jeudi 4 septembre 2025

Afrobrasilidade...

Afrobrasilidade e Princípio Protestante: 
Exclusão, Criatividade e Transcendência

Prof. Dr. Jorge Pinheiro dos Santos 


Tu és o louco da imortal loucura,
O louco da loucura mais suprema.
A Terra é sempre a tua negra algema,
Prende-te nela a extrema Desventura.
Mas essa mesma algema de amargura,
Mas essa mesma Desventura extrema
Faz que tu'alma suplicando gema
E rebente em estrelas de ternura.
“O assinalado”, Cruz e Souza (primeira e segunda estrofes).


Introdução

Ao percorrer os caminhos da afrobrasilidade ao longo dos últimos três séculos encontramos as raízes que explicam a miséria da nação. As bandeiras da emancipação, da democracia e da justiça social continuam urgentes hoje tanto quanto em épocas passadas. Essas bandeiras, sociais e políticas, traduzem a fragilidade do protestantismo evangélico no Brasil, que, no correr das últimas décadas, parece ter crescido muito, mas pouco tem feito em relação aos excluídos. Embora o princípio da liberdade religiosa tenha sido parte integrante da vida e fé dos primeiros batistas ingleses e a luta pela liberdade vista como um direito humano, é importante lembrar que o protestantismo histórico brasileiro, herdeiro das tradições sulistas norte-americanas, se não foi abertamente escravista, foi condescendente e omitiu-se diante da exclusão forçada dos afrobrasileiros. E a história batista no Brasil confirma isso.

“A Denominação Batista também foi atingida pelo divisionismo ocasionado pelas atitudes frente à escravidão. Em 1845, os batistas norte-americanos separaram-se conforme o posicionamento contra a escravidão. Organizou-se a Convenção Batista do sul para abrigar as igrejas que admitiam o trabalho escravo, representando delegações de oito estados do sul escravista. Foi a Convenção Batista do Sul dos EUA que estabeleceu a Denominação Batista em solo brasileiro. (...) A guerra de Secessão, na década de 1860, concretamente demonstrou a divisão vigente na sociedade e no protestantismo norte-americano. "Nos Estados Livres, a ascensão dos evangélicos de mentalidade reformista tinha dado um novo sentido de direção e de propósito moral a uma classe média ascendente tentando se adaptar a uma nova economia de mercado. O Sul com seus degredados trabalhadores cativos e seus brancos pobres e preguiçosos - parecia estar, para a maioria dos nortistas, num processo de violação flagrante da ética trabalhista protestante e do ideal da concorrência aberta". 

Após a derrota do sul dos Estados Unidos, muitos confederados, inclusive ex-combatentes, vieram tentar a sorte no Brasil, especialmente em São Paulo. A relação entre o protestantismo e a vida política, para os agentes da imigração norte-americana para o Brasil era olhada de forma maneira bastante estreita, já que parte deles, pastores protestantes, a exemplo do Rev. B. Dunn, via o país como uma nova Canaã, a terra prometida onde os confederados derrotados poderiam reconstruir suas vidas, seus lares e suas propriedades, incluindo a mão-de-obra escrava. Em seu livro Brazil, The Home for Southieners,  Dunn apresentou o país dessa maneira, o que ajudou os sulistas olharem o Brasil como uma alternativa segura. O médico M. F. Gaston, por exemplo, veterano do Exército Confederado e originário da Carolina do Sul, que escreveu Hunting a Home in Brazil, faz no livro um relato minucioso das vantagens que os sulistas encontrariam aqui. O sudeste brasileiro, com terras quase virgens, era apresentado como possibilidade para bons empreendimentos. Ele disse, após ter visitado as terras da região de Campinas, que “as vantagens para o cultivo do algodão nessa região dão-lhe primazia sobre a parte meridional dos Estados Unidos. O elemento adicional do trabalho escravo está aqui apto a trazer resultados que não podem ser assegurados pelo trabalho assalariado nos Estados Sulistas; e tão logo os negros se tenham familiarizado com o modo adequado de trabalhar o algodão, poderemos antecipar uma produção excedendo a qualquer uma que já tenha sido realizada nos Estados Unidos”. 

A propaganda desses agentes da imigração surtiu efeito: cerca de dois mil e quinhentos sulistas se deslocaram para São Paulo. A esperança de encontrar terras em abundância com mão-de-obra escrava mobilizou famílias inteiras. E assim chegaram as primeiras famílias batistas à colônia de Santa Bárbara D’Oeste. Porém, nem todos os batistas aqui chegados eram favoráveis à escravidão. Na verdade, os batistas tiveram duas atitudes frente à ela: os primeiros colonos eram favoráveis e foram proprietários de escravos. Já os missionários e os batistas brasileiros em geral, após a abolição, em 1888, condenaram o escravismo como incompatível com a fé cristã. Essas diferentes atitudes demonstram as dificuldades que tinham para tratar do assunto. Em Santa Bárbara D’Oeste, primeiro núcleo batista, o trabalho escravo existiu como mão-de-obra usada na agricultura e em tarefas domésticas. Os colonos batistas eram senhores de escravos, a exemplo da senhora Ellis, dona de um sítio e que providenciara hospedagem nos primeiros meses ao casal de missionários W. Bagby, fundador da Primeira Igreja Batista do Brasil. Conforme o diário da senhora Bagby, “depois de dormir uma noite na capital paulista, os missionários tomaram o trem para Santa Bárbara, onde chegaram sob forte aguaceiro. Na estação os aguardavam os enviados da senhora Ellis, com dois cavalos e um escravo, para carregar a bagagem. A estrada até o sítio estava bem lamacenta mas ao chegar, foram carinhosamente recebidos”.

Conforme conta Crabtree, a Junta de Richmond, nos EUA, ao avaliar, em 1859, as possibilidades de envio de missionários para o Brasil, admitiu que havia similaridades entre os dois países e uma vantagem que deixaria os missionários norte-americanos bem aclimatados em terras brasileiras, o fato de, em ambos os países, haver escravidão: “o Brasil era como os Estados Unidos, tem escravos e os missionários enviados pela Convenção Batista do Sul não podiam sentir-se constrangidos a combater a escravatura e assim envolver-se na política do país”. 

E o missiólogo batista Donaldo Price confirma as razões de tal escolha: “Os primeiros batistas que aqui chegaram, chegaram como imigrantes, não como missionários. Chegaram depois da derrota sulista na guerra entre os estados, ou a guerra civil norte americana. E queriam vir para uma nação que ainda tivesse escravatura, assim escolheram o Brasil”. 

Passados quase 120 anos do decreto que reconheceu o direito do povo negro à liberdade, a ideologia do ocultamento ainda domina o pensamento protestante. Assim, Elisabete Aparecida Pinto e Ivan Antonio de Almeida denunciam que na organização do IV Ciclo de Reflexão e Debates do Núcleo de Estudos e Pesquisas em Gênero, Etnicidade e Saúde da FALA PRETA!, em 1998, que teve como tema Religiões e a Inclusão/Exclusão de Pobres, Negros, Mulheres no Mundo Globalizado, “esta dificuldade foi percebida pela ausência (...) das Igrejas Pentecostais, Neopentecostais e Batistas. Essas instituições aceitaram o convite, confirmaram presença, porém no dia e hora marcados não se sentiram preparadas para a natureza do debate”. 

 Em razão da ideologia do ocultamento, é necessário entender que as bandeiras emancipatórias são indissociáveis da pregação das boas novas, e precisam ser vividas como tradução do cristianismo que professamos. Assim, ética cristã e democracia não podem ser olhadas como excludentes. Ao contrário, se complementam e precisam ser vivenciadas na Igreja e além-muros, se desejamos fazer com que o significado histórico do projeto protestante evangélico marque nossa presença no futuro da nação.

2. Uma Hipótese de Esperança: O Princípio Protestante

A partir dos clamores éticos da profecia bíblica, lida através da cosmovisão luterana da Reforma protestante, Paul Tillich apresentou uma compreensão da práxis cristã que ele chamou de princípio protestante. Assim, o princípio central do protestantismo seria a doutrina da justificação pela graça apenas, significando que nenhuma pessoa ou comunidade humana pode reivindicar para si a dignidade divina em consequência de conquistas morais, de poder sacramental, de sua santidade ou de sua doutrina. Consequentemente, a autonomia profética precisa sempre criticar, condenar e transformar o status quo ou os sistemas morais, políticos e sociais que se consideram sagrados. Cada protestante tem que decidir por si próprio se determinada conjuntura, doutrina ou sistema social é verdadeiro ou falso, se os profetas existentes em seu meio são verdadeiros ou falsos e se o poder estabelecido é divino ou demoníaco. Para os protestantes a decisão será sempre pessoal.

Tal protestantismo entendido como expressão crítica e autônoma existe onde quer que se proclame o poder do novo ser e onde se denuncie situações-limite que ameacem o sentido da vida. É aí que se encontra o protestantismo e em nenhum outro lugar. É possível que o protestantismo sobreviva nas religiões organizadas, mas não depende delas, talvez por isso a maioria das pessoas experimente o sentido da situação-limite fora das igrejas, já que o princípio protestante pode ser proclamado por movimentos pertencentes tanto ao domínio secular, sem qualquer filiação eclesiástica, assim como por pessoas e grupos que por meio de símbolos protestantes expressam a situação humana em face do incondicional. Se nessas situações proclama-se com mais autoridade o princípio protestante do que nas igrejas, então é aí e não nas igrejas que o protestantismo se torna vivo e atual. Tomando-se por base tal compreensão, entendemos a luta histórica do povo negro e de seus descendentes no Brasil como um clamor permanente contra situações-limites a que estiveram e estão expostos. 

A chamada a um posicionamento transcendente, de resistência ao impacto da herança de exclusão deveria levar a Igreja protestante a elaborar uma mensagem para o mundo afrobrasileiro. Mensagem de esperança. Mas a igreja que não aprendeu a protestar é sempre tentada a emancipar o afrodescendente através da submissão à hierarquia e à tradição, esquecendo-se que ele já experimentou a autonomia e que esta é uma experiência transformadora.

O conceito de situação-limite traduz aquela ameaça a tudo que dá sentido final à existência, e este o diferencial do protestantismo. Esta expressão, como vimos, nasceu em torno da justificação pela graça, através fé, já que a vida em liberdade significa a aceitação da exigência incondicional de se realizar a verdade e se fazer o bem. Assim, o reconhecimento da existência da situação-limite traduz-se em juízo e transformação, realça a diferença entre a religiosidade que faz a defesa da hierarquia e da tradição e o princípio protestante. A justificação pela fé é, então, entendida a partir da situação-limite. Por isso, sem uma relação universal com o mundo ético a noção de autonomia da pessoa não basta para construir uma ética. Ou seja, não se funda uma ética protestante apenas sobre o terreno da pessoalidade. Mas é importante entender que não existe uma interpretação absoluta da essência, fonte da ética, já que essa essência não é uma grandeza estática, mas se realiza de forma dinâmica na existência. Por isso, não se pode subscrever nem a construção de uma ética social absoluta, nem uma construção de tipo racionalista. Toda compreensão real da essência e como conseqüência toda ética real são concretas. Essa essência se situa naquele momento especial, pleno de liberdade e que revoluciona conceitos, ações e destinos. A universalidade desse tempo kairótico comporta riscos concretos, já que não se move num universal abstrato, separado da situação atual, o que é válido tanto para a pessoa, quanto para a consciência ética de um grupo social, no nosso caso da brasilidade em sua relação com a afrodescendência. Exatamente por isso, toda realidade essencial comporta dois aspectos, aquele a traz de volta à origem, “ao fundamento e abismo de todo ser, e um outro que indica seu caráter particular, sua inserção na finitude”.

Assim, a realização da essência da brasilidade, em sua relação com a afrodescendência, deve se orientar em direção a ela própria, na medida em que essa manifestação de sua origem criativa remete ao que é perene nela. Exprime o que lhe é próprio, suas solidariedades no plano formal e sua finitude. Por isso, uma ética da brasilidade deve transportar ao transcendente e ao mundo, que em última instância são o bem decisivo de nossa existência concreta. Ao nos posicionarmos por uma ética que parte da essência de nossa brasilidade nos posicionamos por uma ética da vida. E tal compreensão leva-nos a estudar o desenvolvimento criativo desta essência brasileira enquanto vida que irrompe na história, criadora de um novo ser.

E a partir daí podemos afirmar que a experiência do cristianismo protestante em sua essência pode ser uma experiência transcendente ao nível da materialidade afrobrasileira, uma experiência que deve acontecer em todas as situações. Nesse sentido, tal protestantismo não poderia ser identificado com um tipo determinado de organização social, mas ser portador de poder e oferecer aos afrobrasileiros uma mensagem de vida, tanto para a pessoa como particularidade, como para as comunidades como um todo. Exatamente por isso, apresenta-se capenga toda forma de cristianismo, protestanstismo, evangelicalismo que se fecha na pura interioridade. Mas também não se pode dizer que o cristianismo do princípio protestante é um movimento que parte mecanicamente da interioridade em direção à exterioridade, apropriando-se de formas culturais afrobrasileiras ou simplesmente passando ao largo delas. Na verdade, ele toma forma a partir delas, mas também dá forma às expressões culturais afrobrasileiras. Dessa maneira, um tal  cristianismo do princípio potestante está interpenetrado pela consciência experiência estética, ética e pelos modelos sociais da afrobrasilidade. 

O princípio protestante, ao fundamentar-se numa ética do amor-companheiro, daquele que parte e reparte o pão, tem uma postura crítica diante da ordem social que se apóia na opressão e na exclusão social. Nesse sentido, clama pela necessidade de uma ordem na qual o sentido de comunidade seja o fundamento da organização social. Esta ética do amor propõe uma economia solidária onde a alegria não seja fruto do ganho, mas do próprio trabalho. E condena o egoísmo de classe, onde cada qual procura enriquecer através da exploração de seu próximo e das conseqüências desse processo, como o privilégio da educação para uma elite. Tais pecados sociais são limitação do bem, porque impedem a universalização do amor; 
alienação da vontade, porque degradam a possibilidade de escolha dos agentes morais; e 
dependência do mal, porque aprofundam raízes e escravizam a comunidade. Diante disso o princípio protestante propõe que se enfrente tais pecado com 
autonomia crítica, solidariedade e transformação social, por acreditar que tais posicionamentos políticos geram justiça, paz e participação solidária.

Ora, se rupturas espirituais estão sempre associadas a rupturas econômicas, da mesma maneira que um processo de unidade espiritual vem associado a um processo de unidade econômica, como considerou Tillich, o fracionamento espiritual característico de nossa épocas traduz fracionamento econômico, distanciamento e choque entre classes. Tal situação nos exorta a buscar a construção de um novo processo cultural de unidade de onde brote unidade e solidariedade social e econômica, mas também espiritual. Ora, se é viável sonhar e lutar por processos de desenvolvimento que combinem mudanças espirituais e transformações econômicas e sociais, podemos afirmar que o protestantismo está eticamente obrigado a fazer uma escolha, ou participa do processo, atuando a favor desse desenvolvimento ou entra em processo de caducidade, ao afastar-se da vida real das comunidades afrobrasileiras nas quais está inserido.

Seja qual for a nossa opinião ética sobre a relação protestantismo/afrobrasilidade, um fato deve ser ressaltado: é necessário para o protestantismo manter um relacionamento com as pessoalidades, comunidades e cultura afrobrasileira, já que a rejeição da afrobrasilidade em nome de um protestantismo sem raízes contradiz a universalidade do cristianismo. E se o cristianismo não somente pode, mas deve manter um relacionamento com a afrobrasilidade, devemos nos perguntar se o contrário da premissa é verdadeira: pode a afrobrasilidade ter um relacionamento construtivo com o protestantismo? Para muitos, a tradição histórica de ausência e negação da negritude nega a possibilidade dessa aproximação, mas devemos ver que tal concepção mais que nada traduz uma relação de causalidade ideológica. Por isso, as pessoalidades, comunidades e culturas afrobrasileiras estão desafiadas a construir atitudes diferentes em relação ao princípio protestante e em relação às estruturas ideológicas do protestantismo. A história do protestantismo no passado e no presente é passível de muitas críticas. Suas opções fizeram como que dificultasse seu relacionamento com parte da população afrobrasileira excluída de bens e possibilidades. Mas, ao contrário do que pode parecer, não podemos dizer que a ideologia branca do protestantismo de missões seja um fenômeno constitutivo do protestantismo. Antes, é uma herança da cultura burguesa.

Embora, haja razões históricas para criticar o protestantismo, erramos quando negamos a existência da base solidária do ideal cristão. Quer dizer, há setores do movimento de resistência do povo negro que vê com desconfiança o protestantismo. Mas, se as idéias de emancipação do povo negro não traduzem nenhuma oposição essencial, de princípio, ao cristianismo que vive o princípio protestante, aos cristãos cabe ter uma atitude solidária e fraterna com as reivindações e lutas da afrobrasilidade. Atitude solidária e fraterna deve ser entendida como a realização do princípio do amor cristão, que entende a necessidade de eliminar as condições que geram miséria e exclusão. Tal atitude traduz a urgência de combater os fundamentos da exclusão racial e social e de ações para a construção de uma outra ordem social, que inclua excluídos e desapropriados de direitos e bens. Isto  porque o princípio protestante só existe como ideal ético quando traduz anseios e esperanças dos mais variados setores das comunidades.

3. A Escravidão Gerou Miséria e Exclusão

Joaquim Nabuco foi o primeiro brasileiro a apresentar uma visão globalizadora de nossa formação histórica. E o fez numa pequena obra de propaganda: O Abolicionismo. Nela, ele mostrou que a escravidão, que durou três séculos, não constituía um fenômeno a mais, de modo que deveria ser analisado em igualdade de condições com a monocultura e a grande propriedade agrária.

Para Nabuco, foi a escravidão que formou o Brasil como nação. Ela é a instituição que ilumina a compreensão de nosso passado. E é a partir dela que se definiram entre nós a economia, a organização social, a estrutura de classes, o Estado, o poder político e a própria cultura. A escravidão foi a protagonista por excelência da história brasileira. Historiadores, sociólogos e antropólogos começam a entender assim; porém, como representantes da Igreja, nós protestantes, raramente reconhecemos essa dívida intelectual, cultural e social. O autoritarismo tão típico de nossa elite, a dificuldade na construção da cidadania e a exclusão social estão intimamente ligadas a esses trezentos e setenta anos de escravidão e são as heranças trágicas da brasilidade. Assim, a escravidão gerou miséria e exclusão.

Nossa cultura relacional e os seus códigos devem ser entendidos a partir de uma chave dupla: é necessário partir das matrizes antropológicas, mas não se pode esquecer as pressões globalizantes. E as matrizes antropológicas foram construídas a partir da polaridade de dois mundos e de duas realidades que têm suas origens com a escravidão: a casa, enquanto dimensão social permeada de valores, de espaços exclusivos e lugar moral, e a rua, enquanto movimento, trabalho, tripalium. Essa situação traduz a relação existente entre senhores e escravos. A afirmação antropológica do padre Antonil, nosso primeiro economista, no século dezoito, de que “o Brasil é um inferno para os negros, um purgatório para os brancos e um paraíso para os mulatos” não é uma constatação biológica.  Era um inferno para os negros porque para estes não havia esperança a não ser a morte, geralmente prematura. Para os portugueses era o purgatório porque estes acreditavam na possibilidade de fazer fortuna e voltar a Portugal. E era um paraíso para os mulatos porque estes já livres da escravidão: podiam transitar entre brancos e negros, crescendo em importância social pelo papel mediador que lhes era confiado.

Assim, o paraíso aqui é definido como resultante de um relacionamento cultural. Locus do mulato ou mulo, animal ambíguo, híbrido, incapaz de reproduzir-se enquanto tal. Apesar da grosseria racista do termo, será ele aquele que rompe a dualidade cultural, tão típica das sociedades protestantes e calvinistas, que opõe bem e mal, deus e diabo. Aqui, ao contrário, com a construção da cultura afrobrasileira e com o mulato, dá-se a síntese que traduz nossa cultura relacional.

Ótimo exemplo é o nosso Macunaíma, um herói sem nenhum caráter, de Mário de Andrade. Nos países de cultura protestante burguesa, o negativo é o que está no meio. Aqui, o que está no meio é a virtude.

Antonio Manzatto (1994) analisa a antropologia dos personagens amadianos. Para ele, Jorge Amado vai além do regionalismo e realiza uma síntese magistral da identidade do brasileiro, extrapolando os marcos estéticos da literatura, para formalizar as bases da cultura relacional afrobrasileira, embora não faça a crítica do que se esconde atrás e por baixo da aparente cordialidade do brasileiro.

A cultura relacional esconde a injustiça social e a opressão sexual. Afirmamos que o Brasil foi formado por três matrizes: brancos, índios e negros, o que, filtrado pela cultura relacional, leva a uma ilusão, a uma mentira, como se brancos, índios e negros tivessem optado pela construção do país. A verdade é que portugueses brancos e aristocráticos exterminaram índios e escravizaram negros.

Claude-Lévi Strauss em O cru e o cozido (1964) nos leva a conhecer, por meio de uma abordagem estruturalista, como foi determinante no desenvolvimento da humanidade a passagem da alimentação crua para a cozida. A partir do título de inspiração culinária, Claude-Lévi Strauss refere-se às exigências do corpo e aos laços elementares que o ser humano mantém com o mundo. Assim, através da oposição aparentemente trivial entre o cru e o cozido, apresenta a força lógica de uma mitologia da cozinha, tal como concebida pelas tribos sul-americanas. Depois, traz a tona as propriedades gerais do pensamento mítico, onde descobrimos uma filosofia da sociedade e do espírito. E é interessante que este pensamento mítico vai empapar a cultura relacional brasileira.

No Brasil há um código relacional que traduz uma equivalência entre comida e sexualidade, que tem como fundamento o prazer, e apresenta novos parâmetros para o cru e o cozido, relacionando alimento, comida e sexo. 

Para a cultura afrobrasileira, alimento é o que mantém os seres vivos, a comida, aquilo que dá prazer, e o sexo é sempre um tipo de comida. O alimento é geral e universal, mas a comida dá identidade e, como conseqüência, quem come tem o controle. O alimento cru por excelência é a salada, algo de pouco sabor, sem maiores atrativos, diferente da comida que é bem cozida, como papa ou pirão. O alimento é aquilo que é difícil de engolir, já a comida é arroz com feijão, síntese da afrobrasilidade. Herdeiros que somos das culturas das irmandades de angolanos, benguelas, jejes, nagôs e outras, onde o cuidado pela preservação da vida da comunidade cabia à mulher, na cultura afrobrasileira é ela quem faz a mistura e quem dá a comida. E mulher é dona Flor, moquequeira dengosa, articuladora de temperos, de cama e mesa. Ou Gabriela, de cravo e canela.

4. Tempo e Construção da Vida

Na cultura relacional afrobrasileira, o tempo vivido disputa com tempo lembrado. O tempo vivido é a rua, o movimento, é o tripalium. O tempo lembrado é o sonho, é o que foi e que deveria continua a ser. O tempo vivido é o suor e o cansaço.

A festa é a ruptura do tempo vivido. É o momento em que o corpo deixa de ser gasto pelo tripalium e é gasto pelo prazer. Talvez por isso, o maior acontecimento relacional da afrobrasilidade é o carnaval. É o momento do contrário. Troca-se o dia pela noite, a casa pela rua. A regra é o excesso. Não é uma festa de máscaras mas de fantasias. É uma leitura da liberdade considerada fim das regras e convenções. Vive-se o fim da miséria, o fim da escravidão, o fim do pelourinho. É a utopia socialista em versão brasileira. Todos somos iguais diante da possibilidade do prazer. Ou como canta Ney Matogrosso:

“Não existe pecado do lado de baixo do Equador / vamos fazer um pecado rasgado / suado / a todo vapor / me deixa ser teu escracho / capacho / teu cacho / diacho / riacho de amor / Vê se me usa / abusa / lambuza / que a tua cafusa não pode esperar / quando a lição é de escracho / olha aí / sai de baixo / que eu sou professor / deixa a tristeza pra lá / vem comer / vem jantar / sarapatel / caruru / tucupi / tacacá / vê se me esgota / me bota na mesa / que a tua holandesa não pode esperar / deixa a tristeza pra lá / vem comer / vem jantar / sarapatel / caruru / tucupi / tacacá (Ney Matogrosso, Não existe pecado ao sul do equador”. 
Letra e música: Chico Buarque e Ruy Guerra. In: "Feitiço Elektra", 1978.).

Os códigos da afrobrasilidade caminham a par com a questão racial. A solução relacional para a injustiça social é a miscigenação e para a opressão sexual, o sincretismo. A oposição entre cultura latina, cultura indígena e cultura negra não se tornaram irreconciliáveis, mas deram origem a uma síntese, que é a cultura popular afrobrasileira. 

Essa cultura mestiça, essa síntese, é entendida como a maneira de o brasileiro viver a vida, seu gosto pela festa, pela música, pela dança, pela comida e pelo sexo. Mostra uma forma de viver em que a vida não é algo acabado e definido, mas que se vai construindo no concreto do cotidiano vivido. Essa é uma característica muito especial da cultura relacional afrobrasileira, na qual a vida tem de ser reelaborada a cada dia. Não é uma forma cultural fixa, mas vai-se modificando conforme se vai vivendo.

Esses dados são fundamentais para se entender a questão da identidade do afrobrasileiro. Sua identidade não existe como algo dado. Também a identidade vai sendo construída, e os elementos externos e as pressões mais novas (isto é, globalizantes) vão sendo deglutidos e vividos no hoje que se vive.

5. A Cultura Relacional Afrobrasileira

O concreto e imediato da vida do afrobrasileiro o leva a ser um ser relacional. Mais do que estar situado diante das coisas e da natureza, o realizar-se do afrobrasileiro como ser dá-se através do relacionar-se. Assim, não se considera prisioneiro do destino, das forças das coisas ou da natureza.

É um ser que procura aliados, quer para a realização de seus prazeres, quer para enfrentar os desafios impostos por elementos ou realidades alheias a seu cotidiano. A essa procura de alianças, o afrobrasileiro chama de amizade e companheirismo. E se ele pode relacionar-se com seus pares, também o pode fazer com a transcendência. Para o brasileiro, o relacionar-se com o transcendente jamais significa uma negação do humano. Daí a intimidade que aparenta ter com a divindade.

Nas religiões afrobrasileiras, que nasceram do sincretismo, das quais a Umbanda talvez seja o caso mais peculiar, os elementos constitutivos da personalidade dos orixás são traduções antropológicas do afrobrasileiro, inclusive de seus códigos relacionais.

Tanto o ideal de liberdade como outras características do afrobrasileiro traduzem uma profunda dimensão coletiva. Isso não elimina ou massacra sua pessoalidade, mas, na maioria dos casos, lhe permite reafirmá-la. E o massacre não acontece porque o afrobrasileiro é coletivo e comunitário, mas porque não sobrevaloriza as estruturas sociais. Assim, ao desprezar as estruturas, ao negar qualquer redução ao papel de simples engrenagem, reafirma a amizade e a solidariedade como formadoras do coletivo. Para ele, a liberdade, a amizade e a solidariedade acontecem na comunidade. É difícil imaginar o afrobrasileiro solitário. Ao contrário, a imagem cultural e social que temos dele, e que toda a cultura popular reflete é a do homem e mulher cercados de amigos, conhecidos e parentes. A sua práxis religiosa é sempre coletiva. A religião é sempre um acontecimento comunitário, quer falemos da Umbanda ou do pentecostalismo popular. Para o afrobrasileiro, a religião não pode ser vivida individualmente. A idéia de que a religião é questão de foro íntimo é uma abstração branca, calvinista ou tridentina. Ao contrário, na cultura afrobrasileira todos discutem a religião do outro, opinam e querem vê-lo junto na mesma comunidade.

E em relação às festas não poderia ser diferente. E festa implica comida, música e dança. Em condições normais, o afrobrasileiro não come, nem bebe sozinho. A comunidade é o espaço onde sua pessoalidade e criatividade atingem os níveis mais altos.
 
6. A Criatividade Afrobrasileira

Um pensamento protestante que parta da realidade da cultura relacional afrobrasileira não pode desrespeitar a negritude. Não pode negar o mundo negro considerado parte integrante da humanidade criada à imagem e semelhança de Deus. Ao contrário, deve partir da realidade antropológica da criatividade afrobrasileira, que em amplo espectro se traduz numa antropologia da aventura e do risco enquanto fonte da liberdade que busca.

Razões geográficas, históricas e raciais, nos últimos três séculos, levaram ao mergulho no desconhecido e plasmaram no afrobrasileiro essa atração pela aventura e pelo risco. O afrobrasileiro ama o desafio, não como futuro planejado, mas como espaço para a criatividade. Para ele, desafio é sempre se lançar à aventura da ruptura de regras, é dizer não às convenções e sobreviver pela coragem.

Quando enfrenta esses desafios, que vai da sobrevivência no trapézio da economia informal ao transformar-se em Mané Garrincha nos gramados do mundo, está de fato modelando sua identidade. Mulato, não teme mergulhar nos desafios da cultura branca e globalizada.

Aventura implica a possibilidade do fracasso. E fracasso faz parte do risco. Mas ao viver a dialética desse movimento, o afrobrasileiro constrói sua identidade, ainda que a um preço muito alto. Na verdade, é fazendo assim que ele sente-se livre e dá asas à sua criatividade, sem se preocupar com a construção do futuro. E se não fosse assim não estaríamos diante do afrobrasileiro.

A dificuldade em globalizar o afrobrasileiro repousa aí: na cosmovisão de que a vida humana deve ser entendida como aventura e prazer. Como algo que não pode ser planejado, organizado, dimensionado, mas vivido. Dessa maneira, viver é estar aberto ao novo, ao desafio, ao que ainda não foi vivido, nem mesmo se planejou viver. A ação antropológica do afrobrasileiro nasce da possibilidade de escolher a vida que sonha viver, que ele tem liberdade para escolher viver. Nesse sentido, quer viver a cada dia um novo sonho. E como para ele ficção e realidade se entrelaçam, sua maior construção é o carnaval, já que gira ao redor da festa e do prazer. Comida e sexo, futebol e carnaval surgem como expressões maiores da possibilidade da utopia.

O pensamento protestante não pode estar preocupado em adaptar o homo afrobrasiliensis à globalidade banalizadora, mas em entender os elementos da imago Dei que permeiam essa riqueza civilizatória.

7. A Busca do Transcendente

A afrobrasilidade é um modo de ser, uma maneira de existir. O afrobrasileiro não se diferencia simplesmente pela sua cor de pele. A pele negra tem uma história, uma história de negações e de resistências. É preciso, pois, compreender que o afrobrasileiro se autocompreende, num primeiro momento, em sua história de negação, e por isso se afirma negro. A afrobrasilidade é afirmação deste que é negro e negra: é negação da negação. Este afrobrasileiro, destituído de sua história, vive imerso em si mesmo e numa sociedade que promove a ruptura de seus valores étnicos, sociais e culturais, mas quer iniciar uma outra história, onde não é João ninguém, Maria nenhuma.

Mas a história do povo negro não começa com a escravidão. Afirmar a afrobrasilidade é afirmar uma proposta em que a afrobrasilidade é mais do que uma evidência, é afirmar uma história que foi excluída. Implica compromisso com a causa de um povo. Se a cultura relacional afrobrasileira tem um caráter mágico, fortemente empapado no maravilhoso, isso se dá porque o dia-a-dia desse ser humano está ligado à busca da transcendência. Nesse sentido, o elemento que vai além e ultrapassa o concreto do dia-a-dia do afrobrasileiro é o transcendente.

Essa presença do maravilhoso caldeia toda a malha relacional, indo do afrobrasileiro simples ao que alcançou o sucesso e a glória. É importante, no entanto, entender que o maravilhoso relacional da cultura afrobrasileira não nasceu de um processo pacífico, mas violento, do choque entre o universo transcendental de brancos e a matriz sacralizadora da natureza da religiosidade negra. A contra-reforma produziu genocídio e escravidão, macerando o universo religioso de povos e nacionalidades.

A recuperação da história do povo negro como tradição e cultura liga-se à necessidade de conscientização da identidade afrobrasileira. Aquele que esquece nega o esquecido, reprimindo ou suprimindo. A identidade está imbricada à memória. Evocar a memória é provocar e transformar.

Dessa maneira, reconhecendo os elementos negativos da cultura relacional afrobrasileira, que se traduziu na tentativa de esconder as injustiças sociais sofridas, podemos resgatar o que ela construiu de positivo. Afirmar a cultura à qual pertencemos é o primeiro passo para construir um pensamento protestante afrobrasileiro, que compreenda a identidade do povo negro em sua busca de felicidade e transcendência.

A antropologia mostra-nos um afrobrasileiro em busca da felicidade imediata e da transcendência, possibilitando ao pensamento protestante uma compreensão dos elementos da revelação e da imagem de Deus aí embutidos. Não devemos temer o afrobrasileiro, mas conscientemente reconstruir raízes e memória. Esse caminho dará fundamentos a velhos sonhos, traduzirá a boa notícia como resposta imediata e concreta para a utopia que se desfaz na quarta-feira de cinzas.

Ser negro traduz metanóia e por isso a afrobrasilidade constitui-se num desafio não só para os negros. A afrobrasilidade deve ser uma práxis, uma atitude de resgate diante da história de negação do negro. Desse ponto de vista, colocar para a nova igreja a afrobrasilidade como princípio protestante implica resgate de uma história de sofrimento e dor e redenção diante das possibilidades que estes sofrimento e dor construíram. O lugar fundamental da gestação da afrobrasilidade do ponto de vista do princípio protestante dá-se no locus da comunidade negra, espaço de formação da identidade negra, como vida resgatada. Mas, considerando que o princípio protestante possui dimensões que transcendem o locus, é importante estabelecer paradigmas que o viabilizem. Paradigmas esses que possibilitem a cada comunidade traçar seu caminho de liberdade, de acordo com sua realidade e necessidade, sem perder o vínculo com o conjunto da mensagem de redenção. Nesse sentido, não basta construir um pensamento da negação, mas um pensamento da afirmação da afrobrasilidade. Não somente uma práxis do protesto, mas uma práxis da proposta, uma práxis da libertação que permita levar a riqueza dos sonhos ancestrais à sociedade afrobrasileira de conjunto.

Num primeiro momento, abertura à transcendência é sofrimento e cruz. Motor da liberdade cristã, quando esta se revela no aspecto da supressão do ser humano imediato. É a exigência de romper com o existente aceito. Essa ruptura, no entanto, exige persistência na determinação e no sofrimento em nível imediato, sem a qual não há liberdade dentro da ordem existente (Ballestero, 1970, p.110-111).

Contudo, abertura à transcendência não se resume a esse primeiro momento. Na verdade, é diametralmente oposto a ele, traduz outra realidade, outra natureza. A unidade transcendência/humilhação/cruz é superficial como realidade imediata. Por isso, a emergência da transcendência passa pela morte do mundo, porque a realidade entrou em caducidade. Sofrimento e cruz refletem essa impossibilidade de vida e de eternidade. A transcendência é regeneradora porque acontece no mais fundo da própria raiz humana. É no momento da morte de seu consciente, que o mais profundo da intencionalidade humana se revela.

A interioridade cristã não é consciência cartesiana. É um tempo de negação de todo objeto possível, tempo de vazio interno que possibilita a abertura ao sagrado. É nesse momento que a transcendência aparece como disponibilidade transparente da consciência. Dessa maneira, a transcendência do afrobrasileiro não pode realizar-se a não ser como articulação viva da subjetividade e como sua obra. A morte do afrobrasileiro imediato é o ato que faz possível ressurgir o verdadeiro afrobrasileiro, a partir daquilo que lhe é inalienável e próprio. Fazendo uma releitura de Lutero podemos dizer que o cristão “é servo em tudo e está submetido a todo mundo”, então... o cristão “é senhor de todas as coisas e não está submetido a ninguém” (Luther, 1955, p. 225).

Se entendermos a dialética desse processo, teremos elementos para construir uma práxis afrobrasileira do princípio protestante. Uma práxis que parte da negação, mas vai além, transcende, e que fará de todos nós senhores da vida que nos foi entregue.

Tu és o Poeta, o grande Assinalado
Que povoas o mundo despovoado,
De belezas eternas, pouco a pouco...
Na Natureza prodigiosa e rica
Toda a audácia dos nervos justifica
Os teus espasmos imortais de louco!
“O assinalado”, Cruz e Souza (terceira e última estrofes).


Referências Bibliográficas

Adams, James Luther  O conceito de era protestante segundo Paul Tillich, in Paul Tillich, A Era Protestante, SBC, Ciências da Religião, 1992.
ANTONIL, André João. Os escravos são os pés e as mãos do senhor do engenho, 1711.
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BALLESTERO, Manuel. La revolución del espíritu (Tres pensamientos de libertad). Madrid: Siglo XXI, 1970.
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WILMORE, Gayraud S. e CONE, James H., Teologia negra, São Paulo: Paulinas, 1986. Trad. Euclides Carneiro da Silva.

A ética solidária

 A ética solidária e cristianismo social

-- Leituras tillichianas para o Brasil


Jorge Pinheiro, PhD

  

O fundamento da unidade espiritual é a religião. O fracionamento espiritual que acontece em determinadas épocas traduz fracionamento econômico, choque e distanciamento entre classes. E nas épocas em que temos um processo cultural de unidade temos também uma nova base de unidade e solidariedade social e econômica.

 

Por isso, na história, rupturas espirituais vêm associadas a rupturas econômicas, da mesma maneira que processos de unidade espiritual vêm associados a processos de unidade econômica. 

 

Nesse sentido, há um processo de desenvolvimento que se realiza de forma desigual na história, mas que correlaciona mudanças espirituais e transformações econômicas e sociais. Diante de tais circunstâncias, o cristianismo está eticamente obrigado a fazer uma escolha: ou participa do processo, inspirando e atuando a favor desse desenvolvimento, ou se retrai e entra em processo de caducidade, ao afastar-se da vida real das comunidades nas quais está inserido.

 

Seja qual for a opinião sobre a relação ética entre cristianismo e capitalismo, um fato deve ser ressaltado: é necessário e possível para o cristianismo manter um relacionamento com todas as formações econômicas e sociais, em especial com aquelas que buscam a igualdade de direitos e possibilidades para o conjunto da população, já que a rejeição do princípio da igualdade social de direitos e possibilidades em nome do cristianismo fere a universalidade do cristianismo.

 

E se o cristianismo não somente deve, mas pode manter um relacionamento com economias e políticas solidárias, devemos nos perguntar se o contrário da premissa é verdadeiro: devem e podem os governos que buscam tais transformações ter um relacionamento construtivo com o cristianismo?

 

Para muitos, as concepções não-cristãs, muitas vezes materialistas, negam a possibilidade dessa aproximação, mas se entendemos que mesmo em Marx, as concepções políticas de esquerda de fato não são materialistas, mas econômica, vemos que tais concepções mostram uma relação de causalidade entre fundamento econômico e organização espiritual da cultura. E, ao contrário, tal fundamento dá às ciências do espírito uma possibilidade metodológica extremamente fecunda, que não tem nada a ver com ateísmo ou materialismo.

 

Quanto às organizações de esquerda, sejam elas socialistas ou não, é necessário ver a diferente atitude que têm em relação ao cristianismo e em relação às estruturas hierárquicas das igreja. A história das igrejas cristãs no passado, e muitas vezes no presente, é passível de críticas. Suas alianças e opções fizeram como que se afastassem e dificultassem seus relacionamentos com parte da população excluída de bens e possibilidades. Tal situação facilita e potencializa a pregação do materialismo. 

 

Mas, ao contrário do que pode parecer, não podemos dizer que o materialismo seja um fenômeno constitutivo do socialismo. Antes, é uma herança da cultura burguesa cética e crítica. Essa herança foi adotada pelas correntes proletárias militantes e pelo socialismo na crença de que ajudaria a extirpar a ideia de opressão e abriria o caminho para a construção de um novo mundo, mais digno e justo.

 

Embora, haja razões históricas para criticar as igreja cristas, os movimentos e partidos políticos socialistas erram quando negam a existência da base  comunitária e solidária do ideal cristão, tal como pode ser percebida na pregação do Jesus apresentado nos Evangelhos. Quer dizer, ainda há em setores dos movimentos e partidos políticos socialistas uma hostilidade contra o cristianismo, hostilidade esta que fere a ética social, tão próxima daquelas propostas levantadas pelas comunidades cristãs dos primeiros séculos.

 

Mas, se as ideias sociais dos movimentos e partidos proletários e socialistas não traduzem oposição essencial, de princípio, com o cristianismo e com as igrejas que vivem o mandato evangélico, os cristãos podem sem nenhum temor ter uma atitude positiva em relação a estes movimentos e partidos.

 

Atitude positiva deve ser entendida como a realização do princípio da solidariedade cristã, que entende a necessidade de eliminar as condições que geram exclusão e miséria. Tal atitude traduz a urgência de combater os fundamentos do egoísmo econômico e de ações para a construção de uma outra ordem social, global sim, que inclua excluídos e periféricos. Isto  porque as transformações sociais não são só necessidades e tarefas de operários e trabalhadores fabris, mas ideal ético que traduz anseios e esperanças dos mais variados setores da sociedade.



 

vendredi 22 août 2025

Jornal da Cruz Huguenote agosto 2025

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mercredi 20 août 2025

A guerra na Ucrânia

A guerra na Ucrânia - para você entender e agir como cristão 


Visão geral



A guerra na Ucrânia é um conflito armado em larga escala que começou com uma invasão em grande escala pela Rússia em 24 de fevereiro de 2022. No entanto, é a escalada de um conflito que começou em 2014. Em essência, é uma guerra entre a Ucrânia, que busca sua soberania e alinhamento com o Ocidente, e a Rússia, que vê essa orientação como uma ameaça à sua segurança e influência, buscando impedi-la pela força.


Contexto histórico


Para entender a guerra, é crucial conhecer o pano de fundo.


Relações históricas. A Ucrânia e a Rússia têm séculos de história entrelaçada. A Ucrânia foi parte do Império Russo e depois da União Soviética. Para o presidente russo Vladimir Putin, ucranianos e russos são "um só povo", e ele nega a legitimidade de uma identidade nacional ucraniana distinta.


Independência da Ucrânia. Com o colapso da URSS em 1991, a Ucrânia tornou-se independente. Sua soberania sempre foi vista com desdém por setores nacionalistas russos.


