mardi 18 octobre 2016
A aliança
O ברית
Jorge Pinheiro
A תורה ensina qual deve ser o padrão de relacionamento com o Eterno. E chamamos esse relacionamento de ברית acordo, aliança, pacto. E, assim, vamos dar uma olhada lá no passado, para aprender sobre a renovação do ברית.
Senaqueribe subiu ao trono assírio em 705 antes da Era Comum e teve que enfrentar uma revolta na Babilônia, mas não só lá: todas as províncias do oeste se levantaram. Acreditavam ter chegado o momento da libertação. O Egito prometeu ajudar aos rebelados. A coalizão integrava Tiro, cidades fenícias; Ascalon e Ecron, cidades filistéias; Moabe, Edom e Amon; e Ezequias, de Judá, entrou como um dos chefes da revolta. Fortificou suas defesas e preparou-se para o ataque da Assíria.
O que não se fez esperar. Senaqueribe em 701 a.C. atacou Tiro e venceu. Depois foi a vez de Biblos, Arvad, Ashdod, Moabe, Edom e Amon, que se entregaram e pagaram tributo a Senaqueribe.
Ascalon, Ecron e Judá, resistiram. Senaqueribe tomou primeiro Ascalon. Os egípcios tentaram socorrer Ecron e foram derrotados. E foi a vez de Judá. Senaqueribe tomou 46 cidades fortificadas em Judá e cercou Jerusalém.
Nos Anais de Senaqueribe se diz o seguinte:
"Quanto a Ezequias do país de Judá, que não se tinha submetido ao meu jugo, sitiei e conquistei 46 cidades que lhe pertenciam. Quanto a ele, encerrei-o em Jerusalém, sua cidade real, como um pássaro na gaiola”.
Entretanto, por motivos desconhecidos, talvez uma peste, ele levantou o cerco a Jerusalém e voltou para a Assíria. Jerusalém voltou a respirar, no último minuto. Mas teve que pagar tributo aos assírios.
Aparentemente, não se sabe por que Jerusalém se salvou. Mas 2Reis 19.35-37 diz que o Anjo do Senhor atacou o acampamento assírio. Existe uma notícia de Heródoto, História II, 141, segundo a qual num confronto com os egípcios os exércitos de Senaqueribe foram atacados por ratos, o que levanta a hipótese de que a peste bubônica tenha grassado em seu exército.
Para Hermann, estudioso do assunto, "pode-se considerar que algum fato, acontecido no acampamento assírio que assediava Jerusalém, tenha obrigado à partida; mas isto não exclui que Ezequias tenha enviado o seu tributo e renovado de modo ostensivo o tratado de vassalagem, cuja ruptura provocara a invasão assíria". (1)
Outra questão é se teria havido uma segunda campanha de Senaqueribe na Palestina. De qualquer maneira, segundo os Anais de Senaqueribe, o tributo pago por Ezequias ao rei assírio foi significativo:
"Quanto a ele, Ezequias, meu esplendor terrível de soberano o confundiu e ele enviou atrás de mim, em Nínive, minha cidade senhorial, os irregulares e os soldados de elite que ele tinha como tropa auxiliar, com 30 talentos de ouro, 800 talentos de prata, antimônio escolhido, grandes blocos de cornalina, leitos de marfim, poltronas de marfim, peles de elefante, marfim, ébano, buxo, toda sorte de coisas, um pesado tesouro, e suas filhas, mulheres de seu palácio, cantores, cantoras; e despachou um mensageiro seu a cavalo para entregar o tributo e fazer ato de submissão". (2)
Essa informação concorda com a de 2Reis 18.13-16:
"No décimo quarto ano do rei Ezequias, Senaqueribe, rei da Assíria, veio para atacar todas as cidades fortificadas de Judá e apoderou-se delas. Então Ezequias, rei de Judá, mandou esta mensagem ao rei da Assíria, em Laquis: 'Cometi um erro! Retira-te de mim e aceitarei as condições que me impuseres'. O rei da Assíria exigiu de Ezequias, rei de Judá, trezentos talentos de prata e trinta talentos de ouro, e Ezequias entregou toda a prata que se achava no Templo de Iaveh e nos tesouros do palácio real. Então Ezequias mandou retirar o revestimento dos batentes e dos umbrais das portas do santuário de Iaveh, que... rei de Judá, havia revestido de ouro, e o entregou ao rei da Assíria".
Com isso, a reforma que Ezequias tinha dado início perdeu o rumo. Seu sucessor Manassés foi um dos piores e mais longos governos de Judá. Foram 55 anos de governo. No final do governo de Manassés o imperialismo assírio começou a entrar em declínio. Era uma época de sincretismo religioso. Deuses, cultos e costumes se misturavam, e os assírios temerosos de perderem o poder político, oprimiam os cultos nacionais, tentando manter sua influência. Tal situação ameaçava o culto ao Eterno. Mas quem protestava era reprimido.
Manassés foi sucedido pelo filho Amon que acabou assassinado por opositores aos assírios. E foi entronizado, com apenas 8 anos de idade, seu filho יאשיהו Josias, em 640 antes da Era Comum. Durante seu reinado, Judá alcançou esperançosa independência.
A reforma de יאשיהו Josias e o דברים Devarim
A Assíria viveu seus estertores, enfrentando levantes violentos provenientes de vários pontos do império. Povos oprimidos pela extrema violência assíria levantaram suas cabeças. Principalmente os babilônios e os medos, artífices da derrocada definitiva da Assíria, entre 626 e 610 a.C.
Foi um momento especial para Judá. Houve um renascimento do nacionalismo e o rei יאשיהו deu início a uma reforma, descrita em pormenores em 2Reis 22.3-23.25 como sua grande obra política. A reforma começou por volta do ano 629 a.C., décimo segundo do reinado de יאשיהו, que tinha 20 anos de idade.
Aproveitando o debilitamento assírio, יאשיהו recuperou o controle sobre as províncias do antigo reino de Israel, cobrou tributos e melhorou suas defesas. Fez uma limpeza geral no país: cultos e práticas estrangeiras, introduzidos em Judá sob a influência assíria, foram eliminados. A magia e as adivinhações foram banidos. Os santuários do antigo reino de Israel, considerados idólatras, destruídos.
E no templo de Jerusalém foi recuperado um código de leis, o núcleo do atual rolo do דברים Devarim, Deuteronômio como se lê em 2Rs 22. Segundo alguns, escrito no reino do norte e levado para Jerusalém em seguida à destruição de Samaria, em 722 antes da Era Comum. Segundo outros, escrito em Jerusalém mesmo, durante o governo de Ezequias, por grupos fugidos do norte. O rolo do דברים original compreendia os capítulos 12.1-26.15 -- um código de leis de renovação do ברית -- ornamentado por uma introdução, os atuais capítulos 4.44-11.32, e uma conclusão, os capítulos 26.16-28.68.
Ao ser promulgado por יאשיהו em 622 a.C. como lei oficial do Estado, o דברים deu vida à reforma, mostrando ao povo que Judá podia confiar em Deus, porque essa era a promessa davídica. Era preciso reviver as antigas tradições mosaicas.
O livro de 2Crônicas 34 a 36 narra este que foi dos maiores avivamentos experimentados por Israel, dirigido por יאשיהו (c. 639-609 a.C.), que morreu, em batalha, aos 39 anos. Aos 16 anos começou sua vida espiritual e aos 20 fez uma reforma no reino de Judá.
יאשיהו herdou uma nação idólatra, com templos pagãos e bosques dedicados às divindades assírias e dos povos vizinhos: Baal, Milcom, Moloque e Astarote. O povo estava perdido e sem rumo. Mas, יאשיהו superou os problemas graças a dois recursos.
1. A oração, que cumpriu um papel especial no reavivamento. Jovem ainda, יאשיהו começou a buscar ao Senhor (2Crônicas 34.3). Consciente da idolatria existente em seu país lutou contra esse pecado e destruiu todos os altares, conforme o verso 7.
2. A Palavra. Além da oração, a descoberta do Livro de דברים, transformou-se em lei fundamental para a implementação das reformas, 2Crônicas 34.14-18. Ao ouvir a leitura da Palavra do Senhor, o rei humilhou-se diante do Eterno, verso 19. Depois, reuniu o povo e leu diante da multidão a Lei do Senhor, verso 30. Isso trouxe uma renovação espiritual.
