a mulher
e a comunidade de fé no Apocalipse 12
Prof. Dr. Jorge Pinheiro*
Resumo: O livro do Apocalipse é um desafio para os exegetas e
intérpretes bíblicos em geral. E a questão feminina aí colocada mais ainda, já
que parte do Cristianismo faz uma leitura particular – a Mulher do Apocalipse
12 é Maria, a mãe-de-Deus. Jorge Pinheiro neste texto, a partir da Teologia da
Cultura, traz alguns elementos novos para a discussão: a tradição matrifocal
mediterrânea e o conceito de feminescência. A compreensão do papel da
comunidade de fé em Apocalipse 12 nasce, então, dessas correlações.
Palavras chaves: matrifocalidade, feminescência, comunidade
de fé, Apocalipse 12.
O capitulo 12 do Apocalipse é central para a compreensão da
comunidade de fé que está a ser construída no Novo Testamento e também para o
entendimento do próprio texto como um
todo. A mulher vestida de sol, com a lua debaixo dos pés e a cabeça ornada por
doze estrelas, que enfrenta o dragão, rompe os padrões da velha aliança, de
tradição patriarcal, e apresenta uma nova leitura de gênero, matricial da
comunidade nascente.
1. Uma questão teórica: feminescência e Mariologia
Como protestantes somos desafiados e refletir sobre os dogmas
de Maria e a construção simbólica que mudou a face de um grande setor da
religião cristã.
“Isabel exclamou em
alta voz: De onde me provém que me venha visitar a mãe do meu Senhor?”
(Lucas 1.4243).
Embora a dogmática cristã ao falar de duas naturezas do Filho
se refira ao divino e ao humano, esses dois processos simbolicamente nos falam
de duas gerações. E no caso do dogma católico de Maria nos fala da filha que é
gerada pelo Pai, num primeiro momento, e do Deus que é gerado pela filha.
“Fiéis aos santos pais,
todos nós, perfeitamente unânimes, ensinamos que se deve confessar um só e
mesmo Filho (...) gerado segundo a divindade antes dos séculos pelo Pai e,
segundo a humanidade, por nós e para nossa salvação, gerado da virgem Maria,
mãe de Deus [théotokos]”. (Bettenson, p. 86 / em
português contemporâneo por Jorge Pinheiro).
O concílio de Calcedônia, 415 AD, apresentou Maria, a
moça de Nazaré, como théotokos, mãe
de Deus. Nesse conceito há uma desconstrução da patriarcalidade e, por
extensão, da propriedade. O que significa Maria mãe-de-Deus nesta revisão da
questão de parentesco?
Simbolicamente, Maria aparece nos ícones como aquela que
deu à luz Deus e, portanto, parceira do Pai. Ao mesmo tempo, a defesa daqueles
que veneravam Maria através dos ícones era de que quando assim faziam não a
encaravam como deusa à maneira pagã, mas como aquela que deu à luz Deus.
Esse pensamento percorreu um caminho que levou até a
idéia de segunda Hawah. E por que segunda Eva? Qual a diferença entre a
primeira e a segunda? A primeira Hawah, “a-vida”, é a mãe da humanidade, mas a
segunda Hawah, é apresentada como mãe-de-Deus. Uma revolução na história da
linguagem simbólica acerca da mulher. Há algumas questões intrigantes nesta
discussão: a primeira é a idéia de que ela deu à luz Deus; a segunda a
percepção da necessidade de identificar uma pessoa como geradora de uma nova
criação; e a terceira de que, sendo Deus gerado e a pessoa geradora da nova
criação uma jovem, o gênero feminino ocuparia a centralidade da nova estrutura
de parentesco. Vejamos cada uma dessas questões.
Em primeiro lugar, a maternidade não depende de um homem e
que, de fato, o pai não é um pai. Na verdade, com a universalidade da
maternidade da moça de Nazaré ela teria se tornado mãe de todos os pais.