A expansão da OTAN. A Rússia sempre se opôs à expansão da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) para o leste, aproximando-se de suas fronteiras. Ela vê isso como uma quebra de promessas informais feitas após a Guerra Fria e uma ameaça direta.


Revolução do Euromaidan (2013-2014). O estopim inicial. O então presidente ucraniano, Viktor Yanukovych, pró-Rússia, recusou-se a assinar um acordo de associação com a União Europeia, provocando protestos massivos que o removeram do poder. A Rússia viu isso como um "golpe" orquestrado pelo Ocidente.


Anexação da Crimeia (2014): Em resposta, a Rússia invadiu e anexou a península da Crimeia, da Ucrânia, em uma movimentação rápida e sem derramamento de sangue inicial.

· Guerra no Donbas (2014-2022): Imediatamente após, conflitos patrocinados pela Rússia eclodiram nas regiões orientais de Donetsk e Luhansk (o Donbas), onde grupos separatistas pró-Rússia, com apoio militar russo, declararam "repúblicas populares" e lutaram contra o exército ucraniano. O conflito ficou em um impasse, com mais de 14.000 mortes antes de 2022.


Causas imediatas da invasão de 2022


Escalada Retórica. Em 2021, Putin publicou um ensaio negando a estadualidade ucraniana. A Rússia começou a acumular tropas massivamente na fronteira com a Ucrânia e na Bielorrússia.


Demandas de Segurança. A Rússia exigiu garantias legais de que a Ucrânia nunca se juntaria à OTAN e que a aliança recuaria suas forças para as posições de 1997. O Ocidente recusou, alegando que qualquer país pode escolher suas próprias alianças.


Reconhecimento do Donbas. Em 21 de fevereiro de 2022, a Rússia reconheceu a independência das "repúblicas" separatistas de Donetsk e Luhansk. Três dias depois, a invasão em grande escala começou.


A invasão em grande escala (2022 até hoje)


A guerra evoluiu através de várias fases:


Fase 1: Ataque a Kiev (Fev-Mar 2022): A Rússia lançou ataques de mísseis em todo o país e tentou tomar a capital, Kiev. A forte resistência ucraniana e problemas logísticos russos frustraram o plano. As forças russas se retiraram do norte, revelando atrocidades em Bucha.


Fase 2: Guerra no Leste e Sul (Abr-Set 2022): O foco russo mudou para o Donbas e o sul, conquistando território com poder de fogo maciço. A Ucrânia recebeu armamentos pesados do Ocidente (como os lançadores de foguetes HIMARS).


Contra-ofensiva ucraniana (Set-Nov 2022). Com novo equipamento, a Ucrânia lançou contra-ofensivas bem-sucedidas, reconquistando grande parte do oblast de Kharkiv no nordeste e a cidade de Kherson no sul.


Fase 3: Guerra de Atrito (Dez 2022 até hoje). O conflito tornou-se uma guerra estática de desgaste, com pesados combates de trincheiras em frentes como Bakhmut e Avdiivka. Ambos os lados sofreram baixas enormes.


Contra-ofensiva de 2023. Uma grande ofensiva ucraniana no verão de 2023, com equipamento ocidental moderno (incluindo tanques), fez ganhos limitados contra densas linhas defensivas russas fortificadas.


Guerra de Longo Alcance. A Rússia realiza ataques regulares de mísseis e drones contra a infraestrutura energética e cidades ucranianas. A Ucrânia, por sua vez, usa drones para atingir alvos dentro da Rússia, incluindo refinarias e instalações militares.


Atores principais e seus interesses


Ucrânia: Luta pela sua existência como um estado soberano e independente, buscando libertar todo o seu território ocupado. Seu objetivo de longo prazo é a integração com a UE e a OTAN.


Rússia: objetivos declarados: "desmilitarizar" e "desnazificar" a Ucrânia, impedir sua adesão à OTAN e garantir o controle sobre o Donbas e um corredor terrestre para a Crimeia. Objetivos não declarados podem incluir a subjugação total do país.


Ocidente (EUA, UE, Reino Unido, etc.): fornecem suporte financeiro, militar (armas e treinamento) e humanitário maciço à Ucrânia. Seu objetivo é enfraquecer a Rússia militar e economicamente sem entrar em um conflito direto com a OTAN, defendendo a ordem internacional baseada em regras.


Outros Atores: países como a China tentam manter uma posição neutra, fornecendo um apoio econômico crucial à Rússia, enquanto Coreia do Norte e Irã fornecem munições e drones à Rússia.


Consequências e impacto global


A guerra teve um impacto devastador e global:


Vítimas Humanas: centenas de milhares de soldados mortos ou feridos de ambos os lados. Milhares de civis ucranianos mortos.


Crise humanitária: Milhões de ucranianos deslocados internamente ou refugiados na Europa.


Impacto econômico global.

 

Disrupção no fornecimento de grãos (a Ucrânia é um "celeiro do mundo") e energia (gás e petróleo russos), levando à inflação e crise do custo de vida mundial.


Rearranjo geopolítico. Fortalecimento da OTAN (com a adesão da Finlândia e Suécia), realinhamento de alianças globais e o retorno da guerra em grande escala à Europa.


Sanções. A Rússia sofreu sanções econômicas severas do Ocidente, embora tenha se adaptado encontrando novos parceiros.


Situação Atual


No momento, a guerra está em um ponto morto. A Rússia mantém a iniciativa no campo de batalha, fazendo ganhos lentos e custosos, explorando sua vantagem em número de tropas e munições. A Ucrânia está na defensiva, enfrentando escassez crítica de munições e soldados, aguardando a chegada de novas ajudas militares dos EUA e da UE. O conflito parece destinado a continuar como uma guerra de desgaste prolongada, com poucas perspectivas de negociações de paz no horizonte próximo, já que os objetivos fundamentais de ambos os lados permanecem irreconciliáveis.


Donde fazemos uma pergunta, a paz na Ucrânia é possível?


A resposta não é "sim" ou "não", mas sim uma análise de camadas.


A curto prazo, a paz parece extremamente difícil, senão impossível, nas condições atuais. A médio e longo prazo, a possibilidade existe, mas dependerá de uma série de fatores dramáticos e incertos.


Por que a paz parece impossível agora?


Objetivos incompatíveis e irreconciliáveis:

   

Ucrânia: Seu objetivo, definido em lei e apoiado pela maioria da população, é a restauração completa de sua integridade territorial, incluindo a Crimeia e todo o Donbas. Eles veem isso como uma guerra de libertação nacional.

   

Rússia: Após anexar formalmente quatro oblasts ucranianos (Donetsk, Luhansk, Zaporizhzhia e Kherson), o objetivo declarado do Kremlin é manter esse território. Para Putin, aceitar a perda disso seria uma humilhação política inaceitável.

 

Dindenão há sobreposição entre "libertação de todo o território" e "manutenção das anexações". Um lado teria que ceder de forma monumental, o que nenhum está disposto a fazer.


Falta de Confiança Absoluta


Após a invasão em grande escala de 2022, que ocorreu em meio a negociações e acordos de Minsk já violados, a Ucrânia e o Ocidente não confiam em nenhuma promessa ou acordo assinado pela Rússia. Qualquer paz seria vista apenas como uma trégua para a Rússia se rearmar.


A Questão da Segurança Futura


Mesmo que um acordo territorial fosse alcançado, a Ucrânia precisaria de garantias de segurança absolutas para não ser invadida novamente em 5 ou 10 anos. A adesão à OTAN tornou-se um objetivo central para Kiev precisamente por essa razão, algo que a Rússia diz ser uma "linha vermelha" intransponível.


Custo Político Interno

   

Para Zelensky, assinar um acordo que ceda território seria visto como uma traição por grande parte da sociedade ucraniana que sofreu enormemente e lutou bravamente. Poderia desestabilizar seu governo.

   

Para Putin, uma retirada ou aceitação de uma derrota clara poderia abalar seriamente sua posição no poder, possivelmente levando a uma crise política interna.


Interesse das partes em continuar. Ambas as partes acreditam, em certa medida, que o tempo pode jogar a seu favor. A Ucrânia espera por mais armas ocidentais e desgaste russo. A Rússia espera o cansaço do Ocidente e por uma mudança no cenário político (como as eleições nos EUA).


Possíveis Caminhos para a Paz.


Apesar dos enormes obstáculos, a paz chegará, provavelmente através de um dos seguintes cenários:


Vitória Militar Decisiva de Um dos Lados (Improvável):


Uma vitória ucraniana que expulse completamente as tropas russas é uma possibilidade, mas exigiria um colapso total do exército russo, algo visto como muito difícil.


Uma vitória russa, conquistando muito mais território, provavelmente encontraria uma resistência partisana feroz e uma ocupação insustentável, além de uma reação ocidental ainda mais severa.


Congelamento do conflito. Cenário mais provável a curto prazo.


As linhas de frente se estabilizam, os combates diminuem de intensidade, mas não há um acordo formal de paz. Cria-se uma "linha de contacto" congelada, semelhante à Coreia ou à Cyprus, com escaramuças regulares. Tecnicamente, a guerra continuaria, mas sem grandes ofensivas. Este é um cenário perigoso e instável.


Negociação a partir de uma posição de força alterada.


Este é o cenário mais realista para uma paz duradoura. Após mais meses ou anos de guerra, o custo se torna tão insuportável para ambos os lados que eles são forçados a negociar seriamente. A negociação não começaria a partir das posições máximas atuais, mas a partir da realidade factual no terreno no momento das conversações. Um mediador internacional confiável. A China, talvez. 


Mudança Política Interna


Uma mudança de liderança na Rússia poderia abrir portas para uma desescalada, com um novo governo buscando uma saída para o isolamento e as sanções.


Uma mudança no apoio ocidental poderia forçar a Ucrânia a uma mesa de negociações em uma posição muito mais fraca.


A paz não é impossível em termos absolutos, mas é impossível nas condições e exigências atuais. Ambos os lados ainda acreditam que podem melhorar sua posição militar e política no campo de batalha.


A paz verdadeira e duradoura exigirá um cansaço mútuo tão profundo que force o compromisso.Uma mudança dramática no equilíbrio de poder militar. Uma solução criativa para a questão das garantias de segurança da Ucrânia que não passe necessariamente pela OTAN. Lideranças políticas dispostas a aceitar o enorme custo interno de fazer concessões.


O caminho mais provável para o futuro próximo não é a paz, mas uma guerra prolongada ou um conflito congelado, com um sofrimento humano continuado.


Claro. Aqui está uma reflexão que integra a situação da Ucrânia a partir de uma perspectiva cristã, partindo da análise factual e indo para uma meditação mais profunda.


A guerra na Ucrânia, em sua dimensão terrena, é um conflito geopolítico complexo, uma tragédia humanitária com milhares de vidas perdidas, famílias desfeitas, cidades destruídas e uma crise global de deslocamento e segurança alimentar. É um testemunho sombrio da capacidade humana para a ganância, o orgulho nacionalista desmedido e a falha da diplomacia.


No entanto, para o cristão, que enxerga o mundo através da lente da fé, essa realidade não é o fim da história. Ela serve como um campo profundo e doloroso para reflexão, ação e esperança.


O Reconhecimento do pecado e da queda. A guerra é talvez a manifestação mais clara e coletiva da queda da humanidade. Ela revela a ruptura radical do Shalom de Deus – a paz plena, a integridade e a harmonia que Ele idealizou para a criação. A violência, a injustiça, a mentira propagandística e a desumanização do "inimigo" são frutos podres do pecado que habita em cada coração e se amplifica em estruturas de poder. Um cristão não pode olhar para a Ucrânia sem um profundo lamento por este estado de coisas, reconhecendo que "a nossa luta não é contra seres humanos, mas contra as forças espirituais do mal" (Efésios 6:12) que operam através de ideologias perversas e ambições destrutivas.


O Chamado à compaixão e à ação prática: a parábola do Bom Samaritano (Lucas 10:25-37) é um imperativo direto. O cristão é chamado a não "passar para o outro lado" da estrada, indiferente ao homem ferido. Na prática, isso se traduz em:


Oração: orar pela paz, pelos líderes para que busquem a sabedoria divina, pelo consolo dos que choram, pela proteção dos inocentes e até mesmo pela conversão daqueles que perpetram o mal.


Doação: apoiar financeiramente e materialmente organizações humanitárias cristãs e seculares que estão no front, aliviando o sofrimento.


Acolhimento: muitas famílias cristãs ao redor do mundo vivem o mandamento de acolher o estrangeiro (Hebreus 13:2) ao abrirem suas casas para refugiados.


A Tensão entre justiça e perdão: a fé cristã vive uma tensão crucial: ela defende a justiça e clama por ela ("Aprendei a fazer o bem; procurai o que é justo" - Isaías 1:17), mas também ordena o perdão aos inimigos ("amai os vossos inimigos e orai por aqueles que vos perseguem" - Mateus 5:44). Isso não é uma passividade diante do mal. Defender o fraco e resistir à agressão injusta é um ato de justiça. No entanto, o coração do cristão é chamado a não se deixar corromper pelo ódio, guardando a possibilidade do perdão, que é um dom sobrenatural e um processo, muitas vezes longo e doloroso. É uma luta interior para não replicar o mesmo mal que se combate.


A esperança escatológica: em meio a imagens de escombros e sepulturas, a esperança cristã não está fundamentada em um otimismo ingênuo de que "tudo vai melhorar", mas na promessa escatológica do retorno de Cristo, que irá "enxugar de seus olhos toda lágrima" e onde "não haverá mais morte, nem tristeza, nem choro, nem dor" (Apocalipse 21:4). É a certeza de que, por fim, todo joelho se dobrará e toda língua confessará que Jesus Cristo é o Senhor (Filipenses 2:10-11), e que o mal, a guerra e a morte serão finalmente e para sempre derrotados. Essa esperança não nos aliena da realidade presente, mas nos dá a força para trabalhar pela paz, sabendo que nosso labor no Senhor não é vão (1 Coríntios 15:58), mesmo quando a paz parece distante.


A tragédia na Ucrânia é um convite aos cristãos para que não se calem, não fiquem indiferentes e não simplifiquem um mal tão complexo. É um chamado para chorar com os que choram, para agir com compaixão prática, para orar com fervor, para buscar a justiça sem se render ao ódio e, acima de tudo, para ser um farol da esperança que transcende todas as circunstâncias – a esperança de que, um dia, as espadas serão transformadas em arados e as lanças, em foices (Isaías 2:4), porque o Príncipe da Paz reinará para sempre.


lundi 18 août 2025

Viver a vida

Viver a vida!


Jorge Pinheiro













Viver a vida, fazer a revolução


Jorge Pinheiro





A importância do cristianismo para a práxis social está em que cria paradigmas que reafirmam os valores da democracia e da liberdade e possibilitam o encontro de caminhos que ligam reforma e revolução, alinhavando as conquistas sociais com a criação de uma nova ordem fundada na expansão do espaço público e fim da mercantilização da vida social. 


E isso é possível, porque a relação entre o cristianismo e a práxis social é profunda. Mas o fundamento de origem do cristianismo na formação da consciência brasileira e da práxis social apresenta aproximações e estranhamentos, que não se traduzem em tendência à cisão, mas juízos reveladores da força de origem das utopias. O cristianismo, enquanto visão de mundo é utópico e normativo, age para expandir e renovar o sentido transformador da experiência cristã no seio da sociedade brasileira e da práxis social, e é exatamente esse movimento que leva tanto às aproximações quanto aos estranhamentos. Em sua própria forma de ser o cristianismo trabalha com mediações de valores e daquilo que deve ser. Coloca-se assim na antípoda do realismo político, em particular de suas expressões pragmáticas, de afinidade com os valores liberais de mercado. 


O cristianismo brasileiro, a partir de sua experiência comunitária, distanciou-se do poder de Estado e firmou-se em sua autonomia de origem social e de identidade cultural. Assim, no período republicano, é escassa a experiência de matriz governativa, tendo, principalmente a partir dos anos 1960, optado pela paixão dos humilhados e ofendidos à força imanente dos símbolos de poder. Mas, ao mesmo tempo, essa presença e força faz do cristianismo, através de milhares de igrejas e entidades, o poder de maior experiência frente às expressões da barbárie e opressões. Nas favelas, no sertão nordestino, nos prisões, entre as crianças sem lar, idosos sem abrigo, entre as prostitutas, entre os aviltados, se faz presente a mão fraterna da igreja. 


Tomado nesta perspectiva, o cristianismo não é mera instituição ou poder instituído, nem mesmo programa ou modelo fixado de respostas aos grandes dilemas da política, mas movimento gerador de paradigmas, que possibilitam reflexões sobre os fundamentos da vida na comunidade política. Esses paradigmas propõem conceitos, ordenação de valores, estilos de pensar e fazer a política. 


Há nesses paradigmas questões fundamentais que o diferenciam dos paradigmas liberais e burgueses. A primeira é o modo como define a liberdade, não em sentido negativo, de espaço da ausência de intervenção do Estado. A liberdade para o cristianismo significa não depender de vontade arbitrária, o que aproxima o conceito liberdade da noção de autonomia, embora vá além, transceda. A segunda é que para a burguesia liberal, o Estado mínimo maximiza a liberdade. Mas o cristianismo relaciona liberdade e igualdade. Dentro da tradição burguesa liberal, o desejo de igualdade ameaça à liberdade, produzindo tensões entre as duas metas. E a maneira de enfrentar o problema, para a burguesia liberal, repousa sobre a noção de igualdade de oportunidades diante do mercado. Para o cristianismo é a desigualdade que provoca riscos à liberdade. A terceira questão é o modo como se relaciona o indivíduo e o Estado: a burguesia liberal coloca o acento na dinâmica da sociedade civil, pensada como em oposição ao Estado, em particular em sua dimensão mercantil. Já o cristianismo coloca o acento nas responsabilidades cidadãs, de participação na comunidade política, na formação de uma práxis imprescindível à proteção do corpo político das ameaças à própria liberdade, que não pode ser garantida apenas por boas leis. Esta práxis política comum requer uma comunidade de valores, a noção de bens públicos, uma fundação e uma narrativa da construção de um modo de viver em liberdade, que faz com que os cidadãos sintam-se, apesar das diferenças, parte de uma mesma comunidade política. 


Essa proposta de práxis política se faz solidária com o sofrimento humano e molda a voz cristã com a impaciência do que urge. Assim, falar da influência do cristianismo, em especial da igreja, na consciência pública contemporânea brasileira é trabalhar com as noções de fundamento e de formação. Não é uma situação onde um ser constituído exerce influência sobre a evolução de outro ser. São processos formativos em mútua compenetração. A marcha da questão agrária é um exemplo. Ela surge quase como expressão nordestina nos anos 1950, é matricial aí a presença da Igreja. O Movimento de Educação pela Base (MEB), constituído por redes radiofônicas de alfabetização e formação de sindicatos rurais, foi o fundamento original cristão das Ligas Camponesas. E a ação de Hélder Câmara, da Encíclica Mater et Magistra, de forte tematização do problema rural, e da CPT, a partir dos anos 1970, está na raiz do nascimento do Movimento dos Sem Terra, MST. E, embora date dos anos 1960, a adoção de modelos críticos à noção de catequização, também é matricial o papel do CIMI, criado em 1972, na formação da questão indígena perante a democracia brasileira contemporânea. 


Assim, o cristianismo brasileiro, através de sua leitura libertadora, fez a afirmação da liberdade como emancipação do poder arbitrário, compatível com os ideais de liberdade e igualdade, com acento na participação como fundamento das virtudes da comunidade política. Tal compreensão tem óbvias afinidades com a práxis social. A própria identidade solidária e democrática dos movimentos populares podem ser imaginadas a partir dessa práxis. O solidarismo proposto pela teologia da práxis, que integra o valor da soberania popular, seria, desse ponto de vista, um solidarismo religioso. Como história vivida e em transformação, essa imaginação trouxe para os cristãos, desafiados pelo esforço de transformar o Brasil, um campo possível de experiência e programa. Assim, para a própria construção dos movimentos populares, foi central o papel da igreja na formação de uma práxis dos direitos humanos na moderna democracia brasileira. Esta presença, fundamental nos anos da ditadura militar, através das Comissões de Justiça e Paz ou Comissões de Direitos Humanos, ganhou alento nas duas últimas décadas através da estratégia da particularização dos direitos como demanda de pastorais específicas, como a das crianças, idosos, carcerária, das prostitutas, e das Campanhas da Fraternidade. Não é marginal a presença da Igreja no movimento pela ética na política. Pelo contrário, a primeira lei contra a corrupção eleitoral teve na Igreja progressista sua inspiração através da liderança de Chico Whitaker, vinculado à CNBB. A luta contra a corrupção política faz parte da mensagem da Igreja. 


O PT, partido ligado ao mundo do trabalho, à esquerda solidária e a igreja popular, fez do seu nascimento tardio um enigma aberto à história, ao colocar no centro de sua identidade as relações entre solidarismo e democracia. De fato, esta relação ainda não encontrou uma solução estável, a partir de alguma experiência histórica, na tradição solidária. O desafio lançado aos solidárias ainda não encontrou uma resposta: pela democracia ainda não se chegou ao solidarismo, mas contra lançando-se contra a democracia, o solidarismo traiu seus ideais de emancipação social. 


O caráter tardio do nascimento do PT, o último grande partido de trabalhadores nascido na tradição clássica, explica sua identidade enigmática. No final dos anos 1970, já estava muito avançado o processo de desestalinização da práxis do solidarismo internacional e, por diferentes caminhos e pensamentos, o tema da relação entre solidarismo e democracia, voltava à cena. Houve, nesta práxis, tentativas de de resposta: a trotsquista democrática que defendeu os valores do pluralismo, inclusive para partidos burgueses, e os direitos humanos na democracia solidária; a do grupo francês "Solidarismo ou Barbárie", que desdobrou-se na crítica de Claude Lefort ao totalitarismo e na defesa da democracia como instituição social permanente, a partir dos conflitos, e na postulação de Castoriadis da autonomia como valor fundante; e a eurocomunista, que afirmava a democracia como um valor universal e, portanto, compatível com o solidarismo. 


Mas, ao lado dessas leituras, no Brasil, e mais especificamente no PT, a presença cristã ocupou um lugar central na crítica do stalinismo. Tal pode ser visto, por exemplo, na leitura do caderno "O indivíduo no solidarismo", onde Leandro Konder debate com Lula e Frei Betto. No debate, Lula pergunta sobre o lugar da ambição pessoal em uma concepção solidária da sociedade. Tal questão remete à leitura comunitarista feita por Emmanuel Mounier, na França, e que se desenvolveu em torno à revista "Esprit". Mounier teve importante papel na formação de uma geração de lideranças cristãs no Brasil, a começar por Dom Hélder. Assim, um pensamento cristão, filosófico e político, procurou responder à crise do capitalismo, mas fazendo a crítica do sentido anti-humanista das formas dominantes do comunismo: este personalismo comunitarista de Mounier colocou-se como resposta contundente ao stalinismo. Mounier e cristãos brasileiros posicionaram-se em eqüidistância do capitalismo e do stalinismo. Admitem a propriedade privada como direito, inscrita na afirmação de sua função social, trabalhando com o solidarismo e o princípio objetivo da socialização na sociedade moderna, isto é, a emergência das dimensões coletivas na vida social. Teóricos sociais, como Paul Singer, estudando as formulações da economia solidária se aproximaram desse comunitarismo cristão, retornando a formulações mais antigas, como a de Luís José de Mesquita: 


"Presentemente, o solidarismo não tem uma coesão doutrinal, não constituindo um sistema, não obstante certas características bem próprias, ensaiando, antes, ser uma prática variável para se adaptar aos problemas de cada país e de cada zona do mundo. O fato mais significativo talvez seja a aparição de forças solidárias, em certos países subdesenvolvidos, recusando utilizar os métodos comunistas, mas aceitando a intervenção do Estado e uma planificação para assegurar o desenvolvimento do país e tentar resolver seus problemas. As possibilidades do solidarismo residem em ele se tornar aberto, reconhecendo mais claramente os direitos e os deveres recíprocos da pessoa para a sociedade." 


Assim, o solidarismo defendido pelo PT, que se propõe a compatibilizar as metas de uma nova sociedade com o princípio da soberania dos trabalhadores e do povo, implica em trazer o marxismo para o solo do cristianismo, elevando o seu conceito de público a uma perspectiva anti-burguesa. Neste retorno e nesta função de duas visões anti-liberais há um potencial de experiência histórica, de inovação conceitual e de imaginação de novos futuros possíveis. 


A práxis participativa desenvolvida pelos movimentos populares e o potencial entrevisto nas formas de economia solidária seriam repensadas como formas avançadas de construção do poder e da economia, não estritamente estatal. Estariam se abrindo espaços conceituais e de experiência social para dar a essas inovações um caráter nacional. Assim, por exemplo, as agendas do fórum social mundial ganhariam um sentido de buscar uma simetria de direitos e deveres entre os povos do mundo, diante de um contexto de concentração do poder econômico, militar e geopolítico. 


A práxis cristã do solidarismo seria, assim, uma forma de disputar valores na democrática brasileira com os poderes, saberes e interesses cruzados do liberalismo mercantil e do patrimonialismo. A utopia social se enraizaria, de modo amplo, na tradição histórica da formação cristã brasileira, de negação e superação das heranças da condição colonial, escravocrata, patriarcal e aviltante dos direitos do trabalho. 


Neste encontro promissor entre cristianismo e solidarismo pode-se repensar as relações entre reforma e revolução, questão não resolvida na tradição solidária clássica. O conceito de transição formulado no contexto de avanços democráticos poderia atualizar seu sentido, unindo as conquistas do cotidiano com a noção de uma civilização organizada fora dos parâmetros dominantes do mundo do capital e da opressão. 


As utopias brasileiras não cessaram de interrogar suas origens. Um partido do solidarismo revisita a práxis comunitarista cristã que se faz presente, como uma das forças básicas, de sua proto-formação. Conhecer a si mesmo para conhecer o mundo, transformar-se a si mesmo para transformar o mundo: neste campo da práxis não há derrota definitiva para as linhas de força da emancipação. O cristianismo é, na origem, uma síntese de práxis, como afirma Leonardo Boff. Essa síntese adquiriu no processo da civilização brasileira uma vida própria, uma generosa universalização. Nesta dialética entre povo-Igreja, o Cristo brasileiro é redentor, tem os braços abertos para as utopias da emancipação.





A vida, uma paixão radical


Um dos temas centrais da mídia, hoje, é a violência. Tal fato nos leva a pensar e a viver como se a vida não tivesse a menor importância ou valor. E em nome de doutrinas, políticas e religiões, gentes são transformadas em bombas humanas, assassinos seriais, legais ou não, que espalham a dor, o sofrimento e a morte. Nesse clima de ódio e violência, é importante dizer que a primeira teologia das Escrituras hebraicas, e posteriormente cristãs, construída para o ser humano no bojo da teologia da criação, é a teologia da vida.


O Eterno fez o humano como semelhante, cheio de parecença, para ser como Ele e com Ele, para curtir o mundão criado, fazer sexo, ter filhos, produzir criativamente. E O Eterno contou isso aos humanos e um dia isso foi registrado lá em Bereshit, o livro primeiro das Escrituras. E é interessante que quem registrou a história que ouviu dos antepassados disse que O Eterno curtiu a beça tudo aquilo. Achou genial o que tinha feito, tanto que deu por terminado o seu trabalho e foi descansar.


As histórias se multiplicam. Há histórias que falam da importância da vida nas Escrituras hebraicas, e há histórias sobre a vida e sua singularidade nas tradições de gentes e povos. Na tradição judaica, conta-se que quando os escravos fugiram do Egito com os soldados egípcios correndo atrás deles e já estavam atravessando o Mar Vermelho, anjos resolveram cantar um hino de gratidão a O Eterno, mas o Eterno não permitiu e disse: Eu criei o ser humano, cada um deles é minha criação, como poderei cantar se muitos vão se afogar neste mar? Eis a universalidade da vida: fomos criados por O Eterno, todos somos parecença, quer escravos hebreus ou soldados egípcios. A teologia entende isso: a vida é direito universal porque O Eterno ama a pessoa, todas as pessoas -- foram feitas por Ele e têm o jeitão dele.


Nesse sentido, a partir da teologia da vida podemos dizer que não há diferença entre judeu e grego, cada pessoa ocupa um lugar especial no coração de O Eterno, para Ele é como se todos fôssemos únicos. 


O respeito pela vida de cada um e de todos e a negação do ódio e da violência: direcionam a teologia da vida. Criar e educar pessoas traduz-se em ensinar, em primeiro lugar, que quem destrói uma única vida destrói todas e a própria criação. E quem cuida e salva uma única vida salva o mundo. Cuidar e salvar pessoas é semear a paz para que ela reine entre os seres humanos. Para que ninguém possa dizer: o meu pai é maior do que o teu pai.


Voltando ao primeiro livro das Escrituras hebraicas, vemos que ele se descreve como o livro da história humana. E é interessante o que esse livro fala da criação e da história do primeiro casal: Da-terra e A-vida. Este é sentido dos nomes Hadam e Hawah. A construção dessas duas pessoas, Da-terra e A-vida, ao se dar no final do processo de surgimento do universo, mostra o valor que têm para O Eterno: são menores, aparentemente pequenos, mas valem muito, pesam tanto quanto todo o universo. A história humana é a história de uma pessoa, de duas pessoas, de todas as pessoas. 


E será que eu posso fazer da minha mulher, escrava. Ou, em outras palavras, posso explorá-la? Não, não posso. Será que posso fazer dos meus pais, escravos. Ou, em outras palavras, posso explorá-los? Não, não posso. Será que posso fazer de meus filhos escravos. Ou, em outras palavras, posso explorá-los? Não, não posso. E por quê? Porque devo amar o humano como semelhante, como igual. Esteja ele ao lado ou distante, é sempre próximo. Este princípio é fundamental na teologia da vida. As relações humanas implicam em reciprocidade, deve levar ao companheirismo, ao fundamento de origem: Da-terra e A-vida estão por trás de toda a humanidade.


As Escrituras hebraicas nos falam da obrigação de amar o estrangeiro, ou seja, aquele que nos parece totalmente diferente. Esse é o princípio da paz entre os povos. Por isso, a teologia da vida propõe que a paz prevaleça, seja formulada como lei a obrigação de cuidar e proteger os diferentes e as minorias. Este é o sentido maior da justiça.


Assim, se perguntarem: um homem pode explorar pai, mãe, mulher, filhos? Sabemos que a resposta é não. E de novo a pergunta: um homem pode explorar aquele que é diferente dele por credo, raça, sexo ou sob qualquer outro aspecto? Muitos acharão que sim. Mas quando tenho em minha frente uma pessoa, tenho um igual e, por mais diferente que seja, é meu irmão. Ser justo é reconhecer a liberdade dele, seus direitos e cuidar para que tenha uma vida digna, como humano que é.


O respeito e o cuidado por tudo aquilo que é humano, pelo ser, por sua terra e vida, é teologia radical, que nasce da compreensão de que somos semelhantes, cheios de parecença com O Eterno. A imagem está em um, em dois, em todas as pessoas.





Halakha humana – uma leitura judaica



A halakha ou lei judaica, é um ramo da literatura rabínica. Ela trata das obrigações religiosas às quais devem se submeter os judeus em suas relações com o próximo e com o Eterno. Ela engloba todos os aspectos da existência. Aqui vamos utilizar halakha em seu sentido mais amplo de caminho. 


Théodore Monod disse que não somos meio termo, mas complemento. Não somos cinza, mas preto e branco. Na verdade, os escritos judaicos da Era Comum nos dizem que o Eterno construiu o ser humano e, em seguida, retirou-se para que este humano pudesse ocupar com liberdade o seu lugar. Dessa forma, o ser humano é autônomo por natureza, tem livre-arbítrio e, portanto, responsabilidade. 


Os escritos judaicos, entregues no caminhar da diáspora, entendem que o Eterno aposta na perfectibilidade do ser humano. A criação, vista dessa forma, não está completa, o ser humano continua a criação. Por isso, a construção da espiritualidade é a chave para o futuro humano. É o que leva à criação perfeita. Textos, como os da Cabala, quando falam do acesso ao mundo do Espírito, perguntam: "Você se tornou o que você é?" 


O ser humano é criador de si mesmo. Sua vida é uma viagem com a finalidade do tornar-se. Ele deve saltar do "conhece a ti mesmo" para "tornar-se quem ele é" e "descobrir para que serve". É a viagem que leva à perfeição, e a liberdade é uma viagem dentro de si mesmo, que deve ser realizada através do corte da pedra, símbolo do ser humano, do material em direção ao espiritual. 


O caminho religioso não pode estar separado da revolução permanente do espírito humano, já que o sentido do renascimento promissor e a revolução permanente do espírito são desafios universais. Ambos negam todo dogmatismo totalitário que confronta o pensamento livre. 


Duas noções fundamentais, a do ser e a do devir, estão intimamente ligadas às ideias de caminho religioso e revolução permanente do espírito. Só o Eterno é único. Na tradição judaica, quando falamos "Ser" estamos a falar do Eterno. Mas os humanos caminham no sentido de se tornarem ser. Precisam caminhar sua viagem, simbólica, do material e religioso em direção ao espiritual, a fim de integrar, interiorizar a simplicidade sublime do Ser Eterno. É nesse sentido que o caminhar deve gerar harmonia, paz que leva à coexistência de progresso e tradição. 


Nesse sentido, a comunidade religiosa, enquanto associação de grupo, não deve ser obstáculo para o caminho espiritual, ao contrário, compreendido o conceito de comunidade, de estar junto para repartir o pão, tal comunhão não deve desenvolver ambição, orgulho ou reflexo xenófobo, mas abertura para o mundo. Seu significado não é excluir a fraternidade, mas estendê-la da comunidade em direção a todos os humanos. O objetivo é difícil, mas não há esperança se não perseveramos em direção ao sucesso.

 

Aprender a liberdade é o primeiro momento dessa construção, comemorada na Páscoa, enquanto caminhar em esperança. Caminhamos em direção ao outro e para cima. Esta tradição foi transmitida aos judeus pela Torá, e está presente nos 613 mandamentos, em que se baseiam a coesão da comunidade judaica. 


O caminhar associado a revolução permanente do espírito deve levar a uma espiritualidade sem dogmas. É um caminhar baseado na fraternidade universal. Donde, tradição e progresso pode fazer sentido na existência do humano, enquanto elo da cadeia da vida. 


Nesse caminhar descobrimos, conforme nos foi revelado, que o Eterno é  impensável, incognoscível, impenetrável, mas presente no universo em todos os seus planos. O Eterno não pode ser nomeado. A única designação autêntica é precisamente a rejeição de qualquer definição é "ein Sof", aquele que não tem fim, Eterno. Ein Sof ou ayn Sof, (hebraico אין סוף), na Cabala, é entendido como Deus antes de Sua manifestação na produção de qualquer reino espiritual, provavelmente derivado do termo de Ibn Gabirol, "o único Infinito". Ein Sof pode ser traduzido por "sem fim", "interminável", "não há fim", ou infinito.


O Espírito absoluto é essência por si só. O Eterno é o único, única manifestação visível do invisível. Mas a harmonia universal resulta da complementaridade dos opostos. A vida é um ponto na eternidade. 


Devemos ser, todos nós humanos, aqueles que esperam pelo mundo do Espírito. E o amor é a chave para a vida. Pois, amar uns aos outros é reconhecer a centelha divina dentro do outro, e ajudá-lo a entender e a exaltar o sentido pleno da vida. 


Nesse sentido, o amor permite reconhecer a dignidade do trabalho. Semeia as sementes da revolta contra a injustiça e a opressão, inclusive religiosa. Reconhece o fato de que o sofrimento é um desequilíbrio do mundo. Mas, temos consciência, de que o amor não pode ser rebaixado, enquanto concepção que degrada a dignidade do ser humano. Ou seja, amar uns aos outros, não é fé, não é destino, é ato de encontrar o entusiasmo da partilha com todos e todas.


É isso aí. O judaísmo permanece presente na construção do pensamento ocidental, leigo e religioso. 





Marxismo e fé 


“A democracia não acredita na harmonia natural, mas crê possível submeter a natureza à razão. Ela crê numa harmonia metafísica, que se instaura necessariamente do processo histórico”. Paul Tillich, “Écrits contre les nazis”.


Quando pensamos no Brasil e, por extensão, na América Latina, nos vemos obrigados a pensar a teologia social como alavanca para transformações que confrontem as estruturas de classe que mantêm o status quo deste capitalismo neo-liberal, gerador de excluídos de bens e direitos. Dessa maneira, entendemos a teologia social como geradora de ações culturais, políticas e sociais, desencadeadas pela comunidade de fé consciente e crítica, com vistas à transformação radical, a fim de produzir mudanças estruturais no regime e construir uma nova ordem social tanto brasileira, como latino-americana. A teologia social tem, dessa maneira, como parceira organizações não-eclesiásticas, partidos e organismos de classe de trabalhadores e solidários. E tais ações fazem desta teologia social práxis que leva o cristianismo para além da comunidade de fé, que a faz confrontar desigualdades, exploração e miséria. Tal teologia social terá de confrontar e enfrentar, assim, a oposição dos inimigos da justiça, paz e alegria do povo. 


Por isso, este diálogo entre Antonio Gramsci (1891-1937, o mais importante pensador marxista italiano) e Paul Tillich (1886-1965, o mais importante teólogo alemão do século 20) ganha importância. E nos possibilita caminhar para a teologia social que, levando em conta as assimetrias, mas também as aproximações do pensar político dos dois pensadores, apresenta novas propostas de uma existência social e libertária.  


Gramsci e Tillich têm muito em comum. Ambos foram militantes políticos e fundamentaram parte de suas concepções em Karl Marx. Por isso, consideramos importante ver que aproximações e assimetrias existem em suas elaborações teóricas. Cristianismo, democracia e vida são temas que atravessam seus estudos, e que aqui vamos confrontar. Desejamos, dessa maneira, acrescentar elementos novos numa discussão cada vez mais acirrada: ainda é possível a construção de regimes que favoreçam a plenitude do sentido da vida?


Nos últimos anos, como fruto da crise da esquerda mundial, mas também como fruto da instalação de governos nacionalistas no continente, a partir dos anos 1980, renasceu a busca pela reflexão de pensadores marxianos. Assim, em várias universidades brasileiras e latino-americanas, Antonio Gramsci, por exemplo, passou a ser estudado como nunca fora antes.


Ora, a busca pelo pensamento de Gramsci situa-se nesse contexto de garimpagem do marxismo de fronteira, dito não-ortodoxo. Aqui, nos interessa pensar Gramsci em correlação com um filósofo, nada ortodoxo, Paul Tillich. Aliás, o pensamento social de Tillich foi durante muito tempo desconhecido no Brasil, apesar de ter trabalhado quase duas décadas sobre questões políticas analisadas a partir do que ele chamou de socialismo religioso.


Gostaríamos de começar essa discussão com uma idéia exposta por Tillich, de que a busca pelo sentido pleno de vida, que ele vai chamar de socialismo, traduz um anseio que brota da consciência crítica, transformadora, num mundo autônomo e racional. Assim, tal substância profética, ou seja, a consciência crítica e transformadora, se exprime na práxis e, por isso, a relação entre profecia e racionalidade é essencial. 


Como a linguagem tillichiana é teofilosófica, ao lê-lo nos vemos na obrigação de traduzi-lo. Assim, o que significariam as expressões profético e profecia? Tillich parte de uma compreensão peculiar do profetismo vétero-testamentário. Vê nele, tanto um clamor, como uma ação, um movimento em prol da justiça, da paz e da alegria, que dariam conteúdo, seriam a essência da religião de Israel e, por extensão, do cristianismo e da Reforma protestante. Por isso, movimento profético é práxis de crítica social, que na modernidade levou à racionalidade e à autonomia. Mas, para Tillich, justiça, paz e alegria, ou seja, socialismo, implica em correlação permanente e necessária entre consciência crítica e racionalidade na autonomia. Assim colocada a questão, vemos que Tillich se afasta das correntes socialistas que repousam exclusivamente no racionalismo, em especial do stalinismo, como daquelas correntes que veem a possibilidade de uma expansão crescente da autonomia, via democracia. É essa preocupação de Tillich em correlacionar razão e autonomia que possibilita esse diálogo crítico com Gramsci.  


De Gramsci podemos dizer que recriou a linguagem da tradição marxiana e codificou teoricamente seus conceitos, ao falar de estado regulado, filosofia da práxis, grupo social, hegemonia, sociedade civil, estado ampliado, intelectual orgânico e moderno Príncipe. Mas, neste texto, nos interessa analisar suas idéias sobre o cristianismo, o intelectual e a democracia.


Marx partiu do fato de que o pensamento judaico/cristão torna o ser humano estranho a si mesmo e desdobra o mundo em um mundo imaginário. Por isso, considerava que o trabalho do teórico consiste em dissolver o imaginário judaico/cristão em sua base terrena. Vai dizer, então, que Feuerbach não percebe que, findo o trabalho da crítica da herança judaico/cristã, o principal ainda está por fazer. O fato de que a base terrena se separe de si mesma e se estabeleça nas nuvens, como reino independente, só pode ser explicado pela dissociação interna e pela contradição dessa base terrena consigo mesma.


O que deve, portanto, ser feito antes de qualquer coisa é compreendê-la em sua contradição e depois remover essa contradição. Assim, por exemplo, após descobrir que a família terrena é o segredo da Sagrada Família, é a família terrena que deve ser criticada teoricamente e revolucionada. Marx explica a fé cristã por meio das contradições da sociedade e de suas dissociações, que induzem o ser humano a projetar fora do mundo, em um paraíso, a realidade na qual desejaria viver. Mas como afirma Lucio Lombardo Radice, na quarta tese sobre Feuerbach, Marx afirma de modo explícito que a forma judaico/cristã reflete um conteúdo histórico. Por estar impotente, o ser humano imagina uma potência divina, por estar abandonado cria uma providência. 


Gramsci verá o pensamento de Marx como herdeiro de dois movimentos culturais, a Reforma protestante e a Revolução francesa. Ou como nos diz Hugues Portelli, a filosofia da práxis pressupõe um passado cultural, o Renascimento, a Reforma, a filosofia alemã, a revolução francesa, o liberalismo laico e o historicismo. Ou seja, a filosofia da práxis é o coroamento do movimento de reforma intelectual e moral e por isso está imbricada à Reforma protestante e a Revolução francesa. 


