vendredi 9 décembre 2016

Meu Jesus, Salvador

Meu Jesus, Salvador


Eu, João, escrevo às sete igrejas que estão na província da Ásia. Que a graça e a paz lhes sejam dadas da parte de Deus, aquele que é, que era e que há de vir; da parte dos sete espíritos que estão diante do seu trono e da parte de Jesus Cristo, a testemunha fiel! Ele é o primeiro Filho, que foi ressuscitado e que governa os reis do mundo inteiro. Ele nos ama, e pela sua morte na cruz nos livrou dos nossos pecados, e fez de nós um reino de sacerdotes a fim de servirmos ao seu Deus e Pai. A Jesus Cristo sejam dados a glória e o poder para todo o sempre! Amém! Olhem! Ele vem com as nuvens! Todos o verão, até mesmo os que o atravessaram com a lança. Todos os povos do mundo chorarão por causa dele. Certamente será assim. Amém! Eu sou o Alfa e o Ômega, diz o Senhor Deus, o Todo-Poderoso, que é, que era e que há de vir. Apocalipse 1.1.-4.


A vida divide-se em antes e depois dele. A cada 25 de dezembro, dois bilhões de pessoas celebram o nascimento de um palestino moreno, de cabelos longos, segundo alguns de olhos castanhos e nariz adunco, como sugerem as marcas de sangue e suor impressas num lençol de linho guardado como relíquia pelos católicos. Foi com esse possível biotipo que ele morreu, com cerca de 30 anos. Mesmo aqueles que nunca entraram para seu rebanho reconhecem a data. É a partir dela que dias, semanas, meses, anos, séculos e milênios são contados. Como a infinitude do tempo, esse homem de Nazaré se mantém vivo.[1]

Nenhuma vida foi tão esmiuçada e tão cercada de mistérios. Proclamado filho de Deus, ele rompe o terceiro milênio cercado da fé, das dúvidas e da curiosidade de cristãos e não-cristãos. Como teria nascido? Como viveu? Quem foi ele? Bilhões de pessoas seguem extasiadas esse personagem inacabado, obra aberta a desafiar místicos, teólogos e cientistas. Mas não há explicação capaz de oferecer a versão definitiva, irrefutável, sobre o filho de Maria.[2]

E no correr dos séculos foi transformado no símbolo de um dilema: ou os povos assimilam a convivência respeitosa num mundo marcado por diferenças -- daí os diálogos inter-religiosos que procuram reconciliar católicos, judeus e protestantes -- ou aprofundam os contrastes, raiz da proliferação do fundamentalismo. O mais estranho é que, na encruzilhada da civilização, cristãos e não-cristãos voltam ao começo de tudo.

Não restam dúvidas sobre sua passagem pelo planeta: Jesus viveu nesta Terra. Muitos estudiosos consideraram que em relação a tal fato existem mais fontes confiáveis do que em relação a Sócrates, cuja existência foi basicamente testemunhada por um único discípulo, Platão. Mas não é possível discorrer com a mesma segurança sobre a data de nascimento e a de morte de Jesus.

Um recenseamento promovido na Palestina por Herodes, interessado em regularizar a cobrança de impostos, forneceu evidências de que ele teria nascido cerca de seis anos antes do chamado ano zero. Teria morrido às vésperas da Páscoa judaica, numa sexta-feira. Conferindo calendários antigos, verifica-se que duas sextas-feiras coincidiram com a celebração naquele período: nos anos 30 e 33 da Era Cristã.[3]

O Cristo da fé

Juntamente com a crença na Trindade, a teologia da encarnação ocupa uma posição central nos ensinamentos da igreja. Jesus é mais que um homem santo ou um mestre de moralidade. Ele é o Filho de Deus que se tornou Filho do Homem. A teologia da encarnação é uma expressão da experiência do Cristo na igreja. Nele, a divindade está unida à humanidade, sem a destruição de nenhuma dessas realidades. Jesus Cristo é verdadeiramente Deus, que tem em comum a mesma realidade igualmente com o Pai e o Espírito. Ele é verdadeiramente homem que compartilha com todos nós o que é humano. E como único Deus-homem, Jesus Cristo colocou a humanidade em comunhão com Deus.

Pela manifestação da Trindade, pelo ensinamento do significado da autêntica vida humana, e pela vitória sobre os poderes do pecado e da morte (I Co 15, Cl 1.19-20) através da ressurreição, Cristo é a expressão suprema do amor de Deus o Pai, por seu povo, tornado presente em cada época e em cada lugar pelo Espírito Santo através da vida da igreja. Os pais da igreja resumiram o ministério de Cristo nesta clara afirmação: "Deus tornou-se o que nós somos de tal maneira que nós podemos nos tornar o que Ele é."

É um risco separar Jesus e Cristo, ou ver a ação salvífica num e em outro não, ou teologicamente afirmar que há uma ação salvífica no Cristo em sua divindade, separada da humanidade do Cristo encarnado. É fundamental levar em conta, teologicamente, os dois aspectos complementares da cristologia. Ao dado da união das duas naturezas de Jesus, o Cristo, temos que compreender a questão da distinção, que nos alerta para o fato de que não há confusão entre essas duas naturezas.

O monofisismo se apresenta entre nós, quando iniciamos uma caminhada em direção à predileção por uma das naturezas do Cristo, no caso, a tendência de absorção da natureza humana na divina. Mas há um monofisismo invertido, que é um outro risco, atualmente menos comum, que é o da absorção da natureza divina na humana, ocasionando uma redução da divindade da pessoa do Verbo.

A ação humana de Jesus é a ação do Cristo encarnado, mas há uma ação divina que permanece sempre distinta da humana. Assim, há uma ação contínua do Logos antes e depois da encarnação, mas sem que isto signifique a negação do evento cristológico como concentração insuperável da auto-revelação divina. Isto porque a economia do Cristo encarnado constitui a revelação de uma economia mais ampla, a do Cristo eterno de Deus.

A revelação de nosso Jesus, o Cristo, oferece à humanidade tudo o que é necessário para a salvação, não necessitando ser completada por qualquer outra ação ou processo, que não seja o arrependimento e a obediência. O evento Jesus, sem deixar de ser revelação universal da vontade de Deus, permanece particular em razão de sua historicidade. Significa que tal evento não diminui a potência salvífica de Deus, pois a ação universal do Cristo e do Espírito Santo não se circunscreve à humanidade de Jesus. Por isso não se pode reduzir Jesus a uma figura salvífica entre outras. A revelação operada em Jesus Cristo é definitiva e insuperável.