O que isso nos ensina? Que sem oração e sem מילה palavra não há renovação do ברית pacto. Assim, na renovação do ברית, promovida pelo rei יאשיהו, podemos realçar quatro movimentos:
1. Uma convocação ao povo para ouvir a מילה
2. O povo ouviu a מילה
3. O povo aceitou a מילה
4. Renovou-se o pacto com o Eterno por meio de um sacrifício pascal
Conclusão histórica
A reforma de יאשיהו surtiu efeito? Sim. Mas não foi completa. Positiva no geral teve suas debilidades. Não encontrou liberdade para se desenvolver: foi feita de cima para baixo, imposta pelo governo, sem base popular mais ampla. Suas medidas priorizaram a aparência, sem levar o povo a uma reconstrução real do culto ao Eterno. A centralização do culto não deu bons resultados, esvaziou a vida e a religiosidade do povo. E os acontecimentos se precipitaram: יאשיהו morreu cedo, e a reforma se perdeu.
Conclusão teológica
Um verdadeiro movimento de renovação espiritual deve estar ligado à oração e ao estudo das Escrituras. Isto porque a palavra do Eterno é restauradora: החוק של אדוני é perfeita e restaura a alma, Salmos 19.7.
A מילה palavra age de forma poderosa no coração humano (Jr. 23.29). Essa é a renovação do ברית pacto que o Eterno deseja que façamos, que tenha por base palavra e a oração.
Citações
(1) Hermann, S., Storia d'Israele. I tempi dell'Antico Testamento, Brescia, Queriniana, 1979, p. 347.
(2) Briend, J. et alii., Israel e Judá. Textos do Antigo Oriente Médio, São Paulo, Paulus, 1985, p. 76.
mardi 11 octobre 2016
Revelação e processo epistemológico no estudo da religião de Israel
Estudo da religião de Israel, algumas questões de método
Jorge Pinheiro
Quando se estuda a religião de Israel, questões referentes à revelação e ao processo epistemológico parecem difíceis de compreender. Duas macrocorrentes do pensamento teológico apresentaram nos últimos dois séculos respostas para essas questões. Uma que parece evidente e coloca a ênfase na revelação, outra vê a religião de Israel como inflexão da experiência cultural e religiosa dos povos vizinhos.
Jorge Pinheiro
Quando se estuda a religião de Israel, questões referentes à revelação e ao processo epistemológico parecem difíceis de compreender. Duas macrocorrentes do pensamento teológico apresentaram nos últimos dois séculos respostas para essas questões. Uma que parece evidente e coloca a ênfase na revelação, outra vê a religião de Israel como inflexão da experiência cultural e religiosa dos povos vizinhos.
Essas duas correntes, apesar do arsenal considerável de
informações reunidas, que não podem ser descartadas, pecam ao nível da
metodologia. Não levam em conta que todo conhecimento pressupõe elaboração nova
e exige do estudioso jamais esquecer a dialética de qualquer processo social e
histórico. Apresenta-se diretamente ligado ao ser humano enquanto sujeito,
dá-se no terreno formal e só torna-se necessário depois de elaborado. Mas,
também, acontece no terreno do real e possibilita a conquista da objetividade.
É um erro afirmar que uma nova estrutura pode ser fruto
único de um processo exclusivo apriorístico, revelado ou inato; ou, por
oposição, que repousa exclusivamente em características preexistentes no
objeto. Em ambas os casos, o erro consiste em definir o conhecimento como
predeterminado, quer por estruturas internas ao sujeito, quer por características
preexistentes no objeto. Descarta-se, assim, o conhecimento enquanto construção
efetiva e contínua.
O conhecimento não começa com um sujeito plenamente
consciente de seu ato histórico, nem de realidades definidas a priori. Resulta
sim de interações que surgem da combinação de fatores múltiplos, que vão
criando dependência e novas relações. Não é um intercâmbio entre formas
diferentes, mas a construção de realidades com plasticidades. A este processo
de surgimento de novas estruturas chamamos revolução. Isto porque são
construções de conhecimento e não crescença ou reforma de uma estrutura já
conhecida. Aqui, temos crise e ruptura de estruturas e conhecimentos
anteriores, gerando fatores que criam novas relações e novos equilíbrios. Nesse
processo haverá sempre um ou vários desequilíbrios iniciais, uma crise
epistemológica, que rompe esquemas definidos, gerando movimentos que parecem
estar fora do controle do sujeito.
Em relação à religião de Israel assistimos a essa revolução
epistemológica em dois momentos. Em primeiro lugar, em seu próprio surgimento,
ou seja, com a aliança abraâmica. E, posteriormente, durante o processo que se
abre com a guerra dos macabeus. Nesses dois momentos, movimentos ao nível do
indivíduo e sociais desencadearam processos diferentes que revolucionaram o
próprio conceito de religião e, por extensão, mudaram a face da fé em todo o
mundo. Ou como diz Schillebeeckx:
“Não existe uma experiência da Revelação sem mediação
histórico-social; além disso, a Revelação tem também, na realidade, um papel de
mediação com relação à autocompreensão das comunidades, de modo que a Revelação
tem, inclusive, uma função ideológica. Este fato é analisado de duas formas: de
maneira histórico-crítica e de maneira temática; em ambos os casos constata-se
que a experiência da Revelação implica sempre uma teologia política, seja no
sentido afirmativo (e renovador), seja em sentido pioneiro (abrindo o futuro)”.
[1]
Metodologicamente, com o aparecimento da aliança abraâmica
e com a guerra dos macabeus temos na história da religião de Israel o
surgimento de estruturas epistemológicas novas.
A aliança sinaítica é um
fenômeno de consolidação em relação à aliança anterior. É uma normatização. E o
movimento liderado por Esdras, no período pós-exílio, é um momento de reforma,
partenogênese do judaísmo. A revolução virá depois, no bojo da guerra dos
macabeus. Entender esse processo é definir uma metodologia para a compreensão
da história da religião de Israel e, por extensão, dos fenômenos sociais e
históricos que eclodiram com o surgimento do cristianismo.
A tradição bíblica apresenta os pais da humanidade e os
patriarcas como monoteístas. Adão, Sete, Noé, Abraão e seus descendentes
conheciam Elohim, [2] o Deus único, e guardavam seus preceitos. O henoteísmo surge como
excrescência e o politeísmo como degeneração. Essa visão, ainda hoje, prevalece
no judaísmo, no cristianismo e no islamismo, e era hegemônica em toda a cultura
ocidental até há duzentos anos. No entanto, a partir de Darwin e do
desenvolvimento das ciências naturais no século dezenove essa crença foi
seriamente abalada.
A visão clássica da crítica
bíblica, da qual Karl Graf, Abraham Kuenen e J. Wellhausen são expoentes,
parte de uma construção progressiva do desenvolvimento da profecia clássica que
caminha em direção ao monoteísmo ético. A estrutura construída por Wellhausen, por exemplo, é
persuasiva, tem coesão interna e ajusta pormenores antes difíceis no texto das
Escrituras hebraicas. Assim, apesar dos avanços da crítica posterior, sua visão
do desenvolvimento e da datação das fontes continua sendo importante para os
estudos modernos. A partir daí, podemos tirar três referências da teoria de
Wellhausen, que devem ser consideradas: (1) A análise das três fontes
primárias: JE, narrativas javista e da tradição do reino do norte, combinadas e
editadas nos séculos nove e oito antes de Cristo; P, narrativa histórica
expandida interessada na origem e nos regulamentos das instituições de Israel,
presente no período do exílio e da restauração; e D, material que forma o
núcleo do livro de Deuteronômio, composta na época de Josias, com suas leis e
arcabouço narrativo. (2) O atual livro da Torah não era nos tempos
pré-exílicos, canônicos e obrigatórios para a nação. A literatura que iria ser
incorporada à Torah existia em vários documentos e versões. Um único livro
ainda não fora cristalizado. Antes houve um período extenso de criação
literária por parte de sacerdotes e escritores religiosos. (3) O livro de
Deuteronômio foi promulgado no reinado de Josias e a Torah, como um todo, foi
fixada na época de Esdras e Neemias.
Para os defensores da hipótese Graf-welhausiana,
os profetas literários criaram o monoteísmo ético, e a Torah é a formulação
sacerdotal-popular posterior do pensamento profético. Essa hermenêutica analisa
as Escrituras como documento histórico-textual, à luz de outros textos
religiosos, da história, da poesia e dos mitos dos povos vizinhos a Israel.
Preocupado com questões de autoria, data, circunstâncias, estilo e
desenvolvimento do pensamento, o conteúdo da Revelação tem valor secundário.