Marx pode, então, ser entendido como desenvolvimento que se dá a partir de três correntes da Reforma protestante: a luterana que legou Hegel, a calvinista que legou Ricardo e a economia clássica, e a huguenote que criou o jacobinismo. A estas fontes originais, Gramsci bebeu da tradição cultural italiana, principalmente de Maquiavel, e também de Croce que deu continuidade ao historicismo alemão.


Dessa forma, para Gramsci, a Reforma foi não somente uma reforma ao nível da economia, filosofia e política, mas também uma revolução cultural, no sentido de que procurou forjar uma nova humanidade. Para Gramsci a consciência religiosa cristã, que se traduziu em revolução cultural no século 16, teve um caráter de suma importância na construção do pensamento contemporâneo. Ou, nas suas palavras, a partir do rústico intelectual da Reforma, e está falando de Lutero, passando pela filosofia clássica alemã e pelo vasto movimento cultural nasceu o mundo moderno.


Podemos dizer que Gramsci, no que se refere ao cristianismo, faz uma ponte entre Émile Durkheim e Max Weber. Durkheim considera a religião a partir da idéia de vínculo social. A religião constituiria uma comunidade moral na os adeptos comungam um mesmo ideal. A palavra chave aí é solidariedade. E a solidariedade leva a uma memória coletiva, que organiza lembranças, ritualiza a crença. Os estudos de Durkheim sobre as sociedades têm o intuito de dar rumo a sua análise na qual a divisão do trabalho foi anteriormente sua preocupação central. Mais tarde, o diálogo com a antropologia será privilegiado e o universo da religião será pensado como consciência coletiva, abordagem que ele estende ao entendimento da nação, enquanto todo no qual os indivíduos partilham a mesma memória coletiva. 


Weber trabalha em sentido diferente. O cristianismo é instituição, é igreja, que atua como empresa de salvação das almas. É necessário, então, conhecer os meandros de sua doutrina, a organização de seu clero e a disputa entre visões e interesses distintos no quadro das crenças religiosas. Daí a atenção que dá ao pensamento divergente, as rupturas no interior de uma mesma ordem ideológica, e sua política com o poder de Estado. 


Assim, Durkheim busca o que une e Weber realça o que separa. Mas Gramsci está interessado nas duas dimensões, no que une e no que divide. O cristianismo, para ele, é uma concepção de mundo que elabora versões sobre a realidade, o que possibilita aos fiéis atuar segundo determinada ética, mas também os une no interior da mesma comunidade. Essa idéia atravessa as páginas dos Cadernos do cárcere, sintetizada na afirmação de que o catolicismo é o intelectual orgânico da Idade Média.


Partindo de uma leitura do contexto europeu medieval, Gramsci estudou o papel dos intelectuais católicos: seu cosmopolitismo, incentivado pelo poder de Roma, em política à fragmentação do poder feudal e sua intolerância diante do pensamento divergente que ameaça a unidade da Igreja. Mas, na qualidade de orgânico, o catolicismo funcionaria como cimento cultural entre diferentes setores de uma sociedade hierárquica. Assim, o catolicismo integra o que se encontra separado por lutas de interesses e discordâncias doutrinárias. O catolicismo, no entanto, é parte de uma superestrutura mais ampla, a ideologia. É uma cosmovisão, tem valor cognitivo, interpreta o mundo ético, orienta a ação, e constrói uma moral que baliza a solidariedade dos fiéis. As ideologias possuem potencialidades diferentes destas, por isso Gramsci faz distinção entre filosofia e cristianismo católico, e entre cristianismo católico e senso comum, mas, ainda assim, todas as ideologias podem ser pensadas a partir dessa mesma matriz teórica.


Dessa maneira, as análises de Gramsci rompem com a tradição marxiana, já que a ideologia, mas do que falsa consciência é entendida como elemento cognitivo, concepção de mundo que brota da vida social. Para ele, como concepção de mundo, o cristianismo não seria alienante, mas deve ser entendido como ideologia presente na história. Exemplo disso foi o catolicismo, que possuía valor positivo, era orgânico, e construiu vínculo social entre as classes e os grupos sociais. Mas, no correr da Idade Média perdeu essa positividade, ao perder sua função de solidariedade, e passou a atuar como força reativa diante das mudanças.

 

E se Gramsci se mantém marxiano no que se refere à crítica da transcendência e, por extensão, da natureza humana, a conclusão que se impõe é que não há sociedade sem ideologia. Gramsci prepara, assim, o caminho para outros teóricos do pensamento marxiano, como Althusser e seu "animal ideológico", e Lévi-Strauss e seu "animal simbólico".


Mas Tillich teve uma compreensão diferente daquela de Gramsci, que entende a vanguarda enquanto intelectualidade orgânica, mas não vê o movimento de massas em processo dinâmico que pode levar ao surgimento de uma massa orgânica. Há uma divergência entre os dois pensadores: a crítica intelectual não se limita ao intelectual orgânico, é um processo maior que gera a massa orgânica, com dupla ação: de liderança da sociedade e de transformação da situação-limite. 


Na perspectiva tillichiana, a passagem da heteronomia à autonomia se deu através de ciclos que atravessaram épocas. Assim, os movimentos dinâmicos das massas estão presentes nos movimentos religiosos do jovem cristianismo, no movimento político da migração dos povos, no movimento religioso da Reforma, no movimento anabatista e no movimento solidário. Embora esses movimentos possam ser encontrados em diversas épocas, estão presentes em diferentes esferas da cultura, mas sempre como movimentos de liberdade: as massas dinâmicas são parteiras de escravos, de povos, de trabalhadores.


Por isso, segundo Tillich, não podemos ver o pensamento de Marx como algo que já se esgotou, se nos propomos a fazer a crítica consciente e transformadora, pois a justiça não é justificativa ideológica das democracias, nem idealismo progressivo ou sistema de harmonia autônoma. A busca incondicional da justiça dentro do espírito da crítica profética e com os métodos do marxismo transcende o mundo. Mas até que ponto a metodologia marxiana e uma conquista do poder político poderiam dar sentido à vida? Só se a busca incondicional da justiça levar em conta que a corrupção também está localizada nas profundezas do coração humano.


O teólogo da vida deve entender que as forças demoníacas da injustiça e da vontade de poder jamais serão plenamente erradicadas da cena histórica. Precisa compreender que a corrupção da situação humana tem raízes mais profundas do que as estruturas históricas e sociológicas. Estão encravadas nas profundezas do coração humano. Por isso, explica Tillich, como Kierkegaard, Marx fala da situação alienada na estrutura social da sociedade burguesa. Empregava a palavra alienação (entfremdung) não do ponto de vista individual, mas social. Segundo Hegel essa alienação significa a incursão do espírito absoluto na natureza, distanciando-se de si mesmo. Para Kierkegaard era a queda do homem, a transição, por meio de um salto, da inocência para o conhecimento e para a tragédia. Para Marx era a estrutura da sociedade capitalista. 


Por isso, a regeneração da humanidade não é possível apenas mediante mudanças políticas, mas requer mudanças na atitude das pessoas em favor da vida. De todas as maneiras, para Tillich e para Gramsci há uma busca comum de respostas entre aquele que encarna o espírito crítico e a ação consciente do intelectual orgânico. Ou como diz Gramsci, se a política entre intelectuais e povo, dirigentes e dirigidos, governantes e governados, é dada por adesão orgânica, onde a paixão torna-se compreensão e saber, é  então que a política se faz representação. E aí se produz o intercâmbio de elementos entre governados e governantes, entre dirigidos e dirigentes. E é aí onde se realiza a vida social. Cria-se então o bloco histórico.


Para Gramsci, o intelectual quando representa determinada comunidade têm função superestrutural, ou seja, cultural, mas, apesar de sua organicidade, precisa exercer autonomia em política às pressões sociais que sofre. É dessa postura que nasce a força crítica e a compreensão de que diante da realidade há alternativas diferentes daquelas expressas pelo poder. 


A partir de Tillich e Gramsci podemos dizer que o princípio da crítica intelectual é expressão humana e verbal do incondicionado, e resgata a tradição do profetismo bíblico, que possuía uma concepção unitária do fato e procurava a síntese entre política e ética. O profetismo era ao mesmo tempo revolucionário, mesmo quando voltado para o passado, e conservador, mesmo quando impulsionado pela paixão do porvir. Nada fazia sem invocar a tradição, no entanto, sua mensagem eram os novos tempos. Os profetas sabiam servir-se do passado para as necessidades do presente. Todos pareciam ter algo em comum: uma atitude realista. A pregação do futuro não constituía o essencial de seus clamores; era antes, o fruto e o resultado final de um conhecimento aprofundado no mundo adjacente, da atualidade e do passado. Ora, essa função profética está presente na compreensão crítica de Gramsci e de Tillich do intelectual orgânico.


Mas, não podemos esquecer que para Tillich há limites para a ação do intelectual, pois a razão não é global. Ao contrário, cada criação do espírito é necessariamente afetada pelos limites da situação que a viu nascer. O espírito está sempre ligado a uma classe. No espírito está implícita uma situação particular de luta, de dominação ou de opressão, que conforma a própria consciência. Entendido assim, o espírito não é universalmente o mesmo em cada pessoa, exprime um ser social particular. A passagem à cultura não se faz simplesmente pela transmissão de bens culturais universais, mas pela formação inculcada por uma sociedade e uma situação de lutas determinadas, em meio a obras que exprimem ou exprimiram no passado esta possibilidade humana particular.


Numa leitura cristã protestante, Tillich considerou a busca pelo sentido pleno de vida produto do desenvolvimento econômico e espiritual, que preparou e se impõe com a Renascença, a Reforma e o surgimento do capitalismo. Visão compartida por Gramsci. Assim, a busca pelo sentido pleno de vida surge em oposição à cultura autoritária e unitária da Idade Média, sedimenta suas bases nas criações culturais dos últimos séculos, e só pode ser compreendida a partir desta evolução: sua permanência está ligada a esse desenvolvimento. Mas não devemos esquecer, porém, que foi do interior do cristianismo que brotaram as idéias modernas de justiça. 


Para a construção de seu pensamento, Gramsci foge das construções ontológicas, e analisa a sociedade como conjunto de forças, imersas na história e marcada por interesses diversos. Podemos ver isso quando em carta à sua cunhada Tatiana Schucht. de dezembro de 1931, expõe seu conceito de Estado ampliado: 


“Eu amplio muito a noção de intelectual e não me limito à noção corrente que se refere aos grandes intelectuais. Esse estudo leva também a certas determinações do conceito de Estado, que habitualmente é entendido como sociedade política (ou ditadura, ou aparelho coercitivo para adequar a massa popular a um tipo de produção e a economia a um dado momento); e não como equilíbrio entre a sociedade política e sociedade civil (ou hegemonia de um grupo social sobre a inteira sociedade nacional, exercidas através de organizações ditas privadas, como a igreja, os sindicatos, as escolas, etc.)”.


Ora, em geopolítica, hegemonia significa a supremacia de uma nação sobre outras, seja por sua presença militar, de coerção, seja pela presença política e cultural. Mas na política, o conceito formulado por Gramsci descreve a dominação ideológica de uma classe sobre outra, no caso da burguesia sobre os trabalhadores.


Em Gramsci não é possível o domínio bruto de uma classe sobre as demais, a não ser nas ditaduras, ou seja, no Estado-coerção. Mas uma classe dominante para ser dirigente deve articular um bloco de alianças e obter o consenso passivo das classes e camadas dirigidas. Nessa busca de alianças, necessárias, a classe dominante sacrifica parte dos seus interesses materiais imediatos, vai além do horizonte corporativo, com a finalidade de construir uma hegemonia ética e política.


Ao estudar os mecanismos de construção desta hegemonia, Gramsci chega a um conceito fundamental na sua teoria política, a saber, o conceito de Estado ampliado. O Estado moderno na Europa analisada por Gramsci não seria, para ele, apenas instrumento de força a serviço da classe dominante, mas força revestida de consenso, ou seja, combinaria coerção e hegemonia. O Estado ampliado pode, então, ser entendido como sociedade política mais sociedade civil. E, nas sociedades de tipo ocidental, a hegemonia, que se decide nas inúmeras instâncias e mediações da sociedade civil, não pode ser ignorada pelos grupos sociais subalternos que aspiram a modificar sua condição e a dirigir o conjunto da sociedade.


O sentido de progresso civilizatório que a teoria gramsciana implica, reside no fato de que todo o movimento deve acontecer no sentido de uma absorção do Estado político pela sociedade civil, com o predomínio crescente de elementos de autogoverno e autoconsciência. A partir dessa teorização, Gramsci formula nos Cadernos do cárcere uma crítica ao stalinismo, a partir dos traços de hipertrofia do Estado soviético, que chama de estatolatria, considerando que tal estado de ditadura sem hegemonia não subsistiria por muito tempo. 


Assim o Estado se compõe de dois segmentos distintos, porém atuando com o mesmo objetivo, que é o de manter e reproduzir a dominação da classe hegemônica: a sociedade política, estado-coerção, a qual é formada pelos mecanismos que garantam o monopólio da força pela classe dominante, burocracia executiva e policial-militar; e a sociedade civil, formada pelo conjunto das organizações responsáveis pela elaboração e difusão das ideologias, composta pelo sistema escolar, Igreja, sindicatos, partidos políticos, organizações profissionais, organizações culturais: meios de comunicação e de massa. 


E aqui merecem destaque os meios de comunicação, pois para sua época estavam ainda em sua fase embrionária, e a televisão nem sequer fazia parte dos projetos futuros. Isto só seria possível no início da década de 1950. É exatamente através dos meios de comunicação da alta modernidade, que se dá a canalização da direção intelectual e moral, difundindo as ideologias da classe hegemônica vigente. 


Assim, o Estado é a sociedade política gramsciana. E esta sociedade civil representa a nova determinação apresentada por Gramsci. Esta sociedade civil assume crescente dimensão no começo do século vinte, com os partidos de massa, sindicatos de trabalhadores e outras formas de organizações sociais. É após seu desenvolvimento histórico que a sociedade civil pôde ser capturada teoricamente. Antes disso, o estado-coerção era muito superior em sua base material para se permitir tal percepção. 


O que chama a atenção no modelo do Estado ampliado, desde o Leviatã de Hobbes até Marx, é o sentido unitário do Estado. Ou seja, até Marx, o Estado era entendido como algo diferente da sociedade civil, que seria extinto quando se extinguisse a divisão de classes dentro da sociedade, uma vez que era esta divisão que produzia a necessidade do Estado. 


Em Gramsci, porém, quando agrega a sociedade civil ao Estado-coerção, nada fica de fora do Estado. Este todo, entretanto, não é homogêneo, é rico em contradições e é mantido pelo tecido hegemônico que a cada momento histórico é recriado em processo permanente de renovação. 


Assim, a luta pela construção de uma sociedade plena de sentido de vida, torna-se mais complexa e difícil do que imaginava Marx. Não basta ser classe dominante, tem que ser também classe hegemônica, dirigente. Desta forma, o campo da luta entre as classes se amplia. E a democracia necessária ao sentido pleno de vida será construída pelo bloco histórico hegemônico. Neste momento, a sociedade civil terá atingido uma base material superior a base material do Estado-coerção, atingindo o que Gramsci chama de sociedade regulada. 


Com a gradativa absorção da sociedade política pela sociedade civil, que atua através dos seus aparelhos de hegemonia, o estado-coerção será substituído pelo estado-ético. E esta figura remanescente do estado-coerção, torna mais factível o modelo social voltado para a democracia de bens e direitos e menos utópico em política ao que planejara Marx.

 

Nesta concepção de Estado, as democracias ocidentais possibilitariam o sentido pleno de vida. Mas fica uma questão: se a supremacia da sociedade civil se dará pelo consenso contra a coerção, onde fica o conceito de luta de classes, momento celular do pensamento marxiano? 


Na verdade, para Gramsci a extinção da coerção do estado se dará pela absorção deste pelo estado-ético, ou seja, pela sociedade civil. Esta sociedade civil está inserida no estado ampliado e, por isso, não se pode falar de extinção do estado, mas de uma reorganização do estado onde um de seus componentes, está atrofiado por disfunção ou necessidade, já que os conflitos passaram a ser administrados pela base material do consenso.


Há, porém, dois níveis superestruturais nas sociedades democráticas: o estado ampliado, que é a sociedade civil, ou o conjunto dos aparelhos privados de hegemonia; e a sociedade política, ou o estado no sentido restrito do termo, composto pelos organismos de coerção do aparelho burocrático-militar de dominação política. 


Nesse espaço a sociedade civil como espaço do domínio da ideologia, portador material da hegemonia, encontra a possibilidade de legitimidade, de consenso, através dos aparelhos privados de hegemonia que propagam valores ideológicos. 


Assim, o conceito de estado ampliado procura apreender a configuração de forças sociais e políticas resultantes dos estados ocidentais do século vinte, idéia que confronta a proposta de Trotsky de revolução permanente a partir da concepção de hegemonia civil. Tal proposta-conceito parte da idéia de guerra de posição, que exige uma frente de combate no campo cultural, unida às frentes econômicas e políticas para a conquista da hegemonia pelas classes subalternas. A fórmula hegemonia civil propõe a participação das maiorias sociais nos aparelhos privados de hegemonia (sindicatos, partidos, escolas, igrejas, imprensa), que constituem as trincheiras de luta para obter posições de direção no governo da sociedade.


A proposta de extinção do estado, no entanto, nunca é plena, pois sempre restará o governo para cuidar da sociedade civil. É claro que se entendermos assim podemos dizer que na distinção de função entre as pessoas que governam e as que vivem a vida da sociedade de consenso está presente ainda a dominação entre as classes e, portanto, os restos da coerção do Estado se farão presentes.


Em Gramsci está presente uma utopia que atravessou todo pensamento solidário: sonhar com o bom selvagem de Rousseau, em oposição ao homem é o lobo do homem de Hobbes. Esse Estado ético é uma idealização do ser humano, que poderia viabilizar a construção de uma sociedade ética, igualitária e justa. 


Mas, mesmo questionando Gramsci, podemos utilizar seus conceitos de estado ampliado e de hegemonia civil como estruturas de pensamento válidas para a análise social, não como proposta da utopia solidário, mas como ferramenta para delimitar e compreender o desenvolvimento das sociedades ocidentais contemporâneas, principalmente aquelas que se propõem democráticas. 


A busca pelo sentido pleno de vida e os movimentos de liberdade sempre estiveram ligados, mas isso não significa que não existem tensões entre o momento universal e o momento particular. O momento universal pode formular exigências que ameaçam absorver o momento particular. A busca pelo sentido pleno de vida se tornará, então, uma idéia geral, desprovida de raízes sociais e perderá sua força histórica. Este é o perigo de uma luta pela justiça restrita à intelectualidade. Esse perigo provém da situação burguesa e de seu pensamento político particular, que procura elaborar uma ordem social fundada sobre a justiça, mas deixando de lado a situação proletária real. Seja qual for o valor que se atribua a esta tentativa, ela não será de fato justiça social. A luta contra o intelectualismo utópico se apoia sobre a ligação indissolúvel que Marx viu entre sentido pleno de vida e proletariado, que não pode ser quebrada por essa harmonia metafísica proposta pela globalidade burguesa.


Para Paul Tillich existe na esfera política uma política entre razão e autonomia. Toda estrutura política pressupõe poder e um grupo que o assume. Mas um grupo de poder é também um conglomerado de interesses opostos a outras unidades de interesses e sempre necessita uma correção. A democracia está justificada e é necessária na medida em que é um sistema que incorpora correções contra o uso errôneo da razão política. Assim, a teologia e a política não são realidades estanques, porque as raízes do pensamento político não são apenas pensamentos. Teologia e política, no mundo ocidental, estão imbricados, mas não existem sem a necessidade de correção, ou seja, da democracia. 


Tal compreensão da realidade ocidental no pós-guerra levou Tillich a se debruçar sobre projetos que tiveram início ainda na sua fase alemã, como a sua reflexão sobre a cultura. Mas a maioria de seus companheiros, que esperavam a realização da vida social plena de sentido, diante do visível abandono dos direitos civis e humanos, assim como a descoberta da existência de Gulags nos países comunistas, se desiludiu. Ou como publicou mais tarde – veja, Paul Tillich, Teologia protestante nos séculos dezenove e vinte:


“O movimento marxista não foi capaz de se criticar por causa da estrutura em que caiu, transformando-se no que chamamos agora de stalinismo. Dessa maneira, todas as coisas em favor das quais os grupos originais tanto lutaram acabaram sendo reprimidas e esquecidas. Em nosso século vinte temos tido a ocasião de melhor perceber a trágica realidade da alienação humana no campo social”.


Tal política comunista fez com que Tillich, que não se considerava um utópico, constatasse que o amanhecer de uma nova era criativa se distanciava da humanidade. Assim, alertou para o perigo, a partir da experiência stalinista de que, em nome da busca pelo sentido pleno de vida, sociedades mergulhassem no totalitarismo, já que não aceitavam a pluralidade de partidos políticos e as liberdades civis, que ele e os socialistas-religiosos defendiam. Mas é interessante ver que descartava qualquer possibilidade de hegemonia permanente, quer por parte do bloco soviético, quer por parte do bloco ocidental, ao dizer que novos centros de poder podem aparecer levando à separação ou à transformação radical do todo. Isto porque o poder inicia sempre uma nova luta, e o período de determinado império mundial será tão limitado quanto foi o período de paz”. 


E afirmou que um mundo sem as dinâmicas do poder, sem a tragédia da vida e da história não é o Reino, nem a finalidade do ser humano, pois o fim está limitado à eternidade e nenhuma imaginação pode atingir o eterno. Mas as antecipações fragmentárias são possíveis. Assim, falar de teologia da existência significa entender que a busca pela incondicionalidade da justiça e, por extensão, da paz e alegria, traduz a defesa do sentido último do significado profundo das raízes do humano e que, no mundo contemporâneo, diante do trovejar dos canhões e da ameaça à existência, deve levantar-se como voz profética de um mundo novo.


A alienação e o pecado

“Acorda, levanta, resolve/ Há uma guerra no nosso caminho/ Nos confins do infinito/ Nas veredas estreitas do universo/ Vejo/ As cinzas do tempo/ O renascimento/ As danças do fogo/ Purificação, transporte”. A Árvore dos Encantados, Cordel do Fogo Encantado 


A existência, enquanto processo, pode ter determinação construtiva no sentido teleológico, por apresentar qualidades adequadas à sua natureza ou função. E o humano, momento da existência, tem possibilidades diante dela. Essas possibilidades podem ser chamadas de liberdade condicionada e relativa à própria existência. Mas tais possibilidades são desafios à compreensão da condição humana e de suas relações reais. Estamos, então, falando de alienação.


A alienação antecede o exercício da liberdade. A idéia, trabalhada por Tillich, a partir de Hegel, é de que pertencemos essencialmente àquilo de que estamos separados. Ou seja, o humano não está separado de seu ser, mas é julgado por ele, e mesmo quando este lhe é hostil não consegue separar-se dele. As possibilidades humanas estão, nesse sentido, mesmo enquanto determinação construtiva e dinâmica, sob funções correlatas, alienação e lei, liberdade e necessidade, que são realidades da existência.  


Se a alienação é ruptura essencial, parto que vai produzir a consciência humana, remete tanto ao distanciamento como à aproximação com o Ser. Não seria, então, apenas disfunção, mas apontaria também às funções do humano, enquanto ser com possibilidades de realização somática, psíquica, cultural, ecológica e do sentido pleno da vida. 


Na tradição judaico-cristã essa relação entre alienação e liberdade foi um tema teológico de importância. Dos textos judaicos resgatamos idéias como aliança, constância, fidelidade, que remetem à correlação alienação/lei. E no testamento cristão a idéia de destino traduziu o conceito de alienação em seus dois vetores, distanciamento e aproximação.


As tensões ao redor da compreensão das idéias de alienação, que traduz funções e disfunções do humano, e graça, enquanto ação divina para a salvação, apontam para duas outras questões: história e liberdade. Essas duas questões formam a base do pensamento de que o ser humano por ser imagem do Eterno é um ser livre e, por extensão, faz história. Livre significa liberdade de julgamento e ação no âmbito da existência. Então, para que as pessoas sejam livres, o Eterno garante a liberdade delas. 


Na carta aos  Romanos (5.12), Paulo afirma que hamartia entrou no cosmo através do humano e com hamartia, a morte. Ora, hamartia ou peccatu é um fazer, uma consequência que nasce deste conceito militar dos gregos, ato do arqueiro errar o alvo, quer no treinamento, quer na batalha. Paulo utiliza a expressão no sentido de que a humanidade vive um fazer em que errar o alvo é possibilidade crescente na existência, embora não seja um estado dela.  


Errar o alvo, ou, em hebraico moderno, errar o tiro, leva à conseqüências. Paulo privilegia uma delas, a consciência da morte. Para o apóstolo, hamartia ou peccatu produz uma consciência matricial, a consciência da morte. A partir da consciência da morte temos a consciência do divino, a consciência da diversidade, já que não somos bichos e, por extensão, não somos natureza, a consciência de que podemos escolher, e a consciência de que coisas e ações podem ser boas ou não. Dessa maneira, o alvo é o desafio de acertar, e estão diante do humano, de forma permanente, as necessidades diante da lei, daquilo que é ou está frente à existência e possibilidades diante da liberdade, daquilo que não existe, mas pode ser criado.


Alvo implica, então, em necessidades e lei e possibilidades e liberdade, que não se excluem: estão correlacionadas na existência humana, fazem parte do desafio da existência.


Ora, em termos teológicos, a partir dessa primeira reflexão, podemos dizer que todos são chamados à comunhão e cada pessoa pode responder positivamente a esse chamado. Caso o ser humano responda positivamente ao chamado, vive o processo de libertação que leva à comunhão plena. A comunhão consiste, então, em metanóia, que é volta ao estado de liberdade e permanência na escolha. A partir desta resposta, o Eterno opera a salvação do ser humano. Por isso, podemos dizer que a vontade humana abre o caminho da libertação. A partir daí entendemos a graça universal, pois todos os seres humanos poderiam responder positivamente ao chamado à comunhão. Ou seja, a liberdade de julgamento no âmbito da existência leva a pessoa a escolher os caminhos de sua história.


As funções e disfunções existenciais do humano, ou seja, a alienação, fazem com que as ações humanas, a partir dos desejos – emoções e sentimentos – levem o ser humano à possibilidade de errar o alvo, lehatati em hebraico, hamartia, em grego, e peccatu, em latim. Dentro da tradição das escrituras hebraico-judaicas, lehatati é a violação da lei. Mas lehatati é sempre uma ação do coração e não um estado do ser. Já a alienação, esta sim, é um estado da existência e toda a humanidade se encontra nesse estado de disfunção, ou inclinação para fazer o mal, conforme vemos em Gênesis 8.21. Assim, lehatati traduz não somente falta moral, mas todas as violações da lei, quer conscientes ou não. E, segundo a tradição judaica, todo ser humano nasce sem lehatati, e a culpa de Hadam recaiu sobre ele e sua família, mas não se estendeu à espécie humana. Apesar disso, todo ser humano é responsável pelo lehatati porque todos temos vontade livre, mas natureza alienada e, por isso, tendemos também para o mal. Por isso, o texto acima citado de Gênesis diz que o coração humano é mau desde a sua juventude. Mas o Eterno, através de sua misericórdia, possibilita ao ser humano a metanóia e o perdão. 


O axioma fruto-da-árvore-do-bem-e-do-mal pode ser lido assim: fruto-da-existência/bem-e-mal, porque está a nos falar de uma dualidade intrínseca à vida, o bom e o ruim, a sanidade e a loucura, a saúde e a doença, a vida e a morte. Nesse sentido, ao se fazer a pergunta pelo mal deve-se fazer também a pergunta pelo bem, já que não estão separados, são correlatos, joio e trigo. 


E se a libertação humana é um bem, é tanbém um processo, por isso, não somos plenamente livres, porque depende se permanecemos ou não na opção escolhida. Se mantivermos a escolha seremos livres, se abandonarmos a escolha retornamos à alienação. Caso nos alienemos, se não houver metanóia, se não voltarmos à comunhão, estaremos alienada.


Dessa maneira, na polaridade alienação/comunhão dá-se a construção das pessoas e das comunidades, que interagem, por opção ou por omissão, na construção de sua história. O Eterno é soberano porque construiu e mantém o universo, sustentando-o na universalidade do Espírito, aqui entendida como sentido da vida. A soberania especial está sobre a comunidade que permanece na escolha. As outras comunidades estão fora desta soberania especial, da graça que gera comunhão plena, exatamente porque usaram a liberdade para escolher o lehatati. 


E quanto maior a alienação, mais o Eterno retrai sua soberania sobre tais pessoas e comunidades, e, consequentemente, a graça que gera comunhão plena. O que explica o mal enquanto feituras pessoal e social. E para que o processo histórico se dê, o Eterno contrai espaço-temporalmente sua justiça executora. 


Por paixão ao ser humano, ele contrai a ação de seu conhecimento. Caso o Eterno, a partir de seu conhecimento, definisse todas as ações livres do ser humano, as pessoas e as sociedades poderiam fazer apenas aquilo que o Eterno por conhecer definisse, sem poderem tomar decisões alienadas, sem poderem se afastar dele. 


O Eterno dirige o seu fazer, mas interage com as pessoas e as comunidades humanas na produção da história, enquanto obra que nasce das correlações liberdade e comunhão e liberdade e alienação. A polaridade alienação versus comunhão não apresenta o ser humano como bom ou mal, mas como ser que age a partir dessa polaridade. Isso fica claro no diálogo que o Eterno tem com Caim, quando diz que ele está inclinado para o mal, mas deve dominá-lo. Essa conversa apresenta um padrão humano, a alienação. 


Em Gênesis, o Eterno disse para Hawah, que no texto representa a vida, que a alienação seria a regra e a humanidade cresceria sob o signo da violência. A alienação estabelece uma proposição, um princípio atemporal e não espacial, sobre o qual a razão titubeia, uma vez que aparentemente transcende a concepção de humanidade, mas, ao mesmo tempo, reduz qualquer expressão humana. Parece estar além da razão: é impensável. Podemos, no entanto, partir do postulado de que há uma alienação ontológica, que antecede todo mal manifesto. Esta causa maior é a raiz sem raiz de tudo que foi e é mal. Despida de atributos não tem, a princípio, nenhuma relação com o mal expresso. É  o mal que é e está além da razão de ser maligno, malévolo, malvado.


O que é mal está simbolizado no ser alienado sob dois aspectos: por um lado, é o não-espaço da subjetividade, aquilo que a mente não pode excluir, nem conceber por si mesma. Por outro lado, o mal incondicionado é dinâmico. A consciência é inconcebível quando separada do movimento, pois é ele que leva à mudança. Tal aspecto do mal é simbolizado na ideação “multiplicarei o teu sofrer e a tua conceição: em dor darás à luz filhos”. Um símbolo gráfico do mal presente no parir a vida. Este axioma fundante do mal ontológico remete àquilo que podemos simbolizar como características do mal.

 

A natureza da causa do mal, derivada da alienação aparentemente sem causa, aflora como consciência, impessoal, que permeia a natureza. Esta causa do mal é o campo da consciência, que transcende a relação com a existência e da qual a existência consciente é condicão. Mas, ao atravessar pela negação a relação entre existência e consciência, surge a alienação enquanto estado da existência: o espírito do mal, a consciência do mal e a matéria do mal.


Espírito do mal, consciência do mal e matéria do mal devem ser considerados não como independentes, mas correlações que se originam no ser alienado. Considerada a alienação ontológica, raiz da qual procedem todas as manifestações do mal, a expressão “multiplicarei o teu sofrer e a tua conceição: em dor darás à luz filhos” assume o caráter de ideação do que ainda não é humano. Ela é a fonte da força de todo mal individual e social e fornece os elementos para a análise do mal que perpassa o humano e sua história. Tal raiz pré-humana é o absoluto expresso no “multiplicarei o teu sofrer e a tua conceição: em dor darás à luz filhos”, base do mal objetivo. Tal ideação do porvir humano é a raiz do mal individual e social, enquanto estado da existência, alienação em seus diferentes graus.


A correlação dos aspectos da alienação ontológica, de origem, é fundante da existência enquanto mal manifesto. A ideação da humanidade, separada de tal estado, não se manifesta como mal individual e social, uma vez que é somente através de um veículo, a alienação da ideação, que o mal aflora como violência que é, ato alienado que necessitou de base física para apresentar-se como momento de uma complexidade maior, natural e humana. Da mesma forma, tal estado da existência, separado da ideação da humanidade, permaneceria como uma abstração da qual o mal não poderia emergir. O mal-manifesto, assim, é permeado pela correlação, que é fundamento de sua existência como alienação que se manifesta.


As correlações entre mal-manifesto, espírito e matéria do mal são símbolos da alienação ontológica, presentes no universo manifestado da alienação. Essa correlação é alienação existencial, a ponte através da qual as idéias são impressas enquanto substância da natureza do mal, presentes na forma de leis da natureza e da sobrevivência do humano. A alienação, dessa maneira, é dinâmica da ideação do humano, é meio que guia a manifestação. 


Ou como disse Lameque (Gn 4.23-24), ser violento mítico consciente do ciclo do mal, apresentado nas escrituras hebraicas: “Ada e Zilá, ouçam a minha voz. Escutem, mulheres de Lameque, as minhas palavras: matei um homem, porque me machucou. E um jovem, porque me pisou. Se são mortas sete pessoas para pagar pela morte de Caim, então, se alguém me matar, serão mortas setenta e sete pessoas da família do assassino”.


Assim, a consciência procede também da ideação do mal, e fornece os meios que possibilitam ao mal individualizar-se na existência humana. A alienação em suas manifestações é o elo entre o espírito e a matéria do mal, presença que, paradoxalmente, equilibra vida e morte, permanência e destruição. Por isso, o apóstolo Paulo disse que o Cristo é a paz, porque derrubou a parede da separação que estava no meio, a inimizade, e aboliu a lei dos mandamentos na forma de ordenanças, para criar, nele próprio, o novo humano. 


Podemos, dessa maneira, ler Gênesis 6.5 (“a imaginação dos pensamentos de seu coração era continuamente má”), 8.21 (“a imaginação do coração do homem é má desde a sua meninice”) e Deuteronômio 31.21 (“porque conheço a sua imaginação”), a partir da compressão do conceito de alienação. É interessante que nenhum desses textos fala do ser humano como essencialmente corrupto, mas alienado. A própria palavra yetzer, que vem da raiz yzr, utilizada quando as Escrituras hebraicas falam de inclinação maligna, significa moldar, propor-se. A idéia é que o ser humano é dirigido por suas inclinações, imaginações, sejam elas boas ou más. É yetzer que, combinado ao julgamento livre no âmbito da existência, possibilita a metanóia. Ou, conforme diz Deuteronômio, o Eterno coloca diante do ser humano a possibilidade do bem e a possibilidade do mal. Os seres humanos terão comunhão se obedecerem aos mandamentos do Eterno e errarão o alvo se desobedecerem aos mandamentos do Senhor (11.16-28). 


Só o Eterno é capaz de fazer com que exista a liberdade humana e mantê-la.  Essa graça, oriunda do Eterno e derramada sobre a humanidade, possibilita a construção da história. Por isso, Paulo diz que o Eterno fica de humor transverso com a alienação que distancia, mas segura as pontas com calma, por saber que a alienação é fruto da sua valência e, diante da alienação que aproxima, também obra sua, Ele expressa alegria. (Romanos 9.22-23).


Essa leitura da liberdade entregue ao ser humano é importante para a teologia, pois ao dizer que as pessoas e as comunidades humanas podem agir à margem daquilo que o Eterno desejaria para a humanidade, apresenta a violência, a guerra e os genocídios como frutos da opção e ação humanas. E o teólogo pode, então, analisar porque os profetas clamam e apontam às sociedades o caminho do Reino, embora estas possam escolher os seus próprios caminhos. O campo de concretação de Auschwitz, sob o nazismo, e os genocídios contemporâneos são, então, passíveis de estudo. Mas a nossa leitura coloca, também, para as comunidades de fé, o clamor profético e o desafio de expandir o Reino.


Em relação à alienação, o ser humano herdou de Hadam a inclinação para o mal e, como consequência, a possibilidade crescente de errar o alvo, mas não a culpa. Os seres humanos são alienados porque separaram razão e coração e erram o alvo porque são alienados. E em relação ao processo de libertação, a morte do Cristo abre as portas da comunhão, mas não assegura a libertação plena, pois esta só será definitiva se a pessoa não desistir da corrida.


Paralelo ao pensamento hebraico, a cultura grega apresentou uma rica leitura do conceito de destino, que relaciona alienação e hamartia. O conceito destino nasceu da reflexão de que os deuses são imortais porque o humano está situado entre a finitude existencial e a infinitude potencial. Para os gregos o destino era finitude existencial, e esse é o tema da tragédia grega e da busca da superação filosófica, principalmente de estóicos e epicuristas. Era uma tentativa de colocar o humano acima do destino que o distanciava de seu ser, transformando-se em poder destrutivo que envolveu o mundo helênico em culpa e julgamento. 


Um exemplo dessa leitura, que nos interessa para a construção de uma compreensão teológica da alienação, seria o arrazoado que Pedro, o apóstolo, fez em sua segunda epístola, ao dizer que a graça não tem limites, pois o Eterno não retarda a sua promessa, como alguns afirmam, por julgá-la demorada, mas por ser paciente. Ele não escolheria a danação eterna de pessoas, ao contrário, desejaria que todos chegassem à metanóia, ou seja, fizessem o caminho de volta à liberdade e construíssem comunhão. 


Dessa maneira, a graça tem eficácia ilimitada, mas há uma chave para que a função graça seja plenamente exercida. E essa chave é: chegar à metanóia. Dessa maneira, o sacrifício do Cristo, que é graça plena e universal, deve ser somado à metanóia, produzindo então a libertação. Ou seja, graça plena mais metanóia é igual à libertação. E o sacrifício do Cristo sem a metanóia, produz justiça. Ou seja, o valor da cruz não é limitado, mas sim sua aplicação. E a preparação da pessoa e das comunidades humanas para a graça tem o julgamento livre no âmbito da existência como movimento e o Eterno como móvel. 


Essa preparação pode ser pensada como movimento que parte, enquanto universalidade, da liberdade humana em direção à especificidade que tem o Eterno como móvel e implica em graça determinada pelo Eterno, embora não seja proveniente da coação, mas do seu pleno conhecimento, porquanto a intenção do Eterno não pode deixar de ter efeito. 


Por isso, podemos falar da universalidade da graça, presente na comunidade humana, e na especificidade da graça, que infalível segue a boa vontade humana. Mas esse movimento é dialético, pois, quando olhamos da perspectiva do humano, ele parte da universalidade, mas se olharmos da perspectiva divina parte da especificidade. Ou seja, universalidade e especificidade são termos relativos, que se complementam na plenitude da graça. Por isso, liberdade, eleição e graça fazem parte de uma dança permanente, onde cada conceito implica na existência do outro e nenhum tem existência independente, mas criam uma unidade/diversidade correlacional plena e necessária. 


Todas as pessoas e comunidades humanas realizam suas existências dentro desse processo, fazem parte dele, o que significa dizer que existência, liberdade e graça fazem parte da história humana. O Eterno mobiliza o processo em direção à especificidade, com base no seu conhecimento da fé e da perseverança de cada pessoa e das comunidades humanas, mas conhece e aceita o sentido da universalidade humana. Esta seria a leitura do texto de Pedro, quando disse que no meio do povo surgiram falsos profetas que introduziram doutrinas destruidoras, a ponto de renegarem o Eterno que os resgatou.


Na teologia paulina, enquanto diálogo das concepções do apóstolo com o mundo helênico, principalmente em sua carta aos Romanos, alienação/destino é o tempo favorável que triunfa sobre o espaço. O caráter do tempo propício à liberdade substituiu o tempo cíclico, transitório e perecível do pensamento helênico. A partir dessa compreensão, destino traduz aproximação, e apresenta novas possibilidades de construção da liberdade no tempo e na história. 


Antes, a filosofia confrontava-se com a inspiração dos poetas, mas, a partir de Paulo, a revelação apodera-se da filosofia. Assim, o destino que distanciava foi questionado pelo pensamento paulino: “aquele que não era meu povo será chamado de meu povo, e aquela que não era amada passou a ser amada”. (Romanos 9.25). O transitório e perecível perdeu importância e a idéia da construção da existência enquanto tempo favorável foi tomando forma. 


Mas voltemos um pouco atrás, para entendermos esse processo. Dentro da visão paulina, que traduz o pensamento cristão palestino, alienação/destino, no sentido de que os limites são potencialmente ilimitados, é a lei na qual surge o conceito de liberdade. Assim, alienação/destino correlaciona conceitos, porque a alienação está sujeita à liberdade; porque alienação significa que a liberdade também está sujeita à lei; e porque alienação significa que liberdade e lei são complementares e interdependentes.


Analisando o conceito cristão palestino de alienação/destino -- exposto por Paulo em sua carta aos Romanos -- podemos dizer que a liberdade humana está ligada às leis universais, de tal forma que liberdade e leis se encontram entrelaçadas. Para Paulo, assim como para a tradição judaica, lei é imposição de limites. Por isso, a alienação é um estado que surge da correlação entre lei e vida, porque se o julgamento é inerente a tudo na existência, também o é a liberdade.


Assim, a certeza de que a alienação/destino é propícia e tem significado realizador e não destruidor, é a peça chave do pensamento de Paulo, que coloca o sentido da vida, que é o Cristo -- revelado pelo amor do Pai na presença do Espírito --,  acima do destino. Ao fazer isso, Paulo está dizendo que a compreensão do destino não está ao alcance da razão humana, mas o sentido da vida traduz a imortalidade potencial do humano. 


Quando o humano faz a defesa do sentido incondicional da vida deixa de temer a ameaça da alienação/destino que distancia, e aceita o lugar que cabe à alienação enquanto estado da existência. Reconhecemos, então, que desde o princípio vivemos num estado de alienação e que sempre desejamos nos livrar dela, mas nunca conseguimos. Mas nessa análise da alienação cabe relacionar sentido de vida e tempo. O sentido da vida deve envolver as leis universais, a plenitude do tempo e a própria existência. E quando o Cristo alcança a existência, penetra no tempo e faz da alienação, aproximação. 


É necessário, porém, entender que a consciência parte da alienação e que o reino da existência só é acessível ao conhecimento liberto da alienação que distancia. Dessa maneira, ao contrário do que pensavam os gregos, o humano possui potencialidade própria, enquanto ser, para realizar seu destino. Quanto maior a potencialidade humana – que cresce na medida da expansão do sentido da vida, sempre entendida como o Cristo revelado pelo amor do Pai na presença do Espírito -- maior será sua consciência de destino.