Seria um erro absurdo entender a ação do Espírito Santo deslocada da economia salvífica universal do Cristo encarnado. Na historicidade da igreja, é fundamental insistir na conjunção da cristologia com a pneumatologia, a fim de preservar a centralidade do evento Cristo. Irineu, pai da igreja, utiliza uma metáfora para nos explicar essa conjunção – que logicamente como qualquer metáfora tem suas limitações. Ele fala das duas mãos de Deus que operam juntas economia da salvação: a mão do Cristo e a mão do Espírito Santo. Mãos que atuam unidas, mas são distintas e complementares. Assim, a presença do Espírito na obra do Cristo encarnado não põe um fim na atuação do Espírito Santo depois do evento-Cristo. O Espírito Santo estava presente e operante antes da glorificação do Cristo e continua presente hoje.

A revelação universal do Cristo não pode nos levar a considerar as religiões do mundo como caminhos complementares ao do corpo de Cristo. Quando muito a universalidade da revelação presente nessas religiões assumem um papel de preparação evangélica para a compreender no evento Cristo, não podendo ser consideradas caminhos de salvação. Ao longo da história cristã foram comuns injustiças e a perseguições aos grupos, denominações e religiões que discordavam do cristianismo hegemônico naquele momento. Ações essas que violentam a imago Dei, o livre-arbítrio e a compreensão da ação salvífica do Cristo.

Grupos, denominações e mesmo religiões não-cristãs não se resumem à mera representação de uma busca humana de Deus, mas traduzem a revelação universal de Deus, através da qual Ele tem se automanifestado à humanidade. São parte do processo de envolvimento pessoal de Deus com a humanidade, que atravessa a história, tendo como centro salvífico o evento Cristo.

Jesus, o Cristo, é aquele que revela o Pai. Quando Deus dá-se a conhecer, de forma direta e especial, o faz através de seu Filho, em carne e osso. E é justamente essa verdade revelada em Cristo, que deve dirigir toda a nossa compreensão do ser humano e da igreja de Cristo.
          
Jesus Cristo é Deus e homem, consubstancialmente perfeito e pleno. Nesse sentido, entendemos que o Cristo encarnado possibilita uma compreensão do que é a humanidade, traduzindo numa linguagem cheia de vida os conteúdos fundamentais daquilo que está dito em Gênesis sobre o homem, antes do pecado.

O Cristo revelado é a dimensão mais profunda do humano, a dimensão que traduz aquilo que o cristão é: filho adotado do amor e da graça de Deus, criado para o louvor, honra e glória do Deus eterno.

Assim, o corpo de Cristo sobre a terra é uma nova vida com Cristo e em Cristo, dirigida pelo Espírito Santo. A luz da ressurreição de Cristo reina sobre a igreja (I Co 15.3-8) e a alegria da ressurreição, do triunfo sobre a morte, compenetra-se nela. O Senhor ressuscitado vive conosco e nossa vida é uma vida misteriosa em Cristo. Os cristãos levam este nome precisamente porque são de Cristo, vivem em Cristo e Cristo vive neles. A encarnação não é unicamente uma idéia ou uma teologia; é antes de tudo um fato que se produziu uma vez no tempo, mas que possui a força da eternidade. E esta encarnação perpetua, sem confusão, as duas naturezas: a natureza divina e a natureza humana.

A igreja é o corpo místico de Cristo, enquanto unidade de vida com Ele. Expressa-se a mesma idéia quando se dá à igreja o nome de esposa de Cristo ou esposa do Verbo. A igreja, enquanto corpo de Cristo não é Cristo-Deus-homem, pois ela não é mais que sua humanidade; mas é a vida em Cristo e com Cristo, a vida de Cristo em nós: "Não sou mais eu quem vive, é Cristo que vive em mim" (Gl 2,20).

A igreja, em sua qualidade de corpo de Cristo, que vive da vida de Cristo, é por Ele mesmo o domínio, onde está presente e onde opera o Espírito Santo. Eis aqui, porque se pode definir a igreja como uma vida bendita no Espírito Santo. A igreja é obra da encarnação do Verbo, ela é encarnação: na igreja Deus se assimila à natureza humana e através da igreja o corpo se assimila à natureza divina. É a santificação, que os pais chamavam deificação (Zeosis) da natureza humana, conseqüência da união de duas naturezas em Cristo. Assim, a igreja é o corpo de Cristo: enquanto igreja participamos da vida divina da Trindade. Ela é a vida em Cristo, é o corpo de Cristo, que permanece unida à Trindade.
  

Jesus num mundo de exclusão


A primeira parte da missão de Jesus (4.14–9.50) é toda situada na Galiléia (cf. 23.5; At 10.37). Ao contrário de Mateus (15.21; 16.13) e Marcos (7.24-31; 8.27), Lucas abre a comissão de Jesus com a cena da pregação na sinagoga de Nazaré (4.16-30), que descortina toda a seqüência do evangelho: o anúncio da salvação fundamentado nas promessas do Antigo Testamento e inspirado pelo Espírito Santo, a salvação dos pagãos, a rejeição de seus compatriotas e a tentativa de assassinato.

No texto, Lucas descreve duas questões centrais: em primeiro lugar o programa de Jesus e, em segundo lugar, o destinatário da mensagem. Assim, os versículos 18 e 19 apresentam o programa e os versículos 23-27 seu público, os gentios.

Jesus foi ungido, escolhido por Deus, e sob a ação do Espírito Santo – ação esta que caracteriza o verdadeiro profeta – tem como missão proclamar e libertar. Seu programa é formado por quatro pontos: anunciar a boa nova aos pobres,   proclamar a libertação aos cativos, dar vista aos cegos, por em liberdade os oprimidos.

O programa destaca duas idéias a de anunciar, proclamar, e a de libertar, salvar.

A idéia de proclamar está presente no Antigo Testamento, já que a missão profética era, sobretudo, proclamatória. De Samuel a Jeremias – incluídos nesse período de ouro homens como Samuel, Natã, Gade, Azarias, Elias, Eliseu, Joel, Miquéias, Micaías, Isaías e Jeremias -- esses anunciadores da vontade de Deus falaram aos reis e ao povo. Advertiam, repreendiam, encorajavam. Falavam de julgamentos e de promessas espetaculares. Traduziam grandeza de caráter e força moral.