Como conseqüência, tal postura leva a dois problemas: nega a história bíblica
como está apresentada no texto sagrado e propõe alterações em sua mensagem, a
fim de refletir o desenvolvimento do pensamento religioso. Assim, nossa divergência com Wellhausen se dá
com respeito a datação da parte principal do Pentateuco, o Código Sacerdotal, e
a relação do Pentateuco com a profecia clássica. E a pergunta que faz é: até
que ponto a Torah pode ser usada como fonte da fase mais antiga da religião de
Israel? Ou, o monoteísmo da Torah é pré-profético? A tradição bíblica nos conta
que os pais da raça humana e os patriarcas de Israel eram monoteístas. Dessa
maneira, a idolatria teria surgido como degeneração posterior. Esta compreensão
prevalece nas principais cosmovisões teístas: no judaísmo, no cristianismo e no
islamismo. Por isso, afirmamos que o monoteísmo de Israel é anterior ao
profetismo clássico e ao próprio surgimento do Pentateuco.
Duas
questões são pertinentes nessa discussão com a crítica bíblica: memória e
oralidade. [3]
A construção da memória dos clãs de Deus deve ser vista como fenômeno dinâmico
e não como conhecimento apriorístico e externo à vida desses clãs. A memória é
atividade, imaginação, lembrança e esquecimento, enfim, um trabalho de criação
coletiva.
Diante
da ameaça de extermínio, de escravidão e exclusão em meio à civilização
egípcia, e sem documentação formal que comprovasse suas origens e chamado por
parte de Deus, surgiu a necessidade de construção de uma história após a fuga e
a travessia do mar Vermelho. E será essa necessidade que levará esse aglomerado
de gentes a fazer a transição da memória da oralidade étnica, oriunda dos
tempos imemoriais do Pai Alto (ab ram), em direção a um longo período onde
oralidade e escrita começaram a conviver. A escrita surgiu então no deserto
como tentativa de assenhoramento da memória, ferramenta reveladora de um
passado épico, de uma história grande, com heróis forjados nas experiências com
o Deus eterno. Nesse enredo que busca as origens estarão presentes as memórias
pessoais e coletivas.
As relações entre memória, oralidade e escrita na
história de Israel são complexas e dificultam uma leitura simples da religião
de Israel. Por isso, consideramos que podemos falar de três grandes ciclos que
caminham da memória oral à memória escrita. Podemos dizer que de Abraão até
Moisés e a fuga do Egito temos memória oral, cujos liames são a identidade
étnica individual e coletiva. Do deslocamento no deserto até a monarquia temos
um ciclo que combina oralidade com memória escrita. Neste ciclo, as lembranças
e as histórias são contadas, as idéias que estão na cabeça são gravadas.
Começa, assim, a nascer, de fato, uma história com suas peculiaridades, mas não
há uma linearidade na produção dessa história, já que é registro de lembrança
dos fatos do passado, vividos por pessoas e comunidades em diferentes tempos,
mas também da oralidade profética que vão sendo registrados, muitos deles, em
sua contemporaneidade. A partir da volta da diáspora babilônica, com Esdras e
Neemias até o surgimento do cristianismo, estamos diante de um terceiro ciclo
onde predominou a memória escrita, com sinagogas, escribas e a leitura semanal
dos rolos da Torah. A memória, matéria prima da história é, durante este último
ciclo, produzida como campo de poder, evidenciados claramente na construção do
judaísmo em sua disputa com o helenismo, mas também no deslocamento da pregação
profética. Assim, a memória escrita produziu dois fenômenos na história de Israel:
matou a oralidade profética e possibilitou o assenhoramento da história pela
hierarquia político-religiosa. Dessa maneira, podemos dizer que memória,
oralidade e escrita na história de Israel são construções que ocorreram num
campo de disputas culturais e ideológicas, onde pessoas e comunidades, com seus
interesses, apresentaram releituras do passado. Para se refletir sobre essa
questão sugerimos a leitura de uma história que encontramos no livro de Juízes:
a do levita, sua concubina e a guerra contra Benjamim (Jz 19, 20 e 21), que
reproduzem antigas tradições sobre a migração danita e a fundação do santuário
de Dã, e nos fala das tradições dos santuários de Masfá e de Betel,
possivelmente de origem benjaminita. A edição que temos do livro de Juízes é de
origem monárquica, apresenta uma leitura hostil à realeza de Saul em Gibeá e faz
a defesa da monarquia davídica na repetição da declaração “naqueles dias não
havia rei em Israel” (17.6; 18.1; 19.1; 21.25).
Mas, se levarmos em conta o ciclo da memória oral, qualquer
análise do surgimento da religião de Israel deve partir do homem Abraão,
enquanto personagem transistórico, [4] e de seu contexto
histórico e social. O mundo de Abraão é um mundo real e a aliança com o Senhor,
[5] o Eterno, a chave para
entender o processo. A questão da aliança coloca em pauta a relação entre o
conhecimento formal de Abraão e a realidade histórico-social do patriarca e
leva a um ponto de partida comum, o processo revelatório. Essa participação
revelatória deve ser entendida como diferente das características inatas do
sujeito, que estão ligadas aos sentidos, ao sistema nervoso e pertencem à ordem
estrutural da pessoa. Já o processo revelatório, que abre caminho para um
conhecimento novo, realiza-se ao nível da organização funcional. Caracteriza-se
por ser ilimitado em sua possibilidade de construir noções e, acima de tudo,
sobrepassa, vai além das informações sensíveis.
Apesar de seu reducionismo, a crítica bíblica fornece
material importante no campo da história, arqueologia, lingüística, sociologia
e religião para entender o texto sagrado em seu contexto, historicidade e
revelação progressiva. Tomemos um exemplo: Merneptah II, o faraó do êxodo. Ramsés
II, o terceiro rei da décima nona dinastia, era filho de Seti I. Guerreiro, ele
realizou uma grande expedição contra Cades, a capital dos heteus, em parte
fracassada, porque não conseguiu tomar a cidade. Foi um grande administrador e
desenvolveu projetos arquitetônicos às margens do Nilo, como Pa-Ramesses
(Tânis) e Pitom, conforme estão descritas em Êxodo 1:11. Seu décimo terceiro
filho, Merneptah II, o faraó do êxodo, enfrentou uma invasão dos líbios,
vencida por seu exército mercenário. Mas em que se baseia toda esta história?
Em documentos, entre os quais numa estela de vitória composta que diz:
"Os chefes curvam-se fazendo saudações de paz/ nenhum
dos povos inimigos ousou erguer a cabeça/ a terra dos líbios está vencida/ está
em paz a terra dos heteus/ o lugar de Pa-Canana, ao sul da Palestina, foi
devastado com grande violência/ o lugar de Ascalom foi levado para longe/
aniquilado está o lugar de Gazer/ o lugar de Inuã, perto de Tiro foi reduzido a
nada/ o povo isiraalu foi aniquilado, sem deixar semente/ lugar de Car, a
Palestina do sul, fez-se qual viúva do Egito/ o mundo inteiro está em paz/ tudo
quanto era rebelião caiu subjugada pela mão do rei Merneptah”. [6]
É interessante notar que esse povo isiraalu é mencionado em
estreita ligação com as regiões ocupadas por heteus, cananeus, filisteus e
fenícios. Sem estar determinado, o termo isiraalu, não define um país ou
cidade, querendo significar antes uma tribo nômade. Assim, partindo da
arqueologia e da história, vemos que o berço dessa nação isiraalu foi o Egito,
e que esses eventos aconteceram, muito possivelmente, no final do século treze
antes de Cristo, durante o reinado de Merneptah (1235-1227). Mostramos a
historicidade do surgimento da nação de Israel como exemplo metodológico que
nos ajuda a definir o processo vivido.
O conhecimento que se origina na atividade reflexa do sujeito
recebe com a Revelação esta organização funcional que o torna possível. Convém
notar que no conhecimento que tem por base o processo revelatório a organização
funcional sempre se mantém invariável. Ou seja, essa organização funcional se
mantém em equilíbrio, apesar dos processos vividos nas estruturas. E mais do
que isso se impõe a elas como necessárias.