O destino humano, que nasce da alienação, aponta para o sentido da vida que emerge das crises e desafios. Quanto mais profundamente entendermos nosso destino, no sentido paulino de prokeimai, estar colocado, ser proposto, predestinado, e o de nossas comunidades, tanto mais livres seremos. É o que nos explica o apóstolo Paulo:


“E da mesma maneira também o Espírito ajuda as nossas fraquezas; porque não sabemos o que havemos de pedir como convém, mas o mesmo Espírito intercede por nós com gemidos inexprimíveis. E aquele que examina os corações sabe qual é a intenção do Espírito; e é ele que segundo Deus intercede pelos santos. E sabemos que todas as coisas contribuem juntamente para o bem daqueles que amam a Deus, daqueles que são chamados por seu decreto. Porque os que dantes conheceu, também os predestinou para serem conformes à imagem de seu Filho, a fim de que ele seja o primogênito entre muitos irmãos. E aos que predestinou, a esses também chamou; e aos que chamou, a esses também justificou; e aos que justificou, a esses também glorificou”. Romanos 8. 26-30.


A liberdade humana se dá na existência, enquanto realidade condicionada pela materialidade. A liberdade entende-se como correlação entre lei e sentido de vida, que como vimos é o Cristo revelado pelo amor do Pai na presença do Espírito. Quando Hegel afirmava que a liberdade é a consciência da necessidade, como fez questão de mostrar Marx, cometia um erro porque descartava a realização da liberdade. É por isso que Marx dirá que liberdade é práxis. Ora, para Marx, práxis é consciência da necessidade somada à ação transformadora. Ou seja, consciência da lei diante do estado de alienação que distancia é mudança radical, é ação transformadora da vida.


Lehatati, hamartia, peccatu é um fazer. Em relação ao imediato transforma-se em estado e no que se refere à espécie humana é um domínio. Lehatati, hamartia, peccatu acontece quando minha liberdade é desafiada, quando ela é chamada a surgir como feitura humana. Nesse sentido, lehatati, hamartia, peccatu não se apresenta sem agente moral, sem liberdade. Toda vez que realizo minha liberdade a lei está presente, pois lehatati, hamartia, peccatu é um contra-tipo da liberdade.


Por isso, só podemos responder à alienação que distancia reconhecendo que lehatati, hamartia, peccatu é feitura minha e de minha espécie, e que devo promover a ruptura desse fazer através da ação de expansão do sentido pleno da vida. Ao nível do pensamento, do sentimento, da vontade e da ação -- pois a alienação que distancia é o que não devia estar -- devemos exercer uma ética radical de defesa da vida e de seu sentido, de combate ao estado de alienação na vida de pessoas e comunidades.


Ballestero, ao analisar o caráter radical do pensamento de Nicolas de Cusa, Lutero e Marx, disse que o projeto de liberdade dos três repousam sobre a autonomia e o ato livre, embora concebidos de maneiras diferentes e mesmo antagônicos. Mas que existem, no contexto da obra dos três, analogias de fundo. E essas se referem ao fato de que liberdade poderia significar a abolição da lei, o colapso da determinação exterior, e não o comportamento que se adequou aos limites da ordem. Assim, segundo Ballestero, Cusa, Lutero e Marx olham a liberdade como a destruição da ordenação exterior e anterior ao próprio ato livre. Ou, como disse o apóstolo Paulo:


“Portanto, agora, nenhuma condenação há para os que estão em Cristo Jesus, que não andam segundo a carne, mas segundo o espírito. Porque a lei do Espírito de vida, em Cristo Jesus, me livrou da lei do pecado e da morte. Porquanto, o que era impossível à lei, visto como estava enferma pela carne, Deus, enviando o seu Filho em semelhança da carne do pecado, pelo pecado condenou o pecado na carne, para que a justiça da lei se cumprisse em nós, que não andamos segundo a carne, mas segundo o Espírito. Porque os que são segundo a carne inclinam-se para as coisas da carne; mas os que são segundo o Espírito, para as coisas do Espírito. Porque a inclinação da carne é morte; mas a inclinação do Espírito é vida e paz”. Romanos 8.1-6.


Os ensaios mostram que a revolução teórica empreendida por Cusa e Lutero não foi gratuita, nem produto de um simples ato ideal, mas se enraizou no tecido histórico do movimento de decomposição global da formação social pré-capitalista. Cusa e Lutero clamaram por essa destruição. Sem entrar nos detalhes das mutações vividas no século dezesseis, com a ruptura do equilíbrio cidade/campo, o surgimento das manufaturas e a consolidação do sistema de trabalho assalariado, vemos que a alienação que distancia da condição humana na incipiente sociedade capitalista foi percebida por Cusa e Lutero: a liberdade do sujeito se dá como dor. 


Mas ambos consideraram essa subjetividade liberada pelo início da arrancada capitalista como desequilíbrio. Assim, tanto Cusa quanto Lutero partiram do distanciamento nessa subjetividade alienada do nascente capitalismo, considerando que deveria ser superada para que o sentido da vida florescesse. Aí, então, teríamos o fim da não-essencialidade do sujeito alienado e a inserção deste na totalidade objetiva. Mas isso não poderia acontecer sem a transformação dessa realidade objetiva em realidade plena de vida, que sustenta o humano. Dessa maneira, o sentido da vida constrói num nível superior o universo anteriormente negado.


O jovem Marx, seguindo os passos de Hegel, partiu dessa discussão. Para ele, a religião era a realização imaginária da essência do humano, e que essa essência não tinha realidade alguma. De todas as maneiras, há um ponto de interligação nessa perspectiva: a liberdade como abolição da legalidade, como coincidência do momento subjetivo com o momento objetivo e como responsabilidade maior do ser humano. 


Para Lutero, o humano existe como estrutura ontológica dual. Sua conceituação partiu da ansiedade teórica do século dezesseis, mas traduziu-se em superação da subjetividade alienada. O humano pleno do sentido da vida é senhor de todas as coisas, não está submetido a ninguém e esse senhorio radical é produto da vida em plenitude. Sua liberdade transforma a subjetividade alienada em realidade objetiva. Nesse sentido, o caráter da liberdade do humano pleno do sentido de vida se dá como processo: morre o imediato, o alienado, e tem início a construção de uma segunda natureza. 


A liberdade surge como deslocamento do humano alienado, como distanciamento crítico daquilo que foi naturalmente dado. O primeiro momento da liberdade parte de uma concepção trágica, porque o senhorio num primeiro momento implica em servidão, criando tensão e luta. “É necessário desesperar-se por você mesmo, fazer com que você saia de dentro de você e escape de sua prisão” (Lutero, Les grands écrits, p. 259). Mas superada a tensão, temos a liberdade enquanto sentido pleno de vida, uma dimensão de combate. E retornando ao apóstolo Paulo:


“Vós, porém, não estais na carne, mas no Espírito, se é que o Espírito de Deus habita em vós. Mas, se alguém não tem o Espírito do Cristo, esse tal não é dele. E, se Cristo está em vós, o corpo, na verdade, está morto por causa do pecado, mas o espírito vive por causa da justiça.  E, se o Espírito daquele que dos mortos ressuscitou a Jesus habita em vós, aquele que dos mortos ressuscitou a Cristo também vivificará o vosso corpo mortal, pelo seu Espírito que em vós habita. De maneira que, irmãos, somos devedores, não à carne para viver segundo a carne,  porque, se viverdes segundo a carne, morrereis; mas, se pelo espírito mortificardes as obras do corpo, vivereis. Porque todos os que são guiados pelo Espírito de Deus, esses são filhos de Deus”. Romanos 8.9-14.


Os humanos são chamados a superar a alienação, ter a liberdade que vai além, a liberdade que é construída na expansão do sentido pleno da vida. E, assim como Paulo, estou convencido de que morte ou vida, anjos ou governos, coisas presentes ou futuras, poderes, altura ou profundidade, ou qualquer criatura não poderá me distanciar do amor do Eterno, que está no Novo Ser, o Senhor.


“Que é, pois, o tempo? Se ninguém me pergunta, eu o sei; se desejo explicar a quem o pergunta, não o sei”, afirmou Agostinho, um homem entre um tempo romano que desmoronava e o tempo medieval em formação. O jeito romano de olhar o mundo dava lugar a um novo olhar. E para olhar o mundo e entendê-lo era necessário saber de onde vinha o mal e a existência do pecado.


De Pelágio (c. 360-420) sabemos pouco. Saiu da Grã-Bretanha, onde tinha jogado um papel importante na formação do cristianismo céltico. Como Agostinho também era monge, e muito respeitado na Grã-Bretanha tanto entre o clero como entre os líderes celtas não religiosos. Nunca foi visto como herege ou alguém que não merecesse a confiança de seus colegas. Foi um precursor do humanismo, pois acreditava nas possibilidades da pessoa e via o mal como um produto social.


Em 410, Roma, fragilizada, foi saqueada pelos godos. Os pagãos, nome com que a Igreja designava os não-cristãos, atribuíram a invasão ao fato de os romanos terem abandonado os deuses antigos. De acordo com eles, enquanto fora adorado, Júpiter protegera a cidade; ao ser trocado pelo cristianismo, deixara de fazê-lo.


Assim entre 412 e 427, Agostinho escreveu A Cidade de Deus, um livro cuja base era o pensamento neoplatônico e que exerceria forte influência nos tempos medievais. Nele respondeu a tais acusações, argumentando que coisas piores haviam ocorrido em tempos pré-cristãos. Que os deuses pagãos eram perversos. Ele não negava a existência de entidades como Baco, Netuno e Júpiter, mas os considerava demônios.


Demônios que ordenavam aos homens, por exemplo, que criassem peças teatrais, definidas por Agostinho como “espetáculos da imundície”. Em razão desses deuses, Roma sempre fora perversa e pecaminosa. 


Com o cristianismo, Roma se salvaria. E, se a cidade dos homens fora invadida, pouco importava, já que o objetivo maior era a salvação por meio do amor para atingir a cidade de Deus, a sociedade dos eleitos. A busca central não era a cidadania na sociedade dos homens, mas a salvação no reinado de Deus.


E assim questões do dia-a-dia, políticas, levarão Agostinho a discutir a questão do mal. Nas suas Confissões conta a história de sua descoberta de Deus, ainda na infância. Para ele, o mal habitava a natureza de todos os seres humanos. Fazia parte da essência do ser, depois do pecado de Adão. E, se os bebês são inocentes, não é porque lhes falte o desejo de fazerem o mal, mas por carecerem de força.


Agostinho, como sua geração, estava preocupado com o problema do mal.  E vai procurar a solução para esta questão na construção de uma teologia que combinaria os textos da revelação bíblica com uma leitura hermenêutica neoplatônica. Assim, a partir da questão da essência em Platão, rompe com o pensamento cristão grego e oriental, que norteava entre outros o monge britânico Pelágio e a igreja cristã celta.


As idéias de Pelágio e da igreja oriental não combinavam com o determinismo essencialista da nascente igreja romana. Nessa época Roma combatia teologicamente os donatistas da África do Norte. Para os donatistas a eficácia dos sacramentos dependia do estado espiritual dos sacerdotes que os ministravam. Essa idéia trouxe um problema para a Igreja. Se ela concordasse com tal visão, poria abaixo o edifício cerimonial e litúrgico da Igreja. E se não concordasse significaria que o edifício cerimonial da Igreja dependia do caráter moral dos clérigos e ninguém poderia ter a certeza se as ordenanças e os rituais teriam eficácia espiritual. 


Mas, se a declaração dos donatistas fosse declarada falsa, então os sacramentos poderiam ser administrados eficazmente mesmo por um herético ou pecador. A acusação de heresia conservaria, desta forma, a estrutura da igreja. Naquela época, muitos homens da igreja, inclusive Agostinho, defendiam que a igreja era uma instituição cuja santidade vinha dos sacramentos e não da fé das pessoas. Para Agostinho e para a igreja de Roma os sacramentos produziam santificação e não era a vida pia que produzia homens santos.


Tal discussão levou Agostinho a negar a realidade metafísica do mal. O mal não é um ser, uma pessoa, mas privação de ser, como a escuridão é a ausência de luz. Tal falta estaria presente em todo ser que não seja Deus, enquanto criado e limitado. 


Quanto ao mal físico, que atinge os seres humanos, Agostinho justificou-o através de um argumento estético: o contraste dos seres contribui para a harmonia do conjunto. 


E em relação ao mal moral, Agostinho disse que existe a vontade má que livremente faz o mal. Ela, porém, não é causa eficiente, mas deficiente, sendo o mal não-ser. Este não-ser pode unicamente provir do homem, livre e limitado, e não de Deus, que é puro ser e produz unicamente o ser. 


Assim Agostinho, através do neoplatonismo, explica que o mal moral entrou no mundo humano pelo pecado original. Por isso, a humanidade foi punida com o sofrimento, físico e moral, além perder dos dons que Deus havia dado a Adão. 


Como se vê, para Agostinho, o mal físico teria origem na culpa do próprio ser humano.  Mas este mal foi remediado pela redenção em Cristo, que restituiu à humanidade os dons sobrenaturais e a possibilidade do bem moral. Mas deixou o sofrimento, conseqüência do pecado, como meio de purificação e expiação. 


E a explicação última de tudo isso estaria no fato de que é mais glorioso para Deus tirar o bem do mal, do que não permitir o mal. Assim, a teologia agostiniana considera que o mal é a privação do bem e não o contrário. E que essa privação do bem não tem origem no mal metafísico ou no mal moral e físico. O bem nunca é conseqüência, porque se fosse conseqüência nasceria do mal. Então, para Agostinho, a solução do problema para o mal -- físico e moral (pecado original versus redenção) -- é estético: o contraste entre os seres leva a harmonia do conjunto. Por isso, para ele, na Igreja está a salvação.


A Igreja celta, porém, não viu a discussão dessa maneira. Para Pelágio e seu discípulo Caelestius, a questão girava ao redor da teologia do livre arbítrio. Não concordava, com a idéia essencialista defendida por Agostinho, que até aquele momento não era majoritária, de um pecado original que degenerou a natureza da humanidade. Numa leitura existencial-fenomenológica do problema do mal, simplesmente revolucionária para sua época, defendeu que eram os atos e as ações que levavam o ser humano a herdar o inferno. E discordou de Agostinho, quando este afirmou que o ser humano só poderia ganhar a salvação através da igreja.


Considerou a doutrina do pecado original sem base neotestamentária e afirmou que todos são concebidos sem o mal moral e que diante dos delitos e pecados são salvos pela graça de Deus, que não merecemos, que nos é entregue através de Jesus Cristo.


Até aquele momento, a visão de Pelágio e seus seguidores traduziam a doutrina histórica do livre arbítrio humano e a da maldade socialmente presente no mundo. Tal visão levou Pelágio a entrar em choque com seu maior opositor, Agostinho de Tagasta. 


Mas, as posições de Pelágio não eram a única fonte de seus problemas com a igreja. Quando ela visitou Roma, em torno de 380, o que viu e ouviu estava em oposição com o rigoroso asceticismo praticado por ele e pelos monges britânicos. Ficou chocado com a pompa e o luxo da hierarquia da igreja romana. Responsabilizou a lassidão moral do Papado, mas obteve como resposta a partir de citação das Confissões de Agostinho, que Deus em sua vontade determina uns para o luxo e outros para a abstinência. Pelágio atacou este ensino, afirmando que a lei moral impera sobre toda a terra.


Pelágio manteve sua vida de asceta. Pregou a natureza moral boa do ser humano e sua responsabilidade para escolher o asceticismo cristão como forma de avançar espiritualmente. Apesar de viver na Irlanda, ganhou inimigos e ficou sob os ataques de Agostinho. 


Ao redor de 412, Pelágio foi para a Palestina, onde em 415 compareceu diante do Sínodo de Jerusalém acusado de heresia. Para defender-se dos ataques de Agostinho e de Jerônimo, escreveu Arbitrio de libero (Na vontade livre), em 416, que ao invés de melhorar a situação, levou-o a ser condenado em dois conselhos africanos. 


Ele e Caelestius foram propostos à condenação e excomunhão pelo papa Inocente. Mas o sucessor de Inocente, Zosimus declarou Pelágio inocente em sua Fidei de libellus (Indicação breve da fé), mas depois reconsiderou, quando nova investigação foi proposta pelo concílio de Cartago (397-419). Zosimus confirmou as acusações e Pelágio foi condenado. A partir dessa data, mas nada se sabe dele.


No entanto, Pelágio é lembrado como aquele que teologicamente tentou livrar a humanidade da culpa de Adão. Seus seguidores fazem questão de mostrar que ele foi um dos primeiros dissidentes da igreja católica romana em construção. 


O individualismo áspero do monge celta, sua convicção de que cada pessoa está livre para escolher entre o bem e o mal, e sua insistência de que a fé deve ser prática (ora et labora), marcaram a imaginação teológica do final do século 20. E não somente a imaginação da Teologia, mas também da Pedagogia e da Psicologia.


As tensões ao redor da compreensão das idéias de alienação, enquanto inclinação existencial para o mal, e graça, enquanto ação divina para a salvação humana, apontam para duas outras questões: história e liberdade. Essas duas questões formam a base do pensamento de que o ser humano por ser imagem do Eterno é um ser livre e, por extensão, faz história. Livre significa liberdade de julgamento no âmbito da existência. Então, para que as pessoas sejam livres, o Eterno garante a liberdade delas. 


Assim, todos são chamados à comunhão e cada pessoa poderia responder positivamente ou não a esse chamado. Caso o ser humano respondesse positivamente ao chamado viveria o processo de libertação que leva à comunhão plena. A comunhão consistiria, então, em arrependimento, que é volta ao estado de liberdade, mais permanência na escolha. A partir desta resposta, o Eterno opera a salvação do ser humano. Por isso, podemos dizer que a vontade humana abre o caminho da libertação. A partir daí entendemos a graça universal, pois todos os seres humanos poderiam responder positivamente ao chamado à comunhão. Ou seja, a liberdade de julgamento no âmbito da existência leva a pessoa a escolher os caminhos de sua história.


A inclinação para o mal, ou seja, a alienação, faz com que as ações humanas, a partir dos desejos – emoções e sentimentos – levem o ser humano a errar o alvo, leharati em hebraico, hamartáno, em grego, e peccátu, em latim. Dentro da tradição das escrituras hebraico-judaicas, leharati é a violação da lei. Mas o leharati é sempre uma ação do coração e não um estado do ser. Já a alienação, esta sim, é um estado da existência e toda a humanidade se encontra nesse estado de inclinação para fazer o mal, conforme vemos em Gênesis 8.21. Assim, leharati traduz não somente falta moral, mas todas as violações da lei, quer conscientes ou não. E, segundo a tradição judaica, todo ser humano nasce sem leharati, e a culpa de Adão recaiu sobre ele e sua família, mas não se estendeu à espécie humana. Apesar disso todo ser humano é responsável pelo leharati porque todos temos vontade livre, mas natureza alienada e tendemos para o mal. Por isso, o texto citado de Gênesis, acima, diz que o coração humano é mau desde a sua juventude. Mas o Eterno, através de sua misericórdia, possibilita ao ser humano o arrependimento e o perdão. 


A libertação humana é um processo, por isso a pessoa não seria plenamente livre, porque dependeria dela permanecer ou não na opção escolhida. Se ela se mantivesse na escolha seria plenamente livre, se abandonasse a escolha voltaria à alienação. Caso a pessoa livre se alienasse, se não se arrependesse e voltasse à comunhão, seria eternamente alienada.


Dessa maneira, na polaridade alienação versus comunhão dá-se a construção da história, ou seja, as pessoas e as comunidades humanas interagem, por opção ou por omissão, na construção de sua história. O Eterno é soberano porque criou e mantém o universo, sustentando-o na universalidade do Espírito. A soberania especial estaria somente sobre a comunidade que permanece na escolha. As outras comunidades estariam fora desta soberania especial, da graça que gera comunhão plena, exatamente porque usaram a liberdade para escolher o leharati. 


E quanto maior a alienação, mais o Eterno retrai sua soberania sobre tais pessoas e comunidades, e, consequentemente, a graça que gera comunhão plena. O que explica o mal enquanto feituras pessoal e social. E para que o processo histórico se dê, o Eterno contrai espaço-temporalmente sua justiça executora. 


Por paixão ao ser humano, ele contrai a ação de seu conhecimento. Caso o Eterno, a partir de seu conhecimento, definisse todas as ações livres do ser humano, as pessoas e as sociedades poderiam fazer apenas aquilo que o Eterno por conhecer definisse, sem poderem tomar decisões alienadas, sem poderem se afastar dele. 


Assim, o Eterno dirige o seu fazer, mas interage com as pessoas e as comunidades humanas na produção da história, enquanto obra que nasce das correlações liberdade/ comunhão e liberdade/ alienação. A polaridade alienação versus comunhão não apresenta o ser humano como bom ou mal, mas como ser que age a partir dessa polaridade. Isso fica claro no diálogo que o Eterno tem com Caim, quando diz que ele está inclinado para o mal, mas deve dominá-lo. Essa conversa apresenta um padrão humano, a tendência à alienação. 


Assim podemos ler Gênesis 6.5, 8.21 e Deuteronômio 31.21. É interessante que nenhum desses textos fala do ser humano como essencialmente corrupto, mas inclinado à alienação. A própria palavra yetzer, que vem da raiz yzr, utilizada quando as Escrituras hebraicas falam de inclinação maligna, significa moldar, propor-se. A idéia é que o ser humano é dirigido por suas inclinações, imaginações, sejam elas boas ou más. É yetzer que, combinado ao julgamento livre no âmbito da existência, possibilita o arrependimento. Ou, conforme diz Deuteronômio, o Eterno coloca diante do ser humano a possibilidade do bem e a possibilidade do mal. Os seres humanos terão comunhão se

obedecerem aos mandamentos do Eterno e serão alienados se desobedecerem aos mandamentos do Senhor (11.16-28). 


Assim, só o Eterno é capaz de fazer com que exista a liberdade humana e mantê-la.  Essa graça, oriunda do Eterno e derramada sobre a humanidade, possibilita a construção da história.


Essa leitura da liberdade entregue ao ser humano é importante para a teologia, pois ao dizer que as pessoas e as comunidades humanas podem agir à margem daquilo que o Eterno desejaria para a humanidade, apresenta a violência, a guerra e os genocídios como frutos da opção e ação humanas. E o teólogo pode, então, analisar porque os profetas clamam e apontam às sociedades o caminho do Reino, embora estas possam escolher os seus próprios caminhos. O campo de concretação de Auschwitz, sob o nazismo, e os genocídios contemporâneos, frutos de políticas religiosas fundamentalistas, são, então, passíveis de estudo. Mas a nossa leitura coloca, também, para as comunidades de fé, o clamor profético e o desafio de expandir o Reino.


Em relação à alienação, o ser humano herdou de Adão a inclinação para o mal e, como consequência, a possibilidade crescente de errar o alvo, mas não a culpa. Os seres humanos são alienados porque separaram razão e coração e erram o alvo porque são alienados. E em relação ao processo de libertação, a morte do Cristo abre as portas da comunhão, mas não assegura a libertação plena, pois esta só será definitiva se a pessoa não desistir da corrida.


Um exemplo dessa leitura, que nos interessa para a construção de uma hermenêutica teológica, seria o arrazoado que Pedro, o apóstolo, fez em sua segunda epístola, ao dizer que a graça não tem limites, pois o Eterno não retarda a sua promessa, como alguns afirmam, por julgá-la demorada, mas por ser paciente. Ele não escolheria a danação eterna de pessoas, ao contrário, desejaria que todos chegassem ao arrependimento, ou seja, fizessem o caminho de volta à liberdade e construíssem comunhão. 


Dessa maneira, a graça tem eficácia ilimitada, mas há uma chave para que a função graça seja plenamente exercida. E essa chave é: chegar ao arrependimento. Dessa maneira, o sacrifício do Cristo, que é graça plena e universal, deve ser somado ao arrependimento, produzindo então a libertação. Ou seja, graça plena mais arrependimento é igual à libertação. E o sacrifício do Cristo sem o arrependimento produz justiça. Ou seja, o valor da cruz não seria limitado, mas sim sua aplicação. E a preparação da pessoa e das comunidades humanas para a graça tem o julgamento livre no âmbito da existência como movimento e o Eterno como móvel. 


Essa preparação pode ser pensada como movimento que parte, enquanto universalidade, da liberdade humana em direção à especificidade que tem o Eterno como móvel e implica em graça determinada pelo Eterno, embora não seja proveniente da coação, mas do seu pleno conhecimento, porquanto a intenção do Eterno não pode deixar de ter efeito. 


Por isso, podemos falar da universalidade da graça, presente na comunidade humana, e na especificidade da graça, que infalível segue a boa vontade humana. Mas esse movimento é dialético, pois, quando olhamos da perspectiva do humano, ele parte da universalidade, mas se olharmos da perspectiva divina parte da especificidade. Ou seja, universalidade e especificidade são termos relativos, que se complementam na plenitude da graça. Por isso, liberdade, eleição e graça fazem parte de uma dança permanente, onde cada conceito implica na existência do outro e nenhum tem existência independente, mas criam uma unidade/ diversidade correlacional plena e necessária. 


Todas as pessoas e comunidades humanas realizam suas existências dentro desse processo, fazem parte dele, o que significa dizer que existência, liberdade e graça fazem parte da história humana. O Eterno mobiliza o processo em direção à especificidade, com base no seu conhecimento da fé e da perseverança de cada pessoa e das comunidades humanas, mas conhece e aceita o sentido da universalidade humana. Esta seria a leitura do texto de Pedro, quando disse que no meio do povo surgiram falsos profetas que introduziram doutrinas destruidoras, a ponto de renegarem o Eterno que os resgatou.


Na teologia cristã, teodicéia, termo cunhado por Gottfried Wilhelm Leibniz (1646-1716), designa a doutrina que procura conciliar a bondade e onipotência de Deus com a existência do mal no mundo. E será a partir dessa doutrina que vamos voltar à questão do mal, que focamos antes, biblicamente, como alienação e pecado. A palavra mal vem do latim malu, e refere-se aquilo que é nocivo, prejudicial, que fere, que é um estado mórbido, doença, angústia, sofrimento, e desgraça. Temos, então, o mal moral, contrário ao caráter do Criador, produzido por agentes morais e temos o mal natural, conseqüência dos desequilíbrios da natureza: furacões, terremotos, e as sequências degenerativas, como as epidemias, deformidades congênitas, AIDS, etc.


As cosmovisões se posicionam diante da questão do mal de diferentes maneiras. Para alguns pensadores agnósticos e ateus o mal não existe. Jean-Paul Sartre, por exemplo, embora descartasse o mal, falava do absurdo da existência, e disse que o inferno são os outros. Mas, a posição clássica dos ateísmos humanistas, positivistas, marxistas e mesmo existencialistas relativizam o mal, já que seria uma visão antropocêntrica, sem contudo negá-lo. 


Já para o panteísmo monista, como é o caso do hinduísmo e setores do budismo, tudo é deus, então nada é mal. Para essa cosmovisão, as coisas parecem más, mas isso é ilusão.  


Para o teísmo, o mal é uma realidade. Mas o teísmo tem muitas leituras. Assim, para as correntes dualistas, existem duas forças opostas em equilíbrio, o bem e o mal. Para as correntes teístas finitistas, que negam atributos da divindade, Deus pode ser bom, mas não onipotente. Essa é a cosmovisão de setores do judaismo contemporâneo. O problema dessa leitura é que apresenta um Deus com limitações, que não controla o universo, ao contrário do que diz Paulo – “nele, digo, no qual fomos também feitos herança, predestinados segundo o propósito daquele que faz todas as coisas conforme o conselho da sua vontade” (Ef 1.11). Outra afirmação do teísmo finitista é de que Deus pode ser onipotente, mas não é lá muito bom. Essa cosmovisão foi defendida por John Stuart Mill e R. Roth. O problema aqui é que esse Deus de Mill e Roth aparentemente não é o mesmo de quem Tiago diz – “toda boa dádiva e todo dom perfeito são lá do alto, descendo do Pai das luzes, em quem não pode existir variação ou sombra de mudança” (Tg 1.17). Mas há ainda outras leituras teístas, como a de Irineu e J. Hick que acreditavam que Deus criou o universo como lugar de provação e aperfeiçoamento. Aqui também temos um problema: é que o conceito de resgate do ser humano diante do pecado deixa de ter significado, pois Deus seria o responsável pela trágica condição do mundo. O que não está de acordo com a afirmação de Gênesis (1.31)  – “e viu Deus tudo quanto fizera, e eis que era muito bom. Houve tarde e manhã, o sexto dia” 


Ora, em Gn 1.31; 1Tm 4.4; Ez 28.12-16 vemos que o universo, enquanto construção dinâmica, é bom no sentido teleológico, tem as qualidades adequadas à sua natureza ou função, e que Deus fez seres livres que tinham e têm opção de escolha: “ele nos gerou pela palavra da verdade, para que fôssemos como que primícias das suas criaturas” (Tg 1.18). A impossibilidade de escolha diante do bem e do mal implicaria na remoção do livre arbítrio. Hc 1.13; Tg 1.13; IJo1.5; Is 6.3; At 17.31; 2Tm 2.13; Tito 1.2; Ap 4.8.


Dessa maneira, o mal tem origem no exercício da escolha de seres livres (Ez 28.12-17; Is 14.12-15; Jo 8.44; Ap 12.9; Mt 13.19; Ef 6.16, Ijo 2.13s; 3.12; 5.18) e de humanos (Gn 3.1-20; Rm 5.12-19). A liberdade de escolha era e é boa, enquanto liberdade dinâmica e progressiva, pois reflete a própria imagem do Deus criador. Mas, na existência está a permanente possibilidade de degradação do bom, do livre arbítrio, mas não pela execução do mal, pois o mal moral e o mal natural são fruto do processo de deslocamento da imagem de Deus: o que teologicamente chamamos de mau encontro, conceito antropológico criado por La Boétie e mais tarde utilizado por Pierre Clastres, que usamos como categoria que traduz as disfunções da imago Dei na espécie humana -- alienação espiritual (Gn 3.8-11, ICo 2.14), alienação psicossomática (Gn 3.3, 4, 16, 19, Jó 14.1-2), alienação sociológica (Gn 3.12, 16-17; Gn 4) e alienação antropo-ecológica (Gn 3.17-19; 9.12). Assim, o ser humano está alienado, separado, em estado de pecado em relação a Deus, a si mesmo, aos outros homens, à natureza, e esta consigo mesma.


Parte da ciência no século XX apresentou-se como materialista. É bom lembrar que antes, cientistas como Galileu, Francis Bacon, Isaac Newton, B. Pascal, M. Faraday e outros não se posicionavam como ateus. Albert Einstein, já no século XX, afirmou: “Deus nunca joga dados com o Universo”. Ao negar o ação criadora de um Deus infinito e pessoal, o ateísmo retira a base para qualquer significado moral no universo, e com isso o ser humano deixa de ter sentido existencial.


Por isso, nos remetemos aqui à teologia da criação e vamos analisar, primeiramente, a questão do termo dia, yom, em Gênesis 1:1-2.3. A raiz de yom aparece 2.355 vezes no texto massorético e pode exprimir um instante de tempo (Gn 3.5); um período de luz (Gn 1.14,16,18); um período de 24 horas; uma época; um período geral e indefinido (Gn. 2:4, sete dias; 4:3, ao cabo de dias; 29:14, um mês inteiro; 41:1, ano; Amós 5:18, o dia do Eterno. Não temos um conceito único para yom. Não há uma posição unânime na igreja. Agostinho considerou que o tempo surge com o universo. E Tomás de Aquino disse que o tempo é uma medida humana.


Mas tempo nos remete a outro conceito o de caos. E aí vem a pergunta: Deus criou o caos? Na leitura tradicional, tohu significa apenas sem forma, caos; e bohu vazia, desolada. Mas temos outros termos que nos levam a idéia de caos: trevas (Gn.1:2,4, 5); abismo (Gn.1:2); águas (Gn.1:2,6-10,21). Mas na leitura tradicional o caos reflete apenas uma situação sem ordem, é plenamente histórico e faz parte da criação original.


Mas temos outras teorias, como as da catástrofe: (a) teoria da criação a partir do caos. Nela, Gn.1:1 é um resumo do capítulo inteiro (1:2-2:3). Aqui a conjunção vê, em hebraico, traduz seu sentido mais comum “e”. E céu e terra significam o universo organizado (Gn.2:4, 5:1; 9:32). Essa seria a primeira criação que aparece em Hb.11:3; Cl.1:16,17; Jo.1:1-3; e Rm.4:17. E (b) teoria da brecha, onde Gn.1:1 é criação original e a conjunção vê que inicia 1:2 deve ser traduzida como porém, simbolizando um lapso de tempo desconhecido, em que houve uma catástrofe entre os dois períodos. Donde, Gn. 1:3-21 é uma recriação da terra.


A questão da construção do mundo é fundamental para o estudo do fazer bem e do fazer mal, pois posicionam bem e mal em condições e momentos diferentes, conforme a leitura que se faça de Gênesis. De todas as maneiras, a relação criação versus bem e mal sublinha a constante existente que nasce da liberdade humana diante da realidade. O ser humano pode usar a liberdade para retribuir o seu amor ao Criador, oferecendo-se a ele em adoração e serviço, mas no dom da liberdade está contida outra possibilidade, a de decidir fazer-se alvo de seu amor-próprio. A alienação consiste nisso, na decisão do ser humano de fazer um caminho solo. Essa deslocamento leva ao abuso da dignidade e à distorção da aliança de ser imagem de Deus, colocando-se como demiurgo, como móvel de querer. Ou como disse La Boétie, “que mau encontro foi esse que pode desnaturar tanto o ser humano, o único nascido de verdade para viver francamente, e fazê-lo perder a lembrança de seu primeiro ser e o desejo de retomá-lo?”  E Clastres, analisando o texto desse libertário do século XVI, que influenciou o pensamento huguenote francês, afirma: 


“Mau encontro: acidente trágico, azar inaugural cujos efeitos não cessam de ampliar-se, a tal ponto que é abolida a memória do antes, a tal ponto que o amor da servidão substituiu-se ao desejo de liberdade. O que diz La Boétie? Mais do que qualquer outro clarividente, afirma inicialmente que essa passagem da liberdade à servidão deu-se sem necessidade, afirma acidental – e, desde então, que trabalho pensar o impensável mau encontro!”.


Antropologicamente, mau encontro é descrito como enfermidade, vício ou corrupção da liberdade do ser humano por ele próprio que, por essa corrupção, se coloca em estado de servidão voluntária. Teologicamente, definimos como a opção do ser humano de não mais confiar a Deus sua vida, mas deixar-se dominar por suas próprias paixões. O entendimento do mau encontro enquanto rebelião forma o pilar da antropologia evangélica, já que o problema do mau encontro passa a estar ligado à liberdade do ser humano e porque essa liberdade é uma expressão da imago Dei. Infelizmente, a ciência moderna esqueceu que o mau encontro e a degradação da liberdade humana, assim como a ativação do ser pessoal do humano num sentido contrário à vontade de seu Criador, introduziram a desordem no relacionamento de todo o universo de Deus.


O distanciamento do ser humano de Deus teve como conseqüência o entorpecimento da responsabilidade e da materialidade do mundo, dando à morte poder sobre o humano. Criou distorção na primitiva relação de equilíbrio da imago Dei e inverteu a relação entre espírito, alma e corpo, gerando conflitos que não remontam à estrutura original do ser humano, mas estão na base do afastamento do ser humano em relação a Deus. O distanciamento do ser humano, que entorpece sua liberdade, nos leva à compreensão do Cristo como figura histórica que representa o penhor de redenção do ser humano, conforme João 1.4. Assim, dois elementos fazem parte da compreensão da encarnação: o primeiro deles é a absoluta irrepetibilidade do acontecimento; e o segundo é o fato material de que o próprio Deus, como ser humano, como membro de uma família, de uma comunidade, de um tempo, entra na corporabilidade, na materialidade da história da humanidade, criando no meio dela a semente de uma radical transformação de todo o modo de ser do humano, abrangendo todas as esferas da natureza humana, material, psíquica e espiritual.


Vejamos como se dá na tradição judaico-cristã essa relação entre liberdade versus mal. No Antigo Testamento temos uma espiral conceitual na trindade aliança, fidelidade e constância, cujo centro epistemológico é a liberdade. No Novo Testamento o vértice é o conceito de destino.


Paralelamente ao pensamento hebraico, a cultura grega apresentará uma leitura diferente do conceito de destino, que traduzia a maneira de pensar e viver do helenismo. Na sua época, por razões apologéticas, o apóstolo Paulo apresentará um conceito de destino que resgata e transcende o conceito veterotestamentário de aliança. Entre os gregos, a religião e o culto de mistérios traduziam uma luta contra o destino, numa tentativa de colocar-se acima dele. A origem dos cultos de mistérios não pode ser entendida quando os vemos apenas como mitos. Para o ser humano helênico a luta com o destino era inevitável porque o destino tinha qualidades demoníacas. Era um poder sagrado e destrutivo. Envolvia o ser humano numa culpa objetiva. Os cultos de mistério, dessa forma, ofereciam uma purificação das mãos de deuses que manipulando o destino, excluía do ser humano qualquer possibilidade de liberdade. Assim, também a filosofia helênica, através do conhecimento, procurava elevar o ser humano à transcendência, despojando-o dos objetivos e formas da vida imediata, para lançá-lo através da abstração em direção ao ser puro. O mundo helênico era um mundo de culpa objetiva e castigo trágico e m profundo pessimismo atravessava todo o conhecimento, desde Anaximandro, passando por Pitágoras, Demócrito, Sócrates, Platão e Aristóteles.


Apesar dessa visão trágica, os gregos eram apaixonados pela vida e é essa dicotomia que dará riqueza a esta que será uma das mais expressivas culturas da humanidade. Mas, em última instância, a luta do filósofo permaneceu inalterada em todo o helenismo: superar o destino. E isso foi tentado através do domínio do pensamento, como forma de elevar-se acima da existência, já que no campo da ação e da transformação da existência é impossível superar o destino. No entanto, nunca essa meta foi alcançada. Possibilidade e necessidade foram conceitos chaves nas discussões do helenismo pós-platônico. O medo de demônios obscureceu o espírito helênico. O epicurismo tentou, em vão, libertar seus seguidores do medo, mas ao definir o conceito de possibilidade absoluta [ou azar], abriu o espaço para o medo em sua argumentação filosófica.


Dessa maneira, a filosofia grega caminhou para ceticismo, já que a busca de uma certeza transcendente para a existência humana se mostrou nula. Ao mesmo tempo, enquanto força sobre-humana do destino, as nações eram submetidas ao poderio romano. Diante desse destino trágico, o mundo helênico tinha necessidade da revelação. Ameaçado por um destino demoníaco, o mundo helênico ansiava por um destino salvador, necessitava de graça.


Cristo é a vitória sobre a idéia de que a matéria é força que resiste a Deus e o vence. Nesse sentido, o cristianismo traduz a compreensão de que o mundo é uma criação divina e de que Cristo é a vitória da perfeição do novo ser em todos seus aspectos sobre o medo trágico e a matéria que resiste, hostil a Deus. É a negação radical do caráter demoníaco da existência em si. Dá a existência um valor essencialmente positivo e valoriza os acontecimentos da ordem temporal. Em Cristo, ao contrário do que pensava Anaximandro, a ordem do tempo não leva apenas ao transitório e perecível, mas também à possibilidade de algo totalmente novo, um propósito e um fim que dá pleno significado à vida humana.


No cristianismo o tempo triunfa sobre o espaço. O caráter irreversível do tempo bom [cairos] substitui o tempo cíclico, transitório e perecível do pensamento helênico. A partir desse momento, destino outorga graça, que traz salvação no tempo e na história. O mundo helênico e sua interpretação da vida estão superados e com eles, a filosofia, a religião e os cultos de mistério.


Antes, a filosofia buscava desesperadamente a revelação, agora a revelação apodera-se da filosofia dando origem à teologia. Assim, a teologia jogou fora o destino demoníaco e, por extensão, a metafísica helenística e se apropriou de suas formas lógicas e de seus conteúdos empíricos. O transitório e perecível da filosofia helenística não teve importância na formação do pensamento ocidental, mas sim a idéia da criação divina do mundo e a fé numa providência divina, através da salvação que se constrói historicamente e acontece num tempo bom. E isso já não é helenismo, mas antropologia teológica cristã.    


Mas voltemos um pouco atrás, para entendermos esse processo. Dentro da visão paulina, que traduz o pensamento cristão palestino, destino, no sentido de que os limites estão dados de antemão, é a lei transcendente na qual está imbricado o conceito de liberdade. Assim, destino também implica numa trindade conceitual: (1) o destino está sujeito à liberdade; (2) destino significa que a liberdade também está sujeita à lei; (3) destino significa que liberdade e lei são interdependentes e complementares.


Analisando o conceito cristão palestino de destino, exposto por Paulo (Romanos 8.31-39; e 9), podemos dizer que a liberdade humana está ligada às leis universais, de tal forma que liberdade e leis se encontram intrinsecamente entrelaçadas. Aqui Paulo trabalha com um conceito judaico, de que lei é imposição de limites, que faz parte da revelação, que se expressa pela primeira vez como criação de Deus. Mas para Paulo, se o mal é uma probabilidade que surge da dialética lei e graça, o julgamento era inerente a tudo na criação, mas também a liberdade.


Assim, a certeza de que o destino é divino e não demoníaco e tem um significado realizador e não destruidor é a peça chave do pensamento paulino, que coloca o Logos acima do destino. Ao fazer isso, Paulo está dizendo que a compreensão do destino não está ao alcance do ser humano, nem pode ser submetido aos processos do pensamento humano. Mas esse Logos eterno se reflete através de nossos pensamentos, embora não exista um ato do pensamento sem a secreta premissa de sua verdade incondicional (Romanos 12.2 e ICoríntios 2.16). Mas a verdade incondicional não está ao nosso alcance. Em nós humanos há sempre um elemento de aventura e risco em cada enunciado da verdade. Mas, mesmo assim, devemos correr este risco, sabendo que este é o único modo que a verdade pode ser revelada a seres finitos e históricos.


