lundi 31 octobre 2016

Um pouco da história da esquerda brasileira, para pesquisadores

A nova esquerda
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Uma matriz das esquerdas

A Organização Revolucionária Marxista - Política Operária (ORM-Polop) foi uma das matrizes da esquerda revolucionária brasileira, tendo sido o primeiro agrupamento a se organizar como opção partidária ao PCB (excetuando-se as organizações trotskistas), em fevereiro de 1961, “reunindo círculos de estudantes provenientes da ‘Mocidade Trabalhista’ de Minas Gerais, da ‘Liga Socialista’ de São Paulo (simpatizantes de Rosa de Luxemburgo), alguns trotskistas e dissidentes do PCB do Rio, São Paulo e Minas”, conforme informações do Brasil: Nunca Mais. Da antiga Polop, surgiram direta ou indiretamente as seguintes organizações: Colina, VPR, POC, VAR-Palmares, OCML-PO, MCR e MEP.

Os autores deste livro, Nilmário Miranda e Carlos Tibúrcio, foram militantes da ORM-Polop, posteriormente do POC e estavam entre os fundadores da OCML-PO, a nova Polop, após o rompimento com o POC, que decidira partir para a luta armada imediata em 1970.

Sete militantes ligados ao POC foram mortos pela repressão política no Brasil e no exterior. Um foi assassinado em São Paulo, em 1971, Luiz Eduardo da Rocha Merlino, dois no Rio Grande do Sul (Helio Zanir Sanchotene Trindade e Ary Abreu Lima e Rosa) e quatro outros foram mortos no exílio: Luiz Carlos Almeida e Nelson Kohl, no Chile, durante o golpe militar que derrubou o governo do presidente Salvador Allende, em 13 de setembro de 1973; e Jorge Alberto Basso e Maria Regina Marcondes Pinto (ligada na época ao MIR do Chile), na Argentina, em 1976.

A história da Polop está contada da seguinte forma no Brasil: Nunca Mais: “Desde o seu surgimento, a Polop deu mais importância ao debate teórico e doutrinário dentro da esquerda marxista do que a um projeto de construir uma alternativa política ao PCB. Não chegou, dessa forma, a se constituir em uma organização nacional, embora tenha alcançado certo prestígio nos meios universitários dos três Estados já referidos e atraído para sua esfera de simpatia, ainda antes de 1964, militares ligados às mobilizações nacionalistas nas Armas.

Com permanente críticas às posições defendidas pelo PCB, a Polop recusava as opiniões daquele partido sobre a necessidade de uma aliança com a ‘burguesia nacional’ para vencer o ‘imperialismo’ e os ‘restos feudais’. Elaborou, em contraposição, um ‘Programa Socialista para o Brasil’, no qual afirmava que o grau de evolução do capitalismo no país comportava e exigia transformações socialistas imediatas, sem qualquer etapa ‘nacional-democrática’.

Após a derrubada de Goulart, a Polop ensaiou a definição de uma estratégia guerrilheira para enfrentar o novo regime, chegando a se envolver em duas articulações para a deflagração de um movimento armado, em aliança com os referidos militares vinculados ao ‘nacionalismo revolucionário’. Ambas as articulações foram abortadas no nascedouro. A primeira ocorreu ainda em 1964, no Rio, ficando registrada com o irônico título de Guerrilha de Copacabana. A segunda, de maior expressão, em 1967, liderada por aqueles militares vinculados ao embrionário MNR, passou à história com o nome impreciso de Guerrilha de Caparaó.

Em 1967, a Polop viveu em suas fileiras um impacto semelhante ao ocorrido no interior do PCB, por influência da luta guerrilheira que se alastrava pela América Latina sob a inspiração da Revolução Cubana e do guevarismo. Esse impacto acarretou duas importantes cisões. Em Minas, a maior parte dos militantes se desligou da Polop para constituir o Colina. Em São Paulo, uma ‘ala esquerda’ da organização se uniu a militantes remanescentes do MNR para constituir a VPR”.

Posteriormente, em meados de 1969, remanescentes da VPR e do Colina, se uniriam para formar a VAR-Palmares.

Continua o relato do BNM: “Após as cisões que geraram a VPR e o Colina, essa organização restou claramente debilitada. Reagiu a isso, aproximando-se da Dissidência Leninista do Rio Grande do Sul (do PCB) e de mais alguns círculos de militantes, para constituir o Partido Operário Comunista (POC). O POC conseguiu ter certa expressão no Movimento Estudantil de 1968, onde atuava sob a designação de Movimento Universidade Crítica. Suas propostas políticas assinalavam uma nítida continuidade da linha seguida anteriormente pela Polop. Procurou também estabelecer alguma presença junto do meio operário das capitais.

Em abril de 1970, um grupo de militantes se desligou do POC para voltar a constituir a Polop. Os que permaneceram no POC passaram a enfrentar divergências internas profundas, sendo que alguns círculos defendiam a atuação conjunta com as organizações da guerrilha urbana (ALN, VPR, VAR, etc.), chegando a se envolver em operações armadas.
Entre 1970 e 1971, o POC foi atingido por vários golpes da repressão, sofrendo prisões de dezenas e centenas de militantes, principalmente em São Paulo e Porto Alegre, o que acabou comprometendo as atividades da organização no país a partir daí, não obstante alguns setores terem permanecido articulados no exílio.

Em 1970, um diminuto grupo de militantes se desligou do POC, no Rio Grande do Sul, para criar o MCR, que executou algumas ações armadas conjuntas com a VPR.

Os que se rearticularam em 1970 sob a sigla Polop, por sua vez, condenaram as ações armadas e concentraram seus pequenos efetivos em um trabalho doutrinário junto dos operários, rebatizando sua organização para Organização de Combate Marxista-Leninista - Política Operária (OCML-PO).

No exílio, a OCML-PO editou, durante certo tempo, em conjunto com a AP Socialista e o MR-8, a revista de debates teóricos Brasil Socialista.

Antes de essa nova Polop (mais conhecida como PO) completar 1 ano de vida, começou a se constituir dentro de suas fileiras, no Rio, a Fração Bolchevique da Polop que, em 1976, mudaria seu nome para Movimento pela Emancipação do Proletariado (MEP).

Na pesquisa BNM foram estudados cinco processos relacionados ao Polop, somando perto de cem cidadãos envolvidos como réus. Já o POC foi objeto de oito processos estudados, distribuídos por São Paulo, Minas, Paraná e Rio Grande do Sul, reunindo mais de 200 pessoas atingidas como réus ou indiciados na fase de inquérito. O MEP foi detectado pelos órgãos de repressão em 1977, ocorrendo prisões e formando-se processos no Rio de Janeiro e em São Paulo”.

(in “Dos Filhos Deste Solo”, de Nilmário Miranda e Carlos Tibúrcio, editora Boitempo)

A esquerda cristã

A AP nasceu entre militantes estudantis da JUC e de outras agremiações da Ação Católica. Segundo Jacob Gorender, esses militantes queriam criar um veículo de ação política “que permitisse a liberdade de atuação e não envolvesse a hierarquia católica hostil a politização esquerdizante. Em junho de 1962, em um congresso em Belo Horizonte, fez-se o lançamento solene da AP.

No ano seguinte, em um segundo congresso em Salvador, a AP decidiu-se pelo “socialismo humanista”, buscando inspiração ideológica em Emmanuel Mounier, Teilhard de Chardin, Jacques Maritain e Padre Lebret. Teve uma vertente protestante, cujo representante mais conhecido foi Paulo Stuart Wright. Na maioria composta de lideranças estudantis, como Herbert José de Souza (Betinho), Jair Ferreira de Sá, José Serra, Vinícius Caldeira Brant, Aldo Arantes, Haroldo Lima, Duarte Lago Pacheco e outros, teve também a adesão de lideranças camponesas, como Manoel da Conceição e José Gomes Novais, e de lideranças operárias.

Antes de 1964, circularam periódicos como Ação Popular, Brasil Urgente (fundado por frei Carlos Josaphat). “Sua defesa das reformas de base e das lutas dos trabalhadores promoveu o trânsito de milhares de católicos a posições de vanguarda” (Gorender - Combate nas Trevas).

Após o Golpe Militar de 1964, teve seus quadros principais jogados à clandestinidade ou ao exílio.

Segundo o Brasil: Nunca Mais: “Nos anos seguintes a AP reorganizava, aos poucos, sua estrutura, apoiando-se para tanto, especialmente, no meio universitário. E inicia uma demorada discussão para redefinir seus princípios políticos e filosóficos (...) De 1965 a 1967, em meio a controvertidas polêmicas, a organização caminha para a adoção do marxismo como guia teórico de suas atividades. Segundo o BNM, o grupo vencedor da polêmica foi o identificado com as idéias de Mao Tsé-tung, “assumindo uma linha política semelhante à do PC do B”.

A AP deslocou militantes para as fábricas e para o meio rural, provocando a saída de muitos militantes, mas, “por outro lado, foram feitas experiências interessantes de implantação em meios populares como o ABC paulista, da Zona Canavieira em Pernambuco, da região Cacaueira da Bahia, da área de Pariconha e Água Branca em Alagoas, e do Vale do Pindaré, no Maranhão”. Em 1968, surge a dissidência do PRT, liderada por padre Alípio de Freitas, Vinícius Caldeira Brant e Altino Dantas. O PRT foi atingido pela repressão em 1971, e praticamente desestruturou-se. Em 1973, o legendário camponês José Porfírio de Souza, líder dos conflitos de Trombas do Formoso, desapareceu após ser libertado da prisão em Brasília.

Em 1971, a APML aproximou-se do PC do B, fundindo-se com este no ano seguinte.

Um setor liderado por Jair Ferreira de Sá e Paulo Stuart Wright manteve a AP como organização independente. Em 1973, passou a ser conhecida como “AP Socialista”, aproximando-se da Polop e do MR-8.

Em outubro de 1970, Jorge Leal Gonçalves foi preso no Rio e tornou-se desaparecido político; em 1971, foram mortos o operário de Mauá Raimundo Eduardo da Silva, em 5 de fevereiro, e o agrônomo Luiz Hirata, em 16 de dezembro, ambos em São Paulo.

Em 1973, após a fusão do grupo maior ao PC do B, a AP Socialista foi praticamente desarticulada pela brutal repressão desencadeada pela infiltração do ex-militante Gilberto Prata Soares, e que levou às mortes de José Carlos da Mata Machado, Gildo Macedo Lacerda, e aos desaparecimentos de Paulo Stuart Wright, Honestino Guimarães, Humberto Câmara Neto, Fernando Augusto Santa Cruz de Oliveira e Eduardo Collier Filho, além da prisão de militantes e simpatizantes em vários Estados do país.

