cambio la mejor manera de preservar el cambio, yendo en una dirección determinada sin provocar conflictos sociales que acabarían en caos más que en cambio. También resaltó que únicamente un colchón protector de los efectos disociadores de las normas del mercado puede prevenir una revuelta social de autodefensa frente al sistema de mercado (1957: 3-4, 36-8, 140 -50). Y como Soros, Polanyi descartó la idea de un mercado (global) autorregulable como “una pura utopía”. Argumentó que ninguna institución de tal carácter puede existir de forma duradera “sin aniquilar la sustancia humana y la naturaleza de la sociedad (del mundo)”. En su visión, la única alternativa al desmoronamiento del sistema mundial de mercado en el periodo de entreguerras “era el establecimiento de un orden internacional dotado con un poder organizado capaz de trascender la soberanía nacional” -una dirección, sin embargo, que “estaba completamente fuera de los horizontes de aquel tiempo” (1957: 3-4, 20-22).

Ni Soros ni Polanyi proporcionan una explicación de por qué el poder mundial todavía dominante en sus respectivas épocas -los Estados Unidos hoy, Gran Bretaña en el final del siglo diecinueve y comienzo del veinte- se empecinó obstinadamente y propagó la creencia en un mercado global autorregulable, a pesar de la evidencia acumulada de que los mercados no regulados (los mercados financieros no regulados en particular) no producen equilibrio sino desorden e inestabilidad. De forma subyacente a tal obstinación podemos, sin embargo, detectar la difícil situación de un agente cuya hegemonía declina y que ha llegado a ser completamente dependiente, para poder beneficiarse suficientemente de ese poder. Se trata de que el agente hegemónico no puede asegurar ya más el desarrollo ordenado del proceso de amplia y profunda integración del comercio mundial y financiero que, cuando estaba en la cumbre de su poder, promovió y organizó. Es como si el poder hegemónico declinante no pudiera saltar fuera del “tren sin frenos” de la especulación financiera desrregulada, ni desviar el tren hacia una vía menos auto-destructiva.

Históricamente, la reconducción del capitalismo mundial hacia una vía más creativa que destructiva ha tenido como premisa la emergencia de nuevos “vehículos tendedores de vías”, tomando prestada una expresión de Michael Mann (1986: 28). Es decir, la expansión del capitalismo mundial a sus dimensiones globales actuales no ha discurrido a lo largo de una vía única colocada de una vez por todas hace quinientos años. Más bien, ha discurrido mediante varios cambios de tendido de nuevas vías que no existieron hasta que unos específicos complejos de agentes gubernamentales y comerciales desarrollan la voluntad y la capacidad para conducir el sistema entero en la dirección de una cooperación más extensa o más profunda. La hegemonía mundial de las Provincias Unidas en el siglo diecisiete, del Reino Unido en el siglo diecinueve, y de los Estados Unidos en el siglo veinte, han sido “vehículos tendedores de vías” de este tipo (cf. Taylor, 1994: 27). Al conducir el sistema en una nueva dirección, ellos también lo transformaron. Y son estas transformaciones consecutivas las que debemos observar para poder identificar las auténticas novedades de la ola actual de expansión financiera.

II La formación de un sistema capitalista mundial, y su transformación subsiguiente de ser un mundo entre muchos mundos hasta llegar a ser el sistema socio-histórico del mundo entero, se ha basado en la construcción de organizaciones territoriales capaces de regular la vida social y económica y de monopolizar los medios de coacción y violencia. Estas organizaciones territoriales son los estados, cuya soberanía se ha dicho que va a ser socavada por la ola actual de expansión financiera. En realidad, la mayoría de los miembros del sistema interestatal nunca tuvieron las facultades que se está diciendo que los estados van a perder bajo el impacto de la ola actual de expansión financiera; e incluso los estados que tuvieron esos poderes durante un tiempo no los tuvieron en otro.

En cualquier caso, las olas de expansión financiera nacen de una doble tendencia. Por un lado, las organizaciones capitalistas responden a la sobreacumulación de capital que limita lo que puede reinvertirse lucrativamente en los canales establecidos de comercio y producción, sosteniendo en forma líquida una proporción creciente de sus rentas corrientes. Esta tendencia crea lo que podemos llamar las “condiciones de oferta” de las expansiones financieras -una superabundante masa de liquidez que puede movilizarse directamente o por medio de intermediarios hacia la especulación, prestando y generando endeudamiento. Por otra parte, las organizaciones territoriales responden a las mayores limitaciones presupuestarias que resultan del lento descenso en la expansión de comercio y producción mediante una intensa competencia entre ellas para captar el capital que se acumula en los mercados financieros. Esta tendencia crea lo que podemos llamar las “condiciones de demanda” de las expansiones financieras. Todas las expansiones financieras, pasadas y presentes, son el resultado del desarrollo desigual y combinado de estas dos tendencias complementarias (Arrighi, 1997).

Todos estamos muy impresionados, y debemos estarlo, por el crecimiento astronómico de capital que busca su valorización en los mercados financieros mundiales y por la intensa competencia entre unos estados y otros en su intento de obtener, para sus propias necesidades, una fracción de ese capital. Sin embargo, deberíamos ser conscientes del hecho de que en las raíces de este crecimiento astronómico se encuentra una escasez básica de salidas lucrativas para la masa creciente de ganancias que se acumula en las manos de las agencias capitalistas. Esta escasez básica hace que la búsqueda de ganancias por esas agencias capitalistas sea dependiente de la ayuda de los estados, así como los estados son dependientes, en la búsqueda de sus propios objetivos, de las agencias capitalistas. No deberíamos sorprendernos, por lo tanto, si algunos estados son reforzados más que debilitados por la expansión financiera. Como Eric Helleiner (1997) señala, los estados del este de Asia han permanecido inmunes al tipo de presiones que han conducido a otros estados, en otras zonas, a “desregular” sus sistemas financieros domésticos para atraer capital. Y Richard Stubbs (1997) muestra que, como resultado del Acuerdo Plaza del G-7 de 1985, los estados del ASEAN han sido literalmente inundados por capitales que buscaban inversiones dentro de sus dominios -un desarrollo que ha mejorado más que empeorado su libertad de acción en relación con las fuerzas externas, tanto económicas como políticas. La lucha de los estados africanos, latinoamericanos, de Europa Oriental, de Europa Occidental, norteamericanos y australasianos por el capital móvil, han sido así acompañados por una lucha del capital móvil por subirse al carro de la expansión económica del este y sudeste asiático.