E assim também foi o último período da profecia hebraica, de Ezequiel a Malaquias. No período helênico, graças às reuniões nas casas de oração, sinagogas, a proclamação se generalizou. As Escrituras eram lidas e interpretadas.

João, o batista, foi um anunciador da chegada do reino. E Jesus, ali na sinagoga de Nazaré, colocou em seu programa a tarefa da proclamação.

O conceito de libertação no Antigo Testamento parte da idéia de livramento e de segurança. A pessoa de um libertador no AT traduz sempre a imagem do libertador como alguém que arrebata um povo da destruição (Jz 18.28).  E no Novo Testamento, o libertador era aquele que soltava os israelitas da escravidão (At 7.35), ou que arrancaria a nação da impiedade (Rm 11.26).

Para todo o judeu, na época de Jesus, o ato mais característico de libertação ocorreu sob a liderança de Moisés, quando Deus salvou seu povo da escravidão aos egípcios e o libertou no deserto do Sinai (Ex 12.31—14. 31).

É fundamental entender que a libertação da escravidão egípcia definiu para os judeus do período helênico o paradigma da libertação como um ato de Deus que não visava apenas o alívio de uma situação desastrosa. Mas, e aí está a chave do conceito de aliança, para que livres possam servi-lo. Essa idéia fundamenta o conceito de aliança e da espiritualidade judaica até o primeiro século.

O texto usado por Jesus é a leitura de Isaías 61.1-2. Ao ler o texto e dizer que ele próprio é o cumprimento da profecia, Jesus cria uma nova hermenêutica, que será amplamente utilizada por todos os escritores do Novo Testamento. Ele é o intérprete inspirado, ungido, no cumprimento do que foi anunciado e que está presente nesse kairós para o desenlace dos últimos tempos – proclamar o ano aceitável do Senhor. Partindo dessa hermenêutica, os escritores do NT, e Lucas entre eles, lerão o Antigo Testamento à luz do evento Jesus.[4]

Uma característica marcante que se destaca na personalidade de Jesus é a sua liberdade.  Liberdade policrômica e polifônica, que abrange os mais diversos registros de expressão e, talvez, seja a chave para explicar o fascínio exercido por ele sobre os que o rodeavam.  Liberdade de iniciativa e de movimentos, como desenvoltura e franqueza para falar, com clareza quando toma alguma posição, instrui ou critica. Demonstra grande liberdade em face das classes dominantes (Lc 13:31-33, João 7:1-10, João 10:18). Liberdade para ensinar (Mc 1:22).

Liberdade para escolher seus discípulos entre pessoas mal vistas. A liberdade de Jesus vai abrindo  caminho entre os conflitos sociais, sem renunciar um só momento ao sentido do outro, à preocupação pela pessoa de carne e osso dentro de cada situação concreta. Liberdade que visa suscitar condições humanas adequadas a uma vida pessoal criativa e libertadora dos grilhões que a prendem ao passado e lhe tolhem o futuro.

A radicalidade da liberdade de Jesus consiste na plenitude de sua inserção no mundo do pobre. A liberdade de Jesus constitui-se  assim no fato pessoal fundamental ligado à pregação do Reino. Antes de ser tema de sua pregação, a liberdade e a libertação encontram expressão concreta na própria pessoa, no seu dinamismo criador, na sua originalidade irredutível. Jesus se mostra profundamente livre e, por isso, tanto a sua palavra como seus atos suscitam liberdade ali onde se fazem presentes. Neste sentido, sua prática  fundadora de liberdade. Jesus liberta para o Reino.


Mas, qual é a missão?

Em meio a todas as questões que se levantam, uma pergunta surge: O que quis e veio trazer afinal Jesus, o Cristo, com a sua pregação?

 
De uma forma breve  a melhor resposta é: ser em sua própria pessoa a resposta de Deus à condição humana. Mas para entender Jesus como resposta à condição humana, precisamos compreender quais são as questões que demandam esta resposta. De uma forma geral podemos dizer que elas são geradas por um princípio-esperança gerador de constantes utopias de superação de felicidade plena, que faz parte do humano, seja qual for a sua cultura ou civilização.


É neste contexto, que de certa forma esta presente em toda história humana, que surge um homem de Nazaré anunciando a resposta de Deus: o romper da nova ordem está próximo e será trazido por Deus (cf. Mc 1:14, Mt 3:17, Lc 4:18s).


Jesus não começou pregando a si mesmo, mas o Reino de Deus, que é indiscutivelmente o centro de sua mensagem.  Mas o que era Reino de Deus para os ouvintes de Jesus? A realização da esperança de superação de todas as alienações humanas, da destruição de todo mal, seja físico, seja moral, do pecado, do ódio, da divisão, da dor e da morte. Isto aconteceria não numa outra vida, no céu, ou pós-morte. Esta utopia, anseio de todos os povos, é o objeto da pregação de Jesus. A sua promessa é que não será mais utopia, mas realidade a ser introduzida por Deus (Lc 4:18-19, 21).


Jesus torna-se libertador porque prega e inaugura o Reino de Deus. Reino este, que é a transformação global e estrutural da realidade estabelecida do homem e do cosmos, purificados de todos os seus males. Não é ser um outro mundo, mas transformar o mundo em novo. Ele apresenta o Reino como graça, acima de todos os esquemas anteriores de possíveis virtudes e merecimentos.

Os zelotas procuravam alianças para realizar a sua revolta militar; os sacerdotes obtinham a ajuda dos grandes poderes do mundo para manter a ordem sacra estabelecida; os fariseus insistiam na pureza da lei que pode conservar os fiéis impolutos dentro deste mundo corrupto; e os apocalípticos queriam congregar os restantes escolhidos para o tempo de julgamento que estava próximo. Jesus escolhe como destinatários do seu reino os últimos do mundo.  É o cumprimento de uma das grandes utopias do AT, expressas no ano sabático ou do jubileu, que jamais foram realizadas como ideais sociais de forma definitiva. Os milagres de Jesus vêm mostrar que o Reino já esta presente e fermentando no velho mundo. Jesus anuncia o ano de graçado Senhor que não conhecerá ocaso.


A libertação promovida por este Reino abarca tudo: humano, sociedade, mundo, a totalidade da realidade deve ser transformada por Deus, a partir do próprio ser humano. A pregação do Reino se realiza em dois tempos: no presente e no futuro.