(in “Dos Filhos Deste Solo”, de Nilmário Miranda e Carlos Tibúrcio, editora Boitempo)

Opção ao maoísmo

Os fundadores do Partido Revolucionário dos Trabalhadores, saídos da Ação Popular, discordavam do maoísmo ortodoxo seguido pela direção da AP (luta antifeudal, cerco das cidades pelo campo, etc.) e defendiam uma linha diretamente socialista. Fundado formalmente em janeiro de 1969, o PRT chegou a executar algumas ações armadas no Rio de Janeiro e em São Paulo, atuando também no Recife, Pernambuco, e nos Estados de Minas Gerais e Goiás, até ser desestruturado no começo de 1971, após ser duramente atingido pelos órgãos da repressão. Pesquisa do Brasil:Nunca Mais aponta a existência de cinco processos na Justiça Militar envolvendo integrantes do PRT, dois dos quais referentes às atividades de Trombas do Formoso e de José Porfírio, líder camponês “desaparecido” desde 1971.

(in “Dos Filhos Deste Solo”, de Nilmário Miranda e Carlos Tibúrcio, editora Boitempo)

PORT - Partido Operário Revolucionário

Os grupos trotskistas

Desde 1929 existiram, no Brasil, diversos agrupamentos políticos reunindo os marxistas afinados com as idéias de Léon Trotsky, um dos líderes da Revolução Russa, de 1917, que terminou expulso da URSS no final da década de 20, quando o poder político daquele país começava a ser monopolizado pelo punho forte de Stalin.

O mais importante destes grupos trotskistas foi o Port, fundado em 1953 sob influência do argentino Homero Cristali, conhecido pela alcunha de J. Posadas. Durante muitos anos o Port publicou, em seu periódico Frente Operária, ensaios atribuídos a Posadas, na condição de responsável pelo Birô Latino-Americano da IV Internacional, fundado por Trotsky, no México, em 1938.

No início da década de 60, o Port passou a adquirir alguma expressão, especialmente por conta de adotar uma postura política nitidamente à esquerda do PCB. Tinha contigente reduzido, limitado praticamente a São Paulo, Rio Grande do Sul e Pernambuco, mas alcançou notoriedade com seu envolvimento nas agitações das Ligas Camponesas, quando foi alvo de prisões e processo político em plena vigência do governo Goulart, em um Estado como Pernambuco, onde era governador Miguel Arraes.

Com a reviravolta de 1964, o Port foi golpeado pela repressão política, mas conseguiu reanimar sua estrutura nos anos seguintes, principalmente nos meios estudantis de São Paulo, Brasília e Rio Grande do Sul. Deslocou alguns de seus militantes para trabalhar como operários na indústria, como foi o caso de Olavo Hansen, morto sob torturas no Dops de São Paulo, em 1970, após ter sido preso distribuindo panfletos em uma manifestação pacífica realizada nos festejos do 1º de maio.

Entre 1970 e 1972, o Port foi atingido por repetidas ondas de prisões, ocorrendo o mesmo com o grupo dissidente Fração Bolchevique Trotskista (FBT), focalizado logo a seguir.

Afora as diretrizes dos textos de Posadas, o que caracterizava a linha política do Port naquele período era condenação enérgica da luta armada sustentada por outros grupos de esquerda; uma certa defesa do papel empenhado pela União Soviética no contexto internacional (em clara discordância com as opiniões de outros grupos trotskistas do mundo inteiro); e a propaganda em favor de uma saída “peruana” para o processo político brasileiro, ou seja, a expectativa de que algum grupo de militares nacionalistas assumisse o poder no Brasil, para aplicar um modelo semelhante ao adotado no Peru pelo general Alvarado.

Em 1968, contitui-se a Fração Bolchevique Trotskista, dentro do Port, principalmente no Rio Grande do Sul, enquanto em São Paulo formava-se outra dissidência denominada Primeiro de Maio. Muitos anos mais tarde, em 1976, essas duas organizações, já plenamente rompidas com as idéias de Posadas, iriam se unificar sob a sigla de Organização Socialista Internacionalista (OSI), que ficaria mais conhecida pelo seu braço estudantil chamado Liberdade e Luta.

Uma parte da FBT tomou caminho diferente, a partir de 1973, indo gerar a Liga Operária, que foi atingida pelos órgãos de repressão em São Paulo, em 1977, antes de adotar a designação legal de Convergência Socialista.

É preciso registrar que, no caso dos grupos trotskistas, os fatores capazes de gerar dissidências e cisões nem sempre eram aqueles já presentes em outras organizações até aqui estudadas (programa, tática, estratégia, etc.). Uma vez que os seguidores de Trotsky consideram questão de princípio a articulação dos revolucionários em nível mundial (através da IV Internacional). Terminam acontecendo situações em que os “rachas” no Brasil refletem divergências entre lideranças e facções de outros países. Desse modo, pode-se observar que, além de divergências sobre tática política, as cisões ocorridas no Port para dar surgimento à FBT, à Liga Operária, à Organização Socialista Internacionalista e a outros grupos, corresponde também a dependências internacionais.

Enquanto os membros do Port permaneceram vinculados a J. Posadas e ao Birô Latino-Americano da IV Internacional, a FBT e a futura OSI aliaram-se ao Comitê de Reconstrução da IV Internacional, liderado internacionalmente por Pierre Lambert. O grupo da FBT, que iria dar nascimento à Liga Operária (depois Convergência Socialista), preferiu vincular-se à chamada Minoria da IV Internacional, sob influência do argentino-colombiano Hugo Miguel Bressano (também conhecido como Nahuel Moreno).

Um estudo mais criterioso poderia mostrar outros tipos de alinhamentos nesse plano, como é o caso da ala da POC, que, a partir de 1972, no exílio, orientou-se no sentido do trotskismo, assumindo as concepções do Secretariado Unificado da IV Internacional, que tem como expoente maior o professor da faculdade de Bruxelas, Ernest Mandel.

No Projeto BNM, 12 dos processos estudados referiam-se ao Port, distribuídos por São Paulo, Pernambuco, Rio Grande do Sul, Brasília, Rio de Janeiro e Ceará. Outros quatro processos abordavam a FBT e um outro tinha a Liga Operária como alvo, constando a respeito dos demais grupos trotskistas citados apenas referências indiretas em depoimentos e documentos anexados aos autos.

MNR - Movimento Nacionalista Revolucionário

Organização composta basicamente por militares cassados em 1964 e pelos que se salvaram do expurgo e se mantinham atuantes dentro dos quartéis. Teve no início forte influência do ex-governador gaúcho Leonel Brizola. Durante os primeiros anos de existência, sua direção ficou centralizada em Montevidéu, Uruguai, onde Brizola estava exilado. Chegou a ter o apoio dos cubanos, pois Fidel Castro via o MNR como o mais viável instrumento para a revolução brasileira, por ter grande número de militares em suas fileiras. Muitos de seus militantes e dirigentes fizeram treinamento militar em Cuba. Praticamente foi o MNR que desencadeou a luta armada no Brasil. 

Em 1965, lançou um movimento guerrilheiro na região serrana do Rio Grande do Sul, para “comemorar” o primeiro aniversário da deposição do Presidente João Goulart. Tomou cinco cidades e caiu preso em pouco mais de um mês de repressão. Tinha no comando o coronel Jefferson Cardim de Alencar Osório e mais um grupo de sargentos, todos cassados pela ditadura. Em 1967 fez outra tentativa de guerrilha na Serra de Caparaó, já dentro da perspectiva de revolução continental de Cuba, proposta pela conferência da OLAS. Foi destruída antes mesmo de começar. Em 1967 mesmo, o MNR estava destroçado pela repressão política. Após desligar-se da influência brizolista, uma parte fundiu-se com a Polop para dar origem a VPR e outra agrupou-se em torno de uma nova sigla, o Movimento Armado Revolucionário (MAR).

Nacionalistas revolucionários

Houve várias organizações armadas ligadas ao nacionalismo revolucionário de esquerda: MNR, MR-26, MR-21, MAR, FNL, RAN.

Segundo o Brasil: Nunca Mais, a raiz comum desses agrupamentos foram as mobilizações em prol das reformas de base, as agitações desenvolvidas entre as bases das Forças Armadas e, principalmente, as articulações vinculadas ao nome de Leonel Brizola nos anos anteriores ao Golpe Militar de 1964”.

Brizola foi eleito deputado federal pela Guanabara com uma votação histórica. Em novembro de 1963, lançou pela Rádio Mayrink Veiga a proposta de criação dos Grupos de Onze para defender as conquistas democráticas, as reformas de base e a libertação nacional. “Como um rastilho de pólvora, a proposta se alastrou por todos os Estados da Federação”.
Após o Golpe Militar de 1964, João Goulart e Leonel Brizola exilaram-se no Uruguai. Ali reuniram-se expoentes da esquerda do PTB, militares cassados e cidadãos que queriam resistir à implantação de uma ditadura militar. Daí nasceu o Movimento Nacionalista Revolucionário, que tentou, sem sucesso, implantar guerrilhas no país.

Em 1965, um grupo de 23 pessoas liderado pelo ex-sargento da Brigada Militar Gaúcha Alberi Vieira dos Santos e pelo coronel cassado Jefferson Cardim Osório constituiu uma coluna guerrilheira nos municípios de Três Passos e Tenente Portela. Foi lido um manifesto pelo rádio. Em seguida, o grupo atravessou Santa Catarina e chegou a Leonidas Marques, no Paraná. Não aconteceram sublevações militares em outras partes do país nem adesões, como eles esperavam.

O grupo debandou e Jefferson Cardim foi preso. Na repressão a esse movimento, morreu em 1965 o civil Elvaristo Alves da Silva, de Três Passos. Anos depois, em 1970, morreu Silvano dos Santos, já fora da prisão, que era irmão de Alberi.

O MNR estava inserido na estratégia da revolução continetal, com focos e colunas em vários países, tendo como pivô a guerrilha de Che Guevara, na Bolívia.

No Brasil haveria três focos guerrilheiros: um na Serra do Caparaó (divisa de Minas com Espírito Santo), um no Mato Grosso (perto da fronteira com a Bolívia) e outro entre o norte de Goiás e o sul do Maranhão. Só o de Caparaó começou a ser implantado, mas não chegou a travar combate. Em 3 de abril de 1967, o grupo todo foi preso. Um dos integrantes, o metalúrgico Milton Soares de Castro, morreu em Juiz de Fora, em 28 de abril de 1967. Em fevereiro de 1969 desapareceu no Rio de Janeiro Wlademiro Jorge Filho, que fazia a ligação da guerrilha com a cidade (reapareceu vivo em 1998, em São Paulo, depois que seu nome já fora reconhecido pela Comissão Especial). Com o insucesso de Caparaó, as outras frentes foram desativadas e o MNR ficou desarticulado.