En la sección final de este artículo discutiremos el significado de esa excepción que suponen el este y sudeste asiático. Por ahora permítasenos simplemente resaltar que las expansiones financieras del pasado, no menos que la del presente, han sido todas momentos de pérdida de poder de algunos estados -incluyendo, incluso, los estados que habían sido los “vehículos tendedores de vías” del capitalismo mundial en las épocas que estaban acabando- y el fortalecimiento simultáneo de otros estados, incluyendo los que, en su momento oportuno, llegaron a ser los nuevos “vehículos tendedores de vías” del capitalismo mundial. Aquí aparece el principal significado de los ciclos sistémicos de acumulación. Estos ciclos no son simples ciclos. Son también etapas en la formación y expansión gradual del sistema mundial capitalista hasta sus dimensiones globales actuales.

Este proceso de globalización ha surgido mediante la aparición, en cada etapa, de centros organizadores de mayor escala, alcance y complejidad que los centros organizadores de la etapa anterior. En esta secuencia, las ciudades-estado como Venecia y la diáspora genovesa de negocios trasnacionales fueron reemplazadas en la alta dirección del sistema mundial capitalista por un proto-estado nacional como Holanda y sus compañías de navegación, que fue reemplazado a su vez por el estado-nación británico, un imperio formal que comprendía las redes mundiales informales de negocios que, por su parte, fue reemplazado por los Estados Unidos, una potencia de dimensión continental, con su panoplia de corporaciones trasnacionales y sus extendidas y lejanas redes de bases militares casi permanentes en el extranjero. Cada sustitución fue marcada por una crisis de las organizaciones territoriales y no territoriales que habían dirigido la expansión en la etapa anterior. Pero fue marcada también por la emergencia de nuevas organizaciones con mayores capacidades que las organizaciones desplazadas para liderar el capitalismo mundial hacia una nueva expansión (Arrighi, 1994: 13-16, 74-84, 235-8, 330-1).

Por tanto, ha habido una crisis de los estados en cada expansión financiera. Como Robert Wade (1996) ha anotado, mucho de lo que se ha hablado recientemente de globalización y de la crisis del “estado-nación” simplemente es el reciclaje de argumentos que estuvieron de moda hace cien años (véase también Lie 1996: 587). Cada nueva crisis sucesiva, sin embargo, afecta a un tipo diferente de estado. Hace cien años la crisis de los “estados-nación” afectaba a los estados del viejo núcleo europeo en relación a los estados de dimensión continental que se estaban formando sobre el perímetro exterior del sistema eurocéntrico, en particular los Estados Unidos. El irresistible crecimiento del poder y la riqueza de los Estados Unidos, y del poder de la URSS (aunque, en este caso, no de su riqueza) en el curso de las dos guerras mundiales y sus secuelas posteriores, confirmó la validez de las expectativas ampliamente sostenidas de que los estados del viejo núcleo europeo estaban obligados a vivir en la sombra de los dos gigantes que les flanqueaban, a menos que ellos pudieran por sí mismos lograr una dimensión continental. La crisis actual de los “estados-nación”, en contraste, afecta a esos mismos gigantescos estados.

El súbito desplome de la URSS ha clarificado y, a la vez, oscurecido esta nueva dimensión de la crisis. Ha clarificado la nueva dimensión al mostrar cuan vulnerable había llegado a ser la potencia más extensa y más autosuficiente, y el segundo mayor poder militar del mundo, a las fuerzas de la integración económica global. Pero ha oscurecido la verdadera naturaleza de la crisis al provocar una amnesia general sobre el hecho de que la crisis del poder mundial de EEUU precedió al derrumbe de la URSS y ,con altibajos, ha continuado tras el final de la Guerra Fría. A fin de identificar la verdadera naturaleza de la crisis de los estados gigantes que han dominado en la era de Guerra Fría debemos distinguir esa crisis respecto del recorte a largo plazo de la soberanía nacional que la globalización del sistema de estados soberanos ha supuesto para todos, salvo para sus miembros más poderosos.

El principio de que los estados independientes, cada uno de los cuales reconoce la autonomía jurídica y la integridad territorial de los otros, deberían coexistir en un sistema político único se estableció por primera vez bajo la hegemonía holandesa con los Tratados de Westfalia. El proceso de globalización de la organización territorial del mundo de acuerdo a este principio, como señala Harvey (1995: 7), necesito varios siglos y una buena dosis de violencia para completarse. Más importante es que, como frecuentemente sucede con los programas políticos, la soberanía westfaliana llegó a ser universal mediante interminables violaciones de sus prescripciones formales y una gran metamorfosis de su significado sustantivo.

Estas violaciones y metamorfosis hacen evidentemente plausible la pretensión de Krasner de que, empíricamente, la soberanía westfaliana es un mito (1997). Sin embargo, a esto deberíamos agregar que no ha sido más mito que las ideas del imperio de la ley, del contrato social, de la democracia, sea liberal, social o cualquier otra cosa, y que, como todos estos otros mitos, ha sido un ingrediente clave en la formación y consiguiente globalización del moderno sistema de poder. La pregunta realmente más interesante, por lo tanto, no es si el principio westfaliano de soberanía nacional ha sido violado ni cómo lo ha sido. Más bien se trataría de si el principio ha orientado y limitado la acción estatal y cómo, con el paso del tiempo, el resultado de esta acción ha transformado el significado sustantivo de la soberanía nacional.