Podemos dizer que a matriz do Pentateuco se encontra na
aliança feita por Deus com Abraão, conforme encontramos em Gênesis 15. A
consolidação dessa aliança acontecerá com Moisés, descrita em Êxodo 24 e
reiterada em Deuteronômio cinco, numa das montanhas do deserto do istmo, entre
o Egito e Madiã-Seir. Essa é a idéia força de toda a religião de Israel. Um
acordo que implica em salvação. Berit, aliança, tem o sentido de obrigação, mas
também de segurança. É um acordo entre duas pessoas, celebrado solenemente, com
o derramamento de sangue. A parte mais forte fornece a segurança ou a salvação,
e a mais fraca se obriga a determinados compromissos. Dessa maneira, a aliança
impôs um relacionamento especial entre Deus e o povo. E os
mandamentos e leis, dados no período da consolidação, transportam, assim, toda
conotação legal e externa, para uma perspectiva de acordo maior. O centro da
aliança está no primeiro mandamento do decálogo (as dez palavras, em hebraico)
que proíbe a adoração de outros deuses, da milícia do céu e dos ídolos.
Mas a aliança é também um pacto moral. Só que o fundamental
desse pacto, que perpassa toda a Torah não é sua mera formalização, já que
outros povos também possuíam noções desenvolvidas de lei e moralidade. O
assassinato, o roubo, o adultério e o falso testemunho eram condenados não
apenas pela lei moral universal, mas também duramente punidos pelos códigos de
Ur-Nammu, de Lipit-Ishtar e de Hamurabi, [7] para citar os mais
representativos. Agora, no entanto, pela primeira vez a moralidade é
apresentada pelo próprio Deus como fruto de um relacionamento entre
ele e o povo, com normas para o estabelecimento de um reino de novo tipo. É uma
aliança com toda a nação. A consolidação sinaítica, fruto da aliança abraâmica,
vai além das sabedorias babilônica e egípcia, que lidam com o indivíduo. A
moralidade apresentada no Gênesis, por exemplo, que é individual, ganha aqui
uma roupagem nova, passa a ser coletiva e nacional. Assim para Kaufman,
Deus “não elegeu Israel para fundar um novo culto mágico em
benefício dele; elegeu-o para ser seu povo, para realizar nele o seu arbítrio.
Portanto, por sua natureza, também a aliança religiosa foi uma aliança
moral-legal, envolvendo não apenas o culto, mas também a estrutura e os
regulamentos da sociedade. Assim, colocou-se o alicerce da religião da Torah,
incluindo tanto o culto como a moralidade e concebendo a ambos como expressões
da vontade divina”. [8]
Na verdade, a aliança que Deus faz com Abraão em
Gênesis 15, historicamente, tem seu cumprimento em outra estrutura, no Sinai.
Dessa maneira, literariamente, Gênesis não somente prepara o roteiro Pentateuco,
mas faz parte intrínseca dele. É bereshit[9] não somente como saga da
origem, mas como alicerce de todo o Pentateuco.
Em relação à segunda parte do livro, que trata da diáspora,
do helenismo e da guerra, é importante precisar que o conhecimento é sempre um
processo de interação e organização, de construção de novas estruturas que se
inserem nas já existentes. Todo conhecimento é sempre um padrão, uma medida de
relação entre o sujeito e o objeto. Ou, se preferirmos, entre a nossa
existência e o mundo. É impossível compreender a revolução do período macabaico
se não visualizarmos a dinâmica interior, que rasgou corações e mentes, assim
como os fatores externos que combinados geraram crise e ruptura nessa relação
interação/organização.
O período histórico aberto com a reforma de Esdras, sob a
dominação persa, levou Israel a um profundo equilíbrio. Havia interação com a
reforma religiosa e com o momento histórico. Prevalecia a organização.
Colocamos os conceitos nessa ordem, porque interagir e organizar são aspectos
de um mesmo processo. Interagir é sempre o equilíbrio necessário que resulta da
relação entre a inteligência e o ambiente. É a resposta que damos às novas
questões, quer de forma reflexiva, a partir do sujeito, quer de maneira
dinâmica, procurando adaptar a realidade aos nossos desejos e necessidades. Só
que acontece em primeiro lugar ao nível do objetivo, formalizando-se a
posteriori.
Interagir implica em transformar a realidade circundante.
Por isso, podemos dizer que a face objetiva da interação é a mudança, a reforma
ou mesmo a revolução, e a subjetiva é a organização.
A organização tem como finalidade restabelecer um
equilíbrio e para isso trabalha ao nível daquilo que se deseja. Procura-se uma
meta, um fim, que coloque as coisas em seus devidos lugares e nos mostre a
razão de ser das coisas. Quando se deseja alguma coisa é porque não temos essa
coisa. Assim, organizar é definir como alcançar esse objetivo. Só que a
organização é sempre genética, está em movimento. Não se estabiliza. Aponta
sempre para uma organização nova e está sempre em construção. É claro que a
organização é um processo formal, que se resolve ao nível do pensamento
intelectual, por isso quando as condições sociais são violentamente
desequilibradas, esse processo nunca é plenamente consciente. Ele se realiza,
enquanto processo, historicamente. E é esse fenômeno, riquíssimo, construtor de
novas estruturas e conhecimentos, que vemos acontecer em todo o processo da
revolução dos macabeus.
Nossa abordagem da história e da religião de Israel quebra
alguns paradigmas por considerarmos que o conhecimento não começa com certeza,
mas com questionamentos. Nessa leitura quase judaica das Escrituras hebraicas
queremos dizer aos leitores que não devem esquecer os três fundamentos da Guemará
babilônica, quando diz que há apenas um Deus verdadeiro, justo e bom; que a
Torah, dada por Ele, contém toda a verdade e a justiça; e que o ser humano deve
fazer o possível para caminhar com Ele e ser também verdadeiro, justo e bom. E
a melhor maneira de viver essa meta é investigar e viver a Torah. As histórias,
contos, biografias, provérbios e profecias que encontramos nela podem e devem
servir como fonte inesgotável de inspiração para a multiculturalidade
brasileira. Afinal, essa tradição milenar da história e da religião de Israel
ainda serve aos estudiosos e ao fiel como roteiro de vida mesmo nos momentos
mais sombrios da história.
Questões para reflexão e debate
Leia os capítulos 19, 20 e 21 do livro
de Juízes, mas dê atenção aos versículos 1,12-14, 16, 18 e 30 do capítulo 19 e
versículos 1-5, 9 e 12 do capítulo 20, e versículo 25 do capítulo 21.
1 ¶ Naqueles
dias em que Israel não tinha rei, um levita foi morar bem longe, na região
montanhosa de Efraim. Ele arranjou uma jovem de Belém de Judá para ser a sua
concubina.
12 Mas o patrão respondeu: —Não vamos parar numa
cidade onde o povo não é israelita. Vamos continuar até Gibeá.
13 É melhor a gente andar mais um pouco e passar
a noite em Gibeá ou Ramá.
14 Então passaram pela cidade de Jebus e
continuaram a viagem. O sol já se havia escondido quando eles chegaram a Gibeá,
cidade da tribo de Benjamim.
16 ¶ E
aconteceu que passou por ali um velho que estava voltando do seu trabalho na
roça. Ele era da região montanhosa de Efraim, mas estava morando em Gibeá. O
povo dali era da tribo de Benjamim.
18 O levita respondeu: —Eu estou viajando de
Belém de Judá para bem longe, para a região montanhosa de Efraim, onde moro.
Fui a Belém e agora estou voltando para casa, mas ninguém me ofereceu
hospedagem para esta noite.
30 E todos os que viam isso diziam: —Nunca vimos
uma coisa assim! Nunca houve uma coisa igual a essa, desde o tempo em que os
israelitas saíram do Egito! Pensem! O que vamos fazer agora?
1 ¶ Por causa
disso todo o povo de Israel, desde Dã, no Norte, até Berseba, no Sul, e
Gileade, no Leste, se reuniu em Mispa. Eles se reuniram na presença de Deus, o
SENHOR, como se fossem uma só pessoa.
2 Os chefes de todas as tribos de Israel
estavam presentes nessa reunião do povo de Deus. Havia quatrocentos mil homens
a pé, treinados para a guerra.
3 E o povo de Benjamim soube que todos os
outros israelitas haviam subido até Mispa e que eles queriam saber como aquele
crime havia sido cometido.
4 Então o levita, marido da mulher assassinada,
explicou: —Cheguei com a minha concubina a Gibeá, no território da tribo de
Benjamim, para passar a noite.
5 Os homens de Gibeá vieram de noite e cercaram
a casa. Eles queriam me matar. Em vez disso abusaram da minha concubina, e ela
morreu.
9 Vamos escolher alguns homens para atacar
Gibeá.
12 ¶ As tribos
israelitas mandaram que mensageiros fossem por toda a tribo de Benjamim e
dissessem: — Que crime horrível vocês cometeram!
25 Naquele tempo não havia rei
em Israel, e cada um fazia o que bem queria.