O MR-26 existiu por pouco tempo. Originou-se de militantes que não foram presos quando da repressão ao grupo de Jefferson Cardim. Tomou esse nome em homenagem à guerrilha de Três Passos, deflagrada em 26 de março de 1965. Desse grupo foi morto o ex-sargento Manoel Raimundo Soares, em 1966, o famoso “caso das mãos amarradas”.

A FLN foi fundada pelo major do Exército, cassado em 1964, Joaquim Pires Cerveira. Ele auxiliou na fuga de Jefferson Cardim do quartel onde estava preso em Curitiba. (Dessa fuga participou o soldado Vitor Luiz Papandreu, que passou pelo exílio, por Cuba, e acabou sendo morto, segundo Amílcar Lobo, na “Casa da Morte” de Petrópolis pelo major Sampaio.)

A FLN teve vida curta e fez ações de guerrilha urbana no Rio Grande do Sul e no Rio de Janeiro. Em 1970, Cerveira foi preso juntamente com sua esposa, Maria de Lourdes, e um filho. Foram torturados. Nesse ano foi banido com mais 39 presos políticos, trocados pelo embaixador alemão. Em 1973, Joaquim Cerveira, juntamente com João Batista Rita, foi seqüestrado em Buenos Aires por policiais brasileiros e trazido ao Brasil. Ambos integram a relação de desaparecidos políticos.

O Movimento Revolucionário 21 de Abril (MR-21) estava se organizando para deflagar uma guerrilha no Triângulo Mineiro, sob a liderança do jornalista Flávio Tavares, quando foi desarticulado em Uberlândia, com a prisão de Tavares em Brasília.

”O Movimento de Ação Revolucionária (MAR) representou uma articulação de militares presos na Penitenciária Lemos de Brito, no Rio de Janeiro, processados e condenados por seu envolvimento nas ações da Associação de Marinheiros e Fuzileiros Navais do Brasil e no Levante dos Sargentos, em 1963. Em maio de 1969, esse grupo conseguiu encetar uma fuga espetacular daquela penitenciária, sendo perseguido durante vários dias pelas montanhas da região de Angra dos Reis, de onde se evadiram para executar, no Rio, algumas ações armadas.” (Brasil:Nunca Mais)

Da repressão a este grupo resultaram as mortes de Roberto Cietto e Marco Antônio da Silva Lima em 1969 e 1970.

Segundo o Brasil: Nunca Mais, “quando começaram a ser soltos os militantes envolvidos na guerrilha do Caparaó, no segundo semestre de 1969, teve início uma nova articulação que, em um primeiro momento recebeu a designação de Movimento Independência ou Morte (MIM), e mais tarde passou a se chamar Resistência Armada Nacional (RAN), localizada e desmantelada no Rio e em Minas, no início de 1973, quando planejavam suas primeiras operações armadas. Consta que, nessa seqüência de prisões, foi morto sob torturas o ex-sargento veterano da Força Expedicionária Brasileira José Mendes de Sá Roriz”. Na verdade, após a desarticulação do MNR, vários militares cassados envolveram-se com outras organizações como a ALN, VPR, PCBR, Colina. Os casos dos mortos e desaparecidos referentes a esses ex-militares estão tratados nos capítulos dedicados a essas organizações.

Neste capítulo, além dos casos citados, está relatado o de Edgar Aquino Duarte, desaparecido político.

(in “Dos Filhos Deste Solo”, de Nilmário Miranda e Carlos Tibúrcio, editora Boitempo) 

Antônio Carlos Pavão Entrevista - Agosto/2002

Pavão saiu do interior de São Paulo após completar seus 18 anos. Depois de ter freqüentado escolas públicas, desde o grupo escolar, ginásio e científico. Fez um ano de cursinho e conseguiu o 1° lugar na aprovação do vestibular da Universidade de São Paulo (USP). Prestou também vestibular na cidade de Brasília para Geologia, mas resolveu cursar Química na USP. Em 1976, fez seu mestrado em físico-química e já em 1978 terminava seu doutorado. Em 1979 entra como professor da UFPE, como está até hoje. Lá, em sua sala, Pavão recebeu a reportagem do Portal do São Francisco e falou por horas. Até se permitiu as confidências que se seguem. Reportagem: Paulo Marceloa Pontes 

http://www.portaldosaofrancisco.hpg.ig.com.br/entrevistas/pavao.html

Portal do São Francisco: Você fez parte do Movimento Estudantil na sua época?

Antônio Carlos Pavão: Participei desde o secundário. No científico, por exemplo, em 1966 e então este era o período que o movimento estudantil começava a ganhar força contra a ditadura. Naquela época, tínhamos a União Paulistana dos Estudantes Secundaristas e a União Pomperiana dos Estudantes Secundaristas (Pompéia - cidade do interior de SP) na qual eu era vice-presidente. E desde aquela época eu já tinha uma visão mais clara da política. Fazia-se passeatas lá na cidade de Pompéia. Em 1969, estava fazendo cursinho e o pessoal - Equipe - era da USP que tinha algumas divergências com o grêmio (tipo centro acadêmico da Faculdade de filosofia da USP, que era um pessoal mais atuante). Como tinha também o grêmio da politécnica (das engenharias). Criou-se um « racha » entre os grêmios de filosofia e nasceu esta Equipe vestibulares, um pessoal mais a esquerda deste grêmio. Então eu convivi com este pessoal neste período. Depois criou-se o Colégio Equipe onde posteriormente eu dei aula. Aprendi muito neste período.

Portal: E na universidade?

Pavão: Quando entrei na USP, eles tinham uma política no centro acadêmico (C. A.) de que quem deveria assumir o centro eram os calouros. Aí fui logo participar do C. A. e me botaram na chapa inicialmente como diretor esportivo, uma coisa assim (...). Mas, na campanha que agente estava para se eleger, só tinha nossa chapa, prenderam o Castor, um amigo nosso da chapa. E ele era candidato a vice presidente da chapa. Centrim era o nome da chapa. Por causa desta triste ironia, eu acabei sendo o vice-presidente. E aí eu me envolvi muito na política estudantil. Logo fiquei sabendo que tinha um professor de Química, Serginho, que estava preso. Todos nós entramos na campanha de libertação do Serginho, porque naquela época, ficar preso, não era brincadeira não, torturavam e matavam. Seis meses depois, ele acabou sendo solto. Também convivi com o Alexandre Vazoquileme, que hoje o DCE da USP tem seu nome. Ele fazia Geologia, mas nós pagávamos matemática (o que hoje é cálculo) juntos. 

Nesta mesma época estava acontecendo uma reforma universitária, quando se implantou as cadeiras básicas dos cursos, como é a Área II (área de exatas da UFPE) hoje. O Alexandre foi preso, torturado e assassinado pela ditadura. Segundo ela, ele tentou fugir e acabou sendo atropelado. O certo é que até hoje a família não recuperou o corpo dele. Então eu convivi em um ambiente assim. Em 1972 houve uma invasão no Instituto de Química da USP. O pessoal da Operação Bandeirante, o « braço » do Exército, que combatia, prendia os chamados comunistas, subversivos, tal. Então, eles invadiram o Instituto e levaram a professora de Química Analítica Quantitativa, Professora Ana Rosa. Depois ela apareceu morta e o marido dela também. Imagina o clima que agente vivia... Em 1974, comecei a dá aulas no colégio Equipe Vestibulares. Dava aula para André Singer - ele não é o coordenador da campanha do Lula agora? - esse Arnaldo Antunes e várias pessoas. 

Portal: E daí o Partido PSTU?

PAVÃO: Então, em 1976 eu entrei para a chamada Liga Operária, que era um partido trotsquista. Eu comecei a dar aula com esse Dom Cláudio Hermes, candidato a papa, aí o Cláudio abrigava grupos. No meu caso, eu dava aula de supletivo a noite para este grupo. Comecei a dá aula de matemática, mas na verdade, eu ensinava porcentagem para que eles reivindicasse nos sindicatos seus direitos. A Liga Operária tinha uma política de atuação nos sindicatos. Eu atuava em sindicatos. Tinham outra turma lá, outra linha do trotsquismo que apoiava a luta armada. Nós éramos contra a luta armada, como o PcdoB. Ninguém me conhecia pelo meu nome verdadeiro. Meu nome era Juca e minha mulher também tinha outro nome. Ela também militava. Em 1977 começou a campanha política para Deputado Estadual e Federal. Tinha dois partidos: MDB e a Arena, então nós lançamos um movimento pela convergência socialista. O chamado Liga Operária, depois passou a se chamar PST - não o PST de hoje, e finalmente PSTU. Lançamos o movimento pela convergência socialista, que era um movimento pela criação de um terceiro partido socialista. Nós vivíamos na clandestinidade e era para legalizar o PST. 

O movimento chamava todos socialistas pela convergência. E, conseguimos o que queríamos; legalizar nosso partido. E a campanha para Deputado teve um cara chamado Jau que se candidatou a Deputado Estadual. Resolvemos apoiá-lo desde que ele levasse para frente o nosso programa (liberdade, anistia, por um partido socialista dos trabalhadores) e ele concordou. Para Deputado Federal foi o Benedito Marcílio, na época, presidente do sindicato dos metalúrgicos de Santo André. Lula era o presidente de São Bernardo. Os dois não se bicavam. O Marcílio era um cara comprovadamente oportunista, que depois que se elegeu, foi para o PTB. Mas ele era um cara de expressão. Ele não admitia colocar o socialismo. Ele dizia: « PT eu coloco, mas PST não » no programa dele. 

A gente estava crescendo muito e aí um cara da Argentina que morava na França, veio ao Brasil. Parece que tinha gente infiltrada no partido, pois a polícia acabou sabendo da vinda dele pra cá. Ele acabou sendo preso juntamente com todo o comitê central, menos um. Eu não era do comitê central, nunca quis participar. Aí ficou só um cara e eu era o dirigente intermediário. Peguei este cara (ele era um repórter da Folha de SP) e o levei para um acampamento evangélico, a Palavra da Vida, e o deixei lá, isolado. Naquela época, as prisões já não eram tão torturada e tínhamos comunicação boa. 