Cuando el principio de soberanía estatal fue establecido por primera vez, bajo la hegemonía holandesa, se utilizó para regular las relaciones entre los estados de Europa Occidental. Ese principio sustituyó la idea de una autoridad y una organización imperial-eclesiástica, que opera por encima de los estados objetivamente soberanos, por la idea de estados jurídicamente soberanos que confían en la ley internacional y en el equilibrio de poder para regular sus mutuas relaciones -en palabras de Leo Gross, “una ley que opera más bien entre los estados que por encima de ellos y un poder que opera más bien entre los estados que por encima de ellos” (1968: 54-5). La idea se aplicó únicamente a Europa, que de esa manera se convirtió en una zona de “amistad” y comportamiento “civilizado” incluso en épocas de guerra. En contraste, el resto del mundo, más allá de Europa, se convirtió en una zona residual de comportamientos distintos, en la que no se aplicaban las normas de la civilización y donde los rivales podrían ser simplemente aniquilados (Taylor, 1991: 21-2).

Durante alrededor de 150 años después de la Paz de Westfalia el sistema funcionó muy bien, tanto asegurando que ningún estado singular llegara a ser tan fuerte como para dominar a todos los demás, como permitiendo a los grupos dominantes de cada estado consolidar su soberanía doméstica. En todo caso, el equilibrio de fuerzas se reprodujo mediante unas interminables series de guerras, crecientemente intensivas en capital, y mediante una extensión y profundización de la expansión europea en el mundo no europeo. A lo largo del tiempo, estas dos tendencias alteraron el equilibrio de poder tanto entre los estados como entre los grupos dominantes respectivos, provocando finalmente una quiebra del sistema de Westfalia como resultado de la Revolución francesa y las guerras napoleónicas (Arrighi, 1994: 48-52).

Cuando los principios de Westfalia se reafirmaron bajo la hegemonía británica, en las condiciones que resultaron de las guerras napoleónicas, su alcance geopolítico se extendió para incluir los estados coloniales de Norteamérica y Sudamérica que habían conseguido la independencia en la víspera o como resultado de las guerras francesas. Pero así como el alcance geopolítico de los principios de Westfalia se expandieron, su significado sustantivo cambió de manera radical, fundamentalmente porque el equilibrio de poder empezó a operar más por encima de los estados que entre ellos. Seguramente, el equilibrio continuó siendo operativo entre los estados continentales de Europa, donde durante la mayor parte del siglo diecinueve, el Concierto europeo de naciones y el cambiante sistema de alianzas entre los poderes continentales aseguró que ninguno de ellos llegara a ser tan fuerte como para dominar a todos los otros. Globalmente, sin embargo, el acceso privilegiado a los recursos extra-europeos permitió a Gran Bretaña actuar más bien como un gobernador que como una pieza de los mecanismos del equilibrio de poder. Además, los masivos ingresos tributarios procedentes de su imperio en la India permitieron a Gran Bretaña adoptar unilateralmente una política de libre comercio que, en grados variables, “enjaulara” a todos los otros miembros del sistema interestatal en una englobante división del trabajo mundial centrada en Gran Bretaña. Temporal e informalmente, pero sin duda efectivamente, el sistema de estados jurídicamente soberanos del siglo diecinueve era regido objetivamente por Gran Bretaña con la fuerza de sus englobantes redes mundiales de poder (Arrighi, 1994: 52 -5).

Mientras el equilibrio de poder durante los 150 años que siguieron a la Paz de Westfalia se reprodujo mediante una serie interminable de guerras, la dirección británica del equilibrio de poder posterior a la Paz de Viena produjo, en palabras de Polanyi, “un fenómeno sin precedentes en los anales de la civilización occidental: los cien años de paz [europea] comprendidos entre 1815 y 1914” (1957: 5). Esta paz, sin embargo, lejos de contener, dio un nuevo gran impulso a la carrera interestatal de armamentos y a la extensión y profundización de la expansión europea en el mundo no-europeo. Desde la década de 1840 en adelante, ambas tendencias se aceleraron rápidamente en un ciclo de autorrefuerzo por medio del cual los adelantos tecnológicos y en la organización militar se mantenían, y eran mantenidos, por la expansión económica y política a expensas de los pueblos y gobiernos todavía excluidos de los beneficios de la soberanía westfaliana (McNeill, 1982: 143).

El resultado de este ciclo autorreforzado fue lo qué William McNeill llama “la industrialización de la guerra”, un consiguiente nuevo salto importante en el coste humano y financiero de hacer la guerra, la emergencia de imperialismos competidores, y el colapso final del orden mundial británico del siglo diecinueve, conjuntamente con violaciones generalizadas de los principios westfalianos. Cuando estos principios fueron de nuevo reafirmados bajo la hegemonía de EEUU, después de la Segunda Guerra Mundial, su alcance geopolítico llegó a ser universal tras la descolonización de Asia y de Africa. Pero su significado se vio recortado adicionalmente.

La misma idea de un equilibrio de poder que opera entre los estados, más que por encima de ellos, y que asegura su igual soberanía real -una idea que había llegado a ser ya una ficción durante la hegemonía británica- fue desechada incluso como ficción. Como Anthony Giddens (1987: 258) ha observado, la influencia de EEUU sobre la formación del nuevo orden global, tanto con Wilson como con Roosevelt, “representó una tentativa de incorporación global de prescripciones constitucionales de EEUU más que una continuación de la doctrina del equilibrio de poder”. En una era de industrialización de la guerra y de centralización creciente de capacidades político-militares en poder de un número pequeño y menguante de estados, esa doctrina tenía poco sentido como descripción de las relaciones reales de poder entre los miembros del sistema interestatal globalizado, y no tenía más sentido como prescripción para garantizar la soberanía de los estados. La “igualdad de soberanía” sostenida en el primer párrafo del Artículo Dos de la Carta de las Naciones Unidas para todos sus miembros era así “especificamente imaginada para ser más bien legal que real -los grandes poderes tendrían derechos especiales, así como también deberes, proporcionados a sus superiores capacidades” (Giddens 1987: 266).