Compare com I
Samuel 10.10, 14-15.
10 Quando Saul
e o seu empregado chegaram a Gibeá, um grupo de profetas o encontrou. O
Espírito de Deus tomou conta de Saul, e ele se juntou a eles, agindo como um
profeta.
14 E Samuel
disse ao povo: —Vamos todos a Gilgal e lá confirmaremos Saul como nosso rei.
15 Então foram
todos a Gilgal e lá, no lugar sagrado, fizeram de Saul o seu rei. Ofereceram
sacrifícios de paz, e Saul e todo o povo de Israel festejaram o acontecimento.
Explique, a partir da
correlação dos textos acima, como se dão as relações entre memória, oralidade e
escrita na construção da historicidade do período de Juízes.
Por que a edição do
livro de Juízes pode ser datada do período monárquico davídico?
E o que significa no
texto de Juízes a afirmação que abre e fecha o relato: “Naquele
tempo não havia rei em Israel”.
Leituras complementares
Epstein, Isidore, Judaísmo,
Lisboa/Rio de Janeiro, Editora Ulisséia/Pelicano, 1975.
Kaufmann, Yehezkel, A
Religião de Israel, Editora Perspectiva, São Paulo, 1989.
LaSor, W. S., Hubbard, D. A., Bush, F. W., Introdução ao Antigo Testamento, São
Paulo, Edições Vida Nova, 1999.
Schillebeeckx, E., Iersel, B. Van, Revelação
e Experiência, Editora Vozes, Petrópolis, 1978.
[1] Schillebeeckx,
Edward/ Iersel, B. Van, Revelação e Experiência, Editora Vozes, Petrópolis,
1978, p. 5.
[2] Em hebraico, El,
Elah, Eloah, Elohim; em gregro Theós. O nome mais geral da Divindade (Gn 1.1). No Antigo Testamento é o ser supremo, único, infinito,
criador e mantenedor do universo.
[3] Le Gof, Jacques,
“Memória”, Enciclopédia Einaudi, vol. I, Memória-História, Rio de Janeiro,
Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1984, pp. 11-50.
[4] Consideramos
transistórico o conhecimento que é transmitido oralmente por mais de uma pessoa
ou comunidade, às vezes por muitas gerações, que funcionam como amplificadores
do relato, antes que ele venha a ser, posteriormente, registrado de forma
escrita.
[5] Em hebraico YHVH, o tetragrama, o nome de Deus
impronunciável, cuja tradução mais provável é "o Eterno" ou "o
Senhor Eterno". O Senhor é Deus que existe por si mesmo, que não tem
princípio nem fim (Êx 3.14; 6.3).
Seguindo o costume que começou com a Septuaginta, a maioria das traduções
contemporâneas usa "Senhor" como equivalente de YHVH (Deus). A forma Iaveh é a mais aceita entre os
eruditos. A forma Jeovah, que só aparece a partir de 1518, não é recomendável
por ser híbrida, isto é, por ser produto da mistura das consoantes de YHVH (o Eterno) com as vogais de Adonai (meu Senhor).
[6] Estela
“Israel”, Museu do Cairo, Egito. Alguns estudiosos que defendem uma data
anterior para o Êxodo, entre 1450 e 1420 a.C., quando Amenotep II era faraó,
consideram que a estela “Israel” refere-se a uma incursão de Merneptah contra a
Palestina quando os israelitas já estavam estabelecidos na região: 200 anos
depois do Êxodo.
[7] Epsztein,
León, A Justiça Social no Antigo Oriente Médio e o Povo da Bíblia, Ed.
Paulinas, São Paulo, 1990, "As Leis Mesopotâmicas", pp. 11 a 26.
[8] Kaufmann,
Yehezkel, A Religião de Israel, Ed. Perspectiva, São Paulo, 1989, p. 232.
[9] "O
exegeta Rashi quer que o primeiro versículo do Gênesis seja traduzido da
seguinte maneira: No princípio, ao criar Deus os céus e a terra, a terra era
vã, etc., pois a Escritura Sagrada não quer mostrar aqui a ordem da criação. A
prova disso é que o fim do segundo versículo dá a entender que as águas já
existiam antes dos céus e da terra". Campos, Haroldo de, Bere'shitth, A
Cena da Origem, Ed. Perspectiva, São Paulo, 1993, p. 24.
Fonte:
Jorge Pinheiro, História e religião de Israel, origem e crise do pensamento judaico, São Paulo, Editora Vida, 2007, pp. 15-30.
Fonte:
Jorge Pinheiro, História e religião de Israel, origem e crise do pensamento judaico, São Paulo, Editora Vida, 2007, pp. 15-30.
lundi 10 octobre 2016
Berit, um pacto histórico
Um pacto histórico
Jorge Pinheiro
Os livros de Gênesis e Êxodo apresentam a fé
israelita, enquanto construção, fundamentada em dois acontecimentos históricos.
O primeiro é a escolha de um homem chamado Abrão, [1] que foi tirado da cidade
de Ur e levado para Canaã, uma terra prometida a ele e sua descendência (Gn. 12.1-3;
13.14-17). Essa promessa foi selada com um acordo entre Deus
e Abraão, conforme Gênesis 15.5-10. E o segundo fato histórico é a libertação
dos descendentes de Abraão da escravidão do Egito, através de Moisés, e sua entrada
na terra prometida (Ex.3.6-10).
Esses dois acontecimentos expressam a materialidade da
aliança, que se traduz como escolha de Deus a favor de um homem,
gerador de um povo, para uma missão definida. Realidade esta que foi
reafirmada, centenas de anos depois, pelo príncipe dos profetas israelitas:
“Ouvi-me, vós, que estais à procura da justiça, vós que buscais a Deus.
Olhai para a rocha da qual fostes talhados, para a cova de que fostes
extraídos. Olhai para Abraão, vosso pai, e para Sara, aquela que vos deu à luz.
Ele estava só quando o chamei, mas eu o abençoei e o multipliquei”. Isaías
51:1-2.
O pacto com Abraão foi selado com sangue, conforme os
versículos 9 e 10 do capítulo 15 de Gênesis. Segundo os costumes semitas, o
berit (pacto ou aliança) era feito através da degola de animais, geralmente um
bezerro, que era dividido em duas partes, colocadas uma em frente à outra, e os
contratantes passavam entre os pedaços (Jr.34:18-20) e diziam: “que a divindade
corte em pedaços, como a estes animais, os violadores deste pacto”.[2] Daí as expressões, “karot
berit”, imolar uma vítima para concluir um pacto; “bo ba berit”, entrar na aliança
(Jr.34:10); “abor ba berit”, passar pela aliança (Dt. 39:2); “amod ba berit”,
parar na aliança (2 Rs.23: 3). Tecnicamente, chamamos o acordo assim selado de
pacto de suserania, que geralmente era assinado entre um rei e o chefe de um
clã, onde o rei oferecia proteção ao clã e, em caso de guerra, o clã fornecia
jovens para lutarem no exército do rei.
Assim, Deus deu a Abraão uma formalização do
pacto. Ou seja, o próprio Deus selou o acordo com um costume humano,
a fim de que a aliança pudesse ser visualizada por Abraão. E o Eterno, em seu
amor pelo contratante mais fraco, passa no meio dos animais partidos (Gn. 15.17).
O versículo seguinte agrega: “Naquele dia, o Eterno estabeleceu uma aliança com
Abrão nestes termos: à tua posteridade darei esta terra”.
Aqui voltamos ao início de nossa análise: a idéia de teia
de linhas-força fornece elementos para a compreensão do livro de Gênesis, do
Pentateuco e de todas as Escrituras hebraico-judaicas. Em primeiro lugar porque
o diálogo de Deus com Adão e Eva em Gênesis 3.15 aponta para um libertador. E
em Gênesis 15 temos a primeira realização dessa promessa através da aliança com
Abraão, que produzirá descendência com duas missões: ser testemunha entre as
nações e ser a nação da qual nasceria o messias prometido. É importante
entender que tal promessa iniciou uma relação entre Deus e Israel, uma relação
selada por Deus, não exclusiva, mas íntima em seu ideal. Embora, na
tradição judaica, o livro de Êxodo seja o livro da aliança, o conceito está
presente e é desenvolvido no primeiro livro do Pentateuco.