Quando mantemos relação com o Logos eterno e deixamos de temer a ameaça do destino demoníaco, aceitamos o lugar que cabe ao destino em nosso pensamento. Podemos reconhecer que desde o princípio esteve submetido ao destino e que o nosso pensamento sempre desejou livrar-se dele, mas nunca conseguiu. Tarefa teológica da maior importância na análise cristã do destino é saber relacionar Logos e cairos. O Logos deve alcançar o cairos. O Logos deve envolver e dominar as leis universais, a plenitude do tempo, a verdade e o destino da existência. A separação entre Logos e existência chegou ao fim. O Logos alcançou a existência, penetrou no tempo e no destino. E isso aconteceu não como algo extrínseco a ele próprio, mas porque é a expressão de seu próprio caráter intrínseco, sua liberdade.


É necessário, porém, entender que tanto a existência como o conhecimento humano estão submetidos ao destino e que o imutável e eterno reino da verdade só é acessível ao conhecimento liberto do destino: a revelação. Dessa maneira, ao contrário do que pensavam os gregos, todo ser humano possui uma potencialidade própria, enquanto ser, para realizar seu destino. Quanto maior a potencialidade do ser – que cresce à medida que é envolvido e dominado pelo Logos – mais profundamente está implicado seu conhecimento no destino.


Nosso destino, que aqui deve ser entendido como missão, é servir ao Logos, num novo cairos, que emerge das crises e desafios de nossos dias. Quanto mais profundamente entendermos nosso destino (no sentido de prokeimai, estar colocado, ser proposto) e o de nossa sociedade, tanto mais livres seremos. Então, nosso trabalho será pleno de força e verdade.


A vontade humana não é neutra e a liberdade humana sempre se dá dentro de uma realidade condicionada. Assim, a liberdade entende-se como relação dialética entre lei e graça. Quando Hegel afirmava que a liberdade é a consciência da necessidade, como fez questão de mostrar Marx, cometia um erro porque descartava a realização da liberdade. É por isso que Marx dirá que liberdade é práxis. Ora, para Marx, práxis é consciência da necessidade mais ação transformadora. Ou seja, em termos teológicos, consciência da lei diante da existência do mal é arrependimento e ação transformadora do Logos produzindo justificação e mudança de vida, graça.


Dentro da visão cristã e exatamente pelo que acabamos de ver, o mal, ao contrário do que pensavam os gnósticos, não é um ser, mas um fazer. Em relação ao imediato é um estado e no que se refere à espécie humana é um domínio. Numa definição teológica, o mal acontece perante aquilo que minha liberdade é desafiada, quando ele, o mal, é chamado à surgir como feitura humana. Nesse sentido, o mal não se apresenta sem agente moral, sem liberdade. Toda vez que realizo minha liberdade a lei está presente, pois o mal é um antítipo da salvação.


Por isso só podemos responder ao mal reconhecendo que o mal é feitura minha e de minha espécie, colocando a ruptura desse domínio nas mãos daquele único que pode fazê-lo, o Logos. A partir daí, ao nível do pensamento, já que é um desafio teológico, o caminho é a reflexão, como aquela que Agostinho fez frente aos gnósticos, quando esses levantarem a satânica pergunta: Por que o mal existe? Transformando assim o mal em coisa e mundo, dando existência e imagem ao mal. Agostinho responde dizendo que a única pergunta que posso fazer é: O que me leva a fazer o mal? E ao nível da vontade e do sentimento, crendo em Deus apesar do mal, pois a Cristologia nos ensina que o Logos também sofreu. E por fim, ao nível da ação, pois o mal é o que não devia estar, devemos ter uma ética de responsabilidade social, de combate a este estado e domínio na vida de meu próximo e da sociedade.


Mil anos depois de Agostinho, a questão do mal continuava em discussão e a teodicéia, ainda em construção, oscilou entre dois imperativos aparentemente excludentes, o da soberania de Deus, (ICr.29:11-14; Sl.139:1-16; Is.45:1-13; 63:16-17; Ef.1:11; Jo.6:44; Rm.9:11-24) e o do livre arbítrio (II Pe.2:1 redenção, IJo.2:2 propiciação, IICo. 5:19; reconciliação, Is. 53:6, Jo.1:29, 3:16-18, 4:42, ITm. 4:10, IIPe.3:9). Mas, no início do século XX, a partir da teologia dialética, passou-se a ver tais imperativos como conjunto ou totalidade. Assim eleição e oferta aberta foram lidos como termos complementares, e a cruz como base da salvação e da condenação, Jo.3:18,36.


Mas vamos analisar a dialética de tais imperativos sob um novo ângulo. Em 1970, Manuel Ballestero publicou em Madri, pela Siglo XXI, La Revolución del Espíritu (Tres pensamientos de libertad), analisando o caráter radical da liberdade no pensamento de três gênios da modernidade: Nicolas de Cusa, Lutero e Marx. Ballestero diz que sua preocupação residiu em analisar o projeto de libertação desses três pensadores, sabendo que o ato livre e a autonomia são concebidos de maneiras diferentes e mesmo antagônicas, embora existam, no contexto da obra dos três, analogias de fundo, “já que neles, em um e outro plano, liberdade significa abolição da lei, colapso da determinação exterior, e não – à maneira conservadora – comportamento que se adequou aos limites da ordem. Liberdade para os pensadores que aqui analisamos significa a destruição de toda ordenação que seja exterior e anterior ao próprio ato livre.”


Os ensaios mostram que a revolução teórica empreendida por Cusa e Lutero não é gratuita, nem produto de um simples ato ideal, mas se enraíza no tecido histórico do movimento de decomposição global da formação social pré-capitalista. Cusa e Lutero clamam por essa destruição. Sem entrar nos detalhes das mutações vividas no século 16, com a ruptura do equilíbrio cidade/campo, o surgimento das manufaturas e consolidação do sistema de trabalho assalariado, vemos que a dimensão negativa da condição humana na incipiente sociedade capitalista será percebida por Cusa e Lutero: a autonomia do sujeito se dá como dor. Mas ambos consideram essa subjetividade liberada pelo início da arrancada capitalista como desequilíbrio. Assim, tanto Cusa quanto Lutero partem da negação dessa subjetividade alienada do nascente capitalismo, considerando que deve ser superada para que o Espírito floresça. Aí, então, teríamos o fim da inessencialidade do sujeito alienado e a inserção deste na totalidade objetiva. Mas isso não pode acontecer sem a transformação dessa realidade objetiva em realidade espiritual, que sustém o ser humano. Dessa maneira, para os dois pensadores, o Espírito constrói num nível superior o universo anteriormente negado.


O jovem Marx, seguindo os passos de Hegel, partirá dessa discussão. Para ele, a religião é a realização imaginária da essência do ser humano, já que essa essência do ser humano não tem realidade alguma. Mas há um ponto de interligação nessa perspectiva, quando vê, assim como Cusa e Lutero, a liberdade como abolição da legalidade, como coincidência do momento subjetivo com o momento objetivo, e como responsabilidade suprema do ser humano. Para entender esse ponto de partida de Marx é bom ler seus manuscritos econômicos e filosóficos, mas também sua Introdução à Crítica da Economia Política (Marx, São Paulo, Abril Cultural, 1982), texto que só foi descoberto em 1902 e publicado por Kautsky em 1903.


 “O cristão é senhor de todas as coisas e não está submetido a ninguém. O cristão é servo em tudo e está submetido a todo mundo” (Lutero, Les grands écrits reformateurs, Paris, Aubier, 1955, p. 225). Livre e não submisso, servo e escravo. Para Lutero, o ser humano existe como estrutura ontológica dual. Sua conceituação traduz a ansiedade teórica do século XVI, mas traduz-se em superação da subjetividade alienada. O cristão é senhor de todas as coisas, não está submetido a ninguém e esse senhorio radical é produto da graça. Sua liberdade é fruto da fé que transforma a subjetividade alienada em realidade objetiva. Nesse sentido, o caráter espiritual da autonomia do cristão se dá como processo. Morre o imediato, o alienado, e tem início a construção de uma segunda natureza. A liberdade surge como deslocamento do ser humano natural, como distanciamento crítico daquilo que foi naturalmente dado. O primeiro momento da liberdade parte de uma concepção trágica, porque o senhorio num primeiro momento implica em servidão, criando tensão e luta... “É necessário desesperar-se por você mesmo, fazer com que você saia de dentro de você e escape de sua prisão” (Lutero, Les grands écrits, p. 259). Mas, superada a tensão, temos a liberdade enquanto espiritualidade, uma dimensão de combate. O ser humano, que em Cristo vive essa metamorfose, tem a liberdade que vai além, a liberdade no Espírito que é fonte de realidade e ação. Assim, o cristão transforma-se em receptáculo da fé, em intencionalidade aberta ao Absoluto.





Verdade. o que é isso?


Aletheia, em grego antigo ἀλήθεια, verdade, no sentido de desvelamento, de a-lethe, é a negação do esquecimento. Para os pensadores pré-socráticos physis, logos e aletheia formavam a base primeira do pensar filosófico. 


Aletheia transcende o humano, por ser uma palavra que se coloca fora do tempo, antes do tempo, como fundamento do tempo. É a palavra da justiça, que envolve a memória, confiança, poder de persuasão e adesão última. 


Os pensadores pré-socráticos não trabalhavam uma oposição rígida entre verdade e falsidade, por isso outros pares de opostos como memória e esquecimento, certo e errado, confiança e engano rompiam esse padrão. 


Aletheia é um conceito aberto, e não uma correspondência de julgamento. É um conceito mítico, que expressa a força da physis enquanto natureza, cosmo. Traduz a verdade dos justos e dos sábios, mas é frágil, sujeita a erro e à fraude -- uma palavra para o léthé. 


Aletheia, assim, para os pensadores pré-socráticos significava fora do lethe, fora do esquecimento, e nos fala da experiência de colocar-se fora de uma situação que a princípio deveria ser esquecida ou deixada de lado. É uma experiência ontológica. Não é apenas uma recurso de linguagem. É um conceito governado pelo lethe. Baseia-se no fato de que é necessário desvelar, trazer à revelação aquilo que estava fora ou colocado no esquecimento. Este é o âmago da expressão entre os pensadores pré-socráticos e poetas como Homero e Hesíodo. 


Desde Platão, em sua Alegoria da caverna, aletheia aparece como o brilho da idéia. Mas, há um pressuposto presente no pensamento de Aristóteles, que vai influenciar todo o pensamento moderno, quando aletheia é entendida enquanto dimensão lógica: uma coisa não pode ser e não ser ao mesmo tempo. Ou seja, aletheia aparece, então, ligada ao princípio da não-contradição. Aletheia passa a traduzir a idéia de que algo realmente não pode ser e não-ser. 


E no pensamento moderno, aletheia ressurge no pensar matemático, em Descartes, e no fenômeno, em Kant. E será entendida como o "intellectus adaequatio". Assim, aletheia passa a ser compreendida na modernidade como uma correspondência entre a idéia e a coisa. Ou seja, quando esta construção do conhecimento é estabelecida a aletheia é atingida. 


Mas será Martin Heidegger quem confrontará a posição aristotélica, ao entender que a lógica fica em suspensão em relação à aletheia do ser, quando se aplica o princípio da contradição em um círculo. 


Martin Heidegger voltou ao significado original da ideia de aletheia, partindo dos pré-socráticos, Parmênides, Heráclito, Anaximandro e também de Homero, o poeta. Para os primeiros pensadores pré-socráticos, três temas -- physis, logos e aletheia -- estão em contato, porque são conceitos fundamentais para se pensar a filosofia. E essa relação deve ser mantida. 


Heidegger põe em xeque o postulado aristotélico, e volta às origens gregas para desconstruir a dimensão lógica do conceito aletheia. Ou seja, retorna à compreensão ontológica de aletheia, que exige deixar de fora do conceito a idéia exclusiva de acordo e retidão de julgamento. E assim, em Heidegger, aletheia volta a ser um conceito aberto, como fora para os pensadores pré-socráticos, em especial para Parmênides. 


Para Platão, a aletheia é um evento, e não levar em conta que o evento ocorreu produz perda de sentido, porque esse esquecimento é perda metafísica de sentido, o que para Heidegger é catástrofe e colapso. 


Aletheia em Platão não é um acontecimento em processo, mas o resultado de um processo. O acontecimento é fato dado. Ou seja, estamos diante da mutação da essência e por extensão do ser. 


Para Heidegger, aletheia caminha pari passo com o bem. E isso está posto a partir de Platão, que na República, apresenta o bem supremo como regulador, é aletheia/bem. Ou seja, Platão vai além dos pré-socráticos Parmênides e Heráclito nas suas construções primeiras de aletheia. E Heidegger seguiu a trilha aberta por Platão. 


Martin Heidegger trabalha aletheia como inauguração do estar e não como um acordo de início. Assim o conceito aletheia remete, a partir de Heidegger, a duas compreensões fundamentais: (1) eficácia: o logos não está separado de sua realização, porque traduz as forças da natureza; (2) intemporalidade: o logos é pronunciado em um tempo que escapa a sucessão de passado, presente e futuro. 


Segundo Heidegger, não podemos afirmar que hoje a aletheia deixou de existir, mas que, como entendeu Emmanuel Levinas, deu-se em relação a ela uma perda de precisão, ou seja, de sentido.





É tempo de reconstruir o Brasil 



A solidariedade é um tema que aquece corações e desafia mentes. Edgar Morin, desde os tempos da Guerra Civil Espanhola, se debruçou sobre tal desafio e sua relação intrínseca com a economia e a política. Hoje vamos pensar, em vôo de pássaro, a reconstrução do Brasil levando em conta o papel da solidariedade. 


Façamos um breve balanço da pandemia, que eu chamo de peste. Em poucos meses transformou-se numa das principais causas de morte no mundo: matou mais de 3 milhões de pessoas em um ano e meio. 


Desde o seu aparecimento, a peste matou 3 milhões de pessoas para 140 milhões de casos registrados, de acordo com levantamento da Universidade Johns Hopkins, de 18 de abril de 2021. Os Estados Unidos são o país mais enlutado com mais de 1/2 milhão de mortos (para 31 milhões de casos). Seguem-se o Brasil com cerca de 400 mil mortos (para 13 milhões de casos) e o México, com 200 mil mortos (para 2 milhões de casos). A Índia está em quarto lugar, com 180 mil mortos (para 14 milhões de casos). 


As pestes são um fenômeno tanto de saúde quanto social. Elas mostram as vulnerabilidades estruturais da sociedade e desafiam o status quo. A pandemia de influenza de 1918 trouxe com suas tragédias grandes mudanças políticas e sociais no mundo: passou-se a ter uma nova visão, positiva, do movimento trabalhista e dos sindicatos, e criaram-se sistemas universais de saúde no correr das décadas seguintes. É verdade que essas mudanças se realizaram de forma diferente de um país para outro. 


Da mesma forma, a pandemia do Covid 19 evidenciou as desigualdades existentes em nossa sociedade, que afeta principalmente as pessoas marginalizadas, tornadas invisíveis ou desumanizadas, como idosos e deficientes físicos. Assim como, também, os milhares de encarcerados em prisões. 


Mas evidenciou também a situação daqueles que vivem em áreas onde a superlotação e a falta de acesso aos recursos são difíceis, como nas comunidades indígenas. Seus efeitos são modulados por local de residência, origem étnica, gênero, classe social. Corremos mais risco de sermos infectados com Covid 19 nos bairros onde as comunidades negras residem do que em outras regiões. As mulheres tiveram que absorver a parcela mais importante das chamadas tarefas domésticas, e as crianças de famílias pobres passaram a ter mais dificuldade em recuperar o atraso escolar acumulado. Sem falar nos impactos em escala global, onde a corrida por equipamentos e por vacinas amplia a lacuna do apartheid global. 


“Os múltiplos exemplos de solidariedade que surgiram durante a pandemia revelaram as deficiências desta solidariedade na situação dita “normal”, deficiências causadas pelo próprio desenvolvimento da nossa civilização, que reduz enormemente a solidariedade sob o efeito do individualismo cada vez mais egoísta, juntamente com o efeito de uma compartimentação social cada vez mais fracionada. Na verdade, a solidariedade estava adormecida em cada um e despertou com o infortúnio vivido em comum. Para suprir a carência de poderes públicos, assistimos ao surgimento de um grande número de atos e iniciativas de solidariedade: produção alternativa à falta de máscaras por empresas reconvertidas, roupas artesanais ou domésticas, agrupamentos de produtores locais, entregas ao domicílio gratuitas, ajuda mútua entre vizinhos, alimentação distribuída a moradores de rua, acompanhamento de crianças e contatos mantidos nas piores condições entre professores e alunos”. (Edgar Morin, Necesitamos funerales para despedirnos, y otras lecciones de la pandemia, El País online, 05.11.2020).


Outras medidas importantes foram adotadas por diferentes governos no contexto da peste: benefício de emergência, proibição de despejo de moradias, liberação de presos, planos de regularização de pessoas sem status, abertura de quartos de hotel para acomodação de pessoas na falta de moradia, colaboração internacional em pesquisa científica, planos de ação sobre mudanças climáticas, que estão intrinsecamente ligados às pandemias. Essas intervenções são reformas de pequena escala que estabelecem as bases para novas políticas necessárias. 


Assim, essa pandemia, como a de 1918, nos força a ver nossas fraquezas em meio à dor e às lágrimas. E nos coloca frente a frente com as falhas dos sistemas que construímos. Também nos mostra como corrigi-los. A decisão de fazer isso depende de nós. 


A pandemia apresenta possibilidades para perceber a fragilidade do mundo. Questiona as interações entre meio ambiente e saúde e o papel da biodiversidade em sua propagação. Refletindo uma visão solidária da saúde pública, pode ser o prenúncio de uma democracia da saúde se a política de saúde se tornar um assunto coletivo e não for mais reservado estritamente a políticos e profissionais de saúde. Esta crise nos exorta a ir além do caráter rotineiro da existência para nos aproximar de uma segunda via. É, este é o desafio, devemos buscar uma maneira diferente de viver. E a solidariedade se mostra como caminho, já que durante a pandemia nos tornamos conscientes de nossa dependência e vulnerabilidade. Assim, pandemia versus solidariedade nos confrontam com a questão do significado da vida. 


“A crise também estimulou uma série de iniciativas, que buscaram diferentes remédios para os males que a pandemia causou ou agravou. Textos de intelectuais, cientistas, médicos, depoimentos, sugestões, apelos de artistas solidários e também reflexões e propostas de cidadãos para diagnosticar, prever e expor as bases de uma nova política que visa reformar e até transformar a sociedade.” (Edgar Morin, idem). 


É, de novo afirmo: pandemia versus solidariedade nos confrontam com a questão do significado -- o confinamento é fonte de angústia. O desaparecimento de reuniões, refeições compartilhadas, ritos de amizade fecham as cidades em uma economia doméstica incerta. Porque toda vida foi e está exposta. 


Na medida em que a saúde de cada um depende da saúde de todos, só um serviço público de saúde, equipado com material e pessoal necessários ao seu bom funcionamento, pode permitir-nos evitar outras pestes. Para Morin, “esta crise deve abrir as nossas mentes, há muito confinadas ao imediato”. Porque por trás disso estava a corrida pela rentabilidade, a digitalização da sociedade, a economia just-in-time, a transferência dos serviços públicos para os mercados. Estas fragilidades da sociedade que construímos exigem uma reflexão estratégica sobre nosso futuro comum. 


“A crise em uma sociedade desencadeia dois processos contraditórios. O primeiro estimula a imaginação e a criatividade na busca de novas soluções. A segunda pode ser traduzida em uma tentativa de retornar a uma estabilidade anterior ou de se inscrever para uma salvação providencial. A angústia provocada pela crise motivou a busca e denúncia de um culpado. Esse culpado pode ter cometido erros que causaram a crise, mas também pode ser um culpado imaginário, um bode expiatório que deve ser eliminado” (Morin, idem). 


Estou convencido de que existem possibilidades positivas além desta pandemia, se ela nos permitir tomar consciência de nossas fraquezas e voltarmos a nos concentrar no essencial. No entanto, essa compreensão não pode atender apenas à parte mais precária da população, aquela que paga o preço mais alto pela pandemia. As medidas de contenção amplificam as desigualdades. O fechamento da economia aumenta a precariedade e a transforma em pobreza. É essencial, a curto prazo, organizar a ajuda às famílias e empresas em dificuldade para lidar com o vírus. Mas é fundamental, a médio prazo, mobilizar as lições da crise para lançar as bases de economia e políticas solidárias. Devemos propor o retorno ao estado de bem-estar social. 


A indústria deve ser reconvertida para poder produzir equipamentos médicos e medicamentos, mas também equipamento de triagem, reposição de estoques e produção de máscaras. E, logicamente, devemos manter as medidas de barreiras sanitárias. Mas, para além da emergência sanitária, a injeção de liquidez na economia real, já iniciada em alguns países, tanto a nível nacional como comunitário, deve estar presente na economia solidária, evitando que este capital acabe em mercados especulativos. E atenção, deve ser terminantemente proibida a especulação sobre os títulos da dívida pública. 


Uma política solidária de emprego ativa é absolutamente necessária para fazer face ao desemprego que se fez presente. Provavelmente, estará ligada ao setor de serviços, de suporte, de atendimento e de utilidade social, mas também à produção e comercialização de alimentos. 


Finalmente, a política social solidária deverá ser renovada através da reavaliação dos mínimos sociais, um aumento geral dos salários e das pensões mais baixas. Nesta mudança de paradigma, as autoridades e seus parceiros sociais têm um lugar especial a ocupar. Primeiro porque a crise mostrou que é a nível local que ocorre a mudança. E segundo porque não é possível enfrentar tal crise seguindo uma política de especialistas, que se sentem muito seguros de suas habilidades para ouvir aqueles que estão vivendo na carne a pandemia que se abateu sobre o planeta. 


A pandemia abriu perspectivas e possibilidades solidárias. E se você entender isso, assim como os governos que você eleger, um Brasil solidário será possível. Pense como e em que medida você será necessário nesta nova etapa que se abre.





A religião é o ópio do povo



O ser humano é um ser cheio de espiritualidade, e essa espiritualidade pode se expressar de várias formas, sem precisar de um lugar definido. E a religião ocupa um espaço privilegiado nessa espiritualidade, que nada mais é do que a dimensão da profundidade do espírito humano. Por isso existe a busca humana que nos direciona à espiritualidade, à fé e à religião. Ou seja, o homem é um ser religioso.


Que a religião está presente em todas as ações do espírito humano: na ética, na estética, no conhecimento. Por isso, quando alguém rejeita a religião em nome da ética, da estética, ou da busca do conhecimento, está rejeitando a religião em nome da própria religião, porque ela constitui a substância, o fundamento e a profundidade da vida espiritual do ser humano.


Podemos dizer que espiritualidade é aquela relação da pessoa com a transcendência. Nesse sentido, a espiritualidade é a totalidade da vida. A religião, por sua vez, traduz uma dimensão dessa espiritualidade. Por exemplo, quando multidões assistem a um filme como A paixão de Cristo, de Mel Gibson, e as pessoas são despertadas, cada qual à sua maneira, para sua miserabilidade humana, vemos aí uma expressão da espiritualidade. As experiências humanas com o que é sagrado envolvem escolha, disciplina e prática, e levam o ser humano às experiências religiosas, porque a religião traduz o que é sagrado para a vida do crente. Dessa forma, a espiritualidade sempre será traduzida em religiosidade.


Em relação à realidade brasileira, percebemos mais diversidade confessional do que religiosa. Oitenta e nove por cento dos brasileiros confessam ser cristãos, cuja fé está presente no desejo de justiça social e solidariedade. Diante dessa religiosidade cristã invisível, cientificamente podemos dizer que quase todos os brasileiros são cristãos em alguma medida. Tomemos, como exemplo, a igreja católica, que não pode ser analisada como una, pois abriga diferentes manifestações de religiosidade. Além dessa pluralidade católica, há centenas de igrejas evangélicas que incluem as históricas, as pentecostais, as neopentecostais e as importações mais recentes, produtos da globalização.


A religião é um fator de agregação e de desagregação social. Ou seja, pode ser as duas coisas. Talvez seja melhor trabalharmos com um exemplo recente: a posição de setores da igreja evangélica durante os anos da ditadura militar no Brasil. Algumas igrejas, e até denominações, apoiaram o governo militar, a repressão, e tivemos até casos de torturadores evangélicos, membros de igrejas importantes. Desagregamos quando nos ligamos à corrupção, ao clientelismo e às benesses. Agregamos quando defendemos a vida humana, seja ela evangélica ou não. Com isso, constatamos que podemos ser uma coisa ou outra.


Seria um erro uniformizar a atuação de evangélicos nesse período, crentes também foram torturados. Mas o certo é que muitos irmãos, em nome da agregação, do fanatismo e de conceitos bíblicos errados, foram cúmplices de torturas e mortes.


Muitas vezes nos perguntamos: em que a fé cristã ajudou a melhorar o mundo?Para entendermos o papel do cristianismo, é necessário, antes, compreendermos que Deus é o Deus do tempo e da história. Isso significa, em primeiro lugar, que Ele é o Deus que atua na história visando uma meta final. Com o cristianismo monoteísta e a sua mensagem o círculo trágico da sucessão dos deuses do politeísmo, com poderes ilimitados e injustos sobre os povos, foi superado. Em Cristo, salva-se o Universo. Vivemos a plenitude da história e a história alcançará, no reino universal de Deus, o reinado da justiça e da paz. Esta é a mensagem cristã para as nações.


Mas, é bom não esquecer, a religião sempre teve, e continuará tendo, um papel político: a defesa da justiça. Todas as pessoas compreendem a necessidade de justiça e a política, com base no poder, cumpre uma função legítima quando serve às reivindicações da justiça. Às vezes, infelizmente, as religiões se perdem, caem na espiritualidade negativa, ao negarem a diferença, e se tornam instrumentos da guerra e da morte. Não estamos isentos disso. Ao contrário, vemos isso no fundamentalismo islâmico e no fundamentalismo evangélico.


Para entendermos a relação entre religião e Estado, vale a pena nos reportarmos a uma entrevista do filósofo Hans Georg Gadamer, concedida em 1999, às vésperas de completar cem anos de idade. Na ocasião, ele disse que “o respeito pelas outras religiões é um bem que pode nos salvar da catástrofe, mas o caminho para a salvação tem inimigos dentro e fora da Igreja...”. Em outras palavras, estava querendo dizer que devido a muitos países possuírem tecnologias capazes de destruir a vida sobre o planeta, o diálogo franco entre as religiões é indispensável. Ainda segundo esse filósofo luterano, o problema para isso é que as confissões religiosas são muito diferentes e é difícil encontrar uma linguagem comum. Até para os diferentes ramos do cristianismo é difícil o entendimento.


Talvez devessem partir daquilo que todas as culturas e religiões têm em comum. E segundo Gadamer, esse tema unificador são os direitos humanos. Neste sentido, a questão não é tanto a discussão sobre a possibilidade de manutenção de Estados laicos, mas a construção de um diálogo inter-religioso que possibilite a construção da paz mundial. E isso só será possível quando os líderes religiosos de diferentes pontos de vista e credos não impedirem a construção de princípios comuns de defesa da vida humana.



Assim, não é possível falar de pluralismo religioso sem falar de poder, fica uma questão: amor e poder são compatíveis? As igrejas, como qualquer outra ordem social instituída, têm uma existência objetiva que remete à prática do serviço ao próximo. Para isso, não podemos deixar as igrejas (confissões e denominações), se tornem totalitárias, ou seja, mesmo como Igreja de Cristo não podemos negar os limites de nosso poder. E esse limite é o amor. Dessa forma poderemos conviver pacificamente com outras religiões e seguir o caminho da justiça.


Karl Barth negava a necessidade da apologética. Dizia que Deus não tem necessidade de que o defendam. Já Paul Tillich entendia a teologia com apologética. Concordo com Tillich, mas defendo uma apologética do amor. Entendo que a apologética só tem sentido se antes houver testemunho. Por isso, quando falo de apologética do amor estou resgatando Karl Barth, que só entendia vida cristã na plenitude do Espírito. Aí está a chave da questão: sem plenitude do Espírito não há vida cristã, nem testemunho, e, logicamente, a apologética que sair daí não terá amor. Antes, será uma arma de guerra: conduzirá à morte.






Somos bichos? 



Até que ponto o comportamento humano é tão diferente do comportamento dos animais? Logicamente, responder a esta pergunta nos leva a discutir se de fato há liberdade e responsabilidade no comportamento humano. Se voltarmos, por exemplo, a Baruch Spinoza o comportamento humano deve ser descrito em termos de causas mecanicistas, como os demais fenômenos da natureza. Spinoza dedica ao problema moral e à sua análise os livros III, IV e V da Ethica. No livro III faz uma história natural das paixões, isto é, analisa as paixões teoricamente e cientificamente, e não desde um ponto de vista moral. 


O filósofo deve humanas actiones non ridere, non lugere, neque detestari, sed intelligere; assim se exprime Spinoza no proêmio ao II livro da Ethica. Tal atitude científica, em Spinoza, é favorecida pela concepção determinista da realidade, em virtude da qual o mecanismo das paixões humanas é tão necessário como o mecanismo físico-matemático, e as paixões devem ser tratadas com a mesma serena indiferença que as linhas e superfícies das figuras geométricas. E bom passa a ser apenas uma palavra para descrever coisas que nos dão prazer e mau coisas que nos causam dor. Na verdade, foi o marquês de Sade (1740-1814), antes de Nietzsche, a dizer que o que move a ação do ser humano é o bom e o ruim. E o bom, para Sade, é tudo o que causa prazer ao indivíduo, ao passo que o ruim não é o que causa desprazer, mas antes o que vai contra à Natureza. Por isso, podemos chegar a Bataille partindo de Spinoza e passando por Sade, para quem a essência do bom é uma inversão de valores, que visa transformar o mundo em outro que se acredita melhor. 


Talvez seja necessário partir daí, da experiência marcada pelo prazer. O prazer de viver. Tal leitura procura superar a acentuação de uma teologia da alienação, com a consequente culpa infindável, que perpassa a tradição cristã, no mínimo, pós-agostiniana. Aliás, a tradição cristã traduz este tropeço, uma vez que em sua metanarrativa fundante pesa a sombra de um instrumento de tortura, a cruz. Mas sem negar a dor e o mal, talvez seja possível, mesmo no cristianismo, recuperar o prazer de viver. Ou, como disse Gonzaguinha, "viver e não ter a vergonha de ser feliz. Cantar e cantar a beleza de ser um eterno aprendiz. Eu sei que a vida devia ser bem melhor e será. Mas isso não impede que eu repita: é bonita, é bonita e é bonita". O que é o que é, Gonzaguinha. 


Assim, prazer, do latim placere, traduz a idéia de emoção agradável que resulta da atividade satisfeita, inclusive de gozo sensual, mas por oposição nos lembra dor e aflição. Nesse sentido, costumamos chamar aquele prazer que envolve a sexualidade de erotismo, já que aí está implícita a idéia de amor sensual. Por isso, erotismo pode ser considerado a indução ou tentativa de indução de sentimentos, mediante sugestão, simbólica ou alusiva, da questão sexual, o que nos leva ao prazer erótico. João Ubaldo Ribeiro, em entrevista ao jornal português Diário de Notícias, de 22/1/2000, conta que uma cadeia de supermercados portuguesa recusou-se a vender seu livro, A Casa dos Budas Ditosos, invocando o fato de esta ser pornográfica. Para o escritor tal atitude traduz o fato de que na cultura cristã, “há um sentimento de culpa ligado ao prazer, que tem marcado o pensamento ocidental. A ponto de Epicuro (...) passar a ser olhado com uma certa reserva, por ser o filósofo do prazer. (...) Numa sociedade que suspeita do prazer. É comum nós, cristãos, ou pelo menos de formação cristã e católica, sentirmo-nos desconfiados no momento em que estamos felizes”. 


Georges Bataille, 1897-1962, nasceu em Billon, Puy-de-Dôme, França. Filósofo e escritor francês, ficou conhecido como o metafísico do mal. Sua obra está marcada por três experiências centrais: a experiência cristã de sua formação católica e jesuítica, a experiência estética no âmbito do surrealismo e a experiência política de esquerda. Escreveu sobre sexo, morte, degradação e as potencialidades do prazer. 


Considerava que o objetivo de todo intelectual, artista e teólogo, deveria ser a aniquilação da racionalidade em um ato violento, transcendental de comunhão. Bataille cursou teologia, com a intenção de ser padre, participou do movimento surrealista, mas acabou por se dedicar à sociologia, religião e literatura. Fundou e editou jornais. Foi o primeiro a publicar pensadores como Barthes, Foucault e Derrida. Casou-se duas vezes. Primeiro com Sylvia, que depois de divorciar-se de Bataille casou-se com o psicanalista Jacques Lacan. Em 1946, Bataille casa-se com a princesa Diane Kotchoubey de Beauharnais, filha do príncipe Eugene Kotchoubey de Beauharnais e Helen Pearce. Georges e Diane tiveram uma filha, Julie Bataille, que nasceu em 1949. 


Uma de suas obras mais polêmicas é a Histoire de l’oeil (1928), que foi filmada, e que influenciou, entre outros, a filmografia do diretor japonês Nagisa Oshima (Império dos Sentidos) e a produção do cantor pop islandês Björk Guödmundsdóttir. Outras obras importantes são Le bleu du ciel (1945), L’abbé (1950). No campo da religião produziu um clássico chamado O Erotismo. Sua bibliografia é muito vasta e influenciou alguns dos principais pensadores modernos, que não lhe poupam elogios, como Jürgen Habermas, Barthes, Foucault e Derrida. Um ano antes de sua morte, em 1961, Pablo Picasso, Max Ernst e Juan Miró organizaram um leilão de pinturas para ajudar Bataille a superar suas dificuldades financeiras. Bataille morreu em Paris no dia 8 de julho de 1962. 


Em O Erotismo, Bataille apresenta uma chave de análise dos aspectos fundamentais da natureza humana, o ponto limite entre o natural e o social, o humano e o inumano. Bataille vê a experiência do prazer como aquela que permite ir além de si mesmo, superar a descontinuidade que condena o ser humano. E a partir dessa constatação, se propõe tratar da questão sob três perspectivas, o prazer dos corpos, o prazer dos corações e o prazer sagrado, já que o desafio é substituir o isolamento do ser, a sua descontinuidade, por um sentimento de continuidade profunda. 


Quando, devido à secura das vidas, os ascetas monásticos sentiam que o seu maior inimigo, a sensualidade, os abandonava, eles inventavam outro inimigo. Desta forma, mantinham à frente daqueles que não eram santos a imagem de seres especiais, em luta contra o mal. E, assim, tudo que era natural, as sensações de prazer, a sensualidade era apresentada como má, pecaminosa, fazendo com que as pessoas vivessem num mundo de medo, inseguras e desconfiadas ao lidar com as emoções. Por isso, para Nietzsche, até nos sonhos revelava-se a consciência atormentada dos santos. Essa associação do natural com o pecado, equívoco dos ascetas, dos sacerdotes e dos metafísicos, levou a um resultado pior do que o pretendido. Ao acreditar que o ser homem era mau e pecador por natureza, ao invés de melhorá-lo, considerava Nietzsche, a herança monástica tornava o humano pior. 


Tal mal-estar, oriundo das culpas imaginárias, acumulava impressões pesarosas, fazia com que se acreditasse que o pecado era tamanho que somente uma força sobrenatural poderia arrancá-lo daquele sofrimento, da sensação de sentir-se perdido. Essa vida, que na verdade era morte, criou o clima para que os herdeiros do monasticismo saíssem em busca da salvação, já que induzidos pelo engano, acreditavam estar irremediavelmente extraviada. Por isso, Nietzsche vai constatar que o que provoca a angústia nos cristãos, assim como a redenção pretendida de modo algum "corresponde em absoluto a uma pecaminosidade real, e sim a uma falta imaginária". Os cristãos, considerava Nietzsche, lutam o tempo inteiro contra os fantasmas criados pelos ascetas, pelos sacerdotes e pelos metafísicos. Espectros que ficavam pairando ao redor deles como se fossem assombrações das quais eles jamais conseguiam se livrar. E esses fantasmas assombraram o jovem jesuíta Georges Bataille. 


“Se alguém se confessa angustiado, é preciso mostrar o vazio das suas razões. Ele imagina a solução para seus tormentos: se tivesse mais dinheiro, uma mulher, uma outra vida... a frivolidade da angústia é infinita. Ao invés de ir até a profundeza de sua angústia, o ansioso tagarela, degrada-se e foge. E, no entanto, a angústia era a oportunidade: ele foi escolhido na medida dos seus pressentimentos. Mas que desperdício, se ele se esquiva: sofre da mesma maneira, humilha-se, torna-se estúpido, falso, superficial. A angústia evitada faz de um homem um jesuíta agitado, mas em vão. (...) o homem não é contemplação (ele só possui a paz, fugindo), ele é súplica, guerra, angústia, loucura”. 


Mas se o monasticismo e a cultura do corpo mau eram herança presente, devemos nos remeter também ao pensamento libertário herdado por Georges Bataille. E vamos fazê-lo a partir do Marquês de Sade (Donatien Alphonse François de Sade, 1740-1814) e de Friedrich Nietzsche. 


Sade foi um precursor da moral que ganhou espaço no mundo contemporâneo depois do Maio francês de 1968, ou seja, foi precursor da revolução sexual, incluindo nessa leitura a homossexualidade. Em Os 120 Dias de Sodoma satiriza o domínio do pensamento heterossexual e a condenação à morte de pessoas acusadas de comportamentos desviantes. É interessante, que este romance, onde nobres abusam de crianças raptadas e fechadas num castelo, num clima de violência, com coprofagia, mutilações e assassinatos, foi produzido durante sua prisão, manuscrito em letras miúdas num rolo de papéis colados, e teve sugestões dadas por sua mulher, Renné. Ela, aliás, passou parte da vida a defender o marido nos tribunais e só se separou dele quando o marquês foi libertado da cadeia, por breve intervalo de vida livre depois da Revolução Francesa. 


Clássico maldito, o surrealismo e a psicanálise encamparam a visão da política prazer e dor que a obra de Sade expõe. Vemos sua influência nos filmes de Luis Buñuel, quando em A Idade do Ouro, retrata a saída de Yeshua e dos libertinos do castelo das orgias de Os 120 Dias de Sodoma. De igual modo nas imagens em que a navalha cega o olho da mulher em O Cão Andaluz. Também vemos referências em A Bela da Tarde e em Via Láctea, na cena em que Sade converte uma menina ao ateísmo. A influência de Sade pode ser notada também na obra de Jean Genet, dramaturgo, homossexual, ladrão e presidiário, que retomou muitos dos temas do marquês (O balcão, Os negros e Os biombos). Mas, sem dúvida, a obra que melhor retratou em toda sua crueza o paradoxo do prazer e da dor, ou seja, do erótico em Sade foi Saló ou Os 120 Dias de Sodoma, de Píer Paolo Pasolini. O filme situa-se na Itália fascista, durante a Segunda Guerra Mundial, e apresenta cenas de tortura e degradação de um grupo de adolescentes. 


Bataille, admirador de Sade, entendeu a linguagem erótica como liberdade que viabiliza a negação da transgressão que gera a proibição. Ao realizar tais explorações, como possibilidade de vida, Sade e Bataille fazem a crítica explícita da tradição cristã e expõem os princípios que negam o humano. Eles se impõem à tarefa de ouvir a voz humana dos algozes, considerando o que para a sociedade são as suas não-razões, de forma a construir uma cumplicidade no conhecimento do mal. Nesse sentido, Bataille tem uma explicita admiração por Sade. Em A literatura e o mal, o chama de gênio: 


"À primeira vista, a Revolução marca na literatura francesa uma época pobre. Propõe-se uma importante exceção, mas ela diz respeito a um desconhecido (que teve uma reputação durante a vida, mas deplorável). Se bem que o caso excepcional de Sade não infrinja de modo algum uma opinião que ele logo iria confirmar. É preciso dizer em primeiro lugar que o reconhecimento do gênio, do valor significativo e da beleza literária das obras de Sade é recente: os escritos de Lean Paulhan, de Pierre Klossowski e de Maurice Blanchot o consagraram; é certo que uma manifestação clara, sem insistência, evidente não foi dada antes de uma opinião tão vasta, que suscitou homenagens ruidosas e que se impôs lenta, mas seguramente". Georges Bataille, A literatura e o mal. 


E o peso libertário de Nietzsche não foi menor, mas nessa abordagem queremos partir de uma mulher: Lou Andréas-Salomé (1861-1937). Feminista, no sentido revolucionário da expressão, e psicanalista freudiana, em seu ensaio Reflexões Sobre o Problema do Amor, de 1900, analisou como a feminilidade e o sentimento amoroso encontram eco em nossas experiências contemporâneas. Nesse sentido, a palavra vida, no sentido apaixonante do termo, o de usufruir com vontade e ardor a existência, é central no pensamento de Lou. E no correr dessa vida apaixonada/ apaixonante, ela encantou e foi encantada por personagens exuberantes como os filósofos Paul Rée, Friedrich Nietzsche e o poeta Rainer Maria-Rilke. E o que nos interessa aqui, é que para essa pensadora, nascida em uma abastada família russa como Ljolia von Salomé, na São Petersburgo de 1861, amor era sinônimo de libertação. 


Nietzsche foi o homem que ousou apaixonar-se por Lou e que, depois de um período de amizade, de onde resultaram livros capitais de ambos, teve seu amor recusado. Através das cartas trocadas entre Nietzsche e o objeto de sua paixão, podemos acompanhar o processo de enlouquecimento de um homem que, roído de dor e ciúme, acompanha os desvarios da irmã Elisabeth, que organiza uma campanha de difamação pública contra Lou ao ver o irmão mergulhado num caminho sem volta. 


Lou, Rée e Nietzsche, logo no início dessa criativa amizade, quase viveram juntos, sob o mesmo teto, à maneira de uma santíssima trindade. Não podemos nos esquecer que Paul Rée, também apaixonado por Lou, pôs fim à vida, atormentado pela ausência de Lou. 


Lou casou-se com um homem quinze anos mais velho, Carl Andreas, seu companheiro durante mais de quatro décadas, fidelidade que talvez seja explicada pelo fato de nunca ter imposto a ela as obrigações de esposa no contexto do século 19, e que aparentemente fechou os olhos aos admiradores que Lou colecionou no correr da vida. 


A única paixão de Lou começou em 1897 quando, já com 36 anos, casada com Carl, conheceu o poeta René-Marie Rilke, de 22 anos. Foi uma política fecunda para ambos: Rilke cresceu como poeta e Lou escreveu A humanidade da mulher e Reflexões sobre o problema do amor (1899 e 1900), sob o impacto da intensa experiência vivida. Até a morte de Rilke, em 1928, e muitos anos depois, até a sua própria morte, em fevereiro de 1937, aos 73 anos, Lou faria do poeta a razão de sua existência e afeto. 