Em segundo lugar, se acrescentarmos o anúncio do anjo Gabriel
de que o que moça de Nazaré haveria de gerar seria fruto do ruach hakadosh, do vento santo, temos a
ruptura do significado biológico e cultural da paternidade, o que daria à
maternidade caráter suprabiológico e supracultural, já que foram rompidos os
laços de sangue. Nesse sentido, podemos entender théotokos. Mas tal desconstrução não para aí. A priori há uma
realidade natural: inter feces et urinas
nascimur. A vulva, a madre aberta pela passagem do primogênito, permanece
presente em nossa cultura e tem a consistência da lei biológica: não se chega
ao mundo de outra maneira. Mas em théotokos
há uma ruptura.
Em terceiro lugar, é interessante notar que Pilatos pergunta
à multidão quem ela deseja que seja solto: Yeshua ou Bar-abas? Ora, Yeshua é
“Deus liberta”; e Bar-abas, “filho do pai”. Assim, naquele momento demônico,
poderíamos dizer que a multidão pediu a morte da liberdade e a permanência da
estrutura de parentesco. Momentos mais tarde, já na cruz, Jesus teria
reafirmado a universalidade da maternidade suprabiológica e supracultural.
“Jesus viu a sua mãe e junto dela o discípulo que ele amava. E
disse à sua mãe: ´Mulher, aí tens o teu filho.´ Depois disse ao discípulo: ´Aí
tens a tua mãe.´ E, desde esse momento, aquele discípulo recebeu-a em sua casa” (Jo 19.26-27).
Estaríamos, então, diante de uma nova estrutura de
parentesco, liberta dos laços de sangue, do biológico e dos condicionamentos
culturais da patriarcalidade. Aqui encontramos uma ponte de diálogo com a
cultura popular brasileira, a estrutura de parentesco matrifocal, que tem como
possibilidade de construção o parentesco definido pelo amor, mas também por seu
oposto, o abandono. Tal postura leva à escolha adotiva e, nesse sentido, aponta
para a liberdade, mas também à escravidão, ambas, liberdade e escravidão em
relação à natureza e às construções daí decorrentes.
Em quarto lugar, a matrifocalidade extrapola o universo da
naturalidade, está embutida em théotokos
e apontaria para o futuro -- a gravidez e o parto da mulher virgem, que não tem
a vulva como caminho, mas acontece na exterioridade do corpo. Assim, a moça de
Nazaré, eterna virgem, preanunciaria o tempo da maior de todas as
desconstruções, a abolição da maternidade e a expansão da matrifocalidade. Essa
desconstrução, sem dúvida, transformou a face da história do cristianismo. Mãe
de Deus, a mulher virgem geraria seu libertador.
Nessa construção teológica de expansão da matrifocalidade, o
cristianismo correlacionou-se com o modelo mediterrâneo, onde o espaço físico
da casa era entendido enquanto categoria de gestão da chefia feminina e de
arranjos extensos presentes nos grupos de parentesco. Nesses arranjos a
centralidade da figura feminina e do papel exercido pelas mulheres, além de ser
traço característico, religiosos ou não, exercia um eixo estruturador, que
produzia e reproduzia modos de ser do modelo familiar.
A presença matrifocal no modelo mediterrâneo não está
associada à idéia de pessoas e comunidades fracas do ponto de vista da
sobrevivência, mas denotam a expansão das trajetórias de ascensão das mulheres,
que podem ou não ser chefes-da-casa, assim como podem ser liderança de extenso
grupo familiar, onde homens, pai e filhos aceitam a chefia feminina. É
importante entender que a matrifocalidade mediterrânea não representa ausência
do homem na família ou comunidade, e nem implica em chefia de mulheres
solteiras, distante dos agrupamentos familiares, ou solitárias na gerência da
prole.
Teologicamente, a extensão da matrifocalidade deve ser
entendida como construção e expansão da imagem da mulher, que concentra poder
entendido como força simbólica circulante, que se fundamenta em presença
conquistada na trajetória da fé cristã. Na Marialogia, essa presença se traduz
na definição de espaço espiritual próprio, fruto do prestigio adquirido nas
comunidades, ao receber o estatuto de mãe coletiva pela sua trajetória: ser théotokos, e pelo tipo de funções
desempenhadas, de parteira de um novo tempo, responsável por trazer ao mundo,
com suas próprias mãos, o filho de novas gerações. A este conceito chamamos de
feminescência. Mas vejamos isso no livro do Apocalipse.