Na aliança está embutida a idéia de salvação e de
relacionamento pessoal com Deus. Esta realidade nova dentro do plano
de redenção do homem está implícita na declaração de Deus a Abraão:
“Estabelecerei uma aliança entre eu e você, e a sua raça depois de você, de
geração em geração, uma aliança perpétua, para ser o seu Deus e o da tua raça
depois de você”. Gn. 17:7. E como todo pacto, além do “berit milah” (pacto da
circuncisão), Abraão e seus descendentes são chamados à responsabilidade moral
(v.1) e à uma adoração permanente (vs.7 e 19). Elementos estes, que a partir de
Moisés serão desenvolvidos, dando origem à religião de Israel, que tem por
base, num primeiro momento histórico a primazia do culto e suas ordenanças e,
num segundo momento, com o surgimento da profecia literária, da justiça social.
Assim, é impossível fazer uma completa separação entre as promessas de Deus e o
desejo de um reino. Este último será uma construção que tem como primeiro
tijolo a relação pretendida por Deus com a universalidade dos seres humanos.
E porque a promessa remetia ao reino, a questão da terra a partir de
Abraão permanecerá como promessa para os patriarcas, tornando-se objetivo
mítico de seus descendentes. Por isso, a importância de Moisés, que antes de
ser visto como legislador, deve ser compreendido como libertador. E é nesse
misto do papel libertador/legislador que formatará as condições para a invasão
da Palestina.
Assim, enquanto caminhavam pelo
deserto, os hebreus contavam a seus filhos uma velha história. Há quatrocentos
anos - diziam eles - um homem chamado Abrão desceu lá do norte, da cidade de
Ur, na Caldéia, e com toda a sua família dirigiu-se para o sul da Palestina.
Era uma ordem de Deus.
Ele receberia por herança uma terra, teria uma descendência
tão grande como as estrelas do céu, e através dele todas as famílias da terra
seriam abençoadas. Era uma estranha promessa, afinal Abrão não tinha filhos e
seu clã[3] era nômade. Mas ele
acreditou na promessa de Deus. Anos mais tarde, Deus trocou seu nome para
Abraão, que quer dizer pai de uma multidão de nações, fez um pacto especial com
ele e lhe deu um filho, que foi chamado Isaque.
Como líder, Moisés tinha certeza
que o acordo feito com Abraão estava sendo cumprido. Deus dissera que a terra
prometida era Canaã, e que seus limites iriam do Egito até o rio Eufrates.
Explicou também que Canaã estava ocupada por dez povos guerreiros: queneus,
queneseus, cadmoneus, heteus, periseus, refains, amorreus, cananeus, girgaseus
e jebuseus. Mas eles seriam arados da terra, como mato bravo arrancado para
permitir a semeadura.
Durante os anos de caminhada pelo
deserto, Moisés foi formando uma liderança que julgou capaz de dirigir a
invasão da Palestina. Entre seus homens de confiança havia um jovem chamado
Josué. Tinha sido seu assistente pessoal e quando grupos de assaltantes
amalequitas começaram a ameaçar a segurança dos hebreus, Josué liderou um grupo
de combatentes. Era disciplinado, ousado e muito corajoso.
Em hebraico Josué quer dizer Deus
é a salvação. Era do clã de Efraim, filho de Num, e esteve com Moisés durante
toda a peregrinação no deserto. Quando Moisés subiu ao monte Sinai, para
receber de Deus os Dez Mandamentos, Josué subiu com ele. Foi quem avisou a
Moisés que lá embaixo estava uma barulheira incrível, como um alarido de
guerra. Mas o que ele ouvia era o povo dançando e cantando em adoração ao deus
Ápis, o deus touro dos egípcios.
Como dirigente militar recebeu de
Moisés uma missão especial: fazer parte de um grupo de espiões que deveriam se
infiltrar em Canaã. As ordens eram precisas: observar a terra, o que produzia,
se os campos eram férteis, como era o povo, se era organizado, numeroso, e se
haviam fortalezas. Deviam também trazer frutos da terra.
Os espiões chegaram até as
proximidades de Hebrom, que fica ao sul de Jerusalém, e depois de dias
trouxeram a Moisés um relatório terrível:
--
É, na verdade, uma terra que produz leite e mel em abundância. Vimos cachos de
uvas que tinham que ser transportados numa vara por dois homens, de tão
grandes. Mas o povo que habita na terra é muito poderoso, as cidades são
grandes, fortificadas. Vimos gigantes e nos sentimos como se fôssemos
gafanhotos, de tão pequenos diante deles.
Excluindo Josué e Calebe, os
outros espiões estavam em pânico. E o medo que tinham foram transmitindo ao
povo, que então se rebelou contra Moisés.
--
Foi para isso que você nos tirou do Egito, para a gente morrer aqui, no
deserto, para sermos massacrados a espada, nós, nossas mulheres e nossos
filhos?
Josué e Calebe ainda tentaram
reverter a situação. Explicaram que a terra era excelente e que se era da
vontade de Deus a terra prometida seria entregue na mão deles, não importava a
força dos povos ocupantes, pois “a sombra protetora de Deus lhes foi tirada”. Mas
a mentalidade escrava do povo prevaleceu. Não estavam preparados para lutar. E
diante da rebelião, Deus afirmou que nenhum deles entraria na terra, mas seus
filhos. Assim, durante quarenta anos caminharam pelo deserto. E os filhos dos
escravos foram transformados em guerreiros. Forjados sob o sol escaldante,
confiantes na promessa de que a terra lhes seria entregue. Os espiões que se
acovardaram e sublevaram o povo contra Deus e Moisés foram presos e condenados
à morte. Josué por sua coragem e fidelidade a Deus despontou como sucessor de
Moisés.
Os hebreus não eram um grupo
homogêneo, mas um conglomerado de povos escravizados pelos egípcios que fugiram
sob a liderança de Moisés. Além disso, mesmo tendo seu núcleo nos descendentes
de Abraão, no correr dos séculos miscigenaram-se com outros povos e inclusive
com os próprios egípcios. Tinham, no entanto, um confuso sonho de liberdade,
uma fé não consolidada no Deus único, e aceitavam realizar alguns rituais
semitas, dos quais o principal deles, nessa época, era a circuncisão.
Esse conglomerado de gentes foi
dividido em agrupamentos menores que recebeu o nome de patriarcas, formatando
clãs[4]: Rubem, Simeão, Judá,
Issacar, Zebulom, Efraim, Manassés (esses dois, netos de Abraão, filhos de
José, que juntos formavam um clã), Benjamim, Dã, Aser, Gade e Naftali. Havia
ainda outro clã, o de Levi, que era o dos sacerdotes. Dessa maneira, a nação de
Israel surgiu como uma confederação de clãs, sem governo centralizado. Seria
governada por juizes, pessoas experientes que deveriam julgar seus clãs a
partir das leis deixadas por Moisés.
Assim, após a morte de Moisés, os
hebreus invadiram a Palestina liderados por Josué, considerado pelos
historiadores um dos maiores generais da história. Formou regimentos com
guerreiros jovens que, ao contrário de seus pais, estavam desejosos de combater
por Deus, o Deus de Israel. Os regimentos foram organizados a partir dos doze
clãs que formaram a confederação hebréia.
A estratégia inicial de Josué
consistiu em montar seu quartel general em Gálgala, ao oriente da cidade de
Jericó, e a partir daí atacar as cidades de Ai e Gabaom. Em Gálgala já estavam
estabelecidas os clãs de Rubem, Simeão e Manassés. Ali havia água em
abundância, provisão para os combatentes e lugar seguro para armazenar os
despojos.
Antes de iniciar o período da
conquista, Josué deu combate aos grupos inimigos, nômades, que poderiam ameaçar
a produção agrícola dos clãs já instalados em Gálgala. Só depois disso, tomou
Jericó, fortaleza avançada do território de Canaã e conhecida na época como “a
princesa do vale do Jordão”.
A cidade de Jericó data, segundo
pesquisas arqueológicas, do ano oito mil antes de Cristo. Por ter uma fonte e
um oásis e estar estrategicamente situada, foi ocupada por povos diferentes,
como os amorreus e cananeus, e muitas vezes destruída. Antes da conquista por
parte dos hebreus, foi atacada por faraós da 18a dinastia e
totalmente destruída. De novo reconstruída, tinha nessa época muros altos, de
pedras macho e fêmea, duas torres, e casas retangulares e espaçosas.
Essa linda cidade, que também
recebia o nome de Cidade das Palmeiras, dominava o vale do Jordão e as
passagens para as montanhas do oeste. Antes de atacá-la, Josué enviou dois
jovens oficiais do recém formado exército para espionar a região. Eles entraram
na cidade, foram protegidos e escondidos por uma prostituta cultual chamada
Raabe. Aliás, sobre essa moça há algumas coisas que devem ser analisadas.