La santificación de estos derechos especiales en la Carta de Naciones Unidas institucionalizó, por primera vez desde Westfalia, la idea de una autoridad y organización supraestatal que restringiera jurídicamente la soberanía de todos salvo la de los estados más poderosos. Estas restricciones jurídicas, sin embargo, son pálidas en comparación con las restricciones objetivas impuestas por los dos estados más poderosos -los Estados Unidos y la URSS- sobre sus respectivas, y mutuamente reconocidas, “esferas de influencia”. Las restricciones impuestas por la URSS confiaron fundamentalmente en las fuentes del poder político-militar y tenían alcance regional, limitadas como estaban, a sus satélites europeos orientales. Al contrario, las impuestas por los Estados Unidos eran de alcance global y confiaban en un arsenal de recursos mucho más complejo.

La lejana y extensa red de bases semipermanentes en el extranjero mantenida por los Estados Unidos en la era de la Guerra Fría, en palabras de Krasner, “no tenía precedentes históricos; ningún estado había colocado anteriormente sus propias tropas sobre el territorio soberano de otros estados en una cantidad tan amplia durante un período de paz tan largo” (1988:21). Este régimen político-militar mundializado y globalizador, centrado en los Estados Unidos, complementó y fue complementado por el sistema monetario mundial, también centrado en Estados Unidos, instituido en Bretton Woods. Estas dos redes interconectadas de poder, una militar y otra financiera, permitieron a Estados Unidos asumir su hegemonía para regir el sistema globalizado de estados soberanos con un alcance que iba totalmente más allá del horizonte, no sólo de los holandeses del siglo diecisiete, sino también del imperio británico del siglo diecinueve.

En suma, la formación de complejos gubernamentales cada vez más poderosos, y capaces de conducir al sistema moderno de estados soberanos a su dimensión global actual, ha transformado también la misma estructura del sistema por una destrucción gradual del equilibrio de poder sobre la que descansó originalmente la igualdad de soberanía de las unidades del sistema. Así como la categoría jurídica de estado llegó a ser universal, la mayoría de los estados fueron privados de iure o de facto de las prerrogativas históricamente asociadas con la soberanía nacional. Incluso estados poderosos como el Japón y la antigua Alemania Occidental han sido descritos como “semisoberanos” (Katzenstein, 1987; Cumings, 1997). Y Robert Jackson (1990: 21) ha acuñado la expresión “cuasi-estados” para referirse a las ex-colonias que han conseguido categoría jurídica de estados pero carecen de las capacidades necesarias para efectuar las funciones gubernamentales tradicionalmente asociadas con la categoría de estado independiente. Semisoberanía y cuasi-estados son el resultado de las tendencias a largo plazo del moderno sistema mundial, ambos fenómenos claramente materializados antes de la expansión financiera global de las décadas de 1970 y 1980. Lo qué sucedió en esas décadas es que la capacidad de las dos superpotencias para regir las relaciones interestatales dentro, y a través, de sus esferas respectivas de influencia disminuyó frente a las fuerzas que ellos mismos habían desencadenado pero no pudieron controlar.

La más importante de estas fuerzas tuvo su origen en las nuevas formas de integración económica mundial, crecidas bajo el carapazón del poder militar y financiero de Estados Unidos. A diferencia de la integración económica mundial del siglo diecinueve, instituida y centrada en Gran Bretaña, el sistema de integración económica global, instituido y centrado en los Estados Unidos en la era de la Guerra Fría, no descansó sobre el comercio libre unilateral del poder hegemónico ni sobre la extracción de ingresos tributarios procedentes de un imperio territorial en el extranjero. Más bien, descansó sobre un proceso de comercio bilateral y multilateral liberalizado, estrechamente controlado y administrado por los Estados Unidos, actuando de forma concertada con sus aliados políticos más importantes, y sobre la base de un trasplante global de las estructuras orgánicas de integración vertical de las corporaciones norteamericanas (Arrighi, 1994: 69-72).

La liberalización administrada del mercado y el trasplante global de las corporaciones norteamericanas sirvieron para mantener y expandir el poder mundial de Estados Unidos, y para reconstituir relaciones interestatales capaces de contener, no sólo las fuerzas de la revolución comunista, sino también las fuerzas nacionalistas que habían desgarrado y finalmente destruido el sistema británico de integración económica global del siglo diecinueve. En la obtención de estos objetivos, como Robert Gilpin (1975: 108) ha resaltado en referencia a la política de Estados Unidos en Europa, el trasplante de las corporaciones norteamericanas al extranjero tuvo prioridad sobre la liberalización del mercado. Según el punto de vista de Gilpin, la relación de estas corporaciones de EEUU con el poder mundial fue parecido a la articulación de las compañías de flete al poder británico en los siglos diecisiete y dieciocho: “la corporación multinacional estadounidense, como sus ancestros mercantiles, ha desempeñado un papel importante en el mantenimiento y expansión del poder de los Estados Unidos” (1975: 141-2).

Esto es cierto, pero sólo hasta cierto punto. El trasplante global de las corporaciones norteamericanas mantuvo y expandió el poder mundial de los Estados Unidos, estableciendo derechos sobre rentas obtenidas en paises extranjeros y el control sobre los recursos de dichos paises. En última instancia, estos derechos y controles constituyeron la única diferencia importante entre el poder mundial de los Estados Unidos y el de la URSS y, por implicación, la única razón importante por la cual la declinación del poder mundial de EEUU, a diferencia del de la URSS, ha tenido lugar gradualmente en lugar de catastróficamente (para una madrugadora afirmación de esta diferencia, véase Arrighi, 1982: 95-7).