O comitê central me designou para ser o assessor de Benedito, porque o dele tinha sido preso. Ele continuava com a mesma idéia de PT sim, PST não. Precisávamos de apoio para propaganda, aí eu cheguei para ele e disse para ele pôr PT mesmo. Foi a primeira vez que saiu o PT em qualquer coisa no mundo da política. Por isso eu brinco dizendo que quem lançou o PT fui eu. Mas eu levei a maior reclamação do pessoal do comitê. Eles diziam: « capitulou as expressões pequeno-burguesas do oportunista. Mas está claro que foi a convergência socialista quem levantou a bandeira do PT, e o Lula sabe disto. Certa vez, fui conversar com ele a respeito do partido e ele me falou que este negócio de partido, isto era negócio para estudantes, o negocio dele era o sindicato. Ele não era do PT, ele entrou depois. Ele sabe desta história de que quem lançou o PT foi o inimigo dele; Benedito Marcílio. "Por isso eu brinco dizendo que quem lançou o PT fui eu ».

Portal: Já agora, na década de 90, você participou do Governo Arraes (Miguel Arraes, ex-governador de Pernambuco)?

Pavão: Aquilo foi o seguinte: quando Arraes ganhou as eleições, o Sérgio Rezende esteve aqui, nesta sala, pedindo que eu ajudasse em uma comissão para analisar a CPRH, que eu poderia ajudar na parte química. Eu falei que não tinha votado no Arraes e sim no PSTU e ele falou que eu poderia ajudar. Ajudei. Fiz o meu trabalho e ele me convidou para ser diretor de controle de poluição da CPRH. Não aceitei. Aí ele me chamou para o Espaço Ciência e então, já que eu estava trabalhando com divulgação científica, me interessei pela proposta. E fiquei pelos quarto anos do governo. Depois na outra eleição, acabei votando no Arraes, mas ele perdeu a eleição. Me preparei para sair do cargo, já que é de confiança, e o Cláudio Marinho me convidou para continuar. Não me grilei em ficar porque exerço cargo de educador. Do ponto de vista político, não sou filiado a ninguém. 

Portal: E hoje, como você vê sua filha também no lado político?

Pavão: Estamos vivendo em um momento histórico de um processo. Hoje o socialismo está em baixa, vamos dizer entre aspas, nunca esteve tão próximo o socialismo, tão necessário como o período que estamos vivendo. Mas desde que Stalin assumiu o poder em 1924 na URSS é que se instalou uma contra revolução de destruir as conquistas dos trabalhadores, conquistas históricas. Hoje existe muita gente diz que o socialismo não tem essas coisas, o socialismo, na verdade, nunca se implantou. O que existiu foi o stalinismo, um estado operário burocratizado. Hoje, como toda contra propaganda, existe a sociedade que fica sem perspectiva. Porque no meu tempo, nós tínhamos uma perspectiva muito clara que era a luta pelo socialismo. Todos lutavam com este objetivo. 

Hoje, qual é a grande referência para a sociedade? Não é mais o socialismo no ponto de vista do discurso, mas de necessidade histórica, sem dúvidas. Eu acho que a sociedade, que a juventude amadurece, cada vez mais o inevitável. Como dizia Lênin, só há duas alternativas: Ou o socialismo, ou a barbárie. A barbárie está muito próxima, estamos vivendo no limite da barbárie ou já na própria. Mas é o socialismo que nos dá resposta a solução dos problemas da sociedade. Segundo o próprio Lênin descreveu, é o esquerdismo, é a doença infantil do comunismo. O socialismo não vai ser incorporado do dia pra noite, assim como o capitalismo também não foi. Vamos ter o nosso momento. O socialismo, na verdade, nunca se implantou. O que existiu foi o stalinismo, um estado operário burocratizado.

Portal: Em toda a entrevista, você fala de política aliada a ciência. Como foi a influência dos professores Paulo e Eduardo?

Pavão: Eu sempre defendi o socialismo científico. Para entender a fundo a estrutura socialista, tem-se que conhecer a ciência, a tecnologia. Uma coisa é casada coma outra. Jamais poderá falar no avanço social, sem deter o conhecimento da ciência e a tecnologia. Por isso quando militava e dirigia células, a primeira parte da reunião era saber a respeito das notas dos militantes, porque o cara que tivesse mal, iria estudar novamente e voltar. Como é que pode você estudante falar para os seus colegas que isso ou aquilo é melhor se você é um mal aluno? Você perde toda a credibilidade. Eu acho fundamental. Eu falo para minhas filhas que querem militar; elas têm de fazer a tarefa de casa e bem feito. Você, por exemplo, vejo que se dá bem em alguns campos de atividades, mas também dá conta do recado, né? Eu nem daria muita satisfação a você se soubesse que você é como um monte de estudantes que vejo, por aqui mesmo na universidade, que não quer estabilidade profissional. Vejo alunos na política, mas desmoralizados entre os colegas. Muita gente me influenciou. Tanto em São Paulo como aqui. Além do Paulo Duarte, Ricardo Ferreira... 

Portal: O Espaço Ciência, como anda?

Pavão: Veja só, o negócio é dá murro em ponta de faca e falar assim, não é o governo Arraes ou o governo Jarbas... Essas coisas de governo eu não quero. Ora, quantos trabalhos nós fazemos nessa vida que são trabalhos revolucionários? Você tem de aproveitar as brechas que aparecem na sociedade, então eu acho que muita gente conhece o trabalho que agente faz no Espaço Ciência. É um trabalho que hoje, estou convencido, que a revolução precisa. Precisa é de educação, ciência e tecnologia. Então o trabalho que agente desenvolve no ponto de vista político tem esta conotação. Quem deter o poder é quem deter conhecimento e o Espaço Ciência contribui para difundir esse conhecimento. Hoje estamos com cerca de 50 mil pessoas por ano nos visitando, isso nos coloca como o terceiro maior museu do Brasil e agora estamos conseguindo uma verba para expandir o Espaço Ciência.

Portal: Além de químico, você mexe com astronomia, como é aquele negócio de jaqueira?

Pavão: Risos. Isso foi uma história... Estava eu e Sérgio Mascarenhas, a biblioteca daqui (Biblioteca do Centro de Ciências Exatas e da Natureza da UFPE) tem o seu nome por ele ter contribuído para o desenvolvimento do departamento de Química. E o Sérgio foi lá em casa, fomos jantar e ele viu aquela jaqueira carrega e ele me perguntou se eu não tinha medo de cair uma jaca na minha cabeça, eu falei que ficava torcendo para isto acontecer. Imagine o tamanho da teoria que eu iria fazer?... Se o Newton fez com uma maçã ...
Risos...

Portal: Para finalizar, o que você acha sobre os novos rumos da química?

Pavão: Ela caminha para o que chamamos de ciência central. Nós, hoje, estamos iniciando uma dinâmica que agente está revertendo aquela fragmentação do conhecimento que se iniciou no século XVI, XVII, XVIII, XIX de diversas áreas. Então como a química está se tornando uma ciência central, ela está englobando várias áreas como a biologia, por exemplo. A química caminha para a ciência central. O que falta é uma teoria unificada, compatível ao papel da ciência. Que sirva para explicar os fenômenos. Eu tenho minha teoria; acho que já existe essa teoria que é da ressonância. Tenho trabalhado nesta diversão!


FONDO CONVERGÈNCIA SOCIALISTA DE CATALUNYA (CSC). 

Documentación de su constitución, en julio de 1974, hasta el año 1976. Tras la celebración del I Congreso Regional, los esfuerzos de la F.S.M. se centraron en la consecución de la unidad socialista. Los primeros contactos se realizaron con Convergencia Socialista de Madrid, integrada en la Federación de Partidos Socialistas. El día 15 de mayo de 1977 se celebró un Congreso de Unificación en el que ambas formaciones políticas quedaron formalmente unificadas.

El Partido Socialista Obrero Español (PSOE) es el que va a recoger el masivo voto de izquierdas. Tras la muerte de Franco consigue dar una imagen de juventud, de dinamismo, de capacidad de organización, de aceptación internacional, que hace que la mayoría de la población acabe identificándolo con la oposición al régimen. Del 5 al 7 de diciembre de 1976, antes de la legalización, el PSOE organiza su primer congreso tras la muerte del dictador, el primero en España tras 32 años, el XXVII Congreso del partido, reuniendo en Madrid a personajes de la talla de Willy Brandt, presidente de la Internacional Socialista, Olof Palme, Primer Ministro de Suecia, Bruno Kreisky, Primer Ministro de Austria, Anker Joergeson, Primer Ministro de Dinamarca, el aplaudidísimo líder socialista chileno Carlos Altamirano, el italiano Pietro Nenni. Todos ellos han llegado para legitimar como secretario general de los socialistas españoles a Felipe González, que encabeza el partido junto a Alfonso Guerra desde el anterior Congreso de Suresnes, en el que la vieja guardia de Ramón Llopis les ha cedido el paso, no sin algún trauma.

La retórica utilizada en el 27º Congreso es extraordinaria: 

Altamirano propone unir los esfuerzos de comunistas y socialistas para construir un bloque anticapitalista de clase, se usan positivamente palabras como marxismo y República, se rechaza cualquier posible acomodo con el capitalismo, se renueva la voluntad de mantener una escuela pública única, se propone administrar la justicia mediante tribunales populares elegidos por los ciudadanos, se quiere implantar en España un modelo nuevo no implantado en ningún país. 

Todo esto euforiza a los militantes, mientras que, de cara al electorado, el lenguaje es extremadamente más moderado y consigue concentrar votos. Además, el PSOE logra reunir bajo sus siglas a Convergencia Socialista, de procedencia católica, y a otras agrupaciones socialistas, como por ejemplo a los catalanes del PSC, que durante el franquismo han llevado una vida prácticamente autónoma. Felipe González no conecta en cambio con el Partido Socialista Popular (PSP) de Enrique Tierno Galván, teóricamente más radical, pero que atrae en la práctica un voto más intelectual, diríamos que azañista, y obtiene 6 escaños en las elecciones.

La simpatía y el carisma de Felipe González junto al populismo de Alfonso Guerra, son en buena parte los responsables de que el PSOE pase del 10% que le vaticinan las encuestas antes de la campaña electoral al 29% (118 escaños) que consigue el 15 de junio.


O PST argentino, liderado por Nahuel Moreno, organizou a formação da Liga Internacional dos Trabalhadores (LIT), uma dissidência da IV Internacional -- Secretariado Unificado, em 1981, em Bogotá. Após a morte de Moreno, em 26 de janeiro de 1987, a LIT viveu sua crise no final dos anos 80 e início da década de 1990. O momento maior da crise foi o fracionamento do Movimento ao Socialismo, que substituira o antigo PST.