Por isto Jesus entusiasma as massas. Ele tem consciência de que com ele já se iniciou o fim deste velho mundo. Jesus vai entender o messianismo e as categorias apocalípticas como os meios mais adequados para comunicar sua mensagem libertadora. Com essa linguagem ele participa dos desejos fundamentais do coração humano, de libertação e de uma nova ordem. A sua moral tem sentido messiânico e se exprime na forma de ruptura. Suplantando os princípios do seu povo, ele acolhe à mesa e na amizade os perdidos, expulsos da aliança.


Apesar destes elementos, a pregação de Jesus destaca-se das expectativas messiânicas do povo. Ele não alimenta o nacionalismo judeu; não diz nenhuma palavra de rebelião contra os romanos, nem faz qualquer alusão à restauração do rei davídico.
 
Neste ponto, decepciona a todos. O que mais se ressalta no Jesus, o Cristo, é a autoridade com que anuncia o reino e o torna presente por sinais e gestos inauditos. Em Jesus, irrompe o tempo da libertação.


Uma vez entendendo qual era a sua missão, é preciso saber qual a sua estratégia. Já que Reino de Deus significa uma revolução total, global e estrutural da velha ordem, Jesus faz duas exigências fundamentais: exige conversão da pessoa e postula uma reestruturação do mundo da pessoa.


O Reino atinge primeiro as pessoas. Delas se exige conversão, no sentido de mudar o modo de pensar e agir no sentido de Deus,  portanto revolucionar-se interiormente. É um novo modo de existir diante de Deus e diante da novidade anunciada por Jesus. Implica sempre numa ruptura (Lc 12:51-52). É um não à ordem vigente (Lc 13:3,5). Ruptura até mesmo de uma religião que gerava uma consciência oprimida. Afinal, na religião judaica, ao tempo no NT, tudo estava prescrito e determinado, tanto nas relações com Deus como entre os homens. A Lei era  a manifestação da vontade de Deus. Com isso a consciência 
sente-se oprimida por um fardo insuportável de prescrições legais (Mt 23:4).


Jesus levanta um protesto contra a escravização do homem em nome da lei (Mc 2:27).  A pregação ética de Jesus pode ser resumida em uma frase: não é a lei que salva, mas o amor. Em outras palavras ele desteologiza a concepção da lei. A vontade de Deus não se encontra só nas prescrições legais e nos livros santos, mas se manifesta principalmente nos sinais dos tempos (Lc12:54-57). 


Deve ficar claro que, se Jesus liberta o homem das leis, não o entrega a libertinagem ou a irresponsabilidade. Antes pelo contrário, cria laços e ligações ainda mais fortes que os da lei. Liberdade sim, frente a lei. Contudo só para o bem e não para a libertinagem. Desta forma, ele deseja libertar o homem das convenções e dos preconceitos sociais. No Reino de Deus deve haver liberdade e igualdade fraterna. Nesta concepção, justiça supera o conceito clássico de dar a cada um o que é seu. Jesus vem anunciar uma igualdade  fundamental. Ele confronta toda a subordinação desumanizadora a um sistema, seja social ou religioso.

Um outro aspecto deste processo de libertação, passa pelo mundo das pessoas, como por exemplo a libertação do legalismo, das convenções sem fundamento, do autoritarismo e das forças e potentados que subjugam o homem. Estas forças eram representadas particularmente pelos escribas e fariseus, que viviam espalhados por todo Israel, comandavam as sinagogas, possuíam enorme influencia sobre o povo e  para cada caso tinham uma solução que arrancavam pelos cabelos das tradições religiosas do passado e dos comentários da lei mosaica.  Quanto a eles Jesus declara que dizem e nada fazem. Atam pesadas cargas de preceitos e leis e põem-nas nos ombros dos outros.


Jesus prega que para entrar no Reino não basta fazer o que a lei ordena. A presente ordem das coisas não pode salvar o homem  da sua alienação fundamental. Ela é uma desordem. Urge uma mudança de vida e uma reviravolta nos fundamentos da velha situação. Por isso os marginalizados da ordem vigente estão mais próximos do Reino de Deus que os outros. Jesus vai além das fronteiras da lei, para o local onde habitam aqueles a quem o povo e os letrados consideram pecadores. Ele veio de forma provocativa.


Podia ter vindo de maneira mais interna, silenciosa, oculta. Podia ter se mostrado como um homem espiritual, prudente. Preferiu, no entanto, comportar-se escandalosamente: sentou à mesa com os pecadores, oficiais de seu povo (publicanos e prostitutas), convidando-os assim para o banquete novo de seu Reino. Ele rompe as convenções sociais da época, não se atém às convenções religiosas e não respeita as divisões de classes. Ele realiza sua ação no reverso da história.


Texto do Jorge Pinheiro, 21 de setembro de 2003.


[1] Débora Crivellaro, Revista Época On-line (www.epoca.com.br).
[2] Débora Crivellaro, artigo citado.
[3] Idem, artigo citado.
[4] Sandra Mansilla, Um jubileu na era da pos-modernidade, in Revista de Interpretação Bíblica Latino-Americana no 33, p. 150, São Paulo, Vozes, 1999


mercredi 7 décembre 2016

A benção sacerdotal

A bênção sacerdotal -- em hebraico birkat kohanim,
ברכת כהנים --,
 também conhecida como Nesiat Kapayim
"estender as mãos", ou bênção aarônica
é uma oração  judaica recitada durante certos serviços litírgicos.

Ela é baseada nos versículos de Bamidbar 6.23-27:

Fala a Arão e a seus filhos, dizendo: 
Assim abençoareis os filhos de Israel e dir-lhes-eis:

O Eterno te abençoe e te guarde
יְבָרֶכְךָ יְהוָה, וְיִשְׁמְרֶךָ
yevarechecha Adonai veyishmerecha

O Eterno faça resplandecer o rosto sobre ti e tenha misericórdia de ti
יָאֵר יְהוָה פָּנָיו אֵלֶיךָ, וִיחֻנֶּךָּ
ya'er Adonai panav eleicha vichunecha

O Eterno sobre ti levante o rosto e te dê a paz
יִשָּׂא יְהוָה פָּנָיו אֵלֶיךָ, וְיָשֵׂם לְךָ שָׁלוֹם
yissa Adonai panav eleicha veyasem lecha shalom


Assim, porão o meu nome sobre os filhos de Israel, e eu os abençoarei”.