No obstante, la relación entre la expansión trasnacional de las corporaciones estadounidense y el mantenimiento y la expansión del poder estatal norteamericano ha tenido tanto de contradictorio como de complementario. Por una parte, los derechos sobre rentas extranjeras conseguidos por las filiales de corporaciones de EEUU no se tradujeron en un aumento proporcional en los ingresos de los residentes de EEUU ni en los ingresos tributarios del gobierno de Estados Unidos. Al contrario, precisamente cuando la crisis fiscal del estado del bienestar- estado militar de Estados Unidos llegó a ser agudo debido al impacto de la Guerra de Vietnam, una proporción creciente de las rentas y de la liquidez de las corporaciones norteamericanas, en lugar de ser repatriadas, volaron hacia los mercados monetarios “off-shore”. En palabras de Eugene Birnbaum, del Chase Mannhattan Bank, el resultado fue “la acumulación de un volumen inmenso de fondos líquidos y mercados -el mundo financiero del eurodólar- al margen de la autoridad reguladora de cualquier país o agencia” (citado por Frieden, 1987: 85; con cursiva en el original).

De forma interesada la organización del mundo financiero del eurodólar -como las organizaciones de la diáspora de negocios genovesa del siglo dieciséis y como la diáspora de los negocios chinos desde tiempos premodernos hasta nuestros días- ocupa lugares pero no se define por los lugares que ocupa. El auto-llamado mercado de eurodólares -como bien lo caracterizó antes de la llegada de las autopistas de la información Roy Harrod (1969: 319)- “no tiene sedes o edificios de su propiedad... Físicamente consiste solamente en una red de teléfonos y aparatos de telex alrededor del mundo, teléfonos que pueden usarse para otros propósitos además de los negocios sobre eurodólares”. Este “espacio de flujos” no se encuentra bajo ninguna jurisdicción estatal. Y aunque Estados Unidos tenga todavía algún acceso privilegiado a sus servicios y a sus recursos, este acceso privilegiado tiene el coste de una creciente subordinación de las políticas de EEUU a los dictados de las altas finanzas no territoriales.

Igualmente importante es que la expansión trasnacional de las corporaciones estadounidenses ha provocado, a partir de cierto momento, respuestas competitivas tanto de los viejos como nuevos centros de acumulación de capital, debilitados, y finalmente en retroceso, por las exigencias norteamericanas sobre rentas y recursos extranjeros. Como Alfred Chandler (1990: 615-16) ha indicado, desde el tiempo en que Servan-Schreiber llamó a sus seguidores europeos a responder al “desafío americano” -un desafío que según el punto de vista de Servan-Schreiber no era ni financiero ni tecnológico sino “la extensión a Europa de una organización que es todavía un misterio para nosotros”-, un número creciente de empresas europeas han encontrado formas y medios efectivos de responder al desafío y de iniciar sus propios desafíos, incluso en el mercado de EEUU, a la hegemonía de las corporaciones estadounidenses. En la década de 1970, el valor acumulado de la inversión directa extranjera no estadounidense (la mayor parte procedente de Europa Occidental) creció una vez y media más rápido que el de la inversión directa extranjera de Estados Unidos. Para los años 80, se estimó que había alrededor de 10.000 corporaciones trasnacionales de todos los origenes nacionales, y al comienzo de los 90 en torno a tres veces más (Stopford y Dunning, 1983: 3; Ikeda, 1996: 48).

Este explosivo crecimiento del número de corporaciones trasnacionales, fue acompañado por una disminución drástica en la importancia de los Estados Unidos como fuente de inversión directa extranjera, y por un aumento de su importancia como receptor de la misma. En otras palabras, las formas trasnacionales de organización de los negocios iniciadas por el capital de EEUU, habían dejado rápidamente de ser un “misterio” para un creciente gran número de competidores extranjeros. Para la década de 1970, el capital de Europa Occidental había descubierto todos sus secretos y había comenzado a competir de nuevo con las corporaciones de EEUU en casa y en el extranjero. Para los años 80, llegó el turno del capital del Este de Asia para competir nuevamente con el capital estadounidense y europeo-occidental, lo cual hizo mediante la formación de un nuevo tipo de organización comercial trasnacional -una organización que se arraigó profundamente en las virtudes de la historia y de la geografía de la región, y que combinó las ventajas de la integración vertical con la flexibilidad de las redes informales de negocio (Arrighi, Ikeda e Irwan, 1993).

Lo importante no es cual es la fracción particular de capital vencedora, sino que el resultado de cada ronda de la pugna competitiva fue un aumento adicional en el volumen y densidad de la red de intercambios que conectaba pueblos y territorios, atravesando jurisdicciones políticas tanto regional como globalmente. Esta tendencia ha supuesto una contradicción fundamental para el poder global de los Estados Unidos -una contradicción que se ha agravado en lugar de mitigarse tras el colapso del poder soviético y el consiguiente final de la Guerra Fría. Por una parte, el gobierno de los Estados Unidos ha quedado apresado en su inaudita capacidad militar global que, tras el desplome de la URSS, no tiene paralelo. Estas capacidades continúan siendo necesarias, no tanto como una fuente de “protección” para los negocios estadounidenses en el extranjero, sino sobre todo como la fuente principal del liderazgo del EEUU en alta tecnología tanto en su propio país como en el extranjero. Por otra parte, la desaparición de la “amenaza” comunista ha hecho aun más difícil de lo que ya lo era para el gobierno de los Estados Unidos el movilizar los recursos humanos y financieros necesarios para que su capacidad militar esté en disposición de uso efectivo, o simplemente para mantenerla. De aquí derivan las divergentes valoraciones sobre el alcance real del poder global norteamericano en la era posterior a la guerra fría.