A tradição do trotskismo está representada em nosso país por diversas organizações que foram a continuidade uma da outra, mas ao mesmo tempo representaram diferentes fases da sua trajetória: a Liga Operária (1974-1978); o PST de curta vida (meses de 1978) e finalmente a Convergência Socialista (1978 – 1994).


FONTES DE ESQUERDA ONDE O PT BEBEU

O DNA político do Partido dos Trabalhadores formou-se quando o Muro de Berlim era símbolo da divisão ideológica do mundo e as organizações de esquerda seguiam à risca a cartilha marxista. Nas veias do partido criado em 1980, corriam o radicalismo latente de seus métodos de ação, a proposta de ruptura total com o capitalismo e o sonho da hegemonia política dos operários – características herdadas das fontes onde seus fundadores haviam bebido. A base foi assentada sobre o sindicalismo metalúrgico do ABC e sua irresistível capacidade de mobilização. Fora das fábricas, a força vinha das Comunidades Eclesiais de Base, ligadas à Igreja Católica. Umbilicalmente ligadas aos movimentos comunitários e atuantes no meio rural, as CEBs carregaram para dentro do PT uma organização espalhada por todos os cantos do País. O terceiro pé do tripé eram as organizações de esquerda. 

Naquele momento, militantes dessas correntes estavam sendo libertados ou voltavam para o País depois de longos exílios no exterior. Desembarcavam como “órfãos políticos”, nas palavras do historiador Jacob Gorender. Duramente reprimidas durante os anos de chumbo da ditadura militar, as organizações que os abrigavam haviam se reduzido a pequenos grupos clandestinos com atuação concentrada no movimento estudantil. Eram trotskistas, como O Trabalho e Convergência Socialista. Ou leninistas, a exemplo do Movimento de Emancipação do Proletariado e o Partido Comunista Brasileiro Revolucionário. Ou até maoístas como a Ala Vermelha. O PT oferecia para eles uma numerosa base operária e popular – que até então existia mais nos discursos desses grupos do que em seus quadros de filiados. Em contrapartida, entregaram ao PT conceitos políticos e métodos de organização partidária – antigas carências dos sindicatos e das CEBs.

O PT nasceu assim e assim ficou nos anos seguintes. Se a prática era inovadora, o ideário baseava-se em Trotsky e Stalin. Sua pregação consistia em “mobilizar o operariado explorado” para que, unido ao “campesinato excluído pelos grandes latifundiários”, criasse uma sociedade livre dos “vícios pequeno-burgueses”. Nela o poder “emanaria da ditadura do proletariado”, permitindo assim a “socialização dos meios de produção”, a “reforma agrária radical” e o “fim da propriedade privada.” Hoje esse emaranhado de jargões parece tão anacrônico quanto o Muro de Berlim. Mas durante anos essa marca colou como tatuagem na imagem do PT e transformou-se em um fardo eleitoral para o partido. 

Duas eleições presidenciais perdidas levaram seus dirigentes a suavizar as feições partidárias. Em 1995, a ala mais moderada, reunida em um grupo batizado de Articulação, abriu os cotovelos e empurrou para as margens do universo petista as tendências mais radicais. Não foi uma guinada fácil. As camisas-de-força impostas a essas correntes provocaram rachaduras que não cicatrizaram. 

A Convergência Socialista, por exemplo, abandonou o PT e criou o Partido Socialista dos Trabalhadores Unidos, o PSTU. O mesmo caminho foi seguido pela Causa Operária, e assim nasceu o Partido da Causa Operária (PCO). Outras se adaptaram às novas diretrizes. O Partido Comunista Revolucionário (PCR) dissolveu-se e permaneceu nos quadros petistas. Não fosse assim, seu mais famoso militante, José Genoino, talvez não fosse o candidato ao governo de São Paulo.

Mais silenciosos hoje, esses grupos fundiram-se, mudaram de nome, mas conservam os princípios ideológicos. Mantêm participação ativa, embora o controle esteja nas mãos do Campo Majoritário, sucessor da Articulação. A convivência de grupos cada vez mais estranhos entre si pode ser atribuída a Lula e José Dirceu. Foram eles, desde sempre, os costureiros dessa grande colcha de retalhos. Com o passar dos anos, ajudaram a transformar o PT em tecido resistente, aparentemente sem fissuras e com pespontos invisíveis aos olhos menos acostumados à política. Lula tem sido o nome aceito por todas as tendências. 

O ecletismo do PT é encontrado em outros partidos. Só que em seu caso isso é exposto publicamente. Até mesmo na criação de seu símbolo, a famosa estrela vermelha, a pluralidade foi registrada. Era uma noite quente de 1980 e um grupo de sindicalistas estava reunido em um boteco em São Bernardo. A conversa era regada a cerveja e rabo-de-galo, mistura de cachaça e cinzano. Um dos presentes, o jornalista Júlio de Gramont, rabiscava um guardanapo e mostrou para Lula: o desenho de uma estrela de cinco pontas. “Esse é o símbolo do PT”, teria dito. “As pontas representam a pluralidade.” Nas eleições de domingo 27, a estrela incorporou-se de vez à constelação política do País – algo que parecia impossível nos sonhos daquela noite de verão de 1980, mesmo sendo embalados por goles de cerveja e rabo-de-galo. Para muitos, essa história é lenda, mas quem se importa com isso?

Revista IstoÉ, Quarta-feira, 30 de Outubro de 2002
www.terra.com.br/istoedinheiro/270/economia/270_lula_fontes_esquerda


mardi 25 octobre 2016

lundi 24 octobre 2016

Pede-se ser levantado

A existência a partir da tradução

Ou, “há que ler o desejo: sem terra, sem pátria e sem objeto, ele vaga por um deserto, cujas trilhas conduzem o leitor à experiência limite mais-além do que aparece na imagem”.

Prof. Dr. Jorge Pinheiro

O fazer da existência vale a pena. A eternidade aprecia esse bem-fazer humano, que tem seu próprio tempo, que integra a existência de cada ser na história dos fazeres humanos. É por isso que Bereshit, o primeiro texto na Torá, apresenta um ponto zero. O tempo zero vai do entardecer à meia-noite. É quando o sol desilumina o nosso espaço de forma gradual. O tempo do não-ser não é uma fratura do tempo, é tempo da história. Qoh não contempla a passagem do tempo, mas a vinda do tempo. O tempo significa nada ou pouco para o eterno, mas há um sentido de tempo para o humano. A conclusão de Qoh é que temos de ser no tempo para dar valor à eternidade que brota do nada do não-ser. E a partir de Qoh vamos a Paulo de Tarso.

Pede-se ser levantado

“Você está falando de bens materiais, de coisa frágil. Se você tem certeza de que esses bens ficarão sempre com você, fique com eles sem partilhar com ninguém. Mas se você não é o senhor absoluto deles, se tudo que você tem depende mais da sorte do que de você mesmo, por que este apego a eles?”.[1]

Fuks conta que Freud, um dia depois do sepultamento do pai, sonhou com um cartaz onde estava escrito: “Pede-se fechar os olhos”. Mais tarde, em carta a Fliess, o pai da psicanálise falou dos sentidos subjetivos da frase: “era parte da minha auto-análise, minha reação diante da morte de meu pai, vale dizer, diante da perda mais terrível na vida de um homem”.[2]

Não vou entrar nos detalhes das leituras que o próprio Freud fez da frase que apareceu em seu sonho. Diria ao leitor que vale a pena ler Freud e a Judeidade. Pretendo aqui levantar uma proposta de Fuks: “há que ler o desejo: sem terra, sem pátria e sem objeto, ele vaga por um deserto, cujas trilhas conduzem o leitor à experiência limite mais-além do que aparece na imagem”. É a partir dessa hermenêutica, que vamos ler trechos do final da primeira carta de Paulo aos Coríntios. 

“... Foi sepultado e foi despertado do sono no terceiro dia, de acordo com o escrito”. 

A frase acima, e a continuação do texto, é uma das mais importantes sobre a egeiro e anástasis, duas expressões gregas não substancialmente diferentes, que sintetizam a teologia da anástase dos cristãos do primeiro século. As traduções posteriores, e creio que dificilmente poderiam ser diferentes, criaram um padrão de imagem que dificultam a experiência do ir além. Por isso, fomos obrigados antes da tradução transversa fazer a desconstrução histórico-filosófica da anástase.

As leituras da anástasis e egeiró remontam a Homero e ao grego antigo e com seus sentidos correlatos axanástasis, anhistémi e anazaó, que podem ser traduzidas por “ficar de pé”, “ser levantado” e “voltar à vida”, foram fundamentais para a construção do conceito anástase, amplamente utilizado pelas ciências do espírito. Mas é com Platão, na literatura filosófica, que vamos encontrar um debate fundamental para a teologia da anástase, quando apresenta a alma enquanto semelhança do divino e o corpo enquanto semelhança do que é físico e temporário. 

Platão, em Fédon[3], num diálogo entre Sócrates e seus amigos defendeu a idéia da imortalidade da alma. Sócrates foi condenado à morte por envenenamento, mas não teve medo, por crer ser a alma imortal. Para Platão, as almas possuem semelhanças com as formas, que são realidades eternas por trás do mundo físico, natural. Nesse sentido, para Platão, o corpo morre, mas a alma não. Ele parte do padrão cíclico da natureza, frio/ quente/ frio, noite/ dia/ noite. Assim, os mortos despertam numa nova vida depois da morte: caso contrário, a vida desapareceria. 

E dirá através de Sócrates em Fédon: “(...) perguntemos a nós mesmos se acreditamos que a morte seja alguma coisa? (...) Que não será senão a separação entre a alma e o corpo? Morrer, então, consistirá em apartar-se da alma o corpo, ficando este reduzido a si mesmo e, por outro lado, em libertar-se do corpo a alma e isolar-se em si mesma? Ou será a morte outra coisa? (...) Considera agora, meu caro, se pensas como eu. Estou certo de que desse modo ficaremos conhecendo melhor o que nos propomos investigar. És de opinião que seja próprio do filósofo esforçar-se para a aquisição dos pretensos prazeres, tal como comer e beber?” 

Paulo conhecia a discussão filosófica grega acerca da anástase, já que isso se evidencia em seus escritos, principalmente no trecho que estamos analisando, mas é certo que construiu seu conceito também levando em conta a tradição judaica, acrescentando novidades ao debate teológico. Existem referências ao ser trazido de volta à vida nas escrituras hebraico-judaicas. Mas a preocupação judaica era existencial, como vimos em Qohélet. Mais do que remeter a um futuro distante, embora tais leituras estejam presentes na teologia de alguns profetas, as histórias de anástase relacionadas aos profetas Elias e Eliseu falam do aqui e agora. Aliás, este último, mesmo de depois de morto, trouxe à vida um defunto que foi jogado sobre sua ossada. Ao tocar os ossos de Eliseu, o morto ficou vivo de novo e se levantou. Esse caminho será a novidade da compreensão cristã/ helênica da anástase.