Zaná, praticar prostituição, cujo sentido literal quer
dizer manter relações sexuais ilícitas, é a palavra que designa a atividade de
Raabe, jovem que escondeu os espiões enviados por Josué. Alguns exegetas, no
entanto, consideram que ela era somente uma hospedeira, algo como dona de uma
pousada, partindo da raiz zun –
alimentar – e não da raiz zaná como
origem da palavra zonã, mas são
poucos que consideram esta a melhor tradução.
A maioria dos
exegetas considera que a palavra tem somente uma raiz. Este verbo é usado tanto
literal como figuradamente. Neste último caso, a idéia que comunica pode ser de
relações internacionais proibidas, de uma nação, especificadamente Israel,
fazer acordos com outras nações. Pode-se referir também a relacionamentos
religiosos, nos quais Israel adorava falsos deuses. A palavra normalmente se
refere às mulheres e apenas duas vezes diz respeito a homens (Êx 34.16; Nm
25.1). A forma feminina do particípio é usada regularmente para indicar a
prostituta (Gn 34.31). Tais pessoas recebiam pagamento (Dt 23.19), tinham
marcas características que as indicavam (Gn 38.15; Pv 7.10; Jr 3.3), tinham
suas próprias casas (Jr 5.7) e deviam ser evitadas (Pv 23.27). Poucas vezes a
mulher com quem o ato é cometido é identificada como mulher casada (Lv 20.10;
Jr 29.23), mas também nunca se afirma que é solteira.
Há estudiosos
que arriscam dizer que Raabe talvez fosse sacerdotisa cananéia e, dessa
maneira, prostituta cultual. Mas também essa afirmação é praticamente
impossível de ser comprovada. Raabe foi mulher de Salmon (Mt 1.5),
possivelmente filho de Calebe (cf. 1Cr 2.51) e mãe de Boaz. É bom lembrar que
as prostitutas na Antigüidade, cultuais ou não, começavam seu ofício ainda na
puberdade.
Na vida escura
e duvidosa dessa jovem, prostituta e mentirosa, deve ter brilhado a centelha de
que com os hebreus havia um Deus superior a todos os deuses que ela conhecera.
A cidade estava em pânico, temendo um ataque dos hebreus, e entre o povo se
comentava o que o Deus dos hebreus fizera na saída do Egito e durante a
caminhada no deserto: ...“porque temos
ouvido que o Senhor secou as águas do mar Vermelho diante de vós, quando saíeis
do Egito, e o que fizestes aos dois reis dos amorreus, a Siom e Ogue, que
estavam dalém do Jordão, os quais destruístes” (Js 2.10).
Assim, pela fé
(veja a confissão que faz no vs. 11, “o
Senhor vosso Deus é Deus em cima nos céus e embaixo na terra”, lembrando
que o politeísmo e a idolatria predominavam entre os cananeus) ela confiou na
misericórdia e no poder desse Deus, arriscou a vida para salvar os
representantes do povo de Deus, e obteve salvação para si e sua família.
Dessa maneira, ao ver o espírito
de terror que pairava sobre a cidade, os jovens espiões voltaram ao quartel
general de Josué com uma grande notícia:
--
Realmente Deus nos deu toda esta terra. Os seus habitantes estão apavorados com
nossa presença.
Josué então chamou os sacerdotes,
que leram para os oficiais e soldados uma ordem que Deus tinha dado a Moisés.
“Quando saírem para guerrear
contra teus inimigos, se virem cavalos, carros de combate e um povo mais
numeroso do que vocês, não fiquem com medo, pois com vocês está o Senhor Deus,
que tirou vocês do Egito. Quando estiverem para começar o combate, o sacerdote
se aproximará para falar aos soldados e lhes dirá: ‘Ouve, ó Israel! Estais hoje
prestes a guerrear contra teus inimigos. Não se acovardem, não fiquem com medo,
não tremam, nem se atemorizem diante deles, porque o Senhor Deus marcha com
vocês, lutando com vocês’.”
Depois, os sacerdotes disseram:
--
Quem tem uma tenda nova e ainda não a usou? Volte para a sua tenda, para que
não morra na batalha e não possa curtir sua tenda nova. Quem plantou uma vinha
e ainda não colheu os primeiros cachos de uva? Volte para sua tenda, para que
não morra na batalha e não coma de seus primeiros frutos. Quem acaba de
casar-se e ainda não completou sua lua de mel? Volte para sua tenda, para que
não morra na batalha e não usufrua sua noite de núpcias.
E
por fim os sacerdotes, perguntaram:
--
Quem está com medo e se considera um covarde? Volte para sua tenda para que não
contagie seus irmãos.
Então, Josué destacou os oficiais
e definiu o ataque. Rodearam a cidade uma vez por dia, durante sete dias.
Tocavam trombetas, gritavam e saltavam. Ao sétimo dia, todo o povo, com os
soldados e os sacerdotes rodearam sete vezes a cidade, tocando trombetas e
gritando. De repente, ao som mais agudo da trombeta, alguns muros desabaram
permitindo a entrada do povo. A cidade foi amaldiçoada, seus habitantes
executados, com exceção da moça Raabe e da família do pai dela. Os despojos de
ouro e prata foram levados para o tabernáculo, que era a tenda onde estava a
arca da aliança, com os Dez Mandamentos.
Foi uma guerra implacável. E
diante disso, é o caso de perguntar: o extermínio realizado pelos hebreus foi
um ato justificável?
Na época, a Palestina era
permanentemente disputada por conquistadores. Confederações de reinos,
agrupados em torno de cidades, lançavam-se contra outros pequenos reinos. Os
filisteus, por exemplo, não eram originários da região, vinham da ilha de
Caftor, mais conhecida como Capadócia. Instalaram-se na região de Gaza,
exterminando os Avins que viviam nesse território.
Assim, os hebreus se consideravam
no direito à terra tanto quanto os que foram despojados. Eram conquistadores
lutando contra conquistadores.
E quanto ao seu modo de atuar nas
operações de guerra? Caso tomemos os padrões guerreiros da época, os hebreus
não eram nem mais sanguinários, nem mais cruéis. Os assírios, por exemplo,
decapitavam os povos vencidos, fazendo pirâmides com seus crânios. Crucificavam
ou empalavam os prisioneiros, arrancavam seus olhos e os esfolavam vivos. Não
há casos de tortura na tradição guerreira dos israelitas.
Um povo que foi duramente
golpeado, mas não exterminado foram os cananeus. Apesar de serem bons
agricultores, seus costumes religiosos estavam entre os mais violentos de todo
o mundo antigo. Eram henoteístas e ofereciam sacrifícios humanos e infantis aos
seus baalim. É interessante notar que antes dos hebreus se lançarem à conquista
da Palestina, Deus lhes falou:
“Ó Israel, hoje vocês estão atravessando
o rio Jordão para conquistar nações mais numerosas e poderosas, cidades grandes
e fortificadas. (...) Portanto, vocês devem saber que o Senhor Deus vai
atravessar na frente, como um fogo devorador. É ele quem exterminará. Vocês,
então, desalojarão rapidamente esses povos, os farão perecer, conforme falou o
Senhor Deus. Quando Deus os tiver removido de sua presença, vocês não devem
dizer nos seus corações: ‘É por causa da nossa justiça que O Senhor nos fez
entrar na posse dessa terra’. É por causa da perversidade dessas nações que Deus
irá expulsá-las da tua frente.” (Deuteronômio 9:1, 3 e 4).
Dessa maneira, os cananeus estavam
sob a punição de Deus por causa de seus crimes e idolatria. E como, segundo a
maneira de pensar dos antigos israelitas, Deus responsabilizava tanto as nações
como os indivíduos, consideravam totalmente justo uma guerra de extermínio.
Depois da conquista de Jericó,
Josué tomou a cidade de Ai, que fazia fronteira com Gálgala. Recebeu, então, a
visita de embaixadores do reino de Gabaom com os quais Josué celebrou um
tratado de paz, sem consultar Deus.
Os reis de Jerusalém, Hebrom,
Jerimote, Laquis e Eglom formaram uma aliança e atacaram Gabaom. Como Josué
havia feito um acordo bilateral com Gabaom, teve que sair em sua defesa e
lançar um ataque contra os cinco reis. Conseguiu derrotá-los e conquistou as
cidades de Maceda, Libna e Laquis.