“Ahora es el momento de la unipolarización”, se pavonea un comentarista triunfalista. “No hay sino un poder de primera clase y no hay ninguna perspectiva en el futuro inmediato de un poder que pueda rivalizar con él”. Pero un alto funcionario de la política exterior objeta: “sencillamente, no tenemos la fuerza precisa, no tenemos la influencia, ni la inclinación para el uso de la fuerza militar. No tenemos el dinero necesario para poder realizar el tipo de presión que producirá resultados positivos dentro de poco tiempo” (Ruggie, 1994, 553).

III La auténtica peculiaridad de la fase actual de expansión financiera del capitalismo mundial se encuentra en la dificultad de proyectar los modelos evolutivos pasados hacia el futuro. En todas las expansiones financieras pasadas, los viejos centros organizadores del poder declinante eran alcanzados por un poder ascendente, el de nuevos centros organizadores capaces de sobrepasar el poder de sus predecesores no sólo financiera sino también militarmente. Esto fue el caso de los holandeses respecto a los genoveses, de los británicos respecto a los holandeses y de los norteamericanos en relación a los británicos.

En la actual expansión financiera, en contraste, el declinante poder de los viejos centros organizadores no se ha asociado mediante una fusión en un orden superior, sino con una escisión entre poder militar y financiero. Mientras el poder militar se ha centralizado aún más en manos de los Estados Unidos y de sus más estrechos aliados occidentales, el poder financiero se ha llegado a dispersar entre un conjunto multicolor de organizaciones territoriales y no territoriales que, de facto o de iure, no pueden ni remotamente aspirar a alcanzar las capacidades militares globales de los Estados Unidos. Esta anomalía señala una ruptura fundamental con el modelo evolutivo que ha caracterizado la expansión del capitalismo mundial durante los últimos 500 años. La expansión a través de la trayectoria establecida se encuentra en un “impasse” -un “impasse” que se refleja en la generalizado sensación de que la modernidad e incluso la historia está llegando a su final, que hemos entrado en una fase de turbulencia y caos sistémico sin precedentes en la era moderna (Rosenau, 1990: 10; Wallerstein, 1995: 1, 268), o que una “niebla global” ha descendido sobre nosotros para cegarnos en nuestro camino hacia el tercer milenio (Hobsbawm 1994: 558-9). Mientras el “impasse”, la turbulencia y la niebla son totalmente verdaderas, una mirada más cercana a la extraordinaria expansión económica del Este de Asia (que de aquí en adelante entenderemos que incluye el sudeste asiático) puede proporcionar algunas enseñanzas sobre el auténtico nuevo tipo de orden mundial que puede emerger en los márgenes del caos sistémico que se avecina.

En un reciente análisis comparativo de tasas de crecimiento económico desde la mitad de la década de 1870, el Union Bank de Suiza no encontró “nada comparable con la experiencia de crecimiento económico de Asia [del Este de Asia] durante las tres últimas décadas”. Otras regiones crecieron tan rápidamente durante las trastornos de épocas de guerra (por ejemplo, Norteamérica durante la Segunda Guerra Mundial) o después de tales trastornos (por ejemplo, Europa Occidental después de la Segunda Guerra Mundial). Pero “las tasas de crecimiento de la renta anual por encima del ocho por ciento obtenidas por numerosas economías asiáticas [del sudeste asiático] desde el final de los años sesenta no tienen precedentes en 130 años de historia económica documentada”. Este crecimiento es aún más notable por haberse registrado a la vez que en el resto del mundo se producía un total estancamiento, o estaba cerca del estancamiento, y por haberse “propagado como una ola” desde Japón a los Cuatro Tigres (Corea del Sur, Taiwan, Singapur y Hong Kong), y de allí a Malasia y Tailandia, y después a Indonesia, China y, más recientemente, a Vietnam (Union Bank of Switzerland, 1996: 1).

Incluso más impresionantes aún han sido los avances del Este de Asia en el campo de las altas finanzas. La participación japonesa en el total de activos de los cincuenta mayores bancos del mundo según la clasificación de Fortune se incrementó desde el 18% en 1970, hasta el 27% en 1980 y el 48% en 1990 (Ikeda, 1996). Por reservas en divisas, la participación del Este de Asia en los diez mayores holdings bancarios se incrementó del 10% en 1980 al 50% en 1994 (Japan Almanac, 1993 y 1997). Resulta claro que si los Estados Unidos no tienen “el dinero necesario para poder realizar el tipo de presión que producirá resultados positivos” -como previsoramente deploraba el alto responsable de la política exterior de EEUU-, los estados del Este de Asia, o al menos algunos de ellos, tienen todo el dinero necesario para ser inmunes al tipo de presión que está llevando a los estados de todo el mundo -incluidos los Estados Unidos- a someterse a los dictados de la creciente movilidad y volatilidad del capital (véase la sección II).

Irónicamente, esta altamente significativa, aunque parcial, inversión de la suerte de los Estados Unidos por una parte, y de los estados del este asiático por otra, se originó por las mayores injerencias de Estados Unidos sobre la soberanía de los estados del este asiático desde el inicio de la Guerra Fría. La ocupación militar unilateral de Japón en 1945 y la división de la región como consecuencia de la Guerra de Corea en dos bloques antagónicos crearon, en palabras de Bruce Cumings unos proamericanos “regímenes verticales solidificados mediante tratados bilaterales de defensa (con Japón, Corea del Sur, Taiwan y Filipinas) y dirigidos por un Departamento de Estado que dominaba sobre los ministerios de asuntos exteriores de estos cuatro paises”.