2. A mulher e o
dragão
“Viu-se grande
sinal no céu, a saber, uma mulher vestida do sol com a lua debaixo dos pés e
uma coroa de doze estrelas na cabeça, que, achando-se grávida, grita com as
dores de parto, sofrendo tormentos para dar à luz. Viu-se, também, outro sinal
no céu, e eis um dragão, grande, vermelho, com sete cabeças, dez chifres e, nas
cabeças, sete diademas”. (Ap 12.1-3).
O capítulo 12 relata o conflito existencial da comunidade de
fé, ilustrado na luta entre uma mulher e um dragão (vv. 1-5), imagens que
remetem às da mulher e da serpente em Gn 3.15. Apresenta uma mulher gloriosa e
sofredora ao mesmo tempo. Ela está para dar à luz um filho que um dragão,
diabo, aquele que é "mentiroso e
homicida desde o início" (Jo 8.44), pretende devorar. A mulher gera o
filho (vv. 7-9), o Cristo. Ele escapa do dragão e é elevado aos céus. Temos,
então, uma guerra entre o arcanjo Miguel, acompanhado de anjos, e o dragão, que
é lançado à terra (12,10-12), onde persegue e procura matar a mulher e mãe. Mas
Deus defende a mulher, que se refugia no deserto por três anos e meio, ou seja,
42 meses, ou ainda 1260 dias. Ao ver que não consegue destruir a mulher-mãe, o
diabo se lança contra seus filhos (12.6 e 13-16).
Na cultura grega, a que João recorre, o mar gerou
monstros e dragões. O mais terrível deles foi Ládon, com um corpo de serpente e
cem cabeças que falavam idiomas diferentes. Serviu aos deuses do Olimpo, que os
cristãos viam como demônios, guardando a macieira de ouro de Zeus. Dessa
maneira, João relaciona o dragão com a serpente e lhe deu funções demoníacas, a
principal delas perseguir a mulher e seus filhos. Por isso, o dragão
simbolizaria o Estado pagão que desejava matar a mulher e exterminar seus
filhos.
Dragão, serpente, diabo. O dragão é adversário de Deus, da
mulher e de seus filhos. Ele investiu contra a humanidade essencializada em
Cristo, coroa da criação de Deus, e procura a sua destruição, razão pela qual é
chamado destruidor (Ap 9.11). Atacou Jesus, quando realizava a obra da
redenção, enquanto Estado romano. Acusa o povo de Deus (Ap 12.10) em centenas
de idiomas. É o chefe dos demônios (Mt 25.41; 9.34; Ef 2.2), é o líder das
forças inimigas e as emprega no combate a Cristo e ao reinar de Deus.
Não é humano, mas não é um deus. Exerce influência sobre a
sociedade civil, mas tem lá seus limites (Mt 12.29; Ap 20.2) e será lançado no
abismo (Ap 20.10). É astuto (2Co 11.3), maligno (Jó 2.4), orgulhoso (1Tm 3.6),
poderoso (Ef 2.2), e presunçoso (Mt 4.4,5). É cruel (1Pe 5.8), enganador (Ef
6.11), se opõe ao Evangelho (Mt 13.19; 2Co 4.4) e perturba a obra de Deus (1Ts
2.18).
O dragão é forte, mas para a comunidade de fé é um inimigo
derrotado (Jo 12.31). E apesar de falar através de muitas cabeças em línguas
diferentes é covarde (Tg 4.7).
E assim João nos dá o caminho ao relacionar dragão, serpente
e diabo, mostrando que o Estado não limita seu controle apenas sob a humanidade
alienada, mas atua também nos círculos elevados da política, apresentando-se
como conhecedor do mundo e sábio (2Co 11.14). Faz-se presente nas conferências
das nações (Jó 1.6), procura enganar gregos e troianos (1Tm 4.1) e fomenta
sínodos e entidades onde tenha o controle (Ap 2.9). E é este Estado
aparentemente todo-poderoso que ataca a humanidade essencializada por Cristo.
O Salmo 72.9 diz que “diante
do Eterno, a Fera se curvará e seus inimigos lamberão o pó”, se referindo
aos demônios do deserto e aos Estados derrotados, conforme Dn 7.3 e Ap 13.1.
Este é o destino do Estado opressor.