500 anos de uma Reforma pendente

O professor Dr. Daniel Stosiek nos deu no final deste ano de 2016, na Faculdade Teológica Batista de São Paulo, uma aula, aos nossos alunos de Filosofia 2, sobre a Reforma pendente. Com autorização dele, apresento aos alunos o texto escrito por ele, que fundamentou a exposição realizada. Boa leitura e discussão para vocês. JP.

500 anos de uma reforma pendente 
Daniel Stosiek 

Propósito 

No conseguinte estou ligando considerações históricas tanto da libertação quanto da opressão antes da Reforma com reflexões do presente e do futuro. 

Esboço histórico

1 Boêmia 

A reforma começou com movimentos sociais em vários países como Boêmia e depois Alemanha que visaram a revolver, a revolucionar o mundo humano inteiro. Já no século 14 existiram movimentos na igreja em Boêmia que criticaram a igreja desde a Bíblia, e às vezes a sociedade toda. Se percebeu uma contradição profunda entre os valores e orientações da Bíblia e a riqueza material e injustiça dentro da igreja, e em outros casos se criticou veementemente o feudalismo com a servidão e o senhorialismo. No século 14 se criticou a igreja pelas riquezas materiais obtidas em virtude de prebendas.

O imperador Carlos IV fundou a universidade em Praga no século 14, sendo este acontecimento parte do humanismo em Europa. Estudantes desta universidade que tinham estudado em Oxford, trouxeram escritos de John Wycliffe para Praga. John Wycliffe criticou a autoridade do clero, do papa (denominando ele de anti-Crist), o celibato dos sacerdotes, a doutrina da transubstanciação, e exigiu das pessoas da igreja uma vida de uma simplicidade dos primeiros cristãos / da comunidade cristã originária. Sobre tudo, ele atacou a autoridade e dominação da hierarquia eclesiástica e clerical desde a Bíblia.

Jan Hus (João Huss) conheceu os escritos de John Wycliffe pelo ano 1400. Por meio dele, o movimento de reforma boêmio que já existia, se ligou com os pensamentos de John Wycliffe. Jan Hus pregava o sacerdócio universal dos crentes, sem a mediação sacramental e eclesial. Criticou a indulgência e se orientou exclusivamente na Bíblia. 

Me falta a maioria dos livros da história de Alemanha, Europa, Boêmia, que deixei na Alemanha; por isso reconstruí muito da memória e busquei alguns dados no internet.

No ano 1415, Jan Hus foi queimado durante o Concílio de Constança como herege. Só depois disso, a partir do ano 1419, surgiu o movimento dos hussitas, e 1420 começaram as guerras hussitas. Uma parte dos hussitas se desenvolveu de maneira radical e violenta, uma segunda corrente de maneira moderada, e uma terceira corrente também de maneira radical mas ao mesmo tempo sem violência. Os taboritas foram os mais radicais e guerreiros, situados na cidade Tábor (na região da Boêmia do Sul, denominado assim em homenagem ao Monte Tábor onde aconteceu a transfiguração de Jesus). Eles recusaram o sacerdócio, o cerimonial sacerdotal, a veste (dos sacerdotes), a veneração de relíquias e santos, e se orientaram pela comunidade cristã originária. Viviam singelamente, com roupa simples, e esperaram a instauração imediata do Reino de Cristo na Terra. Os taboritas recusaram toda opressão, guardavam a igualdade de todos. Mas na dinâmica em que foram atacados militarmente, eles também se tornaram muito violentos. 

Os utraquistas (sub utraque specie, a eucaristia "em ambas as espécies") ou calixtinos (calix=o cálice) eram a corrente mais “moderada” dos hussitas. “Moderado” significa na verdade: mais próximos aos poderosos. Eles sustentaram a pregação livre, o cálice (calix) para os leigos e a secularização das fazendas da igreja (bona ecclesiastica). Os calixtinos foram apoiados pela nobreza e a burguesia. Na decorrência da guerra com os taboritas, os calixtinos finalmente se incorporaram às tropas do imperador, e juntos aniquilaram os taboritas e os seus aliados e massacraram uma boa parte deles. Os hussitas mais moderados reconheceram finalmente o rei de Boêmia. 

Mas existia uma terceira corrente dos hussitas, os irmãos boêmios (unitas fratrum=unidade dos irmãos). Propriamente, “irmãos boêmios” foi uma denominação geral dos hussitas. Porém, depois se usou só para uma parte deles. Petr Chelčický, partidário de Jan Hus, era radical como os taboritas, estava contra o monarquismo, apoiava a igualdade de todos os cristãos, mas estava contra a violência. Junto com ele, sendo líder, os irmãos boêmios eram radicais como os taboritas, mas ao invés deles inteiramente pacifistas. Também para eles, a comunidade cristã originária era o modelo de orientação, e eles recusaram a ordem social do senhorialismo baseado na propriedade de terra. E além disso, eles recusavam o serviço militar. 

Na decorrência da Guerra dos Trinta Anos, os dominadores católicos totalitários da Casa de Habsburgo, aniquilaram a maioria dos irmãos boêmios. Muitos fugiram para Morávia  (Mähren, perto de Boêmia) e outros a outros países como Polônia, Hungria. No século 18, uma parte considerável dos fugidos, a maioria deles de Morávia, foi à fazenda do conde Nikolaus Ludwig von Zinzendorf em Alemanha. Fundaram lá perto um lugarejo que denominaram de Herrnhut, o que significa “amparo do Senhor”. Assim nasceu a Igreja dos Irmãos Morávios, em alemão “Herrnhuter Brüdergemeine”, e em latim “unitas fratrum” (como os irmãos boêmios). No final do século 18, a Igreja dos Irmãos Morávios missionava em vários países e expandia. Na Inglaterra, ela se tornou uma das fontes do Metodismo que surgiu lá. 

Agora quase se perdeu a memória viva de que a reforma começou com um movimento revolucionário que visou revolver a sociedade inteira, tombar o senhorialismo e abolir a servidão – sendo isto um movimento tanto material quanto espiritual. Apesar da recusa incipiente do feudalismo, se voltou a uma imagem de Deus como Senhor feudal que dá amparo sob a condição que o crente se subjuga (o significado de Herrnhut). Se interiorizou a violência com que os dominadores derrotaram os movimentos de libertação, e se imagina Deus como se se tratasse de um déspota total. Mas a memória oculta pode ainda tornar-se uma força libertadora. 