Todos se convirtieron en estados semisoberanos, profundamente penetrados por las estructuras militares de EEUU (control operativo sobre las fuerzas armadas surcoreanas, la Séptima Flota patrullando por los istmos de Taiwan, dependencias de defensa para estos cuatro paises, bases militares en sus territorios) e incapaces de una política exterior independiente o de tomar iniciativas de defensa...Así, hubo menores relaciones a través del telón militar iniciado a mitad de las década de los años cincuenta, así como bajos niveles de intercambio comercial entre Japón y China, o Japón y Corea del Norte. Pero la tendencia dominante hasta la década de 1970 fue un régimen unilateral americano fuertemente predispuesto hacia formas militares de comunicación. (Cumings, 1997: 155)

Dentro de este “régimen unilateral americano” Estados Unidos se especializó en proporcionar protección y en perseguir el poder político regional y global, mientras sus estados-vasallos del este asiático se especializaban en el comercio y en la obtención de ganancias. Esta división del trabajo ha sido par-ticularmente importante en las relaciones norteamericano-japonesas configuradas a lo largo de la era de la guerra fría y hasta el presente. Como Franz Schurmann (1974: 143) escribió, cuando el espectacular ascenso económico de Japón apenas acababa de comenzar, “liberados de la carga de los gastos de defensa, los gobiernos japoneses han encauzado todos sus recursos y energías hacia un expansionismo económico que consigue atraer riqueza a Japón y extender sus negocios a los más lejanos lugares del globo”. La expansión económica de Japón, a la vez, generó un proceso de “bola de nieve” que concatenó la búsqueda de oportunidades de inversión en la región circundante, con el gradual reemplazamiento del patronato de EEUU como fuerza impulsora principal de la expansión económica del Este de Asia (Ozawa, 1993: 130-1; Arrighi, 1996: 14-16).

Con el tiempo este proceso de bola de nieve despegó, el régimen militarista de Estados Unidos en el Este Asia había comenzado a descomponerse, ya que la Guerra de Vietnam destruyó lo qué la Guerra de Corea había creado. La Guerra de Corea había instituido el régimen proamericano del Este de Asia que excluía a China continental del intercambio normal comercial y diplomático con la parte no comunista de la región, mediante el bloqueo y las amenazas de guerra respaldadas por “un archipiélago de instalaciones militares estadounidenses” (Cumings, 1997: 154-5). La derrota en la Guerra de Vietnam, por el contrario, forzó a los Estados Unidos a permitir a China continental el intercambio normal comercial y diplomático con el resto del Este de Asia, ensanchándose de esa manera el alcance de la expansión e integración económica de la región (Arrighi, 1996).

Este resultado transformó, sin eliminarla, la previa desproporción de la distribución de las fuentes de poder en la región. El ascenso de Japón a potencia industrial y financiera de importancia global transformó la previa rela-ción de vasallaje de la política y economía japonesa con los Estados Unidos en una relación de mutuo vasallaje. Japón continuó dependiendo de los Estados Unidos para la protección militar; pero la reproducción del aparato productivo y protector norteamericano vino a depender incluso más críticamente de la industria y finanzas japonesas. A la vez, la reincorporación de China continental a los mercados regio-nales y globales devolvió al juego a un estado cuyo tamaño demográfico, abundancia de recursos laborales y crecimiento potencial sobrepasaba por un amplio margen al de todos los otros estados que operan en la región, incluidos los Estados Unidos. Menos de veinte años después de la misión de Richard Nixon en Beijing, y menos de quince después del restablecimiento de rela-ciones diplomáticas entre los Estados Unidos y la República Popular China (RPC), este gigantesco “contenedor” de capacidad laboral ya parece dispuesto a llegar a ser nuevamente el poderoso atraedor de fondos que había sido antes de su incorporación subordinada en el sistema mundial eurocéntrico.

Si el atractivo principal de la RPC para el capital extranjero han sido sus reservas enormes y ultracompetitivas de trabajo, el “casamentero” que ha facilitado el encuentro del capital extranjero capital y el trabajo chino es la diáspora capitalista de los chinos en el exterior.

Atraídos por la capacidad de China como fuente de trabajo a bajo coste, y por su potencialidad creciente como un mercado que contiene la quinta parte de la población mundial, los inversores extranjeros continúan vertiendo dinero en la RPC. Alrededor del 80% de ese capital procede de los chinos del exterior, refugiados por la pobreza, el desorden y el comunismo, que de ser objeto de las más picantes ironías han pasado a ser ahora los financiadores favoritos de Beijing y modelos para la modernización. Incluso los japoneses frecuentemente confían en los chinos en el exterior para engrasar su camino hacia China. (Kraar, 1994: 40)

De hecho, la confianza de Beijing en los chinos del exterior para facilitar la reincorporación de China continental en los mercados regionales y mundiales no es la auténtica ironía de la situación. Como Alvin So y Stephen Chiu (1995: cap. 11) han mostrado, la estrecha alianza política que se estableció en la década de 1980 entre el Partido Comunista Chino y los capitalistas chinos del exterior tenía un perfecto sentido desde el punto de vista de sus respectivos objetivos. La alianza facilitó a los chinos del exterior oportunidades extraordinarias de beneficiarse de la intermediación comercial y financiera, mientras facilitó al Partido Comunista Chino unos medios altamente efectivos para matar dos pájaros de un tiro: para mejorar la economía doméstica de China continental y, a la vez, para promover la unificación nacional de acuerdo con el modelo “una nación, dos sistemas”.