“Somos arautos de que o ungido foi levantado do meio dos mortos: como alguns podem dizer que não há o ser erguido dos mortos? E, se não há o despertar do sono da morte, também o ungido não foi levantado. E se o ungido não foi levantado, é inútil o que falamos e também inútil a nossa crença. Somos então testemunhas falsas, porque anunciamos que Deus ergueu o ungido. Mas se ele não foi levantado, os mortos também não são erguidos. E se os mortos não são erguidos, o ungido também não o foi. E, se o ungido não foi erguido, a nossa crença é inútil e vocês continuam a vagar sem destino. E os que foram colocados para dormir no ungido estão destruídos”. 

Outras fontes de Paulo foram o profeta Daniel e outras literaturas intertestamentárias, que trabalharam com a idéia de “despertar subitamente do sono”. Chifflot e De Vaux[4] situam o livro de Daniel no período helênico por entender que é uma edição de antigos fragmentos do período babilônico, compilados, organizados e contextualizados ao momento histórico descrito no capítulo onze. Nesse capítulo, as guerras entre lágidas e selêucidas, assim como as investidas de Antíoco IV Epífanes contra Jerusalém e o templo são narradas com riquezas de detalhes. Ao contrário do que acontece nos livros proféticos anteriores, aqui o autor cita fatos aparentemente insignificantes, querendo demonstrar que é uma testemunha ocular da história. Dessa maneira, a edição que conhecemos do livro de Daniel deve ser situada no período da grande perseguição de Antíoco IV Epífanes, possivelmente entre os anos de 167 e 164 a.C., segundo Chifflot e De Vaux, já citados. A partir desse enquadramento, os capítulos 7 a 12 de Daniel, enquanto edição são chamados de “vaticinia ex eventu”, dado que o texto é contemporâneo aos acontecimentos descritos. Esses capítulos expressam a reação contra a helenização da Judéia e das perseguições em curso, mas, paradoxalmente, uma forma de pensamento afetado pela civilização helênica.

A partir da segunda metade do livro, o autor trabalha sobre dois temas registrados na primeira metade: que o judeu deve ser fiel a Deus em meio à tentação e à provação; e que Deus defende o servo leal que prefere morrer a violar os mandamentos. Nos seis capítulos finais, o sábio (ou grupo de sábios, cujos escritos foram compilados por um redator) retoma o conteúdo das visões que teve em relação à profanação do templo, em 167 a.C., e o erguimento da “abominação desoladora”. 

Durante o período helênico idéias novas afloraram em meio à vida judaica, entre elas a esperança da recompensa escatolõgica apresentada pelas profecias apocalípticas, como em 2Macabeus 7, Daniel 12:2-3 e o Escrito de Damasco 4:4, que se traduzem concretamente na anástase.

Assim, os elementos novos da compreensão paulina da anástase já aparecem delineados no profeta Daniel: “Muitos dos que dormem no pó da terra despertarão, uns para a vida eterna, e outros para vergonha e horror eterno. Os que forem sábios, pois, resplandecerão como o fulgor do firmamento; e os que a muitos conduzirem à justiça, como as estrelas, sempre e eternamente”. Paulo, porém, somará um componente existencial à compreensão de Daniel, dirá que a morte, o maior de todos os odiados pela espécie humana, será privada de força.

“Caso o ungido só sirva para esta vida, somos as pessoas mais dignas de lástima. Mas o ungido foi levantado dentre os mortos e foi o primeiro fruto dos que foram colocados para dormir. Porque se a morte chegou pela humanidade, também o ungido dará à luz nova vida. Como morre a espécie, no ungido ela recebe vida. E isso acontece numa ordem: o ungido é o primeiro fruto, depois os que pertencem ao ungido, quando ele aparecer. E veremos o limite, quando o ungido entregar o reino a Deus e Pai, e tornar inoperante o império, os poderes e os exércitos. Convém que seja rei até derrubar os odiados por terra. O último odiado a ser privado de força é a morte, porque o resto já foi colocado debaixo de seus pés”. 

É interessante que Paulo em seu texto sobre a anástase cita o dramaturgo, filósofo e poeta grego Menandro (342-291 a.C.), que num verso disse: “as más companhias corrompem os bons costumes”. E voltando ao Misantropo: “insisto que, enquanto você é dono deles, você deve usá-los como um homem de bem, ajudando os outros, fazendo felizes tantas pessoas quantas você puder! Isto é que não morre, e se um dia você for golpeado pela má sorte você receberá de volta o mesmo que tiver dado. Um amigo certo é muito melhor que riquezas incertas, que você mantém enterradas”. Tudo indica que Paulo gostava de teatro e de comédias.

Que Paulo recorreu à tradição profética fica claro quando cita o profeta Oséias literalmente: “eu os remirei do poder do inferno e os resgatarei da morte? Onde estão ó morte as tuas pragas? Onde está ó morte a tua destruição?”. Mas há uma correlação entre Platão e a tradição hebraico-judaica, que pode ser lida nesta carta de Paulo. Isto porque, como afirma Fuks, o leitor desconstrói, pois ler não é repetir o texto: é um modo de criação e de transformação. Por isso, digo que ler é um ato de anástase. E Paulo trabalhou de forma brilhante o termo, tanto nas suas leituras e estudos, como na reconstrução do próprio conceito.

“Que farão os que se batizam pelos mortos, se os mortos não são chamados de volta à vida? Por que se batizam então pelos mortos? Por que estamos a cada hora em perigo? Protesto contra a morte de cada dia. Eu me glorio por vocês, no ungido Iesous a quem pertencemos. Combati em Éfeso contra animais ferozes, mas o que significa isso, se os mortos não podem ressurgir? Comamos e bebamos, porque amanhã morreremos. Mas não vamos nos enganar: as más companhias corrompem os bons costumes”.

Na sequência da tradição hebraico-judaica, ou como diz Fuks, “os antigos hebreus não estavam trabalhados, como nós, pela necessidade de abstração, de síntese e de precisão na análise conceitual do real, herança dos gregos”, Paulo está preocupado com o corpo, com a vida.

“Mas alguém pode perguntar: como os mortos são trazidos à vida? E com que corpo? Estúpido! O que se semeia não tem vida, está morto. E, quando se semeia, não é semeado o corpo que há de nascer, mas o grão, como de trigo ou qualquer outra semente. Deus dá o corpo como quiser, e a cada semente o corpo que deve ter. Nem toda a carne é uma mesma carne, há carne humana, de animais terrestres, de peixes, de aves. E há corpos celestes e corpos terrestres, uma é a dignidade dos celestes e outra a dos terrestres. Diferente é o esplendor do sol do esplendor da lua e das estrelas. Porque uma estrela difere em brilho de outra estrela. Assim também o ser levantado dentre os mortos. Semeia-se o corpo perecível; levantará sem corrupção. Semeia-se na desgraça, será levantado em excelência. Semeia-se em debilidade, será erguido vigoroso. Semeia-se corpo controlado pela psiquê, ressuscitará corpo espiritual. Se há corpo controlado pela psiquê , também há corpo espiritual”. 

Para Paulo, anástase leva à uma teologia da vida que nasce do corpo. Mas, não é simplesmente ter de volta a vida do corpo material, tanto que em certo momento Paulus diz que “deveremos ser a imagem do homem do céu”.

“Assim também está escrito: o primeiro ser humano, terrestre, foi feito ser-que-deseja, o futuro humano será um espírito-cheio-de-vida. Mas o que não é espiritual vem primeiro, é o natural, depois vem o espiritual. O primeiro ser humano, da terra, é terreno; o segundo humano, a quem pertencemos, é celestial. Como é o da terra, assim são os terrestres. E como é o celeste, assim são os celestiais. E, como somos a imagem do terreno, assim seremos também a imagem do celestial”. 

O pensamento grego, platônico, está presente na anástase paulina, já que a eternidade não é construída em cima da carne e do sangue. Vemos aqui a dualidade entre a realidade física e o mundo das formas. O dualismo metafísico de Paulo admite aqui duas substâncias que regem o ser humano, no mundo natural, a psiquê, e no mundo pós-anástase, o pneuma. E dois princípios, nesse sentido bem próximo a Platão, o bem e o mal. 

“E agora digo que a carne e o sangue não podem herdar o reino de Deus, nem a corrupção herdar a eternidade. Digo um mistério: nem todos vamos adormecer, mas seremos transformados. Num momento, num abrir e fechar de olhos, ante a última trombeta, porque a trombeta soará, os mortos serão levantados incorruptíveis, e seremos transformados. Convém que o corrompido seja tornado eterno, e o que é mortal seja tornado imortal. E, quando o que é corruptível se vestir de eternidade, e o que é mortal for transformado em imortal, então será cumprida a palavra que está escrita: a morte foi conquistada definitivamente. Onde está, ó morte, a tua picada? Onde está, ó inferno, a tua vitória? Ora, a picada da morte é o desviar-se do caminho da honra e da justiça, e a força do erro é a lei. Mas a alegria que Deus dá é a vitória por Iesous, o ungido, a quem pertencemos. Sejam firmes e persistentes, abundantes no serviço daquele a quem pertencemos, conscientes de que o trabalho árduo e duro não é desprezado por aquele a quem pertencemos”. [Ver texto na Vulgata].

Caso voltemos à análise do conceito anástase no capítulo 15 da primeira carta aos Coríntios, tomando como ponto de partida o desafio de Fuks: “há que ler o desejo: sem terra, sem pátria e sem objeto, ele vaga por um deserto, cujas trilhas conduzem o leitor à experiência limite mais-além do que aparece na imagem”, vemos que Paulo traduziu para as novas gerações o desejo judaico-helênico, humano, da anástase: “Pede-se ser levantado”.


Vulgata -- 1Coríntios 15

[50] Hoc autem dico, fratres: quia caro et sanguis regnum Dei possidere non possunt: neque corruptio incorruptelam possidebit. [51] Ecce mysterium vobis dico: omnes quidem resurgemus, sed non omnes immutabimur. [52] In momento, in ictu oculi, in novissima tuba: canet enim tuba, et mortui resurgent incorrupti: et nos immutabimur. [53] Oportet enim corruptibile hoc induere incorruptionem: et mortale hoc induere immortalitatem. [54] Cum autem mortale hoc induerit immortalitatem, tunc fiet sermo, qui scriptus est: Absorpta est mors in victoria. [55] Ubi est mors victoria tua? ubi est mors stimulus tuus? [56] Stimulus autem mortis peccatum est: virtus vero peccati lex. [57] Deo autem gratias, qui dedit nobis victoriam per Dominum nostrum Jesum Christum. [58] Itaque fratres mei dilecti, stabiles estote, et immobiles: abundantes in opere Domini semper, scientes quod labor vester non est inanis in Domino.