Mas, e a mulher, quem é ela? As relações culturais
construídas entre mulheres e homens na Palestina e na história do povo hebreu
estavam enraizadas nos relatos sobre Eva, ha´wah,
“a-vida”, e Adão, ha´adam,
“da-terra”. Diante disso, é importante fazer uma hermenêutica etiológica dos símbolos
que levaram à construção dos diferentes sentidos presentes nesses textos, a fim
de se encontrar neles jóias teológicas escondidas sob a literalidade do texto.
Essa compreensão parte da constatação de que o pensamento hebreu não foi
construído apenas pela racionalidade, mas é correlato às experiências de conhecimento cultural, intuitivo e
transcendente, que deram sentido e significado à vida das comunidades de fé judaicas.
Daí que se há uma compreensão literal de
Gênesis e da criação que apresenta hadam
e hawah como ancestrais da espécie
humana, não podemos esquecer que há uma rica simbologia no texto. Ou como disse
Orígenes no De Principiis: "as Escrituras Sagradas têm um sentido que é
aparente à primeira vista, e um outro que a maioria dos homens não percebe.
Porque são escritas em forma de certos mistérios, e à imagem de coisas divinas.
A respeito do que há uma opinião em toda a igreja, que toda a lei em verdade é
espiritual, porém que o sentido espiritual da lei não é conhecido a todos, mas
apenas aqueles que receberam a graça do Espírito Santo na palavra de sabedoria
e conhecimento".
Há alguns anos, a historiadora Elaine Pagels voltou-se para a leitura de
Gênesis por curiosidade científica. Ela estava em Cartum, no Sudão, numa
discussão com o ministro do Exterior sudanês, membro da tribo Dinka, que tinha
escrito um livro sobre as histórias ancestrais de seu povo. Então, ele lhe
disse que a história da criação dos dinkas traduzem a cultura de parte do
Sudão, não somente religiosa, mas também social e política.
E que era assim porque remontava às origens do humano em busca por soluções para os
problemas referentes à natureza, sua origem, o modo como esta cultura se
comportava, as transformações que nela se verificavam e seu caráter de
continuidade. Estes questionamentos levaram ao surgimento desses relatos
ancestrais, formas pictóricas para a explicação dos fenômenos – em geral da
natureza, mas também da origem e razão do humano. Daí que os relatos ancestrais
formataram as culturas dos povos antigos.
Depois da conversa, Pagels leu na
revista Time que leitores contestaram
um artigo que falava da mudança de costumes nos Estados Unidos. Algumas dessas
cartas mencionavam a história de Hadam e Hawah, como Deus criara o primeiro
casal humano, e a importância disso para o comportamento estadunidense hoje.
Estimulada por sua conversa com o líder sudanês, ela constatou que os povos,
mesmo aqueles que não acreditavam literalmente no relato da criação, precisavam
retornar a ele como padrão de referência, quando confrontados com os desafios
dos seus valores.
Pagels considerou que, como as estórias
de outras culturas, o relato de Gênesis abordava questões fundamentais. Os
dinkas e os americanos, do norte, do centro e do sul, não seriam assim tão
diferentes. Por isso, por que não olhar para os relatos da criação, quando se
procura respostas a perguntas como: existe uma finalidade para a existência
humana? Por que sofremos? Por que morremos?
Os debates intelectuais nos anos 1990
levantaram questões que o filósofo da religião Stephan Hoeller chamou de “fator Gênesis”. No segundo semestre de 1996,
palestras e discussões realizadas no Manhattan Theological Seminary, lideradas
pelo rabino Burton Visotzky, virou série de televisão dedicado ao livro do
Gênesis.
Sarah Lieberman, uma historiadora judia, estudou a origem da
palavra tselá (costela, costa, lado)
e disse que em sumério ela significa tanto “costela” como "tornar
vivo" e que na antiga Mesopotâmia, Ninti, significa tanto “senhora da costela” como “senhora que traz a vida”. O duplo
significado remete à idéia de que hawah
não foi tirada de uma costela de Hadam, mas brotou dele e lhe trouxe vida e
sentido existencial.