La auténtica ironía de la situación es que uno de los legados más sobresalientes de siglo diecinueve, las invasiones occidentales sobre la soberanía china, emerge ahora como un instrumento poderoso de la emancipación china y del este asiático respecto del dominio occidental. La diáspora china fue durante largo tiempo un componente integral del tributo indígena del Este de Asia al sistema comercial dominado por la China imperial. Pero las mayores oportunidades para su expansión vinieron con la incorporación subordinada de ese sistema dentro de las estructuras del sistema mundial eurocéntrico como resultado de las Guerras del Opio. Bajo el régimen americano de la Guerra Fría, el papel tradicional de la diáspora como intermediario comer-cial entre la China continental y las regiones marítimas de circunvalación fue ahogado, tanto por el embargo norteamericano sobre el comercio con la RPC, así como por las restricciones de la RPC sobre el comercio interior y exterior. No obstante, la expansión de las redes estadounidenses de poder y de las redes japonesas de negocio en las regiones marítimas del Este de Asia, proveyeron a la diáspora de una gran abundancia de oportunidades de ejercer nuevas formas de intermediación comercial entre estas redes y las redes locales que controla. Y como las restricciones sobre el comercio con China, y en el interior de la RPC, se relajaron, la diáspora rápidamente surgió como la única y más poderosa agencia de la reunificación económica de la economía regional del este asiático (Hui, 1995).

Es demasiado pronto para decir qué tipo de formación económico-política surgirá finalmente de esta reunificación y hasta donde puede llegar la rápida expansión económica de la región del este asiático. Por lo que sabemos, el ascenso actual del Este de Asia hasta llegar a ser el mayor centro dinámico de los procesos de acumulación capital a escala mundial, puede muy bien ser el preámbulo a un “recentramiento” de las economías regionales y mundiales sobre China, como estuvieron en tiempos premodernos. Pero sin saber lo que realmente sucederá o no, los aspectos principales del continuo renacimiento económico del este asiático son suficientemente claros como para proporcionarnos algunas señales de su probable futura trayectoria y de sus implicaciones para la economía global en su conjunto.

En primer lugar, el renacimiento es tanto el producto de las contradicciones de la hegemonía mundial norteamericana como de la herencia geohistórica del Este de Asia. Las contradicciones de la hegemonía mundial norteamericana conciernen primariamente a la dependencia del poder y la riqueza estadounidense respecto a una forma de desarrollo caracterizada por los altos costes de reproducción y de protección -esto es, sobre la formación de un mundo que comprende, por un lado, un aparato militar intensivo en capital y, por otra parte, la difusión de despilfarradores e insostenibles modelos de consumo masivo. En ninguna parte han sido estas contradicciones más evidentes que en el Este de Asia. Las guerras de Corea y de Vietnam no solo revelaran los límites del poder real poseído por el estado de bienestar-estado militar norteamericano. Igualmente importante es que, cuando esos límites se estrecharon y se aflojaron, en dicha evolución los altos costes de reproducción y de protección comenzaron a producir resultados decrecientes y a desestabilizar el poder mundial estadounidense. Mientras tanto, la herencia geo-histórica del este asiático, sus bajos costes comparativos de protección y de reproducción, dieron a los gobiernos de la región y a sus agencias de negocios una ventaja competitiva decisiva en una economía global más estrechamente integrada que antes. No se sabe si esta herencia se conservará. Pero por ahora la expansión asiática oriental ha sido el “vehículo tendedor de vías” para una trayectoria de desarrollo mucho más económica y sostenible que la trayectoria estadounidense.

En segundo lugar, el renacimiento se ha asociado con una diferenciación estructural del poder en la región que ha dejado a los Estados Unidos el control de la mayoría de los revólveres, a Japón y a la China exterior el control de la mayoría del dinero, y a la RPC el control de la mayoría del trabajo. Esta diferenciación estructural -que no tener precedentes en las anteriores transiciones de hegemonía- hace sumamente inverosímil que ningún estado de los que operan en la región, los Estados Unidos incluidos, adquiera por si solo las capacidades necesarias para llegar a ser hegemónico regional y globalmente. Sólo una pluralidad de estados, actuando concertadamente entre sí, tiene alguna oportunidad de generar un nuevo orden mundial basado en el Este de Asia. Esta pluralidad pudiera incluir a los Estados Unidos y, en todo caso, las políticas estadounidenses hacia la región permanecerán como un factor importante, entre otros, en la determinación de si surgirá realmente, y cuándo y cómo, tal nuevo orden mundial basado en el Este de Asia.

En tercer lugar, el proceso de integración y expansión económica de la región del este asiático es un proceso estructuralmente abierto al resto de la economía global. En parte, esta apertura es una herencia de la naturaleza intersticial de un proceso que se desarrolla en relación con las redes de poder de los Estados Unidos. En parte, se debe al importante papel jugado por las redes informales de negocios con ramificaciones a lo largo de la economía global en la promoción de la integración de la región. Y en parte, se debe a la dependencia continua del Este de Asia de otras regiones de la economía global para obtener materias primas, alta tecnología y productos culturales. Los fuertes conexiones delanteras y traseras que conectan la economía regional asiática oriental al resto del mundo es un buen augurio para el futuro de la economía global, siempre que la expansión económica de Este de Asia no sea llevada a un fin prematuro por los conflictos internos, la mala administración, o la resistencia estadounidense a la pérdida de poder y prestigio, aunque no necesariamente de riqueza y bienestar, que acarrearía el recentramiento de la economía global sobre el Este de Asia.

Finalmente, el ensamblaje de la integración y expansión económica del Este de Asia con su herencia geohistórica significa que el proceso no puede duplicarse en otra parte con resultados igualmente favorables. La adaptación al emergente liderazgo económico del este asiático sobre la base de la herencia geohistórica propia de cada región más que los equivocados intentos de repetir la experiencia del este asiático fuera de contexto o los, aun más equivocados, intentos de reafirmar la supremacía occidental en base a una defectuosa evaluación del poder real que posee el complejo militar-industrial de Estados Unidos- es el curso de acción más prometedor para el resto de los estados. Por supuesto, un asunto totalmente distinto es si se trata de una expectativa realista.

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