Alemanha 

Enquanto os Habsburgos destruíram a maior parte da reforma na Boêmia, a reforma na Alemanha que surgiu um pouco mais tarde, sobreviveu, pelo menos a parte “moderada”. Já nos séculos 13 e 14 sucederam insurreições de camponeses e também moradores de cidades na Alemanha. Entre os séculos 14 e 16 aconteceram processos incipientes de capitalização na agricultura. O século 16 foi uma época de protestas veementes de camponeses. Nos anos 1524 e 1525 surgiram revoltas de camponeses em Alemanha, Áustria e Suíça, juntando-se à Guerra dos Camponeses Alemães. 

No ano 1525, os camponeses formularam os 12 artigos de Memmingen que são considerados como formulação antiga de direitos humanos. Entre os artigos, se demanda entre outras coisas que cada comunidade elege o seu pároco, se afirma que todos os seres humanos são iguais, se recusa a servidão (Leibeigenschaft), se demanda a redução da corveia (Frondienst) e da entrega do arrendamento (Pachtabgabe). E sobre tudo, se demanda a restituição das florestas, gramados e roçados que pertenciam à comunidade como propriedade comunitária e que foram apropriados pelos dominadores.

O clero e a nobreza alta não quiseram alterações dos seus privilégios. Obtinham dinheiro pela indulgência e o dízimo. Cada vez mais terrenos de propriedade comunitária das comunidades foram expropriados pelos senhores com direitos feudais sobre a terra. 

O “teólogo da revolução” (como diz Ernst Bloch), Thomas Müntzer, foi um líder rebelde nos movimentos e durante a guerra dos camponeses. Na cidade Mühlhausen, ele junto com aliados implementaram os seus conceitos de justiça social: desfizeram mosteiros, criaram espaços para desabrigados, e se estabeleceu a alimentação para pobres, bodo. Se visou uma comunidade de todos os bens, a obrigação de todos a trabalhar, a abolição de toda superioridade (de pessoas sobre outras). 

Thomas Müntzer entrou em contato com os depois chamados “anabatistas”, “rebatizadores“, que se deveria denominar segundo as suas formas próprias de pensar de “batistas”, batizadores (Täufer), em Zürich (Suíça) no ano 1524 quando apenas surgiu este movimento. A partir do ano 1525, ano da derrota dos camponeses, o movimento dos batistas se estabeleceu, unânime com os camponeses na recusa do clero e da servidão. Uma das correntes dos batistas, os huteritas, viviam com propriedade comunitária, consoante o modelo da comunidade cristã originária de Jerusalém. 

Os Fugger de Augsburgo, os mais ricos do mundo do capitalismo emergente no século 16, ajudaram a derrotar os camponeses, sendo estes últimos mal armados, às vezes com foices e batedores. Os próprios camponeses tinham sido violentos em alguns casos. O movimento deles foi derrotado brutalmente. Se matou 100 a 300 miles de pessoas. Se mutilou muitos dos sobreviventes, cortou dedos e olhos. Depois se proibiu a realização de festas, a frequentar bares da aldeia na noite (e bailar bailes eróticos). Em muitos aspetos se aniquilou a vida comunitária. Se adotou cada vez mais um padrão rígido na sexualidade. Na mesma época, se agravou o conceito da propriedade privada e castigou cruelmente os ladrões. Pelo desaparecimento de propriedade compartilhada, muitos camponeses perderam a sua terra a viver nela. Massas cada vez maiores de vagabundos, gatunos, mágicos, músicos, pelotiqueiros e outros artistas migraram por Europa toda, e piratas pelos mares. 

(Em partes da Alemanha e Suíça, venceu finalmente a reforma dos “moderados” como Martinho Lutero, João Calvino e Ulrico Zuínglio (Ulrich Zwingli); em que Lutero finalmente apoiava mais os príncipes do que os camponeses na guerra, Calvino deixou queimar vivo o médico e erudito humanista Miguel Servet por ele afirmar que a trindade foi um erro, Calvino também chamou a rastejar e erradicar as chamadas bruxas (na sua época, 1545 em Genebra, 34 mulheres e homens foram torturados em frente das suas casas e depois queimados), e Zuínglio influenciou o conselho de Zurique (Zürich) a expulsar ou capturar e torturar e executar todos os batistas da cidade.) 

A gênese do “desejo mimético” 

Se pode supor que a derrota das insurreições dos camponeses, a destruição da vida comunitária em aspetos sociais e emocionais e a expulsão de massas de pessoas devido ao conceito de propriedade privada agravado, aumentou um processo de “inversão dos afetos” em que se paralisou parcialmente o mundo das emoções ligados à vida social e aos processos de trabalho vivo em relação com a natureza, e se vincularam os afetos e emoções cada vez mais à coisas, a produtos. Suponho que em certa medida, a devastação brutal da vida comunitária rural, tanto social quanto afetiva-emocional-volitiva depois da aniquilação das insurreições dos camponeses se interiorizou social e psiquicamente. Os movimentos de libertação que recusaram o senhorialismo, se transformaram em igrejas nas quais se reza a um Deus que se imagina como um Senhor feudal. E a devoção se torna um ato íntimo de servidão. Os movimentos de propriedade comunitária se transformaram em expressões de piedade privatizada. Franz Hinkelammert escreve sobre igrejas protestantes de hoje em dia onde se adotou a ética privada de “não beber, não fumar, não dançar”2. Aqui se interioriza a derrota de movimentos de libertação, e ao mesmo tempo se oprime os afetos e desejos sociais e corporais para projetá-los às mercadorias (isso a minha suposição). 

A reforma faz parte de um processo da inversão dos afetos que finalmente viabilizou uma subjetividade específica que é o fundamento do capitalismo. 

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2Assim Hinkelammert in Hugo Assmann, Franz Hinkelammert: Götze Markt, Düsseldorf 1992 (original em português 1989 em Petrópolis), p. 64.
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René Girard3 tematizou o desejo mimético como base da violência entre seres humanos que potencialmente conduz a espirais sem fim de vingança de morte. O desejo mimético que se refere a objetos conduz a conflitos porque mais de uma pessoa deseja ou apetece o mesmo objeto. Segundo René Girard, a instituição do sacrifício tinha historicamente a tarefa de amansar, dominar, reduzir a violência ubíqua que resulta do desejo mimético, e que só o direito moderno substituiu e com isso superou o sacrifício. 