Em 1910, Lou escreveu o ensaio O Erotismo, que encontrou ressonância no pensamento de Georges Bataille. No ensaio, propõe aos leitores a necessidade de correlacionar experiência e o conhecimento. Lou Andréas-Salomé colocou-se assim como interlocutora de Nietzsche e, por extensão, de Bataille. 


A religiosidade antiga, para Bataille, extraiu das proibições o espírito da transgressão, enquanto, a religiosidade cristã se opôs ao espírito de transgressão. A visão de bom e mau, prazer e pecado, nos limites do cristianismo está ligada a esta relativa oposição. 


Há no cristianismo um movimento duplo. Nos seus fundamentos o cristianismo quis abrir-se às possibilidades dum amor que era princípio e fim. Quis encontrar em Adonai a continuidade perdida, invocar os delírios rituais para além das violências reguladas, o amor total e sem cálculo dos fiéis. Os homens, transfigurados pela continuidade divina, eram chamados, em Adonai, a amarem-se uns aos outros. 


Assim, o cristianismo jamais abandonou a esperança de levar este mundo de descontinuidade ao reino da continuidade, abraçado pelo amor. O movimento inicial da transgressão derivou no cristianismo na visão duma superação da violência, que foi. transmutada no seu próprio contrário. Há neste sonho algo de sublime e trágico. 


A transgressão é a desordem organizada, ao introduzir num mundo organizado algo que o ultrapassa. Mas essa organização, fundada no trabalho, tem por base a descontinuidade do ser. O mundo organizado do trabalho e o mundo da descontinuidade são o mesmo mundo. Se os utensílios e produtos do trabalho são coisas descontínuas, aquele que se serve do utensílio e fabrica produtos é também um ser descontínuo e a consciência da sua descontinuidade aprofunda-se na utilização e criação de objetos descontínuos. 


E é no mundo descontínuo do trabalho que a morte se revela: já que para quem trabalha a descontinuidade se faz presente, com poder, através da morte. Ela é tragédia elementar que evidencia a inanidade do ser descontinuo. 


Ao reduzir o sagrado, o divino, à pessoa descontínua de um Adonai criador, o cristianismo foi longe e transformou o outro mundo num local onde se prolongavam todas as almas descontínuas. Povoou céus e infernos de multidões condenadas à descontinuidade eterna de cada ser isolado. Eleitos e condenados, anjos e demônios, transformaram-se em fragmentos, para sempre divididos, para sempre distintos uns dos outros, para sempre desligados dessa totalidade do ser à qual era contudo necessário religá-los. 


Assim, o dilema está colocado: como continuar religioso sem perder o prazer? Tal como a proibição criou, na violência organizada das transgressões, o prazer inicial, proibindo a transgressão organizada, o cristianismo aprofundou os graus da perturbação sensual. 


E o prazer se ligou à transgressão. Mas o mal não é a transgressão, é a transgressão condenada. O mal é o pecado. É o pecado de que fala Baudelaire, já que segundo Otto Maria Carpeaux, Baudelaire era espiritualista porque levou às últimas consequências o pecado como condição da alma, ora enfatizando audazmente a dissolução, ora padecendo pelo que a consciência lhe dita. Daí o ser denominado poeta do tormento humano. As narrativas dos shabats, por exemplo, correspondem a uma procura da alienação. Sade negou o mal e o pecado, pois ser arrebatado não é sempre resultado do objeto duma paixão. O que destrói um ser arrebata-o também. O arrebatamento é a ruína de quem antes se colocou os limites do mal. 


Mas teve que introduzir a idéia de irregularidade para transmitir o desencadeamento da crise voluptuosa. Teve de recorrer à blasfêmia. Sentiu que a profanação era inócua, se o blasfemo negava o caráter sagrado do bem, que pretendia macular. A necessidade e a impotência das blasfêmias de Sade são significativas. A Igreja negou o caráter sagrado do prazer, encarado como transgressão. 


Por isso, filósofos e poetas negaram o que a Igreja considerava sagrado. Por isso Nietzsche disse que onde quer que a neurose religiosa tenha aparecido na terra, nós a encontramos ligada a três prescrições dietéticas perigosas: solidão, jejum e abstinência sexual. Nessa negação, a Igreja perdeu em parte o poder religioso de evocar uma presença sagrada: perdeu-o quando o diabo deixou de estar na base duma perturbação fundamental. Ao mesmo tempo, os espíritos livres deixaram de acreditar no mal. Desse modo, encaminharam-se para um estado de coisas em que o prazer, deixando de ser um pecado, deixava de poder encontrar-se na certeza de fazer o mal, o que implica a destruição da sua própria possibilidade. Num mundo profano só haverá mecânica animal. A consciência da alienação pode manter-se, mas só se mantém ligada à consciência de um logro. 


Ultrapassar uma situação não pode significar regressos ao ponto de partida. Há na liberdade a impotência da liberdade, mas nem por isso a liberdade deixa de ser disposição de nós por nós próprios. As ações dos corpos podem, na lucidez, abrir-se, apesar dum empobrecimento, à recordação inconsciente duma metamorfose infindável, cujos aspectos não deixarão de estar disponíveis, afirmou Bataille. 


O prazer dos corações, o prazer mais ardente, ganhará aquilo que o prazer dos corpos tiver perdido, o que nos remete à fêmea do louva-a-Adonai como heroína sadiana. Didier Ottinger, Retrato da fêmea do louva-a-Adonai como heroína sadiana, nos conta que “em maio de 1934, a revista Minotaure traz efetivamente um estudo de Roger Caillois: "La mante religieuse, de la biologie à la psychanalyse", em que o autor fornece aos futuros exegetas do louva-a-Adonai as chaves de sua interpretação sadiana. Um ano mais tarde, o artigo desenvolvido constituirá um capítulo da obra de Caillois, O mito e o homem. 


Se lhe aplicássemos as apreciações típicas de André Breton, o louva-a-Adonai pertenceria sem dúvida alguma à categoria dos obcecados. Caillois nos ensina que o inseto é um matador apenas por lubricidade. Cita o entomólogo Raphael Dubois, de acordo com quem um acridídeo, se decapitado, executa melhor e mais demoradamente os movimentos reflexos e espasmódicos próprios da cópula. Os biólogos F. Goltz e H. Busquet, a partir dessa constatação, se indagam se a fêmea do louva-a-Adonai, ao decapitar o macho antes do acasalamento, não teria por finalidade obter, mediante a ablação dos centros inibidores do cérebro, execução mais prolongada e melhor dos movimentos espasmódicos do coito, de tal forma que, em última análise, fosse o próprio princípio do prazer que lhe ordenasse a morte do amante. 


O prazer nos deixa na solidão. Prazer é aquilo sobre que é difícil falar. Por razões que não são meramente convencionais, o prazer, principalmente o dos corpos, é definido pelo segredo. Não pode ser público. Tal experiência prazerosa situa-se fora da vida de todos os dias. No conjunto da nossa experiência, permanece separada da comunicação que fazemos das nossas emoções. Trata-se de tabu. Evidentemente que nada é completamente tabu, há sempre transgressões. Mas o tabu intervém para que se possa dizer que o prazer, sendo intensa emoção, já que nossa existência está presente sob a forma de linguagem, existe como se não existisse. 


Há em nossos dias uma atenuação deste tabu, mas, apesar de tudo, o prazer ficará sempre como algo de exterior, algo que só é possível sob uma condição: sair para mergulhar na solidão, numa separação do mundo em que estamos. Assim, a experiência prazerosa leva ao silêncio. 


Não sucede a mesma coisa com a santidade. A emoção experimentada na experiência da santidade pode ser expressa no discurso, pode ser objeto dum sermão. A experiência prazerosa, contudo, talvez seja vizinha da santidade. 


Isto não quer dizer que prazer e santidade tenham a mesma natureza. Mas que uma e outra experiência têm uma intensidade extrema. Quando se fala da santidade, fala-se da vida que determina a presença em nós de uma realidade sagrada, de uma realidade que pode nos perturbar completamente. A emoção da santidade e a emoção do prazer, quando traduzem uma intensidade extrema, nos aproximam de outras pessoas e nos afastam delas, nos deixam na solidão. 


A passagem do prazer à santidade tem sentido, afirma Bataille. É a passagem do que é maldito e rejeitado ao que é abençoado e bendito. O prazer é crime solitário, que não salva senão opondo-nos a todos os outros, que não salva senão na euforia de uma ilusão, uma vez que aquilo que no prazer leva ao extremo grau da intensidade atinge-nos ao mesmo tempo com a maldição da solidão. Já a santidade faz sair da solidão, com a condição de aceitar este paradoxo -- felix culpa! -- cujo próximo excesso resgata. 


Só um desvio permite nestas condições regressar aos nossos semelhantes. Este desvio merece sem dúvida o nome de renúncia, uma vez que no cristianismo não podemos simultaneamente operar a transgressão e gozar dela, e só outros podem gozar dela na condenação da solidão. O acordo com os seus semelhantes só é encontrado pelo cristão sob condição de nunca mais gozar daquilo que o liberta, daquilo que nunca é mais do que transgressão, violação das proibições sob as quais repousa a civilização. 


Se seguirmos o caminho indicado pelo cristianismo, considera Bataille, podemos não apenas sair da solidão, mas aceder a uma espécie de equilíbrio, que escapa ao desequilíbrio primeiro e que nos impede de conciliar disciplina e trabalho com a experiência dos extremos. A santidade cristã abre-nos pelo menos a possibilidade de levar até ao fim a experiência desta convulsão final, a morte. Aquele que compreende a importância do prazer apercebe-se que esse valor é o valor da morte. Talvez seja um valor, mas a solidão abafa-o. 


Por isso, para Bataille, o santo vive como se morresse, mas vive a fim de encontrar a vida que é a vida. A santidade é sempre um projeto. Talvez não o seja em essência. A intenção da vida eterna liga-se à santidade como se liga ao seu contrário. Como se, na santidade, só um compromisso permitisse entregar o santo à multidão, entregar o santo a todos os outros: à multidão, ou seja, ao pensamento comum. 


O mais estranho é que possa haver ligação entre a transgressão deliberada e a condição de não se falar dela. Este acordo é encontrado nas religiões arcaicas. O cristianismo inventou um caminho aberto à transgressão que permite se falar da transgressão. Reconhecemos assim que o pensamento, que no cristianismo vai além, tende a negar tudo o que se assemelha à transgressão, a negar tudo o que se assemelha à proibição. 


Na palavra do prazer erótico há uma recusa de viver o tempo que produz desprazer, que leva à angústia. Esse tempo é morto, sacrificado na linguagem do erótico, que substitui a angústia pelo tempo subjetivo: evita assim que a pessoa se torne refém das exigências externas ao se submeter ao desejo do outro. Mas, a morte do tempo que produz desprazer leva à ressurreição, leva a um novo tempo. Por isso, na linguagem do prazer erótico, como a vê Bataille, há libertação porque na sequência gozo, angústia, desejo, o gozo não é mais atemporal, mas temporal. 


Assim, no plano do prazer, temos a palavra do prazer, que é negação da proibição, negação da transgressão que gera a proibição. Aqui, a linguagem do prazer é negação que define o humano em oposição ao animal.





A importância do cristianismo para a práxis social está em que cria paradigmas que reafirmam os valores da democracia e da liberdade e possibilitam o encontro de caminhos que ligam reforma e revolução, alinhavando as conquistas sociais com a criação de uma nova ordem fundada na expansão do espaço público e fim da mercantilização da vida social. 

E isso é possível, porque a relação entre o cristianismo e a práxis social é profunda. Mas o fundamento de origem do cristianismo na formação da consciência brasileira e da práxis social apresenta aproximações e estranhamentos, que não se traduzem em tendência à cisão, mas juízos reveladores da força de origem das utopias. O cristianismo, enquanto visão de mundo é utópico e normativo, age para expandir e renovar o sentido transformador da experiência cristã no seio da sociedade brasileira e da práxis social, e é exatamente esse movimento que leva tanto às aproximações quanto aos estranhamentos. Em sua própria forma de ser o cristianismo trabalha com mediações de valores e daquilo que deve ser. Coloca-se assim na antípoda do realismo político, em particular de suas expressões pragmáticas, de afinidade com os valores liberais de mercado. 


O cristianismo brasileiro, a partir de sua experiência comunitária, distanciou-se do poder de Estado e firmou-se em sua autonomia de origem social e de identidade cultural. Assim, no período republicano, é escassa a experiência de matriz governativa, tendo, principalmente a partir dos anos 1960, optado pela paixão dos humilhados e ofendidos à força imanente dos símbolos de poder. Mas, ao mesmo tempo, essa presença e força faz do cristianismo, através de milhares de igrejas e entidades, o poder de maior experiência frente às expressões da barbárie e opressões. Nas favelas, no sertão nordestino, nos prisões, entre as crianças sem lar, idosos sem abrigo, entre as prostitutas, entre os aviltados, se faz presente a mão fraterna da igreja. 


Tomado nesta perspectiva, o cristianismo não é mera instituição ou poder instituído, nem mesmo programa ou modelo fixado de respostas aos grandes dilemas da política, mas movimento gerador de paradigmas, que possibilitam reflexões sobre os fundamentos da vida na comunidade política. Esses paradigmas propõem conceitos, ordenação de valores, estilos de pensar e fazer a política. 


Há nesses paradigmas questões fundamentais que o diferenciam dos paradigmas liberais e burgueses. A primeira é o modo como define a liberdade, não em sentido negativo, de espaço da ausência de intervenção do Estado. A liberdade para o cristianismo significa não depender de vontade arbitrária, o que aproxima o conceito liberdade da noção de autonomia, embora vá além, transceda. A segunda é que para a burguesia liberal, o Estado mínimo maximiza a liberdade. Mas o cristianismo relaciona liberdade e igualdade. Dentro da tradição burguesa liberal, o desejo de igualdade ameaça à liberdade, produzindo tensões entre as duas metas. E a maneira de enfrentar o problema, para a burguesia liberal, repousa sobre a noção de igualdade de oportunidades diante do mercado. Para o cristianismo é a desigualdade que provoca riscos à liberdade. A terceira questão é o modo como se relaciona o indivíduo e o Estado: a burguesia liberal coloca o acento na dinâmica da sociedade civil, pensada como em oposição ao Estado, em particular em sua dimensão mercantil. Já o cristianismo coloca o acento nas responsabilidades cidadãs, de participação na comunidade política, na formação de uma práxis imprescindível à proteção do corpo político das ameaças à própria liberdade, que não pode ser garantida apenas por boas leis. Esta práxis política comum requer uma comunidade de valores, a noção de bens públicos, uma fundação e uma narrativa da construção de um modo de viver em liberdade, que faz com que os cidadãos sintam-se, apesar das diferenças, parte de uma mesma comunidade política. 


Essa proposta de práxis política se faz solidária com o sofrimento humano e molda a voz cristã com a impaciência do que urge. Assim, falar da influência do cristianismo, em especial da igreja, na consciência pública contemporânea brasileira é trabalhar com as noções de fundamento e de formação. Não é uma situação onde um ser constituído exerce influência sobre a evolução de outro ser. São processos formativos em mútua compenetração. A marcha da questão agrária é um exemplo. Ela surge quase como expressão nordestina nos anos 1950, é matricial aí a presença da Igreja. O Movimento de Educação pela Base (MEB), constituído por redes radiofônicas de alfabetização e formação de sindicatos rurais, foi o fundamento original cristão das Ligas Camponesas. E a ação de Hélder Câmara, da Encíclica Mater et Magistra, de forte tematização do problema rural, e da CPT, a partir dos anos 1970, está na raiz do nascimento do Movimento dos Sem Terra, MST. E, embora date dos anos 1960, a adoção de modelos críticos à noção de catequização, também é matricial o papel do CIMI, criado em 1972, na formação da questão indígena perante a democracia brasileira contemporânea. 


Assim, o cristianismo brasileiro, através de sua leitura libertadora, fez a afirmação da liberdade como emancipação do poder arbitrário, compatível com os ideais de liberdade e igualdade, com acento na participação como fundamento das virtudes da comunidade política. Tal compreensão tem óbvias afinidades com a práxis social. A própria identidade solidária e democrática dos movimentos populares podem ser imaginadas a partir dessa práxis. O solidarismo proposto pela teologia da práxis, que integra o valor da soberania popular, seria, desse ponto de vista, um solidarismo religioso. Como história vivida e em transformação, essa imaginação trouxe para os cristãos, desafiados pelo esforço de transformar o Brasil, um campo possível de experiência e programa. Assim, para a própria construção dos movimentos populares, foi central o papel da igreja na formação de uma práxis dos direitos humanos na moderna democracia brasileira. Esta presença, fundamental nos anos da ditadura militar, através das Comissões de Justiça e Paz ou Comissões de Direitos Humanos, ganhou alento nas duas últimas décadas através da estratégia da particularização dos direitos como demanda de pastorais específicas, como a das crianças, idosos, carcerária, das prostitutas, e das Campanhas da Fraternidade. Não é marginal a presença da Igreja no movimento pela ética na política. Pelo contrário, a primeira lei contra a corrupção eleitoral teve na Igreja progressista sua inspiração através da liderança de Chico Whitaker, vinculado à CNBB. A luta contra a corrupção política faz parte da mensagem da Igreja. 


O PT, partido ligado ao mundo do trabalho, à esquerda solidária e a igreja popular, fez do seu nascimento tardio um enigma aberto à história, ao colocar no centro de sua identidade as relações entre solidarismo e democracia. De fato, esta relação ainda não encontrou uma solução estável, a partir de alguma experiência histórica, na tradição solidária. O desafio lançado aos solidárias ainda não encontrou uma resposta: pela democracia ainda não se chegou ao solidarismo, mas contra lançando-se contra a democracia, o solidarismo traiu seus ideais de emancipação social. 


O caráter tardio do nascimento do PT, o último grande partido de trabalhadores nascido na tradição clássica, explica sua identidade enigmática. No final dos anos 1970, já estava muito avançado o processo de desestalinização da práxis do solidarismo internacional e, por diferentes caminhos e pensamentos, o tema da relação entre solidarismo e democracia, voltava à cena. Houve, nesta práxis, tentativas de de resposta: a trotsquista democrática que defendeu os valores do pluralismo, inclusive para partidos burgueses, e os direitos humanos na democracia solidária; a do grupo francês "Solidarismo ou Barbárie", que desdobrou-se na crítica de Claude Lefort ao totalitarismo e na defesa da democracia como instituição social permanente, a partir dos conflitos, e na postulação de Castoriadis da autonomia como valor fundante; e a eurocomunista, que afirmava a democracia como um valor universal e, portanto, compatível com o solidarismo. 


Mas, ao lado dessas leituras, no Brasil, e mais especificamente no PT, a presença cristã ocupou um lugar central na crítica do stalinismo. Tal pode ser visto, por exemplo, na leitura do caderno "O indivíduo no solidarismo", onde Leandro Konder debate com Lula e Frei Betto. No debate, Lula pergunta sobre o lugar da ambição pessoal em uma concepção solidária da sociedade. Tal questão remete à leitura comunitarista feita por Emmanuel Mounier, na França, e que se desenvolveu em torno à revista "Esprit". Mounier teve importante papel na formação de uma geração de lideranças cristãs no Brasil, a começar por Dom Hélder. Assim, um pensamento cristão, filosófico e político, procurou responder à crise do capitalismo, mas fazendo a crítica do sentido anti-humanista das formas dominantes do comunismo: este personalismo comunitarista de Mounier colocou-se como resposta contundente ao stalinismo. Mounier e cristãos brasileiros posicionaram-se em eqüidistância do capitalismo e do stalinismo. Admitem a propriedade privada como direito, inscrita na afirmação de sua função social, trabalhando com o solidarismo e o princípio objetivo da socialização na sociedade moderna, isto é, a emergência das dimensões coletivas na vida social. Teóricos sociais, como Paul Singer, estudando as formulações da economia solidária se aproximaram desse comunitarismo cristão, retornando a formulações mais antigas, como a de Luís José de Mesquita: 


"Presentemente, o solidarismo não tem uma coesão doutrinal, não constituindo um sistema, não obstante certas características bem próprias, ensaiando, antes, ser uma prática variável para se adaptar aos problemas de cada país e de cada zona do mundo. O fato mais significativo talvez seja a aparição de forças solidárias, em certos países subdesenvolvidos, recusando utilizar os métodos comunistas, mas aceitando a intervenção do Estado e uma planificação para assegurar o desenvolvimento do país e tentar resolver seus problemas. As possibilidades do solidarismo residem em ele se tornar aberto, reconhecendo mais claramente os direitos e os deveres recíprocos da pessoa para a sociedade." 


Assim, o solidarismo defendido pelo PT, que se propõe a compatibilizar as metas de uma nova sociedade com o princípio da soberania dos trabalhadores e do povo, implica em trazer o marxismo para o solo do cristianismo, elevando o seu conceito de público a uma perspectiva anti-burguesa. Neste retorno e nesta função de duas visões anti-liberais há um potencial de experiência histórica, de inovação conceitual e de imaginação de novos futuros possíveis. 


A práxis participativa desenvolvida pelos movimentos populares e o potencial entrevisto nas formas de economia solidária seriam repensadas como formas avançadas de construção do poder e da economia, não estritamente estatal. Estariam se abrindo espaços conceituais e de experiência social para dar a essas inovações um caráter nacional. Assim, por exemplo, as agendas do fórum social mundial ganhariam um sentido de buscar uma simetria de direitos e deveres entre os povos do mundo, diante de um contexto de concentração do poder econômico, militar e geopolítico. 


A práxis cristã do solidarismo seria, assim, uma forma de disputar valores na democrática brasileira com os poderes, saberes e interesses cruzados do liberalismo mercantil e do patrimonialismo. A utopia social se enraizaria, de modo amplo, na tradição histórica da formação cristã brasileira, de negação e superação das heranças da condição colonial, escravocrata, patriarcal e aviltante dos direitos do trabalho. 


Neste encontro promissor entre cristianismo e solidarismo pode-se repensar as relações entre reforma e revolução, questão não resolvida na tradição solidária clássica. O conceito de transição formulado no contexto de avanços democráticos poderia atualizar seu sentido, unindo as conquistas do cotidiano com a noção de uma civilização organizada fora dos parâmetros dominantes do mundo do capital e da opressão. 


As utopias brasileiras não cessaram de interrogar suas origens. Um partido do solidarismo revisita a práxis comunitarista cristã que se faz presente, como uma das forças básicas, de sua proto-formação. Conhecer a si mesmo para conhecer o mundo, transformar-se a si mesmo para transformar o mundo: neste campo da práxis não há derrota definitiva para as linhas de força da emancipação. O cristianismo é, na origem, uma síntese de práxis, como afirma Leonardo Boff. Essa síntese adquiriu no processo da civilização brasileira uma vida própria, uma generosa universalização. Nesta dialética entre povo-Igreja, o Cristo brasileiro é redentor, tem os braços abertos para as utopias da emancipação.





A vida, uma paixão radical


Um dos temas centrais da mídia, hoje, é a violência. Tal fato nos leva a pensar e a viver como se a vida não tivesse a menor importância ou valor. E em nome de doutrinas, políticas e religiões, gentes são transformadas em bombas humanas, assassinos seriais, legais ou não, que espalham a dor, o sofrimento e a morte. Nesse clima de ódio e violência, é importante dizer que a primeira teologia das Escrituras hebraicas, e posteriormente cristãs, construída para o ser humano no bojo da teologia da criação, é a teologia da vida.


O Eterno fez o humano como semelhante, cheio de parecença, para ser como Ele e com Ele, para curtir o mundão criado, fazer sexo, ter filhos, produzir criativamente. E O Eterno contou isso aos humanos e um dia isso foi registrado lá em Bereshit, o livro primeiro das Escrituras. E é interessante que quem registrou a história que ouviu dos antepassados disse que O Eterno curtiu a beça tudo aquilo. Achou genial o que tinha feito, tanto que deu por terminado o seu trabalho e foi descansar.


As histórias se multiplicam. Há histórias que falam da importância da vida nas Escrituras hebraicas, e há histórias sobre a vida e sua singularidade nas tradições de gentes e povos. Na tradição judaica, conta-se que quando os escravos fugiram do Egito com os soldados egípcios correndo atrás deles e já estavam atravessando o Mar Vermelho, anjos resolveram cantar um hino de gratidão a O Eterno, mas o Eterno não permitiu e disse: Eu criei o ser humano, cada um deles é minha criação, como poderei cantar se muitos vão se afogar neste mar? Eis a universalidade da vida: fomos criados por O Eterno, todos somos parecença, quer escravos hebreus ou soldados egípcios. A teologia entende isso: a vida é direito universal porque O Eterno ama a pessoa, todas as pessoas -- foram feitas por Ele e têm o jeitão dele.


Nesse sentido, a partir da teologia da vida podemos dizer que não há diferença entre judeu e grego, cada pessoa ocupa um lugar especial no coração de O Eterno, para Ele é como se todos fôssemos únicos. 


O respeito pela vida de cada um e de todos e a negação do ódio e da violência: direcionam a teologia da vida. Criar e educar pessoas traduz-se em ensinar, em primeiro lugar, que quem destrói uma única vida destrói todas e a própria criação. E quem cuida e salva uma única vida salva o mundo. Cuidar e salvar pessoas é semear a paz para que ela reine entre os seres humanos. Para que ninguém possa dizer: o meu pai é maior do que o teu pai.


Voltando ao primeiro livro das Escrituras hebraicas, vemos que ele se descreve como o livro da história humana. E é interessante o que esse livro fala da criação e da história do primeiro casal: Da-terra e A-vida. Este é sentido dos nomes Hadam e Hawah. A construção dessas duas pessoas, Da-terra e A-vida, ao se dar no final do processo de surgimento do universo, mostra o valor que têm para O Eterno: são menores, aparentemente pequenos, mas valem muito, pesam tanto quanto todo o universo. A história humana é a história de uma pessoa, de duas pessoas, de todas as pessoas. 


E será que eu posso fazer da minha mulher, escrava. Ou, em outras palavras, posso explorá-la? Não, não posso. Será que posso fazer dos meus pais, escravos. Ou, em outras palavras, posso explorá-los? Não, não posso. Será que posso fazer de meus filhos escravos. Ou, em outras palavras, posso explorá-los? Não, não posso. E por quê? Porque devo amar o humano como semelhante, como igual. Esteja ele ao lado ou distante, é sempre próximo. Este princípio é fundamental na teologia da vida. As relações humanas implicam em reciprocidade, deve levar ao companheirismo, ao fundamento de origem: Da-terra e A-vida estão por trás de toda a humanidade.


As Escrituras hebraicas nos falam da obrigação de amar o estrangeiro, ou seja, aquele que nos parece totalmente diferente. Esse é o princípio da paz entre os povos. Por isso, a teologia da vida propõe que a paz prevaleça, seja formulada como lei a obrigação de cuidar e proteger os diferentes e as minorias. Este é o sentido maior da justiça.


Assim, se perguntarem: um homem pode explorar pai, mãe, mulher, filhos? Sabemos que a resposta é não. E de novo a pergunta: um homem pode explorar aquele que é diferente dele por credo, raça, sexo ou sob qualquer outro aspecto? Muitos acharão que sim. Mas quando tenho em minha frente uma pessoa, tenho um igual e, por mais diferente que seja, é meu irmão. Ser justo é reconhecer a liberdade dele, seus direitos e cuidar para que tenha uma vida digna, como humano que é.


O respeito e o cuidado por tudo aquilo que é humano, pelo ser, por sua terra e vida, é teologia radical, que nasce da compreensão de que somos semelhantes, cheios de parecença com O Eterno. A imagem está em um, em dois, em todas as pessoas.





Halakha humana – uma leitura judaica



A halakha ou lei judaica, é um ramo da literatura rabínica. Ela trata das obrigações religiosas às quais devem se submeter os judeus em suas relações com o próximo e com o Eterno. Ela engloba todos os aspectos da existência. Aqui vamos utilizar halakha em seu sentido mais amplo de caminho. 


Théodore Monod disse que não somos meio termo, mas complemento. Não somos cinza, mas preto e branco. Na verdade, os escritos judaicos da Era Comum nos dizem que o Eterno construiu o ser humano e, em seguida, retirou-se para que este humano pudesse ocupar com liberdade o seu lugar. Dessa forma, o ser humano é autônomo por natureza, tem livre-arbítrio e, portanto, responsabilidade. 


Os escritos judaicos, entregues no caminhar da diáspora, entendem que o Eterno aposta na perfectibilidade do ser humano. A criação, vista dessa forma, não está completa, o ser humano continua a criação. Por isso, a construção da espiritualidade é a chave para o futuro humano. É o que leva à criação perfeita. Textos, como os da Cabala, quando falam do acesso ao mundo do Espírito, perguntam: "Você se tornou o que você é?" 


O ser humano é criador de si mesmo. Sua vida é uma viagem com a finalidade do tornar-se. Ele deve saltar do "conhece a ti mesmo" para "tornar-se quem ele é" e "descobrir para que serve". É a viagem que leva à perfeição, e a liberdade é uma viagem dentro de si mesmo, que deve ser realizada através do corte da pedra, símbolo do ser humano, do material em direção ao espiritual. 


O caminho religioso não pode estar separado da revolução permanente do espírito humano, já que o sentido do renascimento promissor e a revolução permanente do espírito são desafios universais. Ambos negam todo dogmatismo totalitário que confronta o pensamento livre. 


Duas noções fundamentais, a do ser e a do devir, estão intimamente ligadas às ideias de caminho religioso e revolução permanente do espírito. Só o Eterno é único. Na tradição judaica, quando falamos "Ser" estamos a falar do Eterno. Mas os humanos caminham no sentido de se tornarem ser. Precisam caminhar sua viagem, simbólica, do material e religioso em direção ao espiritual, a fim de integrar, interiorizar a simplicidade sublime do Ser Eterno. É nesse sentido que o caminhar deve gerar harmonia, paz que leva à coexistência de progresso e tradição. 


Nesse sentido, a comunidade religiosa, enquanto associação de grupo, não deve ser obstáculo para o caminho espiritual, ao contrário, compreendido o conceito de comunidade, de estar junto para repartir o pão, tal comunhão não deve desenvolver ambição, orgulho ou reflexo xenófobo, mas abertura para o mundo. Seu significado não é excluir a fraternidade, mas estendê-la da comunidade em direção a todos os humanos. O objetivo é difícil, mas não há esperança se não perseveramos em direção ao sucesso.

 

Aprender a liberdade é o primeiro momento dessa construção, comemorada na Páscoa, enquanto caminhar em esperança. Caminhamos em direção ao outro e para cima. Esta tradição foi transmitida aos judeus pela Torá, e está presente nos 613 mandamentos, em que se baseiam a coesão da comunidade judaica. 


O caminhar associado a revolução permanente do espírito deve levar a uma espiritualidade sem dogmas. É um caminhar baseado na fraternidade universal. Donde, tradição e progresso pode fazer sentido na existência do humano, enquanto elo da cadeia da vida. 


Nesse caminhar descobrimos, conforme nos foi revelado, que o Eterno é  impensável, incognoscível, impenetrável, mas presente no universo em todos os seus planos. O Eterno não pode ser nomeado. A única designação autêntica é precisamente a rejeição de qualquer definição é "ein Sof", aquele que não tem fim, Eterno. Ein Sof ou ayn Sof, (hebraico אין סוף), na Cabala, é entendido como Deus antes de Sua manifestação na produção de qualquer reino espiritual, provavelmente derivado do termo de Ibn Gabirol, "o único Infinito". Ein Sof pode ser traduzido por "sem fim", "interminável", "não há fim", ou infinito.


O Espírito absoluto é essência por si só. O Eterno é o único, única manifestação visível do invisível. Mas a harmonia universal resulta da complementaridade dos opostos. A vida é um ponto na eternidade. 


Devemos ser, todos nós humanos, aqueles que esperam pelo mundo do Espírito. E o amor é a chave para a vida. Pois, amar uns aos outros é reconhecer a centelha divina dentro do outro, e ajudá-lo a entender e a exaltar o sentido pleno da vida. 


Nesse sentido, o amor permite reconhecer a dignidade do trabalho. Semeia as sementes da revolta contra a injustiça e a opressão, inclusive religiosa. Reconhece o fato de que o sofrimento é um desequilíbrio do mundo. Mas, temos consciência, de que o amor não pode ser rebaixado, enquanto concepção que degrada a dignidade do ser humano. Ou seja, amar uns aos outros, não é fé, não é destino, é ato de encontrar o entusiasmo da partilha com todos e todas.


É isso aí. O judaísmo permanece presente na construção do pensamento ocidental, leigo e religioso. 





Marxismo e fé 


“A democracia não acredita na harmonia natural, mas crê possível submeter a natureza à razão. Ela crê numa harmonia metafísica, que se instaura necessariamente do processo histórico”. Paul Tillich, “Écrits contre les nazis”.


Quando pensamos no Brasil e, por extensão, na América Latina, nos vemos obrigados a pensar a teologia social como alavanca para transformações que confrontem as estruturas de classe que mantêm o status quo deste capitalismo neo-liberal, gerador de excluídos de bens e direitos. Dessa maneira, entendemos a teologia social como geradora de ações culturais, políticas e sociais, desencadeadas pela comunidade de fé consciente e crítica, com vistas à transformação radical, a fim de produzir mudanças estruturais no regime e construir uma nova ordem social tanto brasileira, como latino-americana. A teologia social tem, dessa maneira, como parceira organizações não-eclesiásticas, partidos e organismos de classe de trabalhadores e solidários. E tais ações fazem desta teologia social práxis que leva o cristianismo para além da comunidade de fé, que a faz confrontar desigualdades, exploração e miséria. Tal teologia social terá de confrontar e enfrentar, assim, a oposição dos inimigos da justiça, paz e alegria do povo. 


Por isso, este diálogo entre Antonio Gramsci (1891-1937, o mais importante pensador marxista italiano) e Paul Tillich (1886-1965, o mais importante teólogo alemão do século 20) ganha importância. E nos possibilita caminhar para a teologia social que, levando em conta as assimetrias, mas também as aproximações do pensar político dos dois pensadores, apresenta novas propostas de uma existência social e libertária.  


Gramsci e Tillich têm muito em comum. Ambos foram militantes políticos e fundamentaram parte de suas concepções em Karl Marx. Por isso, consideramos importante ver que aproximações e assimetrias existem em suas elaborações teóricas. Cristianismo, democracia e vida são temas que atravessam seus estudos, e que aqui vamos confrontar. Desejamos, dessa maneira, acrescentar elementos novos numa discussão cada vez mais acirrada: ainda é possível a construção de regimes que favoreçam a plenitude do sentido da vida?


Nos últimos anos, como fruto da crise da esquerda mundial, mas também como fruto da instalação de governos nacionalistas no continente, a partir dos anos 1980, renasceu a busca pela reflexão de pensadores marxianos. Assim, em várias universidades brasileiras e latino-americanas, Antonio Gramsci, por exemplo, passou a ser estudado como nunca fora antes.


Ora, a busca pelo pensamento de Gramsci situa-se nesse contexto de garimpagem do marxismo de fronteira, dito não-ortodoxo. Aqui, nos interessa pensar Gramsci em correlação com um filósofo, nada ortodoxo, Paul Tillich. Aliás, o pensamento social de Tillich foi durante muito tempo desconhecido no Brasil, apesar de ter trabalhado quase duas décadas sobre questões políticas analisadas a partir do que ele chamou de socialismo religioso.


Gostaríamos de começar essa discussão com uma idéia exposta por Tillich, de que a busca pelo sentido pleno de vida, que ele vai chamar de socialismo, traduz um anseio que brota da consciência crítica, transformadora, num mundo autônomo e racional. Assim, tal substância profética, ou seja, a consciência crítica e transformadora, se exprime na práxis e, por isso, a relação entre profecia e racionalidade é essencial. 


Como a linguagem tillichiana é teofilosófica, ao lê-lo nos vemos na obrigação de traduzi-lo. Assim, o que significariam as expressões profético e profecia? Tillich parte de uma compreensão peculiar do profetismo vétero-testamentário. Vê nele, tanto um clamor, como uma ação, um movimento em prol da justiça, da paz e da alegria, que dariam conteúdo, seriam a essência da religião de Israel e, por extensão, do cristianismo e da Reforma protestante. Por isso, movimento profético é práxis de crítica social, que na modernidade levou à racionalidade e à autonomia. Mas, para Tillich, justiça, paz e alegria, ou seja, socialismo, implica em correlação permanente e necessária entre consciência crítica e racionalidade na autonomia. Assim colocada a questão, vemos que Tillich se afasta das correntes socialistas que repousam exclusivamente no racionalismo, em especial do stalinismo, como daquelas correntes que veem a possibilidade de uma expansão crescente da autonomia, via democracia. É essa preocupação de Tillich em correlacionar razão e autonomia que possibilita esse diálogo crítico com Gramsci.  


De Gramsci podemos dizer que recriou a linguagem da tradição marxiana e codificou teoricamente seus conceitos, ao falar de estado regulado, filosofia da práxis, grupo social, hegemonia, sociedade civil, estado ampliado, intelectual orgânico e moderno Príncipe. Mas, neste texto, nos interessa analisar suas idéias sobre o cristianismo, o intelectual e a democracia.


Marx partiu do fato de que o pensamento judaico/cristão torna o ser humano estranho a si mesmo e desdobra o mundo em um mundo imaginário. Por isso, considerava que o trabalho do teórico consiste em dissolver o imaginário judaico/cristão em sua base terrena. Vai dizer, então, que Feuerbach não percebe que, findo o trabalho da crítica da herança judaico/cristã, o principal ainda está por fazer. O fato de que a base terrena se separe de si mesma e se estabeleça nas nuvens, como reino independente, só pode ser explicado pela dissociação interna e pela contradição dessa base terrena consigo mesma.


O que deve, portanto, ser feito antes de qualquer coisa é compreendê-la em sua contradição e depois remover essa contradição. Assim, por exemplo, após descobrir que a família terrena é o segredo da Sagrada Família, é a família terrena que deve ser criticada teoricamente e revolucionada. Marx explica a fé cristã por meio das contradições da sociedade e de suas dissociações, que induzem o ser humano a projetar fora do mundo, em um paraíso, a realidade na qual desejaria viver. Mas como afirma Lucio Lombardo Radice, na quarta tese sobre Feuerbach, Marx afirma de modo explícito que a forma judaico/cristã reflete um conteúdo histórico. Por estar impotente, o ser humano imagina uma potência divina, por estar abandonado cria uma providência. 


Gramsci verá o pensamento de Marx como herdeiro de dois movimentos culturais, a Reforma protestante e a Revolução francesa. Ou como nos diz Hugues Portelli, a filosofia da práxis pressupõe um passado cultural, o Renascimento, a Reforma, a filosofia alemã, a revolução francesa, o liberalismo laico e o historicismo. Ou seja, a filosofia da práxis é o coroamento do movimento de reforma intelectual e moral e por isso está imbricada à Reforma protestante e a Revolução francesa. 


Marx pode, então, ser entendido como desenvolvimento que se dá a partir de três correntes da Reforma protestante: a luterana que legou Hegel, a calvinista que legou Ricardo e a economia clássica, e a huguenote que criou o jacobinismo. A estas fontes originais, Gramsci bebeu da tradição cultural italiana, principalmente de Maquiavel, e também de Croce que deu continuidade ao historicismo alemão.


Dessa forma, para Gramsci, a Reforma foi não somente uma reforma ao nível da economia, filosofia e política, mas também uma revolução cultural, no sentido de que procurou forjar uma nova humanidade. Para Gramsci a consciência religiosa cristã, que se traduziu em revolução cultural no século 16, teve um caráter de suma importância na construção do pensamento contemporâneo. Ou, nas suas palavras, a partir do rústico intelectual da Reforma, e está falando de Lutero, passando pela filosofia clássica alemã e pelo vasto movimento cultural nasceu o mundo moderno.


Podemos dizer que Gramsci, no que se refere ao cristianismo, faz uma ponte entre Émile Durkheim e Max Weber. Durkheim considera a religião a partir da idéia de vínculo social. A religião constituiria uma comunidade moral na os adeptos comungam um mesmo ideal. A palavra chave aí é solidariedade. E a solidariedade leva a uma memória coletiva, que organiza lembranças, ritualiza a crença. Os estudos de Durkheim sobre as sociedades têm o intuito de dar rumo a sua análise na qual a divisão do trabalho foi anteriormente sua preocupação central. Mais tarde, o diálogo com a antropologia será privilegiado e o universo da religião será pensado como consciência coletiva, abordagem que ele estende ao entendimento da nação, enquanto todo no qual os indivíduos partilham a mesma memória coletiva. 


Weber trabalha em sentido diferente. O cristianismo é instituição, é igreja, que atua como empresa de salvação das almas. É necessário, então, conhecer os meandros de sua doutrina, a organização de seu clero e a disputa entre visões e interesses distintos no quadro das crenças religiosas. Daí a atenção que dá ao pensamento divergente, as rupturas no interior de uma mesma ordem ideológica, e sua política com o poder de Estado. 


Assim, Durkheim busca o que une e Weber realça o que separa. Mas Gramsci está interessado nas duas dimensões, no que une e no que divide. O cristianismo, para ele, é uma concepção de mundo que elabora versões sobre a realidade, o que possibilita aos fiéis atuar segundo determinada ética, mas também os une no interior da mesma comunidade. Essa idéia atravessa as páginas dos Cadernos do cárcere, sintetizada na afirmação de que o catolicismo é o intelectual orgânico da Idade Média.


Partindo de uma leitura do contexto europeu medieval, Gramsci estudou o papel dos intelectuais católicos: seu cosmopolitismo, incentivado pelo poder de Roma, em política à fragmentação do poder feudal e sua intolerância diante do pensamento divergente que ameaça a unidade da Igreja. Mas, na qualidade de orgânico, o catolicismo funcionaria como cimento cultural entre diferentes setores de uma sociedade hierárquica. Assim, o catolicismo integra o que se encontra separado por lutas de interesses e discordâncias doutrinárias. O catolicismo, no entanto, é parte de uma superestrutura mais ampla, a ideologia. É uma cosmovisão, tem valor cognitivo, interpreta o mundo ético, orienta a ação, e constrói uma moral que baliza a solidariedade dos fiéis. As ideologias possuem potencialidades diferentes destas, por isso Gramsci faz distinção entre filosofia e cristianismo católico, e entre cristianismo católico e senso comum, mas, ainda assim, todas as ideologias podem ser pensadas a partir dessa mesma matriz teórica.