Então, uma das hipóteses é que a estrutura familiar
patriarcal se faz presente na narrativa de Gênesis, embora em certos trechos
encontremos elementos que nos remetem à presença de estruturas matrilineares e
matrifocais. Ora, o caso do serviço de Jacó a Labão (Gn 29) para que pudesse
casar-se com a mais velha e depois com a mais nova é um exemplo que está em
conformidade com as práticas matrifocais do casamento. Sara e Rebeca também são
vistas como cumprindo papel matrifocal. No caso de Sara, um desses aspectos é a
opção pela esterilidade, visto como resultante de abstinência sexual a fim de
não engravidar. Tal postura de afirmação matrifocal tem paralelo com o papel
tradicional das sacerdotisas da Mesopotâmia, terra natal de Sara. Da mesma
maneira, a frase "deixará pai e mãe
para ficar com a mulher" sugere que o homem se deslocava em direção à
família da mulher, o que também é um elemento da família matrifocal.
Bill Moyers foi um dos teólogos a propor
que diante da modernidade que se esvai, cheia de desafios para a civilização
ocidental, de efervescência religiosa com poucas definições, não faz sentido
procurar a saída lá na frente, mas voltar ao livro das Origens. E, assim,
católicos, protestantes e judeus, mas também agnósticos, budistas, hindus e
muçulmanos, participaram dos debates de Moyers.
E as escrituras não-canônicas do vale de
Nag Hammadi, no Egito, enriqueceram os debates. A biblioteca de Nag Hammadi é uma coleção de textos
não-canônicos, que cobre do surgimento do cristianismo até o Concílio de Nicéia
em 325. Descoberta no Alto Egito, próximo à cidade de Nag Hammadi, em 1945, a
biblioteca contem textos de cinquenta e dois tratados, três trabalhos
pertencentes ao Corpus Hermeticum e uma
tradução parcial de A República de Platão. Segundo James M. Robinson, na
sua obra The Nag Hammadi Library in English, os códices pertenceram ao
monastério de São Pacômio e foram enterrados depois que o bispo Atanásio de
Alexandria foi condenado pelo uso de versões não-canônicas dos testamentos em
suas Cartas Festivas de 367. Após o Concílio de Niceia, monges tomaram os
livros e os esconderam em potes de barro nas cavernas de Djebel El-Tarif. Ali ficaram por mais de 1500 anos. Os textos
nos códices estão escritos em copta, embora sejam traduções do grego. O mais
conhecido deles é o Evangelho de Tomé, cujo único texto completo está na
Biblioteca de Nag Hammadi. Atualmente, todos os códices estão no Museu Copta do
Cairo.
Os textos de Nag Hammadi não analisam os
relatos do Gênesis literalmente, mas construíram hermenêuticas a partir da
tradição matrilinear. Assim, hadam e hawah eram representações dos padrões
existenciais do humano. Hadam seria símbolo da psiquê, a razão, e Hawah do pneuma, o espírito. Mas ambos
eram, igualmente, corpo, matéria. Razão traduzia as funções emocionais, de
pensamento e da personalidade, enquanto o espírito representava a capacidade
humana para a consciência existencial. Hadam
seria representação do ego da psicologia profunda, e Hawah da função transcendental. Obviamente, Hawah não era inferior a Hadam.
E o papel de Hawah teria sido o de despertar Hadam.
Em sono profundo, Hadam teria sido
levantado por Hawah. Enquanto Hawah da versão patriarcal é uma
costela, dependente, na versão matrifocal é um princípio espiritual. Não teria
saído fisicamente do corpo de Hadam,
mas brotado das profundezas do inconsciente de um Hadam adormecido. E teria sido assim que nasceu a consciência
crítica no humano, que aponta para a liberdade.
O texto “Sobre a Origem do Mundo” [On
the Origin of the World] apresenta Hawah como Zoe, vida, mensageira da Sabedoria de Deus. A Sabedoria
enviara Zoe, a vida, como instrutora, a fim de levantar Adão, que se encontrava
espiritualmente adormecido. A finalidade era fazer com que aqueles que fossem
gerados por ele pudessem ser existencialmente livres. Quando Hawah viu que seu companheiro dormia,
sentiu pena dele e teria exclamado: “Adão, vive! Levante-se sobre a terra!” Ao
clamor de Hawah, Adão abriu os olhos e levantou-se. Quando ele a viu disse:
“Você vai ser chamada de ‘Hawah, a-vida’,
porque é a mãe dos humanos”.