Segundo Jung Mo Sung4, o desejo mimético é também a base do mercado capitalista ou mais geralmente da modernidade. Se trata do “desejo mimético de consumo, ou, em termos de René Girard, desejo mimético de apropriação. Este tipo de desejo mimético está no centro da própria modernidade na qual vivemos. A modernidade se caracteriza pelo mito de progresso [...]” (53). O desejo mimético faz com que uma maioria da população imite a elite, em outras palavras, aspire a ter as coisas que ela tem, assim que “a chave deste progresso tecnológico está no desejo mimético” (54). Assim, o sistema inteiro da economia de hoje se baseia no desejo mimético (54-66). Incluso Fr.v.Hayek, ideólogo do neoliberalismo, admite, como Sung destaca, que as pessoas das camadas mais atrasadas no desenvolvimento econômico desejam e aspiram ter as coisas que os indivíduos das camadas mais avançadas têm. Apesar que segundo René Girard o sistema jurídico substituiu o sacrifício (64), hoje em dia, como diz Sung, se realiza o sacrifício em outro lugar: os pobres e a satisfação das suas necessidades (básicas) são sacrificados (54-66). 

Então, parece que o chamado desejo mimético pode explicar a aspiração motivante dos sujeitos do capitalismo por ter, possuir cada vez mais coisas – ou também a abstração de coisas, dinheiro. Porém, a minha crítica a René Girard e a Jung Mo Sung é que o desejo mimético não simplesmente explica os fenômenos, mas por sua vez precisa duma explicação (não se trata só de um explicans mas de um explicandum). 

No seguinte intento explicar o desejo mimético:
Baruch Spinoza explica os afetos básicos desde o conatus, o que é a aspiração de cada “coisa” (“res” em latim)5 de permanecer no ser, na existência6: O conatus é a aspiração com 

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3René Girard: A violência e o sagrado, São Paulo: Paz e Terra. 1990.
Hugo Assmann (organizador): Götzenbilder und Opfer. René Girard im Gespräch mit der Befreiungstheologie. LIT Verlag Münster-Hamburg 1996 (edição original em português 1991).
4Jung Mo Sung: Desejo, Mercado e Religião, Petrópolis 1998.
5Se trata tanto de ‘objeto’ quanto de ‘sujeito’, porque Spinoza não aceita de maneira alguma a separação da realidade em coisa pensante e coisa extensa segundo Descartes (nas Meditações [Descartes: Discurso Do
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a qual cada coisa/sujeito aspira a permanecer no seu ser (conatus, quo unaquaeque res in suo esse perseverare conatur). Quando o conatus se refere ao corpo e à mente ao mesmo tempo, se denomina de appetitus (inclinação/impulso). No que se refere à consciência do appetitus, se trata da cupiditas (desejo/cobiço). A cupiditas (cobiço) é o appetitus (impulso) sob o aspeto que se está consciente dele. Os três afetos básicos segundo Spinoza são por conseguinte a já dita cupiditas e em consequência a laetitia (alegria) e a tristitia (tristeza). A laetitia acompanha o sucesso de permanecer no ser, no aumento do poder de atuar (potentia agendi) e de pensar (mentis nostri cogitandi potentia); e a tristitia acompanha o insucesso ou o sucesso diminuído do permanecer no ser e a diminuição do poder de atuar e de pensar.7 

O que é a necessidade? O sociólogo peruano Fernando Vidal desenvolve no texto “Exclusión social, modernidad y reconciliación”8 uma teoria das necessidades que abarca dialeticamente uma área desde o mais rudimentar até o mais complexo. A necessidade inclui tanto os aspetos da atividade humana, do trabalho, dos atos, então o “ser”, viver como processo, quanto os aspetos de “ter”, ter não só os produtos para a vida diária, mas também direitos e contatos sociais. Sempre a necessidade se refere à totalidade da vida natural, cultural e social e ao sentido. 

Para colocar a necessidade em relação com as categorias de Spinoza, é de constatar que ela é o appetitus específico do ser humano. Se trata do que o ser humano precisa para viver bem (conatus) no seu mundo e ser material, referindo-se ao corpo e à mente ao mesmo tempo (corpo e mente nos sentidos tanto individual quanto social). Proponho denominar de desejo a cupiditas específica do ser humano. O desejo é então a necessidade sob o aspeto que se está consciente desta. 

Por isso vejo criticamente a maneira como Hugo Assmann e Jung Mo Sung9 distinguem entre necessidade (o que se precisa para viver) e desejo (no sentido unilateral de preferência
 
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Método. As Paixões Da Alma. Meditações. Objeções e Respostas. São Paulo 1996]), mas explica res cogitans e res extensa como dois atributos da mesma realidade.
6Baruch de Spinoza: Ethik in geometrischer Ordnung dargestellt, latim e alemão, traduzido e organizado por Wolfgang Bartuschat, Hamburg 2007, p. 240, Teorema 8. 
7Ibid. p. 243, teorema 11; p. 245.
8Fernando Vidal: Exclusión social, modernidad y reconciliación
9Hugo Assmann: Clamor dos pobres e “racionalidade” econômica, São Paulo 1990; J. M. Sung: a obra já citada.
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arbitrária de sujeitos no mercado) e a separação dicotômica que Jung Mo Sung faz entre necessidade e desejo10.

Se, como suponho, o desejo é a necessidade mesma sob o aspeto da consciência dela, a pergunta ardente e consternante a ser respondida será por quê o desejo se transformou e reduziu a um desejo limitadamente dirigido a meros objetos, a produtos de trabalho a serem apropriados e consumidos. O desejo é junto com a alegria e a tristeza um dos afetos básicos do ser humano. Deve de ter acontecido uma inversão dos afetos humanos. 