Dessa maneira, as análises de Gramsci rompem com a tradição marxiana, já que a ideologia, mas do que falsa consciência é entendida como elemento cognitivo, concepção de mundo que brota da vida social. Para ele, como concepção de mundo, o cristianismo não seria alienante, mas deve ser entendido como ideologia presente na história. Exemplo disso foi o catolicismo, que possuía valor positivo, era orgânico, e construiu vínculo social entre as classes e os grupos sociais. Mas, no correr da Idade Média perdeu essa positividade, ao perder sua função de solidariedade, e passou a atuar como força reativa diante das mudanças.

 

E se Gramsci se mantém marxiano no que se refere à crítica da transcendência e, por extensão, da natureza humana, a conclusão que se impõe é que não há sociedade sem ideologia. Gramsci prepara, assim, o caminho para outros teóricos do pensamento marxiano, como Althusser e seu "animal ideológico", e Lévi-Strauss e seu "animal simbólico".


Mas Tillich teve uma compreensão diferente daquela de Gramsci, que entende a vanguarda enquanto intelectualidade orgânica, mas não vê o movimento de massas em processo dinâmico que pode levar ao surgimento de uma massa orgânica. Há uma divergência entre os dois pensadores: a crítica intelectual não se limita ao intelectual orgânico, é um processo maior que gera a massa orgânica, com dupla ação: de liderança da sociedade e de transformação da situação-limite. 


Na perspectiva tillichiana, a passagem da heteronomia à autonomia se deu através de ciclos que atravessaram épocas. Assim, os movimentos dinâmicos das massas estão presentes nos movimentos religiosos do jovem cristianismo, no movimento político da migração dos povos, no movimento religioso da Reforma, no movimento anabatista e no movimento solidário. Embora esses movimentos possam ser encontrados em diversas épocas, estão presentes em diferentes esferas da cultura, mas sempre como movimentos de liberdade: as massas dinâmicas são parteiras de escravos, de povos, de trabalhadores.


Por isso, segundo Tillich, não podemos ver o pensamento de Marx como algo que já se esgotou, se nos propomos a fazer a crítica consciente e transformadora, pois a justiça não é justificativa ideológica das democracias, nem idealismo progressivo ou sistema de harmonia autônoma. A busca incondicional da justiça dentro do espírito da crítica profética e com os métodos do marxismo transcende o mundo. Mas até que ponto a metodologia marxiana e uma conquista do poder político poderiam dar sentido à vida? Só se a busca incondicional da justiça levar em conta que a corrupção também está localizada nas profundezas do coração humano.


O teólogo da vida deve entender que as forças demoníacas da injustiça e da vontade de poder jamais serão plenamente erradicadas da cena histórica. Precisa compreender que a corrupção da situação humana tem raízes mais profundas do que as estruturas históricas e sociológicas. Estão encravadas nas profundezas do coração humano. Por isso, explica Tillich, como Kierkegaard, Marx fala da situação alienada na estrutura social da sociedade burguesa. Empregava a palavra alienação (entfremdung) não do ponto de vista individual, mas social. Segundo Hegel essa alienação significa a incursão do espírito absoluto na natureza, distanciando-se de si mesmo. Para Kierkegaard era a queda do homem, a transição, por meio de um salto, da inocência para o conhecimento e para a tragédia. Para Marx era a estrutura da sociedade capitalista. 


Por isso, a regeneração da humanidade não é possível apenas mediante mudanças políticas, mas requer mudanças na atitude das pessoas em favor da vida. De todas as maneiras, para Tillich e para Gramsci há uma busca comum de respostas entre aquele que encarna o espírito crítico e a ação consciente do intelectual orgânico. Ou como diz Gramsci, se a política entre intelectuais e povo, dirigentes e dirigidos, governantes e governados, é dada por adesão orgânica, onde a paixão torna-se compreensão e saber, é  então que a política se faz representação. E aí se produz o intercâmbio de elementos entre governados e governantes, entre dirigidos e dirigentes. E é aí onde se realiza a vida social. Cria-se então o bloco histórico.


Para Gramsci, o intelectual quando representa determinada comunidade têm função superestrutural, ou seja, cultural, mas, apesar de sua organicidade, precisa exercer autonomia em política às pressões sociais que sofre. É dessa postura que nasce a força crítica e a compreensão de que diante da realidade há alternativas diferentes daquelas expressas pelo poder. 


A partir de Tillich e Gramsci podemos dizer que o princípio da crítica intelectual é expressão humana e verbal do incondicionado, e resgata a tradição do profetismo bíblico, que possuía uma concepção unitária do fato e procurava a síntese entre política e ética. O profetismo era ao mesmo tempo revolucionário, mesmo quando voltado para o passado, e conservador, mesmo quando impulsionado pela paixão do porvir. Nada fazia sem invocar a tradição, no entanto, sua mensagem eram os novos tempos. Os profetas sabiam servir-se do passado para as necessidades do presente. Todos pareciam ter algo em comum: uma atitude realista. A pregação do futuro não constituía o essencial de seus clamores; era antes, o fruto e o resultado final de um conhecimento aprofundado no mundo adjacente, da atualidade e do passado. Ora, essa função profética está presente na compreensão crítica de Gramsci e de Tillich do intelectual orgânico.


Mas, não podemos esquecer que para Tillich há limites para a ação do intelectual, pois a razão não é global. Ao contrário, cada criação do espírito é necessariamente afetada pelos limites da situação que a viu nascer. O espírito está sempre ligado a uma classe. No espírito está implícita uma situação particular de luta, de dominação ou de opressão, que conforma a própria consciência. Entendido assim, o espírito não é universalmente o mesmo em cada pessoa, exprime um ser social particular. A passagem à cultura não se faz simplesmente pela transmissão de bens culturais universais, mas pela formação inculcada por uma sociedade e uma situação de lutas determinadas, em meio a obras que exprimem ou exprimiram no passado esta possibilidade humana particular.


Numa leitura cristã protestante, Tillich considerou a busca pelo sentido pleno de vida produto do desenvolvimento econômico e espiritual, que preparou e se impõe com a Renascença, a Reforma e o surgimento do capitalismo. Visão compartida por Gramsci. Assim, a busca pelo sentido pleno de vida surge em oposição à cultura autoritária e unitária da Idade Média, sedimenta suas bases nas criações culturais dos últimos séculos, e só pode ser compreendida a partir desta evolução: sua permanência está ligada a esse desenvolvimento. Mas não devemos esquecer, porém, que foi do interior do cristianismo que brotaram as idéias modernas de justiça. 


Para a construção de seu pensamento, Gramsci foge das construções ontológicas, e analisa a sociedade como conjunto de forças, imersas na história e marcada por interesses diversos. Podemos ver isso quando em carta à sua cunhada Tatiana Schucht. de dezembro de 1931, expõe seu conceito de Estado ampliado: 


“Eu amplio muito a noção de intelectual e não me limito à noção corrente que se refere aos grandes intelectuais. Esse estudo leva também a certas determinações do conceito de Estado, que habitualmente é entendido como sociedade política (ou ditadura, ou aparelho coercitivo para adequar a massa popular a um tipo de produção e a economia a um dado momento); e não como equilíbrio entre a sociedade política e sociedade civil (ou hegemonia de um grupo social sobre a inteira sociedade nacional, exercidas através de organizações ditas privadas, como a igreja, os sindicatos, as escolas, etc.)”.


Ora, em geopolítica, hegemonia significa a supremacia de uma nação sobre outras, seja por sua presença militar, de coerção, seja pela presença política e cultural. Mas na política, o conceito formulado por Gramsci descreve a dominação ideológica de uma classe sobre outra, no caso da burguesia sobre os trabalhadores.


Em Gramsci não é possível o domínio bruto de uma classe sobre as demais, a não ser nas ditaduras, ou seja, no Estado-coerção. Mas uma classe dominante para ser dirigente deve articular um bloco de alianças e obter o consenso passivo das classes e camadas dirigidas. Nessa busca de alianças, necessárias, a classe dominante sacrifica parte dos seus interesses materiais imediatos, vai além do horizonte corporativo, com a finalidade de construir uma hegemonia ética e política.


Ao estudar os mecanismos de construção desta hegemonia, Gramsci chega a um conceito fundamental na sua teoria política, a saber, o conceito de Estado ampliado. O Estado moderno na Europa analisada por Gramsci não seria, para ele, apenas instrumento de força a serviço da classe dominante, mas força revestida de consenso, ou seja, combinaria coerção e hegemonia. O Estado ampliado pode, então, ser entendido como sociedade política mais sociedade civil. E, nas sociedades de tipo ocidental, a hegemonia, que se decide nas inúmeras instâncias e mediações da sociedade civil, não pode ser ignorada pelos grupos sociais subalternos que aspiram a modificar sua condição e a dirigir o conjunto da sociedade.


O sentido de progresso civilizatório que a teoria gramsciana implica, reside no fato de que todo o movimento deve acontecer no sentido de uma absorção do Estado político pela sociedade civil, com o predomínio crescente de elementos de autogoverno e autoconsciência. A partir dessa teorização, Gramsci formula nos Cadernos do cárcere uma crítica ao stalinismo, a partir dos traços de hipertrofia do Estado soviético, que chama de estatolatria, considerando que tal estado de ditadura sem hegemonia não subsistiria por muito tempo. 


Assim o Estado se compõe de dois segmentos distintos, porém atuando com o mesmo objetivo, que é o de manter e reproduzir a dominação da classe hegemônica: a sociedade política, estado-coerção, a qual é formada pelos mecanismos que garantam o monopólio da força pela classe dominante, burocracia executiva e policial-militar; e a sociedade civil, formada pelo conjunto das organizações responsáveis pela elaboração e difusão das ideologias, composta pelo sistema escolar, Igreja, sindicatos, partidos políticos, organizações profissionais, organizações culturais: meios de comunicação e de massa. 


E aqui merecem destaque os meios de comunicação, pois para sua época estavam ainda em sua fase embrionária, e a televisão nem sequer fazia parte dos projetos futuros. Isto só seria possível no início da década de 1950. É exatamente através dos meios de comunicação da alta modernidade, que se dá a canalização da direção intelectual e moral, difundindo as ideologias da classe hegemônica vigente. 


Assim, o Estado é a sociedade política gramsciana. E esta sociedade civil representa a nova determinação apresentada por Gramsci. Esta sociedade civil assume crescente dimensão no começo do século vinte, com os partidos de massa, sindicatos de trabalhadores e outras formas de organizações sociais. É após seu desenvolvimento histórico que a sociedade civil pôde ser capturada teoricamente. Antes disso, o estado-coerção era muito superior em sua base material para se permitir tal percepção. 


O que chama a atenção no modelo do Estado ampliado, desde o Leviatã de Hobbes até Marx, é o sentido unitário do Estado. Ou seja, até Marx, o Estado era entendido como algo diferente da sociedade civil, que seria extinto quando se extinguisse a divisão de classes dentro da sociedade, uma vez que era esta divisão que produzia a necessidade do Estado. 


Em Gramsci, porém, quando agrega a sociedade civil ao Estado-coerção, nada fica de fora do Estado. Este todo, entretanto, não é homogêneo, é rico em contradições e é mantido pelo tecido hegemônico que a cada momento histórico é recriado em processo permanente de renovação. 


Assim, a luta pela construção de uma sociedade plena de sentido de vida, torna-se mais complexa e difícil do que imaginava Marx. Não basta ser classe dominante, tem que ser também classe hegemônica, dirigente. Desta forma, o campo da luta entre as classes se amplia. E a democracia necessária ao sentido pleno de vida será construída pelo bloco histórico hegemônico. Neste momento, a sociedade civil terá atingido uma base material superior a base material do Estado-coerção, atingindo o que Gramsci chama de sociedade regulada. 


Com a gradativa absorção da sociedade política pela sociedade civil, que atua através dos seus aparelhos de hegemonia, o estado-coerção será substituído pelo estado-ético. E esta figura remanescente do estado-coerção, torna mais factível o modelo social voltado para a democracia de bens e direitos e menos utópico em política ao que planejara Marx.

 

Nesta concepção de Estado, as democracias ocidentais possibilitariam o sentido pleno de vida. Mas fica uma questão: se a supremacia da sociedade civil se dará pelo consenso contra a coerção, onde fica o conceito de luta de classes, momento celular do pensamento marxiano? 


Na verdade, para Gramsci a extinção da coerção do estado se dará pela absorção deste pelo estado-ético, ou seja, pela sociedade civil. Esta sociedade civil está inserida no estado ampliado e, por isso, não se pode falar de extinção do estado, mas de uma reorganização do estado onde um de seus componentes, está atrofiado por disfunção ou necessidade, já que os conflitos passaram a ser administrados pela base material do consenso.


Há, porém, dois níveis superestruturais nas sociedades democráticas: o estado ampliado, que é a sociedade civil, ou o conjunto dos aparelhos privados de hegemonia; e a sociedade política, ou o estado no sentido restrito do termo, composto pelos organismos de coerção do aparelho burocrático-militar de dominação política. 


Nesse espaço a sociedade civil como espaço do domínio da ideologia, portador material da hegemonia, encontra a possibilidade de legitimidade, de consenso, através dos aparelhos privados de hegemonia que propagam valores ideológicos. 


Assim, o conceito de estado ampliado procura apreender a configuração de forças sociais e políticas resultantes dos estados ocidentais do século vinte, idéia que confronta a proposta de Trotsky de revolução permanente a partir da concepção de hegemonia civil. Tal proposta-conceito parte da idéia de guerra de posição, que exige uma frente de combate no campo cultural, unida às frentes econômicas e políticas para a conquista da hegemonia pelas classes subalternas. A fórmula hegemonia civil propõe a participação das maiorias sociais nos aparelhos privados de hegemonia (sindicatos, partidos, escolas, igrejas, imprensa), que constituem as trincheiras de luta para obter posições de direção no governo da sociedade.


A proposta de extinção do estado, no entanto, nunca é plena, pois sempre restará o governo para cuidar da sociedade civil. É claro que se entendermos assim podemos dizer que na distinção de função entre as pessoas que governam e as que vivem a vida da sociedade de consenso está presente ainda a dominação entre as classes e, portanto, os restos da coerção do Estado se farão presentes.


Em Gramsci está presente uma utopia que atravessou todo pensamento solidário: sonhar com o bom selvagem de Rousseau, em oposição ao homem é o lobo do homem de Hobbes. Esse Estado ético é uma idealização do ser humano, que poderia viabilizar a construção de uma sociedade ética, igualitária e justa. 


Mas, mesmo questionando Gramsci, podemos utilizar seus conceitos de estado ampliado e de hegemonia civil como estruturas de pensamento válidas para a análise social, não como proposta da utopia solidário, mas como ferramenta para delimitar e compreender o desenvolvimento das sociedades ocidentais contemporâneas, principalmente aquelas que se propõem democráticas. 


A busca pelo sentido pleno de vida e os movimentos de liberdade sempre estiveram ligados, mas isso não significa que não existem tensões entre o momento universal e o momento particular. O momento universal pode formular exigências que ameaçam absorver o momento particular. A busca pelo sentido pleno de vida se tornará, então, uma idéia geral, desprovida de raízes sociais e perderá sua força histórica. Este é o perigo de uma luta pela justiça restrita à intelectualidade. Esse perigo provém da situação burguesa e de seu pensamento político particular, que procura elaborar uma ordem social fundada sobre a justiça, mas deixando de lado a situação proletária real. Seja qual for o valor que se atribua a esta tentativa, ela não será de fato justiça social. A luta contra o intelectualismo utópico se apoia sobre a ligação indissolúvel que Marx viu entre sentido pleno de vida e proletariado, que não pode ser quebrada por essa harmonia metafísica proposta pela globalidade burguesa.


Para Paul Tillich existe na esfera política uma política entre razão e autonomia. Toda estrutura política pressupõe poder e um grupo que o assume. Mas um grupo de poder é também um conglomerado de interesses opostos a outras unidades de interesses e sempre necessita uma correção. A democracia está justificada e é necessária na medida em que é um sistema que incorpora correções contra o uso errôneo da razão política. Assim, a teologia e a política não são realidades estanques, porque as raízes do pensamento político não são apenas pensamentos. Teologia e política, no mundo ocidental, estão imbricados, mas não existem sem a necessidade de correção, ou seja, da democracia. 


Tal compreensão da realidade ocidental no pós-guerra levou Tillich a se debruçar sobre projetos que tiveram início ainda na sua fase alemã, como a sua reflexão sobre a cultura. Mas a maioria de seus companheiros, que esperavam a realização da vida social plena de sentido, diante do visível abandono dos direitos civis e humanos, assim como a descoberta da existência de Gulags nos países comunistas, se desiludiu. Ou como publicou mais tarde – veja, Paul Tillich, Teologia protestante nos séculos dezenove e vinte:


“O movimento marxista não foi capaz de se criticar por causa da estrutura em que caiu, transformando-se no que chamamos agora de stalinismo. Dessa maneira, todas as coisas em favor das quais os grupos originais tanto lutaram acabaram sendo reprimidas e esquecidas. Em nosso século vinte temos tido a ocasião de melhor perceber a trágica realidade da alienação humana no campo social”.


Tal política comunista fez com que Tillich, que não se considerava um utópico, constatasse que o amanhecer de uma nova era criativa se distanciava da humanidade. Assim, alertou para o perigo, a partir da experiência stalinista de que, em nome da busca pelo sentido pleno de vida, sociedades mergulhassem no totalitarismo, já que não aceitavam a pluralidade de partidos políticos e as liberdades civis, que ele e os socialistas-religiosos defendiam. Mas é interessante ver que descartava qualquer possibilidade de hegemonia permanente, quer por parte do bloco soviético, quer por parte do bloco ocidental, ao dizer que novos centros de poder podem aparecer levando à separação ou à transformação radical do todo. Isto porque o poder inicia sempre uma nova luta, e o período de determinado império mundial será tão limitado quanto foi o período de paz”. 


E afirmou que um mundo sem as dinâmicas do poder, sem a tragédia da vida e da história não é o Reino, nem a finalidade do ser humano, pois o fim está limitado à eternidade e nenhuma imaginação pode atingir o eterno. Mas as antecipações fragmentárias são possíveis. Assim, falar de teologia da existência significa entender que a busca pela incondicionalidade da justiça e, por extensão, da paz e alegria, traduz a defesa do sentido último do significado profundo das raízes do humano e que, no mundo contemporâneo, diante do trovejar dos canhões e da ameaça à existência, deve levantar-se como voz profética de um mundo novo.


A alienação e o pecado

“Acorda, levanta, resolve/ Há uma guerra no nosso caminho/ Nos confins do infinito/ Nas veredas estreitas do universo/ Vejo/ As cinzas do tempo/ O renascimento/ As danças do fogo/ Purificação, transporte”. A Árvore dos Encantados, Cordel do Fogo Encantado 


A existência, enquanto processo, pode ter determinação construtiva no sentido teleológico, por apresentar qualidades adequadas à sua natureza ou função. E o humano, momento da existência, tem possibilidades diante dela. Essas possibilidades podem ser chamadas de liberdade condicionada e relativa à própria existência. Mas tais possibilidades são desafios à compreensão da condição humana e de suas relações reais. Estamos, então, falando de alienação.


A alienação antecede o exercício da liberdade. A idéia, trabalhada por Tillich, a partir de Hegel, é de que pertencemos essencialmente àquilo de que estamos separados. Ou seja, o humano não está separado de seu ser, mas é julgado por ele, e mesmo quando este lhe é hostil não consegue separar-se dele. As possibilidades humanas estão, nesse sentido, mesmo enquanto determinação construtiva e dinâmica, sob funções correlatas, alienação e lei, liberdade e necessidade, que são realidades da existência.  


Se a alienação é ruptura essencial, parto que vai produzir a consciência humana, remete tanto ao distanciamento como à aproximação com o Ser. Não seria, então, apenas disfunção, mas apontaria também às funções do humano, enquanto ser com possibilidades de realização somática, psíquica, cultural, ecológica e do sentido pleno da vida. 


Na tradição judaico-cristã essa relação entre alienação e liberdade foi um tema teológico de importância. Dos textos judaicos resgatamos idéias como aliança, constância, fidelidade, que remetem à correlação alienação/lei. E no testamento cristão a idéia de destino traduziu o conceito de alienação em seus dois vetores, distanciamento e aproximação.


As tensões ao redor da compreensão das idéias de alienação, que traduz funções e disfunções do humano, e graça, enquanto ação divina para a salvação, apontam para duas outras questões: história e liberdade. Essas duas questões formam a base do pensamento de que o ser humano por ser imagem do Eterno é um ser livre e, por extensão, faz história. Livre significa liberdade de julgamento e ação no âmbito da existência. Então, para que as pessoas sejam livres, o Eterno garante a liberdade delas. 


Na carta aos  Romanos (5.12), Paulo afirma que hamartia entrou no cosmo através do humano e com hamartia, a morte. Ora, hamartia ou peccatu é um fazer, uma consequência que nasce deste conceito militar dos gregos, ato do arqueiro errar o alvo, quer no treinamento, quer na batalha. Paulo utiliza a expressão no sentido de que a humanidade vive um fazer em que errar o alvo é possibilidade crescente na existência, embora não seja um estado dela.  


Errar o alvo, ou, em hebraico moderno, errar o tiro, leva à conseqüências. Paulo privilegia uma delas, a consciência da morte. Para o apóstolo, hamartia ou peccatu produz uma consciência matricial, a consciência da morte. A partir da consciência da morte temos a consciência do divino, a consciência da diversidade, já que não somos bichos e, por extensão, não somos natureza, a consciência de que podemos escolher, e a consciência de que coisas e ações podem ser boas ou não. Dessa maneira, o alvo é o desafio de acertar, e estão diante do humano, de forma permanente, as necessidades diante da lei, daquilo que é ou está frente à existência e possibilidades diante da liberdade, daquilo que não existe, mas pode ser criado.


Alvo implica, então, em necessidades e lei e possibilidades e liberdade, que não se excluem: estão correlacionadas na existência humana, fazem parte do desafio da existência.


Ora, em termos teológicos, a partir dessa primeira reflexão, podemos dizer que todos são chamados à comunhão e cada pessoa pode responder positivamente a esse chamado. Caso o ser humano responda positivamente ao chamado, vive o processo de libertação que leva à comunhão plena. A comunhão consiste, então, em metanóia, que é volta ao estado de liberdade e permanência na escolha. A partir desta resposta, o Eterno opera a salvação do ser humano. Por isso, podemos dizer que a vontade humana abre o caminho da libertação. A partir daí entendemos a graça universal, pois todos os seres humanos poderiam responder positivamente ao chamado à comunhão. Ou seja, a liberdade de julgamento no âmbito da existência leva a pessoa a escolher os caminhos de sua história.


As funções e disfunções existenciais do humano, ou seja, a alienação, fazem com que as ações humanas, a partir dos desejos – emoções e sentimentos – levem o ser humano à possibilidade de errar o alvo, lehatati em hebraico, hamartia, em grego, e peccatu, em latim. Dentro da tradição das escrituras hebraico-judaicas, lehatati é a violação da lei. Mas lehatati é sempre uma ação do coração e não um estado do ser. Já a alienação, esta sim, é um estado da existência e toda a humanidade se encontra nesse estado de disfunção, ou inclinação para fazer o mal, conforme vemos em Gênesis 8.21. Assim, lehatati traduz não somente falta moral, mas todas as violações da lei, quer conscientes ou não. E, segundo a tradição judaica, todo ser humano nasce sem lehatati, e a culpa de Hadam recaiu sobre ele e sua família, mas não se estendeu à espécie humana. Apesar disso, todo ser humano é responsável pelo lehatati porque todos temos vontade livre, mas natureza alienada e, por isso, tendemos também para o mal. Por isso, o texto acima citado de Gênesis diz que o coração humano é mau desde a sua juventude. Mas o Eterno, através de sua misericórdia, possibilita ao ser humano a metanóia e o perdão. 


O axioma fruto-da-árvore-do-bem-e-do-mal pode ser lido assim: fruto-da-existência/bem-e-mal, porque está a nos falar de uma dualidade intrínseca à vida, o bom e o ruim, a sanidade e a loucura, a saúde e a doença, a vida e a morte. Nesse sentido, ao se fazer a pergunta pelo mal deve-se fazer também a pergunta pelo bem, já que não estão separados, são correlatos, joio e trigo. 


E se a libertação humana é um bem, é tanbém um processo, por isso, não somos plenamente livres, porque depende se permanecemos ou não na opção escolhida. Se mantivermos a escolha seremos livres, se abandonarmos a escolha retornamos à alienação. Caso nos alienemos, se não houver metanóia, se não voltarmos à comunhão, estaremos alienada.


Dessa maneira, na polaridade alienação/comunhão dá-se a construção das pessoas e das comunidades, que interagem, por opção ou por omissão, na construção de sua história. O Eterno é soberano porque construiu e mantém o universo, sustentando-o na universalidade do Espírito, aqui entendida como sentido da vida. A soberania especial está sobre a comunidade que permanece na escolha. As outras comunidades estão fora desta soberania especial, da graça que gera comunhão plena, exatamente porque usaram a liberdade para escolher o lehatati. 


E quanto maior a alienação, mais o Eterno retrai sua soberania sobre tais pessoas e comunidades, e, consequentemente, a graça que gera comunhão plena. O que explica o mal enquanto feituras pessoal e social. E para que o processo histórico se dê, o Eterno contrai espaço-temporalmente sua justiça executora. 


Por paixão ao ser humano, ele contrai a ação de seu conhecimento. Caso o Eterno, a partir de seu conhecimento, definisse todas as ações livres do ser humano, as pessoas e as sociedades poderiam fazer apenas aquilo que o Eterno por conhecer definisse, sem poderem tomar decisões alienadas, sem poderem se afastar dele. 


O Eterno dirige o seu fazer, mas interage com as pessoas e as comunidades humanas na produção da história, enquanto obra que nasce das correlações liberdade e comunhão e liberdade e alienação. A polaridade alienação versus comunhão não apresenta o ser humano como bom ou mal, mas como ser que age a partir dessa polaridade. Isso fica claro no diálogo que o Eterno tem com Caim, quando diz que ele está inclinado para o mal, mas deve dominá-lo. Essa conversa apresenta um padrão humano, a alienação. 


Em Gênesis, o Eterno disse para Hawah, que no texto representa a vida, que a alienação seria a regra e a humanidade cresceria sob o signo da violência. A alienação estabelece uma proposição, um princípio atemporal e não espacial, sobre o qual a razão titubeia, uma vez que aparentemente transcende a concepção de humanidade, mas, ao mesmo tempo, reduz qualquer expressão humana. Parece estar além da razão: é impensável. Podemos, no entanto, partir do postulado de que há uma alienação ontológica, que antecede todo mal manifesto. Esta causa maior é a raiz sem raiz de tudo que foi e é mal. Despida de atributos não tem, a princípio, nenhuma relação com o mal expresso. É  o mal que é e está além da razão de ser maligno, malévolo, malvado.


O que é mal está simbolizado no ser alienado sob dois aspectos: por um lado, é o não-espaço da subjetividade, aquilo que a mente não pode excluir, nem conceber por si mesma. Por outro lado, o mal incondicionado é dinâmico. A consciência é inconcebível quando separada do movimento, pois é ele que leva à mudança. Tal aspecto do mal é simbolizado na ideação “multiplicarei o teu sofrer e a tua conceição: em dor darás à luz filhos”. Um símbolo gráfico do mal presente no parir a vida. Este axioma fundante do mal ontológico remete àquilo que podemos simbolizar como características do mal.

 

A natureza da causa do mal, derivada da alienação aparentemente sem causa, aflora como consciência, impessoal, que permeia a natureza. Esta causa do mal é o campo da consciência, que transcende a relação com a existência e da qual a existência consciente é condicão. Mas, ao atravessar pela negação a relação entre existência e consciência, surge a alienação enquanto estado da existência: o espírito do mal, a consciência do mal e a matéria do mal.


Espírito do mal, consciência do mal e matéria do mal devem ser considerados não como independentes, mas correlações que se originam no ser alienado. Considerada a alienação ontológica, raiz da qual procedem todas as manifestações do mal, a expressão “multiplicarei o teu sofrer e a tua conceição: em dor darás à luz filhos” assume o caráter de ideação do que ainda não é humano. Ela é a fonte da força de todo mal individual e social e fornece os elementos para a análise do mal que perpassa o humano e sua história. Tal raiz pré-humana é o absoluto expresso no “multiplicarei o teu sofrer e a tua conceição: em dor darás à luz filhos”, base do mal objetivo. Tal ideação do porvir humano é a raiz do mal individual e social, enquanto estado da existência, alienação em seus diferentes graus.


A correlação dos aspectos da alienação ontológica, de origem, é fundante da existência enquanto mal manifesto. A ideação da humanidade, separada de tal estado, não se manifesta como mal individual e social, uma vez que é somente através de um veículo, a alienação da ideação, que o mal aflora como violência que é, ato alienado que necessitou de base física para apresentar-se como momento de uma complexidade maior, natural e humana. Da mesma forma, tal estado da existência, separado da ideação da humanidade, permaneceria como uma abstração da qual o mal não poderia emergir. O mal-manifesto, assim, é permeado pela correlação, que é fundamento de sua existência como alienação que se manifesta.


As correlações entre mal-manifesto, espírito e matéria do mal são símbolos da alienação ontológica, presentes no universo manifestado da alienação. Essa correlação é alienação existencial, a ponte através da qual as idéias são impressas enquanto substância da natureza do mal, presentes na forma de leis da natureza e da sobrevivência do humano. A alienação, dessa maneira, é dinâmica da ideação do humano, é meio que guia a manifestação. 


Ou como disse Lameque (Gn 4.23-24), ser violento mítico consciente do ciclo do mal, apresentado nas escrituras hebraicas: “Ada e Zilá, ouçam a minha voz. Escutem, mulheres de Lameque, as minhas palavras: matei um homem, porque me machucou. E um jovem, porque me pisou. Se são mortas sete pessoas para pagar pela morte de Caim, então, se alguém me matar, serão mortas setenta e sete pessoas da família do assassino”.


Assim, a consciência procede também da ideação do mal, e fornece os meios que possibilitam ao mal individualizar-se na existência humana. A alienação em suas manifestações é o elo entre o espírito e a matéria do mal, presença que, paradoxalmente, equilibra vida e morte, permanência e destruição. Por isso, o apóstolo Paulo disse que o Cristo é a paz, porque derrubou a parede da separação que estava no meio, a inimizade, e aboliu a lei dos mandamentos na forma de ordenanças, para criar, nele próprio, o novo humano. 


Podemos, dessa maneira, ler Gênesis 6.5 (“a imaginação dos pensamentos de seu coração era continuamente má”), 8.21 (“a imaginação do coração do homem é má desde a sua meninice”) e Deuteronômio 31.21 (“porque conheço a sua imaginação”), a partir da compressão do conceito de alienação. É interessante que nenhum desses textos fala do ser humano como essencialmente corrupto, mas alienado. A própria palavra yetzer, que vem da raiz yzr, utilizada quando as Escrituras hebraicas falam de inclinação maligna, significa moldar, propor-se. A idéia é que o ser humano é dirigido por suas inclinações, imaginações, sejam elas boas ou más. É yetzer que, combinado ao julgamento livre no âmbito da existência, possibilita a metanóia. Ou, conforme diz Deuteronômio, o Eterno coloca diante do ser humano a possibilidade do bem e a possibilidade do mal. Os seres humanos terão comunhão se obedecerem aos mandamentos do Eterno e errarão o alvo se desobedecerem aos mandamentos do Senhor (11.16-28). 


Só o Eterno é capaz de fazer com que exista a liberdade humana e mantê-la.  Essa graça, oriunda do Eterno e derramada sobre a humanidade, possibilita a construção da história. Por isso, Paulo diz que o Eterno fica de humor transverso com a alienação que distancia, mas segura as pontas com calma, por saber que a alienação é fruto da sua valência e, diante da alienação que aproxima, também obra sua, Ele expressa alegria. (Romanos 9.22-23).


Essa leitura da liberdade entregue ao ser humano é importante para a teologia, pois ao dizer que as pessoas e as comunidades humanas podem agir à margem daquilo que o Eterno desejaria para a humanidade, apresenta a violência, a guerra e os genocídios como frutos da opção e ação humanas. E o teólogo pode, então, analisar porque os profetas clamam e apontam às sociedades o caminho do Reino, embora estas possam escolher os seus próprios caminhos. O campo de concretação de Auschwitz, sob o nazismo, e os genocídios contemporâneos são, então, passíveis de estudo. Mas a nossa leitura coloca, também, para as comunidades de fé, o clamor profético e o desafio de expandir o Reino.


Em relação à alienação, o ser humano herdou de Hadam a inclinação para o mal e, como consequência, a possibilidade crescente de errar o alvo, mas não a culpa. Os seres humanos são alienados porque separaram razão e coração e erram o alvo porque são alienados. E em relação ao processo de libertação, a morte do Cristo abre as portas da comunhão, mas não assegura a libertação plena, pois esta só será definitiva se a pessoa não desistir da corrida.


Paralelo ao pensamento hebraico, a cultura grega apresentou uma rica leitura do conceito de destino, que relaciona alienação e hamartia. O conceito destino nasceu da reflexão de que os deuses são imortais porque o humano está situado entre a finitude existencial e a infinitude potencial. Para os gregos o destino era finitude existencial, e esse é o tema da tragédia grega e da busca da superação filosófica, principalmente de estóicos e epicuristas. Era uma tentativa de colocar o humano acima do destino que o distanciava de seu ser, transformando-se em poder destrutivo que envolveu o mundo helênico em culpa e julgamento. 


Um exemplo dessa leitura, que nos interessa para a construção de uma compreensão teológica da alienação, seria o arrazoado que Pedro, o apóstolo, fez em sua segunda epístola, ao dizer que a graça não tem limites, pois o Eterno não retarda a sua promessa, como alguns afirmam, por julgá-la demorada, mas por ser paciente. Ele não escolheria a danação eterna de pessoas, ao contrário, desejaria que todos chegassem à metanóia, ou seja, fizessem o caminho de volta à liberdade e construíssem comunhão. 


Dessa maneira, a graça tem eficácia ilimitada, mas há uma chave para que a função graça seja plenamente exercida. E essa chave é: chegar à metanóia. Dessa maneira, o sacrifício do Cristo, que é graça plena e universal, deve ser somado à metanóia, produzindo então a libertação. Ou seja, graça plena mais metanóia é igual à libertação. E o sacrifício do Cristo sem a metanóia, produz justiça. Ou seja, o valor da cruz não é limitado, mas sim sua aplicação. E a preparação da pessoa e das comunidades humanas para a graça tem o julgamento livre no âmbito da existência como movimento e o Eterno como móvel. 


Essa preparação pode ser pensada como movimento que parte, enquanto universalidade, da liberdade humana em direção à especificidade que tem o Eterno como móvel e implica em graça determinada pelo Eterno, embora não seja proveniente da coação, mas do seu pleno conhecimento, porquanto a intenção do Eterno não pode deixar de ter efeito. 


Por isso, podemos falar da universalidade da graça, presente na comunidade humana, e na especificidade da graça, que infalível segue a boa vontade humana. Mas esse movimento é dialético, pois, quando olhamos da perspectiva do humano, ele parte da universalidade, mas se olharmos da perspectiva divina parte da especificidade. Ou seja, universalidade e especificidade são termos relativos, que se complementam na plenitude da graça. Por isso, liberdade, eleição e graça fazem parte de uma dança permanente, onde cada conceito implica na existência do outro e nenhum tem existência independente, mas criam uma unidade/diversidade correlacional plena e necessária. 


Todas as pessoas e comunidades humanas realizam suas existências dentro desse processo, fazem parte dele, o que significa dizer que existência, liberdade e graça fazem parte da história humana. O Eterno mobiliza o processo em direção à especificidade, com base no seu conhecimento da fé e da perseverança de cada pessoa e das comunidades humanas, mas conhece e aceita o sentido da universalidade humana. Esta seria a leitura do texto de Pedro, quando disse que no meio do povo surgiram falsos profetas que introduziram doutrinas destruidoras, a ponto de renegarem o Eterno que os resgatou.


Na teologia paulina, enquanto diálogo das concepções do apóstolo com o mundo helênico, principalmente em sua carta aos Romanos, alienação/destino é o tempo favorável que triunfa sobre o espaço. O caráter do tempo propício à liberdade substituiu o tempo cíclico, transitório e perecível do pensamento helênico. A partir dessa compreensão, destino traduz aproximação, e apresenta novas possibilidades de construção da liberdade no tempo e na história. 


Antes, a filosofia confrontava-se com a inspiração dos poetas, mas, a partir de Paulo, a revelação apodera-se da filosofia. Assim, o destino que distanciava foi questionado pelo pensamento paulino: “aquele que não era meu povo será chamado de meu povo, e aquela que não era amada passou a ser amada”. (Romanos 9.25). O transitório e perecível perdeu importância e a idéia da construção da existência enquanto tempo favorável foi tomando forma. 


Mas voltemos um pouco atrás, para entendermos esse processo. Dentro da visão paulina, que traduz o pensamento cristão palestino, alienação/destino, no sentido de que os limites são potencialmente ilimitados, é a lei na qual surge o conceito de liberdade. Assim, alienação/destino correlaciona conceitos, porque a alienação está sujeita à liberdade; porque alienação significa que a liberdade também está sujeita à lei; e porque alienação significa que liberdade e lei são complementares e interdependentes.


Analisando o conceito cristão palestino de alienação/destino -- exposto por Paulo em sua carta aos Romanos -- podemos dizer que a liberdade humana está ligada às leis universais, de tal forma que liberdade e leis se encontram entrelaçadas. Para Paulo, assim como para a tradição judaica, lei é imposição de limites. Por isso, a alienação é um estado que surge da correlação entre lei e vida, porque se o julgamento é inerente a tudo na existência, também o é a liberdade.


Assim, a certeza de que a alienação/destino é propícia e tem significado realizador e não destruidor, é a peça chave do pensamento de Paulo, que coloca o sentido da vida, que é o Cristo -- revelado pelo amor do Pai na presença do Espírito --,  acima do destino. Ao fazer isso, Paulo está dizendo que a compreensão do destino não está ao alcance da razão humana, mas o sentido da vida traduz a imortalidade potencial do humano. 


Quando o humano faz a defesa do sentido incondicional da vida deixa de temer a ameaça da alienação/destino que distancia, e aceita o lugar que cabe à alienação enquanto estado da existência. Reconhecemos, então, que desde o princípio vivemos num estado de alienação e que sempre desejamos nos livrar dela, mas nunca conseguimos. Mas nessa análise da alienação cabe relacionar sentido de vida e tempo. O sentido da vida deve envolver as leis universais, a plenitude do tempo e a própria existência. E quando o Cristo alcança a existência, penetra no tempo e faz da alienação, aproximação. 


É necessário, porém, entender que a consciência parte da alienação e que o reino da existência só é acessível ao conhecimento liberto da alienação que distancia. Dessa maneira, ao contrário do que pensavam os gregos, o humano possui potencialidade própria, enquanto ser, para realizar seu destino. Quanto maior a potencialidade humana – que cresce na medida da expansão do sentido da vida, sempre entendida como o Cristo revelado pelo amor do Pai na presença do Espírito -- maior será sua consciência de destino.


O destino humano, que nasce da alienação, aponta para o sentido da vida que emerge das crises e desafios. Quanto mais profundamente entendermos nosso destino, no sentido paulino de prokeimai, estar colocado, ser proposto, predestinado, e o de nossas comunidades, tanto mais livres seremos. É o que nos explica o apóstolo Paulo:


“E da mesma maneira também o Espírito ajuda as nossas fraquezas; porque não sabemos o que havemos de pedir como convém, mas o mesmo Espírito intercede por nós com gemidos inexprimíveis. E aquele que examina os corações sabe qual é a intenção do Espírito; e é ele que segundo Deus intercede pelos santos. E sabemos que todas as coisas contribuem juntamente para o bem daqueles que amam a Deus, daqueles que são chamados por seu decreto. Porque os que dantes conheceu, também os predestinou para serem conformes à imagem de seu Filho, a fim de que ele seja o primogênito entre muitos irmãos. E aos que predestinou, a esses também chamou; e aos que chamou, a esses também justificou; e aos que justificou, a esses também glorificou”. Romanos 8. 26-30.


A liberdade humana se dá na existência, enquanto realidade condicionada pela materialidade. A liberdade entende-se como correlação entre lei e sentido de vida, que como vimos é o Cristo revelado pelo amor do Pai na presença do Espírito. Quando Hegel afirmava que a liberdade é a consciência da necessidade, como fez questão de mostrar Marx, cometia um erro porque descartava a realização da liberdade. É por isso que Marx dirá que liberdade é práxis. Ora, para Marx, práxis é consciência da necessidade somada à ação transformadora. Ou seja, consciência da lei diante do estado de alienação que distancia é mudança radical, é ação transformadora da vida.


Lehatati, hamartia, peccatu é um fazer. Em relação ao imediato transforma-se em estado e no que se refere à espécie humana é um domínio. Lehatati, hamartia, peccatu acontece quando minha liberdade é desafiada, quando ela é chamada a surgir como feitura humana. Nesse sentido, lehatati, hamartia, peccatu não se apresenta sem agente moral, sem liberdade. Toda vez que realizo minha liberdade a lei está presente, pois lehatati, hamartia, peccatu é um contra-tipo da liberdade.


Por isso, só podemos responder à alienação que distancia reconhecendo que lehatati, hamartia, peccatu é feitura minha e de minha espécie, e que devo promover a ruptura desse fazer através da ação de expansão do sentido pleno da vida. Ao nível do pensamento, do sentimento, da vontade e da ação -- pois a alienação que distancia é o que não devia estar -- devemos exercer uma ética radical de defesa da vida e de seu sentido, de combate ao estado de alienação na vida de pessoas e comunidades.