O teólogo teuto-estadunidense Paul Tillich fez uma interpretação semelhante:
entendeu que a alienação traduz simbolicamente a situação humana. O humano
alienado é despertado para a realidade da existência através da consciência
crítica e transformadora. Nesse sentido, sem a função Hawah, de despertamento
para a vida e para a consciência, não haveria a construção da espécie humana.
3. A mulher enquanto
comunidade cristã
A leitura da primeira Hawah, que apresenta a dualidade
entre a tradição matrilinear e a formação da cultura patriarcal, se prolongou
na segunda Hawah, a humanidade essencializada pelo Cristo. Por isso, em Ap 12.1
e seguintes, a Mulher é gloriosa, mas sofredora porque seus filhos estão
sujeitos aos ataques do dragão, ou seja, do Estado a serviço dos poderes
espiriturais da maldade. Como vimos, na compreensão de Lopez (veja
bibliografia), “encontramos aqui uma
riqueza mítico-simbólica interessante. Vemos um Deus solidário que corre em
auxílio da mulher, que representa a comunidade. Por trás disso, percebe-se que
o corpo da mulher é visível e é salvo, graças a esse filho ´maravilhoso´ que
regerá as nações”.
No Apocalipse a leitura de gênero da mulher é reconstruída
matrilinearmente. Na verdade, João funda a partir de sua leitura
neotestamentária a matrifocalidade cristã. A mulher é gloriosa e sofredora,
porque no primeiro século da comunidade de fé havia uma leitura solidária em
relação a ela: desde o Éden, Deus lhe prometera um papel nobre na obra da
redenção. Passa, então, a ser valorizada por causa do Filho, mas é sofredora
porque a geração dele provoca a fúria do adversário. A matrifocalidade joanina
rompe a ausência e o distanciamento patriarcal, traz a realidade da
ancestralidade para o presente, pois a partir dela todos são filhos e não há um
filho mais importante, porque o primeiro, o mais querido, foi elevado e nele
repousam todas as esperanças.
A matrifocalidade do Apocalipse aponta para uma teologia
onde a universalidade cristã também repousa em colo feminino. E porque uma jovem
deu à luz e é geradora de nova criação, o gênero feminino tem centralidade na
expansão do Reino. A mulher descrita por João faz a desconstrução das relações
convencionais de sangue, filiação, paternidade e parentesco. Essa desconstrução
das relações familiares, aqui chamada feminescência, produz um estado simbólico
inovador que transforma a face da existência cristã. A partir da mulher
gloriosa e sofredora do Apocalipse nasce uma criança e, ao mesmo tempo, uma
época.
A mulher do Apocalipse não pode ser identificada com uma
pessoa em especial. A estrutura simbólica de gênero em Apocalipse 12 traduz a compreensão
joanina da feminescência e correlaciona o projeto do novo feminino cristão com
a comunidade de fé. O erro católico consiste em atribuir feminescência a Maria
e não entender o processo da matrifocalidade mediterrânea que se expressava na
vida de mulheres da época de Jesus e na construção da comunidade de fé do Novo
Testamento. Hoje, a matrifocalidade se faz presente nas comunidades de fé
saudáveis, onde tais características se expressam na cooperação solidária com o
restante da comunidade. Mas a feminiescência, o espaço espiritual próprio, de
parteira de um novo tempo, pertence à comunidade de fé: “Eu te darei as chaves do reino dos céus. O que ligares na
terra será ligado no Céu, e o que desligares na terra será desligado no Céu” (Mt 16.19). Eis a lição de João: “A-vida” que nos primórdios foi
atravessada pela alienação, dor e sofrimento, agora, atravessa a existência em
luta com a não-vida, e na feminescência da comunidade de fé o sentido se faz
presente e constrói a esperança de um mundo novo.
* Jorge PINHEIRO dos Santos tem Pós-Doutorados em Ciências da Religião pela Universidade Metodista
de São Paulo e pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. É Doutor e Mestre em
Ciências da Religião pelo Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião da
Universidade Metodista de São Paulo e graduado em Teologia pela Faculdade
Teológica Batista de São Paulo.
É professor da Graduação e Pós-Graduação na Faculdade Teológica Batista de São
Paulo, com especialidade em Teologia Sistemática, atuando principalmente com os
temas de Filosofia, Política e Religião.
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