Estabeleceu um acampamento
provisório perto de Eglom e daí lançou-se à conquista de mais três cidades,
Eglom, Hebrom e Debir. A essa altura, já havia ocupado toda a região central e
sul da Palestina. Josué voltou então para Gálgala. Descansou meses e começou a
organizou os futuros ataques ao norte de Canaã, região onde estavam localizadas
cidades populosas e fortificadas.
O rei de Asor chefiava uma
confederação de reinos e ficou sabendo dos planos de Josué. Reuniu, então,
todas as cidades vizinhas e organizou uma confederação para enfrentar
militarmente o exército hebreu. A mais violenta das batalhas aconteceu às
margens do rio Merom. Josué derrotou os exércitos confederados, queimou a
cidade de Asor e tomou todas as cidades dos reinos aliados. Estrategicamente,
foi sua maior vitória, pois com ela quebrou o poder dos cananeus. Mas nem todos
os habitantes da Palestina tinham sido exterminados. Cidades importantes
ficaram intocadas, principalmente as da região norte da Filístia. A guerra da
conquista foi longa e durou quarenta e cinco anos.
Apesar de ser o maior general da
história de Israel, Josué cometeu três erros: fez aliança com os gabaonitas,
permitiu aos jebuseus permanecerem em Jerusalém e não destruiu as bases dos
filisteus no litoral.
Esses erros isolaram os clãs de
Judá e Simeão do resto do país. A entrada principal para o território de Judá
ficou sob controle dos jebuseus, que ocupavam Jerusalém. E toda a região
permaneceu cercada pelas cidades dos gabaonitas. Esta situação criou um
separatismo entre os clãs do norte e os do sul e acabou fracionando a
confederação hebréia.
A repartição da terra foi feita
parcialmente em Gálgala e depois em Siló, cidade para onde havia sido
transportada a tenda da congregação. Essa primeira distribuição de terras foi
realizada por uma comissão formada pelo sacerdote Eleazar, pelo general Josué e
por dez chefes dos clãs. Havia uma lei básica, que já havia sido promulgada e
que orientava a divisão. Os clãs mais populosos receberiam as porções maiores.
Os sacerdotes destinaram duas urnas, uma para receber o nome dos clãs e outra
para as regiões da Palestina que seriam sorteadas. Assim, o método de distribuição
combinava a sorte - podia ser no sul, no centro ou no norte da Palestina -, com
um elemento objetivo, a população de cada clã. As questões de limites ou
permanência dos clãs nos lugares onde já se encontravam, como era o caso dos
clãs de Rubem, Simeão e Manassés, foram decididas pela comissão.
Depois de uma semana de trabalhos,
a confederação dos clãs de Israel estava assim distribuída:
·
A parte montanhosa ao
sul foi entregue ao clã de Judá.
·
A parte montanhosa ao
centro, ao clã de José. Este território foi dividido entre os clãs de Efraim e
Manassés, filhos de José.
·
A parte montanhosa
central coube ao clã de Benjamim.
·
A parte excedente do
território entregue a Judá, por ser grande demais, ficou com o clã de Simeão.
·
O território que
limitava a parte montanhosa central com a região norte foi entregue aos clãs de
Zebulom e de Issacar.
·
A região costeira
coube aos clãs de Aser e Naftali.
·
Dois territórios foram
entregues ao clã de Dã, um no litoral central e outro no extremo norte.
·
Os territórios ao
oriente do Jordão foram entregues aos clãs de Rubem e Gade. A parte que coube a
Manassés também estava do lado oriental do rio Jordão.
Era tradição no antigo Oriente
Médio que o crime de sangue fosse vingado por um parente da pessoa assassinada.
Através de Moisés, Deus deu ao povo uma legislação que punia severamente os
crimes contra a pessoa, fossem eles assassinatos, seqüestros ou violências
sexuais. Com isso, Deus tirava a justiça das mãos do vingador individual e a
colocava sob responsabilidade social. Mas Josué sabia que muitos crimes podiam
acontecer sem premeditação, por acidente ou imprevisto. Por isso, criou também
as cidades de refúgio, onde pessoas que ainda não tinham sido julgadas e
condenadas pela justiça recebiam o direito de asilo. Era uma forma de oferecer
misericórdia àqueles que involuntariamente tinham cometido um erro. Nas cidades
de refúgio nenhum vingador de sangue tinha permissão para entrar, e dentro dela
os perseguidos tinham o direito de viver sem serem molestados.
Terminada a guerra, Josué pediu aos dirigentes da
confederação de tribos, como recompensa pelos serviços prestados, a cidade de
Timnate-Sera, que ficava no alto do monte Efraim. Viveu aí seus últimos dias e
morreu com 110 anos.
Mapa: Terras
destinadas às tribos de Israel. Atlas Vida Nova da Bíblia e da História do
Cristianismo, São Paulo, Ed. Vida Nova, 1998, p. 22.
Questões para reflexão e debate
Leia o capítulo 15 de Gênesis, mas dê
atenção aos versículos 8-18.
8 —Ó SENHOR, meu Deus! —disse Abrão. —Como posso
ter certeza de que esta terra será minha?
9 O SENHOR respondeu: —Traga para mim uma vaca,
uma cabra e uma ovelha, todas de três anos, e também uma rolinha e um pombo.
10 Abrão levou esses animais para o SENHOR,
cortou-os pelo meio e colocou as metades uma em frente à outra, em duas
fileiras; porém as aves ele não cortou.
11 Então os urubus começaram a descer sobre os
animais mortos, mas Abrão os enxotava.
12 ¶ Quando
começou a anoitecer, Abrão caiu num sono profundo. De repente, ficou com medo,
e o pavor tomou conta dele.
13 Então o SENHOR disse: —Fique sabendo, com
certeza, que os seus descendentes viverão num país estrangeiro; ali serão
escravos e serão maltratados durante quatrocentos anos.
14 Mas eu castigarei a nação que os escravizar. E
os seus descendentes, Abrão, sairão livres, levando muitas riquezas.
15 Você terá uma velhice abençoada, morrerá em
paz, será sepultado e irá se reunir com os seus antepassados no mundo dos
mortos.
16 Depois de quatro gerações, os seus
descendentes voltarão para cá; pois eu não expulsarei os amorreus até que eles
se tornem tão maus, que mereçam ser castigados.
17 ¶ A noite
caiu, e veio a escuridão. De repente, apareceu um braseiro, que soltava fumaça,
e uma tocha de fogo. E o braseiro e a tocha passaram pelo meio dos animais partidos.
18 Nessa mesma ocasião o SENHOR Deus fez uma
aliança com Abrão.
A partir do texto acima explique o
costume do pacto de suserania existente entre os semitas da Palestina e qual a
importância dele na conversa que Deus teve com Abrão.
Que questões humanas, sociais e
políticas estão presentes na materialidade da aliança? E por que a questão da
terra é nomeada por Deus em sua conversa com Abrão?
Em que sentido a invasão e a guerra
liderada por Josué faziam parte da aliança abraâmica?
Leituras complementares
Briend J., Lebrun, R., Puech, E., Tratados e juramentos no Antigo Oriente Médio, São Paulo, Paulinas,
1996.
Epsztein, León, A
Justiça Social no Antigo Oriente Médio e o Povo da Bíblia, Ed. Paulinas,
1990.
Hill, A. E., Walton J. H., AT, Panorama do Antigo Testamento, São Paulo, Editora Vida, 2006.
Melamed, Meir Matzliah, A Lei de Moisés e as Haftarót, Flórida,
1962.
[1] Em Gênesis
17:5 Deus muda o nome de Abrão para Abraão. Essa mudança de nome traduz o seu
chamado. Abrão significa “pai alto”, o que teologicamente costumamos ler “Deus
é grande”. Depois, Deus o chama “ab hamôn”, pai de multidão.
[2] Melamed, Meir Matzliah,
A Lei de Moisés e as Haftarót, Flórida, 1962, p. 33.
[3] Aqui utilizamos o termo clã no sentido antropológico, enquanto unidade social formada
por indivíduos ligados a um ancestral comum por laços de descendência
demonstáveis ou putativas, ou seja, de família expandida.
[4] Embora o termo
tribo seja o mais comum quando
nos referimos às divisões do povo hebreu, consideramos que o termo só tem razão
quando diz respeito a agrupamentos com território geográfico já definido.
Assim, vemos uma transição do clã em direção à tribo, sendo que esta deverá
sempre apresentar duas característas, território e liderança.
Fonte
Jorge Pinheiro, História e religião de Israel, origens e crise do pensamento judaico, São Paulo, Editora Vida, 2007, pp. 42-58.
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