Bibliografia recomendada

Andrés Torres Queiruga, Repensar a ressurreição, São Paulo, Paulinas 2010.
Jonas Machado, Morte e ressurreição de Jesus, São Paulo, Paulinas, 2009.
Marko Ivan Rupnik, Ainda que Tenha Morrido, Viverá/ Ensaio Sobre a Ressurreição dos Corpos, São Paulo, Paulinas, 2010. 

Notas

[1] Menandro, O Misantropo. Site: Oficina de teatro. WEB: www.oficinadeteatro.com 
[2] Betty Fuks, Freud e a Judeidade, a vocação do exílio, Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 2000, pp. 127-133. 
[3] Platão, Fédon, Coleção Os Pensadores, São Paulo, Nova Cultural, 1987. 
[4] Th.-G Chifflot e R. De Vaux, La Sainte Bible, Les Editions Du Cerf, Paris, 1973. Tradução: A Bíblia de Jerusalém, Ed. Paulinas, São Paulo, 1985, p. 1347.



vendredi 21 octobre 2016

A política no reinar de Cristo

Jorge Pinheiro

Neste tempo de golpes e prisões, o país corre o risco de ser envolvido numa maré emocional, que leva aos extremos e ao ódio. Mas, política não deve ser feita assim. A administração, direção e organização de comunidades não se faz com as emoções à flor da pele, não é pensando em vendeta, não é odiando o adversário do momento, transformado em inimigo que deve ser varrido da face da terra, que se deve fazer política, que se pode falar em atividade de pessoas cidadãs. Essa leitura de ódio não constrói um país, mas divide e impossibilita o abraço solidário de um povo.

Quando a política é feita desta forma: com violência de ações e palavras, com vontade de destruir e matar, o irmão se distância do irmão e perdemos o sentido de nação e povo. Mas nós que temos a mente de Cristo devemos chamar a um jeito outro de fazer política, entendendo que o reino de César não deve estar acima do reinar de Cristo.

E esta política que constrói, que não mata, que não odeia, que possibilita ações diretas ou indiretas de governo, nasce fácil nos corações e dirige nosso fazer e nossas mentes quando o reinar de Cristo está presente nas vidas.

Dentro da unidade universal do reinar de Cristo encontra-se o princípio protestante enquanto evento fundante do cristianismo. É o princípio protestante que retira da imagem humana de Jesus tudo que nela poderia ser materializado como idolatria, por sua facticidade histórica. É por meio do símbolo da cruz que desaparecem as particularidades e o finito do evento Jesus, dando lugar ao significado presente do Cristo. 

O paradoxo do aparecimento do Cristo na existência sem a deformação da existência é uma interpretação radical do símbolo da cruz que salva nossa adoração do homem Jesus do significado da idolatria de se permanecer na adoração de um objeto histórico e por isso limitado, finito, enclausurado num espaço e tempo passados. O princípio protestante, lido sob tal perspectiva, apresenta a cruz como presente e fim, como revelação e eschaton que remetem ao kairós.

Mas, o protestantismo não abandona a unidade universal da substância, que mantém e possibilita o resgate do sentido do Eterno nas profundezas do humano. Na aridez do “deo dixit”, da palavra que se resume na ética do texto, as profundezas da interioridade humana podem ser esquecidas e perder seu vigor teológico. Por isso, a relevância do kerigma cristão deve andar em aliança com o reconhecimento da presença daquele que é Eterno, mas se expressa na cultura e nas dobraduras da secularidade. É a partir dessa compreensão que devemos entender o fazer política no reinar de César.

O conceito de política solidária pode então ser visto como definição de um processo de essencialização, já que o significado da vida, existencial e pessoal passa a consistir na expansão, nas culturas e vidas, da presença essencial do Eterno. A política solidária é latente antes do encontro com a presença central e fundante do Cristo, mas torna-se manifesta depois desse encontro. E é esse processo de essencialização da cultura e da vida, onde Cristo é centro e fundamento do fazer e pensar a política, que possibilita a política como fruto do ágape solidário que aponta para o kairós de Cristo. Fazer política, a partir desse processo de essencialização da cultura e da vida, é a via para a construção de uma sociedade solidária – plena de alegria, justiça e paz.

jeudi 20 octobre 2016

A antropologia da Imago Dei

A antropologia da imagem de Deus
Jorge Pinheiro

O shemá era a oração que duas vezes por dia os judeus elevavam ao Eterno. Essa prece reconhece Deus como único e diz que deviam amá-lo com todo leb, com toda nefesh e com toda meod, conforme Deuteronômio 6.5.

Leb e lebab, que os gregos traduziram por cardia e nós por coração, nos falam dos movimentos do corpo humano. Leb e sua variante lebab ocorrem 858 vezes nas Escrituras hebraicas, das quais 814 se referem ao coração humano. Expressam a noção antropológica de que somos movidos por sentimentos e emoções que movimentam e dirigem nossos membros e corpo. 

Têm a realidade anatômica e as funções fisiológicas do coração enquanto expressões das atividades do ser humano, que levam às disposições de ânimo como alegria e aflição, coragem e temor, desejo e aspiração, e também às funções intelectuais como inteligência e decisão da vontade, que na cultura ocidental atribuímos ao cérebro. Nas passagens do livro de Gênesis que nos falam do leb constatamos que a antropologia se apresenta como uma psicologia teológica. Assim, leb tem um significado antropológico que fala daqueles aspectos que nos levam aos movimentos do sentir, do querer e do agir, que compõem a personalidade humana.

Meod, que os gregos traduziram por dynamis,ia. intensidade e abundituras judaicas, e traduz a id555555555555555555555555555555555555555555555555555555555555555555555555 e nós por força, aparece trezentas vezes nas Escrituras hebraicas, e traduz a idéia de intensidade e abundância. Em alguns textos, como no caso do crescimento do povo hebreu no Egito, meod aparece ligado à idéia de reprodução, de muitos filhos, o que nos leva a uma compreensão diferente do termo dynamis em grego, que nos fala de uma força física externa ao ser humano. Em hebraico podemos entender meod como potência, aquela força, aquela energia que faz de nós seres criadores, tanto no sentido biológico como intelectual. Seria potência que identifica o ser humano, capacidade de gerar que faz o humano crescer e multiplicar-se.

Mas, nefesh, que os gregos traduziram por psyché, mas que significa garganta, respiração, fôlego, pessoa, vida e alma,[1] sem dúvida, nos fala da plenitude daquilo que é humano, conforme encontramos em Gênesis 2.7. Dessa maneira, nefesh possibilita um rico diálogo com o texto de Gênesis e nos permite uma reconstrução dos significados da natureza humana.

A expressão nefesh leva a uma concepção de exterior versus interior,[2] que tem por base Deuteronômio 32.9, quando afirma que “uma parte de Iaveh faz seu povo”. Mobiliza assim em diferentes níveis essa força criacional, que constitui uma parte de Deus. A matéria-prima utilizada por Deus na modelagem humana é ordinária, enquanto material pertencente a ordem comum de “ló nefesh”: inanimados e animais. É o sopro de Deus que faz especial essa matéria ordinária. Mas será que estamos somente diante de um símbolo ou, de fato, a força criacional de Deus transmite à matéria ordinária não somente vida, mas transfere intensidade e profundidade? De certa maneira, não é absurdo dizer que os seres celestiais são criaturas integralmente espirituais. Sua existência procede do exterior da força criacional de Deus. 

A exteriorização traduz-se no fato de que a força criacional se dá através da palavra, da palavra criadora de Deus. Nesse sentido, nefesh procede da interioridade de Deus e por isso é conhecida como “ein sof”, que vem de seu interior. “Ele soprou” deve ser entendido como continuidade da afirmação anterior “façamos o ser humano” (Gênesis 1.26), de maneira que nefesh liga céu e terra, o que está acima e o que está abaixo. Por isso, dizemos que a natureza humana é superior à natureza angélica, porque procede da interioridade de Iaveh. Traduz ação mediadora e conjuntiva da força criacional. Donde, a natureza humana procede de atributos divinos não ostensivos, discretos, que se traduzem em integridade holística, pluralidade social, sabedoria, compreensão e abertura à transcendência. Nefesh entende-se e revela-se enquanto natureza que se torna compreensível e inteligível. É transbordamento e transparência do Espírito de Deus, que indica transbordamento e transparência no humano, daquilo que relaciona o que está em cima com o que está em baixo. Da leitura de Gênesis 2.7 podemos constatar que o texto fala de respiração e daquilo que o humano passa a ser: ele não tem uma nefesh, ele passa a ser uma nefesh.

O texto e o pensamento literário dos hebreus são sintéticos. Daí que a chave para chegarmos a uma compreensão analítica dele exige identificar com que parte do corpo o ser humano pode ser comparado e onde o agir humano faz interface com nefesh, utilizando para isso textos que apresentam diferentes sentidos de nefesh. Embora a expressão nefesh apareça 755 vezes nas Escrituras hebraicas e seja traduzida seiscentas vezes na Septuaginta por “psyché”, garganta e estômago podem ser tomados por paradigma e transmitem a idéia de necessidade, de algo difícil de ser saciado. Nesse sentido, a palavra alma nos dá uma tradução incompleta, pois a idéia é que “Iaveh Deus formou o ser humano do pó da terra e insuflou em suas narinas o seu hálito e o ser humano se tornou um ser vivente que necessita Dele para ser saciado”.

Nefesh não traduz algo bom ou mal, mas a realidade das necessidades fundamentais e imprescindíveis da alma humana, que ao não serem ou não estarem preenchidas por Deus produzem alienação, individualismo, descrença, ignorância e idolatria. Mas como o sopro de Deus pode ter gerado um ser humano com tal índole de insaciabilidade? Se entendermos a nefesh como o órgão das necessidades vitais, dos movimentos emocionais da alma, somos levados a entender o pensamento sintético hebreu ao ver a nefesh como síntese da própria vida. Assim, as necessidades humanas criadas pelo próprio Deus só podem ser saciadas por Ele.

“Quem me encontra, encontrou a vida e alcançou benevolência de Iaveh. Quem não me acha, faz violência à sua nefesh. Todos os que me odeiam, amam a morte”. Provérbios 8.39 e seguintes.