Desde a teoria de Spinoza se pode concluir que os afetos básicos de um ser vivo se referem à preservação e á continuação da vida deste ser (conatus). Além disso, no que se refere ao ser humano e a sua essência social, é de supor que os afetos compartilhados se referem à preservação e á continuação da vida da comunidade, – e ulteriormente à continuação da vida na relação entre ser humano e natureza (onde começa a experiência religiosa) etc..... Isto deve de incluir todos os aspetos da vida, todas as atividades nas duas qualidades: tanto nos aspetos da vida vivida, o desgaste de energia, os movimentos corporais, mentais, espirituais e muito mais, quanto no aspeto de trabalho, ou seja o aspeto da atividade de produzir uma estrutura de energia potencial que possibilita a continuação da vida vivida (da energia cinética). É de supor que os desejos básicos do ser humano se referem em primeiro lugar ao conjunto das atividades em relações sociais que constituem a vida como processo, e só em segundo lugar, ainda que necessariamente, aos objetos e a sua produção que são necessários para poder continuar a vida vivida como processo. 

Uma inversão dos afetos começou provavelmente junto com a dominação da natureza, à redução da natureza a um objeto de exploração, deixando ao lado a percepção da natureza como sujeito e da relação entre ser humano e natureza como relação social (como até hora se vê entre povos indígenas11). Isto começou com a agricultura em grande envergadura com a qual se iniciou o processo do ser humano de explorar o trabalho da natureza cada vez mais. Se começa a reduzir as atividades da natureza ao trabalho que produz um resultado o 

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10Jung Mo Sung: Desejo, Mercado e Religião, p. 68.
11Eduardo Viveiros de Castro: Perspectivismo indígena, em: Instituto Socioambiental (ISA): Visões do Rio Negro – Construindo uma rede socioambiental na maior bacia [cuenca] do mundo, São Paulo 2008, pp. 84-90. Idem: A inconstância da alma selvagem e outros ensaios de antropologia, São Paulo 2006 (primeira edição 2002), pp. 459-472.
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qual é uma estrutura de energia potencial, ou seja alimento neste caso, deixando ao lado (ou produzindo como não existente, como diria Boaventura de Sousa Santos12) o outro aspeto das atividades da natureza: a vida vivida, as ressonâncias13.

Surge um grupo de pessoas que guarda os excedentes de coisas as quais consegue obter com uma quantidade diminuída de trabalho próprio, e isto significa ao mesmo tempo, por meio de uma quantidade diminuída de vida vivida, de energia gastada. Este grupo vai desenvolver um desejo crescente que se refere às coisas/aos produtos e vai ao mesmo tempo diminuir e suprimir o desejo que se refere às atividades da vida vivida em relações sociais. Na medida na qual uma elite dirige os seus afetos e desejos unicamente à possessão de produtos de trabalho, vai desenvolver o conceito de propriedade que se refere aos produtos mesmos e aos seus pré-requisitos que são a força de trabalho da natureza (a terra) e a força de trabalho do ser humano. Vai escravizar tanto a natureza quanto o ser humano e reduzir as suas atividades à qualidade de produção de coisas deixando ao lado a qualidade de vida vivida em relações sociais. 

Isto é a gênese do desejo que se dirige só a coisas, objetos. Todos os afetos da vida vivida e das relações sociais, tanto os entre os seres humanos, quanto os entre ser humano e natureza, são reprimidos, oprimidos. Mas, como Freud elaborou, os afetos oprimidos, suprimidos não desaparecem simplesmente, mas mudam na sua forma. Inconscientemente se projeta o conjunto dos afetos, desejos, emoções que são conectados com a vida vivida e as relações sociais, agora a coisas, a produtos de trabalho humano e de trabalho da natureza. Isto deve de ser a origem do ídolo, do fetiche. E aqui se deveria encontrar a origem do desejo mimético que se refere exclusivamente a objetos. Porque depois de tal inversão dos afetos, o ser humano vê nos objetos / nos produtos de trabalho, e mais tarde na história no dinheiro (abstração dos produtos, ou seja das estruturas com energia potencial), o conjunto da vida vivida, das relações sociais, a vida do cosmo inteiro e a sua própria vida (do sujeito). Ele vê o cúmulo da vida nas coisas da riqueza material, da vida que ao mesmo tempo é oprimida, aniquilada. Se enxerga incluso Deus em forma invertida, negada no produto, e depois no dinheiro. Se vai ansiar a posse de produtos (do trabalho da 

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12Boaventura de Sousa Santos: Die Soziologie der Abwesenheit und die Soziologie der Emergenzen: Für eine Ökologie der Wissensformen (traduzido do espanhol por W. Jantzen), in: Willehad Lanwer, Wolfgang Jantzen: Jahrbuch der Luria-Gesellschaft 2012, Berlin 2013, pp. 29-46.
13Acoplamento estrutural espaçotemporal entre oscilações de diferentes sistemas/seres vivos.
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natureza e do trabalho do ser humano, natura naturata feita por natura naturans), mas este anseio nunca pode ser saciado porque a vida permanece excluída socialmente. Isto pode explicar por que o desejo mimético gere uma violência na qual povos lutam como se se tratasse de vida e morte. 

Todo este processo se agravou a partir do século 16, com a colonização de uma parte grande do planeta Terra. Francis Bacon formulou uma utopia de uma humanidade que se caracteriza de uma posse e de um poder cada vez maior os quais se baseiam na disposição ou no controle do trabalho potencial da natureza, ou seja da força de trabalho da natureza.14 Depois da derrota da guerra dos camponeses, se oprimiu a vida popular, social, também sensual do povo comum. No protestantismo especialmente, segundo Max Weber, como Rogério Pamponet Rodrigues acabou de explicar ontem, se oprime o “gozo dos prazeres da vida”. De maneira comparável, na missão dos povos indígenas nas Américas, se oprimia a vida social, espiritual e sensual deles, se quebrou os seu corações. Tudo isto ajuda a dirigir os afetos, os desejos, as emoções, a espiritualidade, já mutilados, a meras coisas, a produtos de trabalho. Isto é uma das fontes da “religião do capitalismo” (Walter Benjamin). 

A reforma pendente 

A herança da Reforma é pelo menos uma dupla. Por um lado existe a memória de um processo começado de libertação integral. Pelo outro lado, a religião mesma ajudou a agravar o processo histórico da inversão dos afetos e com isso fez a sua parte para fundamentar a subjetividade disposta ao capitalismo. Se deve acordar-se criticamente e ligar as memórias com movimentos atuais como com diálogos com povos indígenas, com outras religiões, com a teologia da libertação, com movimentos sociais. Em diálogo com outros sujeitos poderá ser possível renovar um processo de reforma. 

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14Francis Bacon: Novum Organum ou Verdadeiras Indicações acerca da Interpretação da Natureza. Nova Atlântida, São Paulo 1999.
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