No relato de Gênesis 2.7 o ser humano é definido como nefesh hayah, um ser vivente, que necessita ser saciado. Quando integrado ao seu Criador, nefesh é transbordamento e transparência do Espírito de Deus, que indica transbordamento e transparência no humano, daquilo que relaciona o que está em cima com o que está em baixo. Mas essa natureza também se vai constituir enquanto expansão dos significados da imagem de Deus, em graça e amor. “Ele soprou” traduz o fato de que as coisas do intelecto e do coração expressam-se através dos órgãos da fala, em especial, garganta e boca, que possibilitam o sopro. 

Nefesh como substantivo ganhou vários sentidos, sendo garganta um deles, e assim é usado em Provérbios 23.2, quando diz “põe uma faca à tua garganta, se fores uma pessoa de grande apetite”. A garganta ou goela é por onde entra e sai a respiração, o ar. O ser vivente, então, ganhou a designação nefesh, ser respirador. No caso do humano refere-se basicamente à forma que o espírito e a inteligência, sem forma em si, assumiu ao animar o corpo.[3] Esse padrão simboliza a interioridade da natureza humana. Portanto, para que o humano possa dar intensidade e profundidade a sua inteligência precisa de amor e graça, que nascem da interioridade de Iaveh. Em Gênesis 2.7, “ele soprou” significa que Aquele que soprou o fez numa determinada direção e com objetivo definido. Aqui, direção e objetivo traduzem destinação.

Esse é o destino do humano: ter sua nefesh integralmente saciada por seu Criador e a partir daí relacionar-se com Ele, com o universo, com seus semelhantes e consigo mesmo. Nesse caso, temos uma nefesh em equilíbrio, plena do Espírito de Deus, o que se traduz em integridade holística, pluralidade social, sabedoria, conhecimento e abertura à transcendência. A ruptura dessa integridade produz alienação, individualismo, descrença, ignorância e idolatria. A antropologia da nefesh em Gênesis nos fala sobre a imagem de Deus e nos dirige a uma pesquisa teológica do humano, da humanidade, da pessoa e da comunidade, da pessoa e da ordem social, da pessoa enquanto excluído, da pessoa enquanto eleito, da humanidade e seu destino, ou seja, da vida para o mundo, do amor para o próximo e da criação para todos.


Diante disso, devemos nos perguntar que princípios podem nortear tal pesquisa teológica? Sem dúvida, o princípio arquitetônico, enquanto revelação, fé objetiva, base e eixo da teologia. E logicamente o princípio hermenêutico, ou seja, a interpretação dos aspectos históricos e lingüísticos dessa revelação. Devemos partir, logicamente, da razão filosófica, que produz ordenação, mas não devemos esquecer a razão científica, enquanto leitura fenomenológica da natureza da antropologia e nem da razão ordinária, enquanto universalidade do senso comum. 

É bom lembrar, que toda análise metodológica, consciente ou inconscientemente, no correr da história da teologia, tem levado inexoravelmente a diferentes compreensões do fato teológico. Isto porque o princípio arquitetônico depende do que colocamos como base da estruturação geral da revelação e porque o princípio hermenêutico parte sempre de uma ou de múltiplas visões filosóficas que podem ser utilizadas como instrumentos de interpretação da história da revelação. Ou seja, quer queiramos ou não, a ideologia define a hermenêutica, pois o saber sempre está sob o risco de ser arrebatado pela ideologia, já que a ideologia permanece à espreita enquanto código de interpretação. Enquanto intelectuais temos amarras, pontos de apoio, somos transportados pela substância ética.[4]

Aqui reside a dificuldade, toda teologia é transitória. Reflete um momento de compreensão da revelação e de sua história. Mas, em nosso trabalho, utilizaremos a antropologia que as Escrituras nos oferecem como um instrumental hermenêutico para compreender o homo brasiliensis. Isto porque embora não seja antropologia, a teologia nos oferece um roteiro antropológico legítimo. No centro da fé cristã se encontra Jesus Cristo, Deus e ser humano, revelador do divino e do humano. E se a teologia fala da divindade, ela fala a homens e mulheres, fala sobre um Deus que encarnou e que ama os homens e mulheres. Está a serviço do humano.[5] Não podemos fugir a essa realidade, por isso, teologicamente, nosso objetivo é fazer a partir da própria compreensão do humano uma leitura da imagem de Deus que responda aos questionamentos e necessidades teológicas das brasilidades.

No livro das origens lemos: “agora vamos fazer os seres humanos, que serão como nós, que se parecerão conosco. Eles terão poder sobre os peixes, sobre as aves, sobre os animais domésticos e selvagens e sobre os animais que se arrastam pelo chão”. (Gênesis 1.26). Ora, se todo o universo é o mundo do ser humano, conforme afirmam os dois relatos da criação e o salmo oito, em que sentido o ser humano é a imagem de Deus? Como Deus conferiu ao humano essa correspondência?

A partir da antropologia bíblica podemos ver que em primeiro lugar o homo sapiens é fruto de uma intervenção de Deus. Há uma concessão de encargo que diferencia o ser humano do resto da criação. Ele é apresentado como um momento sublime, especial, como um ser que coroa toda a ação criadora de Deus. Ele recebe responsabilidade e poder de decisão. Em relação a esta discussão, considero elucidativa a exposição que apresenta a imagem de Deus através de três concepções: substantiva, ou seja, física e psicológica; relacional, ou seja, com um tropismo à transcendência e possibilidade de relacionamento com Deus; e funcional, que se dá através da ação cultural do ser humano.

Acredito, porém, que privilegiar uma dessas concepções em detrimento das outras duas é perder a riqueza do ser humano enquanto imagem de Deus. Por isso, aqui correlacionamos as três concepções, já que formam uma totalidade. Em segundo lugar, Deus deixa claro a finalidade da decisão de criar um ser pessoal, segundo sua imagem. Tal ser deverá ter uma relação especial com o restante da criação. Deus cria e entrega ao ser humano sua criação. Este ser pessoal deverá estar sobre ela, numa relação de trabalho, produção e administração. O ser humano relaciona-se com a criação e através do uso e de suas descobertas em relação a ela, mantém uma permanente relação com Deus. Em terceiro lugar, a imagem de Deus é traduzida na relação que mantém com as criaturas, já que é uma relação de domínio. Ele reina sobre o universo produzido pelo poder criador de Deus. Mas aqui há um detalhe sutil: este direito de domínio não lhe é próprio, ele reina enquanto imagem de Deus. Ele não é proprietário, nem tem autonomia irrestrita sobre a criação. Imagem de Deus traduz também abertura à transcendência. 

Aqui estão dados os elementos que nos permitem entender porque faz parte da humanidade o abrir-se à transcendência e viver com ela. Há um deslumbramento permanente diante do absoluto, do sobrenatural e do mistério. Estamos diante de um ser que pode pensar o que não está aqui e agora, e que pode refletir sobre o que vai além da realidade factual. E é por poder pensar tais realidades que não podem ser vistas, que o ser humano enquanto imagem de Deus pode refletir sobre a eternidade e relacionar-se com o transcendente. Assim, ao ser feito imagem de Deus, o próprio Deus transfere à humanidade a capacidade de relacionar-se com Ele.

Adão é um ser plural. Esse ser humano de que fala Gênesis 1.26, que deve ser uma imagem de Deus, não é uma pessoa em particular, pois a continuação do texto fala que eles dominem. Assim, estamos diante da criação da humanidade e o domínio do universo não é dado a uma pessoa, mas a comunidade dos homens. Ninguém pode ser excluído da autoridade de domínio dada por Deus à humanidade. Da mesma maneira, em Gênesis 1.27 temos uma outra característica fundamental dessa mesma humanidade: ela é formada por homens e mulheres. Para alguns teólogos, como Karl Barth,[6] tal explicação de Gênesis 1.27b, de uma humanidade formada por dois sexos, é apresentada por Deus “quase à maneira de definição”. Logicamente, há uma intenção para que o texto bíblico se aprofunde em tais minúcias. É a de apresentar como o universo criado deveria ser administrado: através da convivência de seres que se completam e se amam. Ou seja, esse ser plural só poderia exercer o domínio através da comunidade, completando-se como homem e mulher.

E para onde aponta o domínio? Todo o universo é o mundo do ser humano, por isso há a total desmitização da natureza. Não há astros divinos, terra divina, nem animais divinos. Todo o universo pode tornar-se o ambiente do ser humano, seu espaço, que ele pode adaptar às suas necessidades e administrar. E como ele consegue isso? Através da cultura, enquanto processo social e objetivo de sujeição da natureza, e através da necessidade de expansão e domínio, pessoal e subjetivo, que é peculiar a todo homem e mulher livres. Mas, o afastamento de Deus fez com que a humanidade perdesse sua capacidade de ser imagem de Deus viva e eficaz. Seu caráter inicial está distorcido e o mal perpassa todas suas ações. Assim, o ser humano lançou-se ao domínio de seus iguais, inclusive através do derramamento de sangue; suprimiu o equilíbrio e a mútua ajuda entre homem e mulher; mitificou a ciência e técnica; e lançou-se à destruição da própria natureza. Cristo é “a verdadeira imagem do Deus invisível” (Colossenses 1.15, cf. 2 Coríntios 4.4) e a Ele cabe fazer, a nível escatológico, aquilo que à humanidade tornou-se impossível. “Foi-me dado todo o poder no céu e na terra, por isso, indo, fazei discípulos em todas as nações...” (Mt 28.18).

Notas


[1]   Nelson Kirst, Nelson Kilpp, Milton Schwantes, Acir Raymann, Rudi Zimmer, Dicionário Hebraico Português & Aramaico Português, São Leopoldo/Petrópolis, Sinodal/Vozes, 1988. Verbete: vpn, p. 159.
[2] Raphaël Draï, La Pensée Juive et L’Interrogation Divine, Exégèse et Épistémologie, Paris, Presses Universitaires de France, 1996, p. 414.
[3] L. Byron Harbin, Teologia do Antigo Testamento (apostila), São Paulo, Faculdade Teológica Batista de São Paulo, 1997, p. 32.
[4]  Paul Ricoeur, Interpretação e Ideologias, RJ, Francisco Alves, 1990, pp.94-95.
[5]  Antonio Manzatto in Teologia e Literatura, São Paulo, Edições Loyola, 1994, p. 41.
[6] Citado por Hans Walter Wolff, in Antropologia do Antigo Testamento, São Paulo, Edições Loyola, 1975, p. 215.

Fonte
Jorge Pinheiro, Teologia Bíblica e Sistemática, o ultimato da práxis protestante, São Paulo, Fonte Editorial, 2012, pp. 214-222.