Ballestero, ao analisar o caráter radical do pensamento de Nicolas de Cusa, Lutero e Marx, disse que o projeto de liberdade dos três repousam sobre a autonomia e o ato livre, embora concebidos de maneiras diferentes e mesmo antagônicos. Mas que existem, no contexto da obra dos três, analogias de fundo. E essas se referem ao fato de que liberdade poderia significar a abolição da lei, o colapso da determinação exterior, e não o comportamento que se adequou aos limites da ordem. Assim, segundo Ballestero, Cusa, Lutero e Marx olham a liberdade como a destruição da ordenação exterior e anterior ao próprio ato livre. Ou, como disse o apóstolo Paulo:


“Portanto, agora, nenhuma condenação há para os que estão em Cristo Jesus, que não andam segundo a carne, mas segundo o espírito. Porque a lei do Espírito de vida, em Cristo Jesus, me livrou da lei do pecado e da morte. Porquanto, o que era impossível à lei, visto como estava enferma pela carne, Deus, enviando o seu Filho em semelhança da carne do pecado, pelo pecado condenou o pecado na carne, para que a justiça da lei se cumprisse em nós, que não andamos segundo a carne, mas segundo o Espírito. Porque os que são segundo a carne inclinam-se para as coisas da carne; mas os que são segundo o Espírito, para as coisas do Espírito. Porque a inclinação da carne é morte; mas a inclinação do Espírito é vida e paz”. Romanos 8.1-6.


Os ensaios mostram que a revolução teórica empreendida por Cusa e Lutero não foi gratuita, nem produto de um simples ato ideal, mas se enraizou no tecido histórico do movimento de decomposição global da formação social pré-capitalista. Cusa e Lutero clamaram por essa destruição. Sem entrar nos detalhes das mutações vividas no século dezesseis, com a ruptura do equilíbrio cidade/campo, o surgimento das manufaturas e a consolidação do sistema de trabalho assalariado, vemos que a alienação que distancia da condição humana na incipiente sociedade capitalista foi percebida por Cusa e Lutero: a liberdade do sujeito se dá como dor. 


Mas ambos consideraram essa subjetividade liberada pelo início da arrancada capitalista como desequilíbrio. Assim, tanto Cusa quanto Lutero partiram do distanciamento nessa subjetividade alienada do nascente capitalismo, considerando que deveria ser superada para que o sentido da vida florescesse. Aí, então, teríamos o fim da não-essencialidade do sujeito alienado e a inserção deste na totalidade objetiva. Mas isso não poderia acontecer sem a transformação dessa realidade objetiva em realidade plena de vida, que sustenta o humano. Dessa maneira, o sentido da vida constrói num nível superior o universo anteriormente negado.


O jovem Marx, seguindo os passos de Hegel, partiu dessa discussão. Para ele, a religião era a realização imaginária da essência do humano, e que essa essência não tinha realidade alguma. De todas as maneiras, há um ponto de interligação nessa perspectiva: a liberdade como abolição da legalidade, como coincidência do momento subjetivo com o momento objetivo e como responsabilidade maior do ser humano. 


Para Lutero, o humano existe como estrutura ontológica dual. Sua conceituação partiu da ansiedade teórica do século dezesseis, mas traduziu-se em superação da subjetividade alienada. O humano pleno do sentido da vida é senhor de todas as coisas, não está submetido a ninguém e esse senhorio radical é produto da vida em plenitude. Sua liberdade transforma a subjetividade alienada em realidade objetiva. Nesse sentido, o caráter da liberdade do humano pleno do sentido de vida se dá como processo: morre o imediato, o alienado, e tem início a construção de uma segunda natureza. 


A liberdade surge como deslocamento do humano alienado, como distanciamento crítico daquilo que foi naturalmente dado. O primeiro momento da liberdade parte de uma concepção trágica, porque o senhorio num primeiro momento implica em servidão, criando tensão e luta. “É necessário desesperar-se por você mesmo, fazer com que você saia de dentro de você e escape de sua prisão” (Lutero, Les grands écrits, p. 259). Mas superada a tensão, temos a liberdade enquanto sentido pleno de vida, uma dimensão de combate. E retornando ao apóstolo Paulo:


“Vós, porém, não estais na carne, mas no Espírito, se é que o Espírito de Deus habita em vós. Mas, se alguém não tem o Espírito do Cristo, esse tal não é dele. E, se Cristo está em vós, o corpo, na verdade, está morto por causa do pecado, mas o espírito vive por causa da justiça.  E, se o Espírito daquele que dos mortos ressuscitou a Jesus habita em vós, aquele que dos mortos ressuscitou a Cristo também vivificará o vosso corpo mortal, pelo seu Espírito que em vós habita. De maneira que, irmãos, somos devedores, não à carne para viver segundo a carne,  porque, se viverdes segundo a carne, morrereis; mas, se pelo espírito mortificardes as obras do corpo, vivereis. Porque todos os que são guiados pelo Espírito de Deus, esses são filhos de Deus”. Romanos 8.9-14.


Os humanos são chamados a superar a alienação, ter a liberdade que vai além, a liberdade que é construída na expansão do sentido pleno da vida. E, assim como Paulo, estou convencido de que morte ou vida, anjos ou governos, coisas presentes ou futuras, poderes, altura ou profundidade, ou qualquer criatura não poderá me distanciar do amor do Eterno, que está no Novo Ser, o Senhor.


“Que é, pois, o tempo? Se ninguém me pergunta, eu o sei; se desejo explicar a quem o pergunta, não o sei”, afirmou Agostinho, um homem entre um tempo romano que desmoronava e o tempo medieval em formação. O jeito romano de olhar o mundo dava lugar a um novo olhar. E para olhar o mundo e entendê-lo era necessário saber de onde vinha o mal e a existência do pecado.


De Pelágio (c. 360-420) sabemos pouco. Saiu da Grã-Bretanha, onde tinha jogado um papel importante na formação do cristianismo céltico. Como Agostinho também era monge, e muito respeitado na Grã-Bretanha tanto entre o clero como entre os líderes celtas não religiosos. Nunca foi visto como herege ou alguém que não merecesse a confiança de seus colegas. Foi um precursor do humanismo, pois acreditava nas possibilidades da pessoa e via o mal como um produto social.


Em 410, Roma, fragilizada, foi saqueada pelos godos. Os pagãos, nome com que a Igreja designava os não-cristãos, atribuíram a invasão ao fato de os romanos terem abandonado os deuses antigos. De acordo com eles, enquanto fora adorado, Júpiter protegera a cidade; ao ser trocado pelo cristianismo, deixara de fazê-lo.


Assim entre 412 e 427, Agostinho escreveu A Cidade de Deus, um livro cuja base era o pensamento neoplatônico e que exerceria forte influência nos tempos medievais. Nele respondeu a tais acusações, argumentando que coisas piores haviam ocorrido em tempos pré-cristãos. Que os deuses pagãos eram perversos. Ele não negava a existência de entidades como Baco, Netuno e Júpiter, mas os considerava demônios.


Demônios que ordenavam aos homens, por exemplo, que criassem peças teatrais, definidas por Agostinho como “espetáculos da imundície”. Em razão desses deuses, Roma sempre fora perversa e pecaminosa. 


Com o cristianismo, Roma se salvaria. E, se a cidade dos homens fora invadida, pouco importava, já que o objetivo maior era a salvação por meio do amor para atingir a cidade de Deus, a sociedade dos eleitos. A busca central não era a cidadania na sociedade dos homens, mas a salvação no reinado de Deus.


E assim questões do dia-a-dia, políticas, levarão Agostinho a discutir a questão do mal. Nas suas Confissões conta a história de sua descoberta de Deus, ainda na infância. Para ele, o mal habitava a natureza de todos os seres humanos. Fazia parte da essência do ser, depois do pecado de Adão. E, se os bebês são inocentes, não é porque lhes falte o desejo de fazerem o mal, mas por carecerem de força.


Agostinho, como sua geração, estava preocupado com o problema do mal.  E vai procurar a solução para esta questão na construção de uma teologia que combinaria os textos da revelação bíblica com uma leitura hermenêutica neoplatônica. Assim, a partir da questão da essência em Platão, rompe com o pensamento cristão grego e oriental, que norteava entre outros o monge britânico Pelágio e a igreja cristã celta.


As idéias de Pelágio e da igreja oriental não combinavam com o determinismo essencialista da nascente igreja romana. Nessa época Roma combatia teologicamente os donatistas da África do Norte. Para os donatistas a eficácia dos sacramentos dependia do estado espiritual dos sacerdotes que os ministravam. Essa idéia trouxe um problema para a Igreja. Se ela concordasse com tal visão, poria abaixo o edifício cerimonial e litúrgico da Igreja. E se não concordasse significaria que o edifício cerimonial da Igreja dependia do caráter moral dos clérigos e ninguém poderia ter a certeza se as ordenanças e os rituais teriam eficácia espiritual. 


Mas, se a declaração dos donatistas fosse declarada falsa, então os sacramentos poderiam ser administrados eficazmente mesmo por um herético ou pecador. A acusação de heresia conservaria, desta forma, a estrutura da igreja. Naquela época, muitos homens da igreja, inclusive Agostinho, defendiam que a igreja era uma instituição cuja santidade vinha dos sacramentos e não da fé das pessoas. Para Agostinho e para a igreja de Roma os sacramentos produziam santificação e não era a vida pia que produzia homens santos.


Tal discussão levou Agostinho a negar a realidade metafísica do mal. O mal não é um ser, uma pessoa, mas privação de ser, como a escuridão é a ausência de luz. Tal falta estaria presente em todo ser que não seja Deus, enquanto criado e limitado. 


Quanto ao mal físico, que atinge os seres humanos, Agostinho justificou-o através de um argumento estético: o contraste dos seres contribui para a harmonia do conjunto. 


E em relação ao mal moral, Agostinho disse que existe a vontade má que livremente faz o mal. Ela, porém, não é causa eficiente, mas deficiente, sendo o mal não-ser. Este não-ser pode unicamente provir do homem, livre e limitado, e não de Deus, que é puro ser e produz unicamente o ser. 


Assim Agostinho, através do neoplatonismo, explica que o mal moral entrou no mundo humano pelo pecado original. Por isso, a humanidade foi punida com o sofrimento, físico e moral, além perder dos dons que Deus havia dado a Adão. 


Como se vê, para Agostinho, o mal físico teria origem na culpa do próprio ser humano.  Mas este mal foi remediado pela redenção em Cristo, que restituiu à humanidade os dons sobrenaturais e a possibilidade do bem moral. Mas deixou o sofrimento, conseqüência do pecado, como meio de purificação e expiação. 


E a explicação última de tudo isso estaria no fato de que é mais glorioso para Deus tirar o bem do mal, do que não permitir o mal. Assim, a teologia agostiniana considera que o mal é a privação do bem e não o contrário. E que essa privação do bem não tem origem no mal metafísico ou no mal moral e físico. O bem nunca é conseqüência, porque se fosse conseqüência nasceria do mal. Então, para Agostinho, a solução do problema para o mal -- físico e moral (pecado original versus redenção) -- é estético: o contraste entre os seres leva a harmonia do conjunto. Por isso, para ele, na Igreja está a salvação.


A Igreja celta, porém, não viu a discussão dessa maneira. Para Pelágio e seu discípulo Caelestius, a questão girava ao redor da teologia do livre arbítrio. Não concordava, com a idéia essencialista defendida por Agostinho, que até aquele momento não era majoritária, de um pecado original que degenerou a natureza da humanidade. Numa leitura existencial-fenomenológica do problema do mal, simplesmente revolucionária para sua época, defendeu que eram os atos e as ações que levavam o ser humano a herdar o inferno. E discordou de Agostinho, quando este afirmou que o ser humano só poderia ganhar a salvação através da igreja.


Considerou a doutrina do pecado original sem base neotestamentária e afirmou que todos são concebidos sem o mal moral e que diante dos delitos e pecados são salvos pela graça de Deus, que não merecemos, que nos é entregue através de Jesus Cristo.


Até aquele momento, a visão de Pelágio e seus seguidores traduziam a doutrina histórica do livre arbítrio humano e a da maldade socialmente presente no mundo. Tal visão levou Pelágio a entrar em choque com seu maior opositor, Agostinho de Tagasta. 


Mas, as posições de Pelágio não eram a única fonte de seus problemas com a igreja. Quando ela visitou Roma, em torno de 380, o que viu e ouviu estava em oposição com o rigoroso asceticismo praticado por ele e pelos monges britânicos. Ficou chocado com a pompa e o luxo da hierarquia da igreja romana. Responsabilizou a lassidão moral do Papado, mas obteve como resposta a partir de citação das Confissões de Agostinho, que Deus em sua vontade determina uns para o luxo e outros para a abstinência. Pelágio atacou este ensino, afirmando que a lei moral impera sobre toda a terra.


Pelágio manteve sua vida de asceta. Pregou a natureza moral boa do ser humano e sua responsabilidade para escolher o asceticismo cristão como forma de avançar espiritualmente. Apesar de viver na Irlanda, ganhou inimigos e ficou sob os ataques de Agostinho. 


Ao redor de 412, Pelágio foi para a Palestina, onde em 415 compareceu diante do Sínodo de Jerusalém acusado de heresia. Para defender-se dos ataques de Agostinho e de Jerônimo, escreveu Arbitrio de libero (Na vontade livre), em 416, que ao invés de melhorar a situação, levou-o a ser condenado em dois conselhos africanos. 


Ele e Caelestius foram propostos à condenação e excomunhão pelo papa Inocente. Mas o sucessor de Inocente, Zosimus declarou Pelágio inocente em sua Fidei de libellus (Indicação breve da fé), mas depois reconsiderou, quando nova investigação foi proposta pelo concílio de Cartago (397-419). Zosimus confirmou as acusações e Pelágio foi condenado. A partir dessa data, mas nada se sabe dele.


No entanto, Pelágio é lembrado como aquele que teologicamente tentou livrar a humanidade da culpa de Adão. Seus seguidores fazem questão de mostrar que ele foi um dos primeiros dissidentes da igreja católica romana em construção. 


O individualismo áspero do monge celta, sua convicção de que cada pessoa está livre para escolher entre o bem e o mal, e sua insistência de que a fé deve ser prática (ora et labora), marcaram a imaginação teológica do final do século 20. E não somente a imaginação da Teologia, mas também da Pedagogia e da Psicologia.


As tensões ao redor da compreensão das idéias de alienação, enquanto inclinação existencial para o mal, e graça, enquanto ação divina para a salvação humana, apontam para duas outras questões: história e liberdade. Essas duas questões formam a base do pensamento de que o ser humano por ser imagem do Eterno é um ser livre e, por extensão, faz história. Livre significa liberdade de julgamento no âmbito da existência. Então, para que as pessoas sejam livres, o Eterno garante a liberdade delas. 


Assim, todos são chamados à comunhão e cada pessoa poderia responder positivamente ou não a esse chamado. Caso o ser humano respondesse positivamente ao chamado viveria o processo de libertação que leva à comunhão plena. A comunhão consistiria, então, em arrependimento, que é volta ao estado de liberdade, mais permanência na escolha. A partir desta resposta, o Eterno opera a salvação do ser humano. Por isso, podemos dizer que a vontade humana abre o caminho da libertação. A partir daí entendemos a graça universal, pois todos os seres humanos poderiam responder positivamente ao chamado à comunhão. Ou seja, a liberdade de julgamento no âmbito da existência leva a pessoa a escolher os caminhos de sua história.


A inclinação para o mal, ou seja, a alienação, faz com que as ações humanas, a partir dos desejos – emoções e sentimentos – levem o ser humano a errar o alvo, leharati em hebraico, hamartáno, em grego, e peccátu, em latim. Dentro da tradição das escrituras hebraico-judaicas, leharati é a violação da lei. Mas o leharati é sempre uma ação do coração e não um estado do ser. Já a alienação, esta sim, é um estado da existência e toda a humanidade se encontra nesse estado de inclinação para fazer o mal, conforme vemos em Gênesis 8.21. Assim, leharati traduz não somente falta moral, mas todas as violações da lei, quer conscientes ou não. E, segundo a tradição judaica, todo ser humano nasce sem leharati, e a culpa de Adão recaiu sobre ele e sua família, mas não se estendeu à espécie humana. Apesar disso todo ser humano é responsável pelo leharati porque todos temos vontade livre, mas natureza alienada e tendemos para o mal. Por isso, o texto citado de Gênesis, acima, diz que o coração humano é mau desde a sua juventude. Mas o Eterno, através de sua misericórdia, possibilita ao ser humano o arrependimento e o perdão. 


A libertação humana é um processo, por isso a pessoa não seria plenamente livre, porque dependeria dela permanecer ou não na opção escolhida. Se ela se mantivesse na escolha seria plenamente livre, se abandonasse a escolha voltaria à alienação. Caso a pessoa livre se alienasse, se não se arrependesse e voltasse à comunhão, seria eternamente alienada.


Dessa maneira, na polaridade alienação versus comunhão dá-se a construção da história, ou seja, as pessoas e as comunidades humanas interagem, por opção ou por omissão, na construção de sua história. O Eterno é soberano porque criou e mantém o universo, sustentando-o na universalidade do Espírito. A soberania especial estaria somente sobre a comunidade que permanece na escolha. As outras comunidades estariam fora desta soberania especial, da graça que gera comunhão plena, exatamente porque usaram a liberdade para escolher o leharati. 


E quanto maior a alienação, mais o Eterno retrai sua soberania sobre tais pessoas e comunidades, e, consequentemente, a graça que gera comunhão plena. O que explica o mal enquanto feituras pessoal e social. E para que o processo histórico se dê, o Eterno contrai espaço-temporalmente sua justiça executora. 


Por paixão ao ser humano, ele contrai a ação de seu conhecimento. Caso o Eterno, a partir de seu conhecimento, definisse todas as ações livres do ser humano, as pessoas e as sociedades poderiam fazer apenas aquilo que o Eterno por conhecer definisse, sem poderem tomar decisões alienadas, sem poderem se afastar dele. 


Assim, o Eterno dirige o seu fazer, mas interage com as pessoas e as comunidades humanas na produção da história, enquanto obra que nasce das correlações liberdade/ comunhão e liberdade/ alienação. A polaridade alienação versus comunhão não apresenta o ser humano como bom ou mal, mas como ser que age a partir dessa polaridade. Isso fica claro no diálogo que o Eterno tem com Caim, quando diz que ele está inclinado para o mal, mas deve dominá-lo. Essa conversa apresenta um padrão humano, a tendência à alienação. 


Assim podemos ler Gênesis 6.5, 8.21 e Deuteronômio 31.21. É interessante que nenhum desses textos fala do ser humano como essencialmente corrupto, mas inclinado à alienação. A própria palavra yetzer, que vem da raiz yzr, utilizada quando as Escrituras hebraicas falam de inclinação maligna, significa moldar, propor-se. A idéia é que o ser humano é dirigido por suas inclinações, imaginações, sejam elas boas ou más. É yetzer que, combinado ao julgamento livre no âmbito da existência, possibilita o arrependimento. Ou, conforme diz Deuteronômio, o Eterno coloca diante do ser humano a possibilidade do bem e a possibilidade do mal. Os seres humanos terão comunhão se

obedecerem aos mandamentos do Eterno e serão alienados se desobedecerem aos mandamentos do Senhor (11.16-28). 


Assim, só o Eterno é capaz de fazer com que exista a liberdade humana e mantê-la.  Essa graça, oriunda do Eterno e derramada sobre a humanidade, possibilita a construção da história.


Essa leitura da liberdade entregue ao ser humano é importante para a teologia, pois ao dizer que as pessoas e as comunidades humanas podem agir à margem daquilo que o Eterno desejaria para a humanidade, apresenta a violência, a guerra e os genocídios como frutos da opção e ação humanas. E o teólogo pode, então, analisar porque os profetas clamam e apontam às sociedades o caminho do Reino, embora estas possam escolher os seus próprios caminhos. O campo de concretação de Auschwitz, sob o nazismo, e os genocídios contemporâneos, frutos de políticas religiosas fundamentalistas, são, então, passíveis de estudo. Mas a nossa leitura coloca, também, para as comunidades de fé, o clamor profético e o desafio de expandir o Reino.


Em relação à alienação, o ser humano herdou de Adão a inclinação para o mal e, como consequência, a possibilidade crescente de errar o alvo, mas não a culpa. Os seres humanos são alienados porque separaram razão e coração e erram o alvo porque são alienados. E em relação ao processo de libertação, a morte do Cristo abre as portas da comunhão, mas não assegura a libertação plena, pois esta só será definitiva se a pessoa não desistir da corrida.


Um exemplo dessa leitura, que nos interessa para a construção de uma hermenêutica teológica, seria o arrazoado que Pedro, o apóstolo, fez em sua segunda epístola, ao dizer que a graça não tem limites, pois o Eterno não retarda a sua promessa, como alguns afirmam, por julgá-la demorada, mas por ser paciente. Ele não escolheria a danação eterna de pessoas, ao contrário, desejaria que todos chegassem ao arrependimento, ou seja, fizessem o caminho de volta à liberdade e construíssem comunhão. 


Dessa maneira, a graça tem eficácia ilimitada, mas há uma chave para que a função graça seja plenamente exercida. E essa chave é: chegar ao arrependimento. Dessa maneira, o sacrifício do Cristo, que é graça plena e universal, deve ser somado ao arrependimento, produzindo então a libertação. Ou seja, graça plena mais arrependimento é igual à libertação. E o sacrifício do Cristo sem o arrependimento produz justiça. Ou seja, o valor da cruz não seria limitado, mas sim sua aplicação. E a preparação da pessoa e das comunidades humanas para a graça tem o julgamento livre no âmbito da existência como movimento e o Eterno como móvel. 


Essa preparação pode ser pensada como movimento que parte, enquanto universalidade, da liberdade humana em direção à especificidade que tem o Eterno como móvel e implica em graça determinada pelo Eterno, embora não seja proveniente da coação, mas do seu pleno conhecimento, porquanto a intenção do Eterno não pode deixar de ter efeito. 


Por isso, podemos falar da universalidade da graça, presente na comunidade humana, e na especificidade da graça, que infalível segue a boa vontade humana. Mas esse movimento é dialético, pois, quando olhamos da perspectiva do humano, ele parte da universalidade, mas se olharmos da perspectiva divina parte da especificidade. Ou seja, universalidade e especificidade são termos relativos, que se complementam na plenitude da graça. Por isso, liberdade, eleição e graça fazem parte de uma dança permanente, onde cada conceito implica na existência do outro e nenhum tem existência independente, mas criam uma unidade/ diversidade correlacional plena e necessária. 


Todas as pessoas e comunidades humanas realizam suas existências dentro desse processo, fazem parte dele, o que significa dizer que existência, liberdade e graça fazem parte da história humana. O Eterno mobiliza o processo em direção à especificidade, com base no seu conhecimento da fé e da perseverança de cada pessoa e das comunidades humanas, mas conhece e aceita o sentido da universalidade humana. Esta seria a leitura do texto de Pedro, quando disse que no meio do povo surgiram falsos profetas que introduziram doutrinas destruidoras, a ponto de renegarem o Eterno que os resgatou.


Na teologia cristã, teodicéia, termo cunhado por Gottfried Wilhelm Leibniz (1646-1716), designa a doutrina que procura conciliar a bondade e onipotência de Deus com a existência do mal no mundo. E será a partir dessa doutrina que vamos voltar à questão do mal, que focamos antes, biblicamente, como alienação e pecado. A palavra mal vem do latim malu, e refere-se aquilo que é nocivo, prejudicial, que fere, que é um estado mórbido, doença, angústia, sofrimento, e desgraça. Temos, então, o mal moral, contrário ao caráter do Criador, produzido por agentes morais e temos o mal natural, conseqüência dos desequilíbrios da natureza: furacões, terremotos, e as sequências degenerativas, como as epidemias, deformidades congênitas, AIDS, etc.


As cosmovisões se posicionam diante da questão do mal de diferentes maneiras. Para alguns pensadores agnósticos e ateus o mal não existe. Jean-Paul Sartre, por exemplo, embora descartasse o mal, falava do absurdo da existência, e disse que o inferno são os outros. Mas, a posição clássica dos ateísmos humanistas, positivistas, marxistas e mesmo existencialistas relativizam o mal, já que seria uma visão antropocêntrica, sem contudo negá-lo. 


Já para o panteísmo monista, como é o caso do hinduísmo e setores do budismo, tudo é deus, então nada é mal. Para essa cosmovisão, as coisas parecem más, mas isso é ilusão.  


Para o teísmo, o mal é uma realidade. Mas o teísmo tem muitas leituras. Assim, para as correntes dualistas, existem duas forças opostas em equilíbrio, o bem e o mal. Para as correntes teístas finitistas, que negam atributos da divindade, Deus pode ser bom, mas não onipotente. Essa é a cosmovisão de setores do judaismo contemporâneo. O problema dessa leitura é que apresenta um Deus com limitações, que não controla o universo, ao contrário do que diz Paulo – “nele, digo, no qual fomos também feitos herança, predestinados segundo o propósito daquele que faz todas as coisas conforme o conselho da sua vontade” (Ef 1.11). Outra afirmação do teísmo finitista é de que Deus pode ser onipotente, mas não é lá muito bom. Essa cosmovisão foi defendida por John Stuart Mill e R. Roth. O problema aqui é que esse Deus de Mill e Roth aparentemente não é o mesmo de quem Tiago diz – “toda boa dádiva e todo dom perfeito são lá do alto, descendo do Pai das luzes, em quem não pode existir variação ou sombra de mudança” (Tg 1.17). Mas há ainda outras leituras teístas, como a de Irineu e J. Hick que acreditavam que Deus criou o universo como lugar de provação e aperfeiçoamento. Aqui também temos um problema: é que o conceito de resgate do ser humano diante do pecado deixa de ter significado, pois Deus seria o responsável pela trágica condição do mundo. O que não está de acordo com a afirmação de Gênesis (1.31)  – “e viu Deus tudo quanto fizera, e eis que era muito bom. Houve tarde e manhã, o sexto dia” 


Ora, em Gn 1.31; 1Tm 4.4; Ez 28.12-16 vemos que o universo, enquanto construção dinâmica, é bom no sentido teleológico, tem as qualidades adequadas à sua natureza ou função, e que Deus fez seres livres que tinham e têm opção de escolha: “ele nos gerou pela palavra da verdade, para que fôssemos como que primícias das suas criaturas” (Tg 1.18). A impossibilidade de escolha diante do bem e do mal implicaria na remoção do livre arbítrio. Hc 1.13; Tg 1.13; IJo1.5; Is 6.3; At 17.31; 2Tm 2.13; Tito 1.2; Ap 4.8.


Dessa maneira, o mal tem origem no exercício da escolha de seres livres (Ez 28.12-17; Is 14.12-15; Jo 8.44; Ap 12.9; Mt 13.19; Ef 6.16, Ijo 2.13s; 3.12; 5.18) e de humanos (Gn 3.1-20; Rm 5.12-19). A liberdade de escolha era e é boa, enquanto liberdade dinâmica e progressiva, pois reflete a própria imagem do Deus criador. Mas, na existência está a permanente possibilidade de degradação do bom, do livre arbítrio, mas não pela execução do mal, pois o mal moral e o mal natural são fruto do processo de deslocamento da imagem de Deus: o que teologicamente chamamos de mau encontro, conceito antropológico criado por La Boétie e mais tarde utilizado por Pierre Clastres, que usamos como categoria que traduz as disfunções da imago Dei na espécie humana -- alienação espiritual (Gn 3.8-11, ICo 2.14), alienação psicossomática (Gn 3.3, 4, 16, 19, Jó 14.1-2), alienação sociológica (Gn 3.12, 16-17; Gn 4) e alienação antropo-ecológica (Gn 3.17-19; 9.12). Assim, o ser humano está alienado, separado, em estado de pecado em relação a Deus, a si mesmo, aos outros homens, à natureza, e esta consigo mesma.


Parte da ciência no século XX apresentou-se como materialista. É bom lembrar que antes, cientistas como Galileu, Francis Bacon, Isaac Newton, B. Pascal, M. Faraday e outros não se posicionavam como ateus. Albert Einstein, já no século XX, afirmou: “Deus nunca joga dados com o Universo”. Ao negar o ação criadora de um Deus infinito e pessoal, o ateísmo retira a base para qualquer significado moral no universo, e com isso o ser humano deixa de ter sentido existencial.


Por isso, nos remetemos aqui à teologia da criação e vamos analisar, primeiramente, a questão do termo dia, yom, em Gênesis 1:1-2.3. A raiz de yom aparece 2.355 vezes no texto massorético e pode exprimir um instante de tempo (Gn 3.5); um período de luz (Gn 1.14,16,18); um período de 24 horas; uma época; um período geral e indefinido (Gn. 2:4, sete dias; 4:3, ao cabo de dias; 29:14, um mês inteiro; 41:1, ano; Amós 5:18, o dia do Eterno. Não temos um conceito único para yom. Não há uma posição unânime na igreja. Agostinho considerou que o tempo surge com o universo. E Tomás de Aquino disse que o tempo é uma medida humana.


Mas tempo nos remete a outro conceito o de caos. E aí vem a pergunta: Deus criou o caos? Na leitura tradicional, tohu significa apenas sem forma, caos; e bohu vazia, desolada. Mas temos outros termos que nos levam a idéia de caos: trevas (Gn.1:2,4, 5); abismo (Gn.1:2); águas (Gn.1:2,6-10,21). Mas na leitura tradicional o caos reflete apenas uma situação sem ordem, é plenamente histórico e faz parte da criação original.


Mas temos outras teorias, como as da catástrofe: (a) teoria da criação a partir do caos. Nela, Gn.1:1 é um resumo do capítulo inteiro (1:2-2:3). Aqui a conjunção vê, em hebraico, traduz seu sentido mais comum “e”. E céu e terra significam o universo organizado (Gn.2:4, 5:1; 9:32). Essa seria a primeira criação que aparece em Hb.11:3; Cl.1:16,17; Jo.1:1-3; e Rm.4:17. E (b) teoria da brecha, onde Gn.1:1 é criação original e a conjunção vê que inicia 1:2 deve ser traduzida como porém, simbolizando um lapso de tempo desconhecido, em que houve uma catástrofe entre os dois períodos. Donde, Gn. 1:3-21 é uma recriação da terra.


A questão da construção do mundo é fundamental para o estudo do fazer bem e do fazer mal, pois posicionam bem e mal em condições e momentos diferentes, conforme a leitura que se faça de Gênesis. De todas as maneiras, a relação criação versus bem e mal sublinha a constante existente que nasce da liberdade humana diante da realidade. O ser humano pode usar a liberdade para retribuir o seu amor ao Criador, oferecendo-se a ele em adoração e serviço, mas no dom da liberdade está contida outra possibilidade, a de decidir fazer-se alvo de seu amor-próprio. A alienação consiste nisso, na decisão do ser humano de fazer um caminho solo. Essa deslocamento leva ao abuso da dignidade e à distorção da aliança de ser imagem de Deus, colocando-se como demiurgo, como móvel de querer. Ou como disse La Boétie, “que mau encontro foi esse que pode desnaturar tanto o ser humano, o único nascido de verdade para viver francamente, e fazê-lo perder a lembrança de seu primeiro ser e o desejo de retomá-lo?”  E Clastres, analisando o texto desse libertário do século XVI, que influenciou o pensamento huguenote francês, afirma: 


“Mau encontro: acidente trágico, azar inaugural cujos efeitos não cessam de ampliar-se, a tal ponto que é abolida a memória do antes, a tal ponto que o amor da servidão substituiu-se ao desejo de liberdade. O que diz La Boétie? Mais do que qualquer outro clarividente, afirma inicialmente que essa passagem da liberdade à servidão deu-se sem necessidade, afirma acidental – e, desde então, que trabalho pensar o impensável mau encontro!”.


Antropologicamente, mau encontro é descrito como enfermidade, vício ou corrupção da liberdade do ser humano por ele próprio que, por essa corrupção, se coloca em estado de servidão voluntária. Teologicamente, definimos como a opção do ser humano de não mais confiar a Deus sua vida, mas deixar-se dominar por suas próprias paixões. O entendimento do mau encontro enquanto rebelião forma o pilar da antropologia evangélica, já que o problema do mau encontro passa a estar ligado à liberdade do ser humano e porque essa liberdade é uma expressão da imago Dei. Infelizmente, a ciência moderna esqueceu que o mau encontro e a degradação da liberdade humana, assim como a ativação do ser pessoal do humano num sentido contrário à vontade de seu Criador, introduziram a desordem no relacionamento de todo o universo de Deus.


O distanciamento do ser humano de Deus teve como conseqüência o entorpecimento da responsabilidade e da materialidade do mundo, dando à morte poder sobre o humano. Criou distorção na primitiva relação de equilíbrio da imago Dei e inverteu a relação entre espírito, alma e corpo, gerando conflitos que não remontam à estrutura original do ser humano, mas estão na base do afastamento do ser humano em relação a Deus. O distanciamento do ser humano, que entorpece sua liberdade, nos leva à compreensão do Cristo como figura histórica que representa o penhor de redenção do ser humano, conforme João 1.4. Assim, dois elementos fazem parte da compreensão da encarnação: o primeiro deles é a absoluta irrepetibilidade do acontecimento; e o segundo é o fato material de que o próprio Deus, como ser humano, como membro de uma família, de uma comunidade, de um tempo, entra na corporabilidade, na materialidade da história da humanidade, criando no meio dela a semente de uma radical transformação de todo o modo de ser do humano, abrangendo todas as esferas da natureza humana, material, psíquica e espiritual.


Vejamos como se dá na tradição judaico-cristã essa relação entre liberdade versus mal. No Antigo Testamento temos uma espiral conceitual na trindade aliança, fidelidade e constância, cujo centro epistemológico é a liberdade. No Novo Testamento o vértice é o conceito de destino.


Paralelamente ao pensamento hebraico, a cultura grega apresentará uma leitura diferente do conceito de destino, que traduzia a maneira de pensar e viver do helenismo. Na sua época, por razões apologéticas, o apóstolo Paulo apresentará um conceito de destino que resgata e transcende o conceito veterotestamentário de aliança. Entre os gregos, a religião e o culto de mistérios traduziam uma luta contra o destino, numa tentativa de colocar-se acima dele. A origem dos cultos de mistérios não pode ser entendida quando os vemos apenas como mitos. Para o ser humano helênico a luta com o destino era inevitável porque o destino tinha qualidades demoníacas. Era um poder sagrado e destrutivo. Envolvia o ser humano numa culpa objetiva. Os cultos de mistério, dessa forma, ofereciam uma purificação das mãos de deuses que manipulando o destino, excluía do ser humano qualquer possibilidade de liberdade. Assim, também a filosofia helênica, através do conhecimento, procurava elevar o ser humano à transcendência, despojando-o dos objetivos e formas da vida imediata, para lançá-lo através da abstração em direção ao ser puro. O mundo helênico era um mundo de culpa objetiva e castigo trágico e m profundo pessimismo atravessava todo o conhecimento, desde Anaximandro, passando por Pitágoras, Demócrito, Sócrates, Platão e Aristóteles.


Apesar dessa visão trágica, os gregos eram apaixonados pela vida e é essa dicotomia que dará riqueza a esta que será uma das mais expressivas culturas da humanidade. Mas, em última instância, a luta do filósofo permaneceu inalterada em todo o helenismo: superar o destino. E isso foi tentado através do domínio do pensamento, como forma de elevar-se acima da existência, já que no campo da ação e da transformação da existência é impossível superar o destino. No entanto, nunca essa meta foi alcançada. Possibilidade e necessidade foram conceitos chaves nas discussões do helenismo pós-platônico. O medo de demônios obscureceu o espírito helênico. O epicurismo tentou, em vão, libertar seus seguidores do medo, mas ao definir o conceito de possibilidade absoluta [ou azar], abriu o espaço para o medo em sua argumentação filosófica.


Dessa maneira, a filosofia grega caminhou para ceticismo, já que a busca de uma certeza transcendente para a existência humana se mostrou nula. Ao mesmo tempo, enquanto força sobre-humana do destino, as nações eram submetidas ao poderio romano. Diante desse destino trágico, o mundo helênico tinha necessidade da revelação. Ameaçado por um destino demoníaco, o mundo helênico ansiava por um destino salvador, necessitava de graça.


Cristo é a vitória sobre a idéia de que a matéria é força que resiste a Deus e o vence. Nesse sentido, o cristianismo traduz a compreensão de que o mundo é uma criação divina e de que Cristo é a vitória da perfeição do novo ser em todos seus aspectos sobre o medo trágico e a matéria que resiste, hostil a Deus. É a negação radical do caráter demoníaco da existência em si. Dá a existência um valor essencialmente positivo e valoriza os acontecimentos da ordem temporal. Em Cristo, ao contrário do que pensava Anaximandro, a ordem do tempo não leva apenas ao transitório e perecível, mas também à possibilidade de algo totalmente novo, um propósito e um fim que dá pleno significado à vida humana.


No cristianismo o tempo triunfa sobre o espaço. O caráter irreversível do tempo bom [cairos] substitui o tempo cíclico, transitório e perecível do pensamento helênico. A partir desse momento, destino outorga graça, que traz salvação no tempo e na história. O mundo helênico e sua interpretação da vida estão superados e com eles, a filosofia, a religião e os cultos de mistério.


Antes, a filosofia buscava desesperadamente a revelação, agora a revelação apodera-se da filosofia dando origem à teologia. Assim, a teologia jogou fora o destino demoníaco e, por extensão, a metafísica helenística e se apropriou de suas formas lógicas e de seus conteúdos empíricos. O transitório e perecível da filosofia helenística não teve importância na formação do pensamento ocidental, mas sim a idéia da criação divina do mundo e a fé numa providência divina, através da salvação que se constrói historicamente e acontece num tempo bom. E isso já não é helenismo, mas antropologia teológica cristã.    


Mas voltemos um pouco atrás, para entendermos esse processo. Dentro da visão paulina, que traduz o pensamento cristão palestino, destino, no sentido de que os limites estão dados de antemão, é a lei transcendente na qual está imbricado o conceito de liberdade. Assim, destino também implica numa trindade conceitual: (1) o destino está sujeito à liberdade; (2) destino significa que a liberdade também está sujeita à lei; (3) destino significa que liberdade e lei são interdependentes e complementares.


Analisando o conceito cristão palestino de destino, exposto por Paulo (Romanos 8.31-39; e 9), podemos dizer que a liberdade humana está ligada às leis universais, de tal forma que liberdade e leis se encontram intrinsecamente entrelaçadas. Aqui Paulo trabalha com um conceito judaico, de que lei é imposição de limites, que faz parte da revelação, que se expressa pela primeira vez como criação de Deus. Mas para Paulo, se o mal é uma probabilidade que surge da dialética lei e graça, o julgamento era inerente a tudo na criação, mas também a liberdade.


Assim, a certeza de que o destino é divino e não demoníaco e tem um significado realizador e não destruidor é a peça chave do pensamento paulino, que coloca o Logos acima do destino. Ao fazer isso, Paulo está dizendo que a compreensão do destino não está ao alcance do ser humano, nem pode ser submetido aos processos do pensamento humano. Mas esse Logos eterno se reflete através de nossos pensamentos, embora não exista um ato do pensamento sem a secreta premissa de sua verdade incondicional (Romanos 12.2 e ICoríntios 2.16). Mas a verdade incondicional não está ao nosso alcance. Em nós humanos há sempre um elemento de aventura e risco em cada enunciado da verdade. Mas, mesmo assim, devemos correr este risco, sabendo que este é o único modo que a verdade pode ser revelada a seres finitos e históricos.


Quando mantemos relação com o Logos eterno e deixamos de temer a ameaça do destino demoníaco, aceitamos o lugar que cabe ao destino em nosso pensamento. Podemos reconhecer que desde o princípio esteve submetido ao destino e que o nosso pensamento sempre desejou livrar-se dele, mas nunca conseguiu. Tarefa teológica da maior importância na análise cristã do destino é saber relacionar Logos e cairos. O Logos deve alcançar o cairos. O Logos deve envolver e dominar as leis universais, a plenitude do tempo, a verdade e o destino da existência. A separação entre Logos e existência chegou ao fim. O Logos alcançou a existência, penetrou no tempo e no destino. E isso aconteceu não como algo extrínseco a ele próprio, mas porque é a expressão de seu próprio caráter intrínseco, sua liberdade.


É necessário, porém, entender que tanto a existência como o conhecimento humano estão submetidos ao destino e que o imutável e eterno reino da verdade só é acessível ao conhecimento liberto do destino: a revelação. Dessa maneira, ao contrário do que pensavam os gregos, todo ser humano possui uma potencialidade própria, enquanto ser, para realizar seu destino. Quanto maior a potencialidade do ser – que cresce à medida que é envolvido e dominado pelo Logos – mais profundamente está implicado seu conhecimento no destino.


Nosso destino, que aqui deve ser entendido como missão, é servir ao Logos, num novo cairos, que emerge das crises e desafios de nossos dias. Quanto mais profundamente entendermos nosso destino (no sentido de prokeimai, estar colocado, ser proposto) e o de nossa sociedade, tanto mais livres seremos. Então, nosso trabalho será pleno de força e verdade.


A vontade humana não é neutra e a liberdade humana sempre se dá dentro de uma realidade condicionada. Assim, a liberdade entende-se como relação dialética entre lei e graça. Quando Hegel afirmava que a liberdade é a consciência da necessidade, como fez questão de mostrar Marx, cometia um erro porque descartava a realização da liberdade. É por isso que Marx dirá que liberdade é práxis. Ora, para Marx, práxis é consciência da necessidade mais ação transformadora. Ou seja, em termos teológicos, consciência da lei diante da existência do mal é arrependimento e ação transformadora do Logos produzindo justificação e mudança de vida, graça.


Dentro da visão cristã e exatamente pelo que acabamos de ver, o mal, ao contrário do que pensavam os gnósticos, não é um ser, mas um fazer. Em relação ao imediato é um estado e no que se refere à espécie humana é um domínio. Numa definição teológica, o mal acontece perante aquilo que minha liberdade é desafiada, quando ele, o mal, é chamado à surgir como feitura humana. Nesse sentido, o mal não se apresenta sem agente moral, sem liberdade. Toda vez que realizo minha liberdade a lei está presente, pois o mal é um antítipo da salvação.


Por isso só podemos responder ao mal reconhecendo que o mal é feitura minha e de minha espécie, colocando a ruptura desse domínio nas mãos daquele único que pode fazê-lo, o Logos. A partir daí, ao nível do pensamento, já que é um desafio teológico, o caminho é a reflexão, como aquela que Agostinho fez frente aos gnósticos, quando esses levantarem a satânica pergunta: Por que o mal existe? Transformando assim o mal em coisa e mundo, dando existência e imagem ao mal. Agostinho responde dizendo que a única pergunta que posso fazer é: O que me leva a fazer o mal? E ao nível da vontade e do sentimento, crendo em Deus apesar do mal, pois a Cristologia nos ensina que o Logos também sofreu. E por fim, ao nível da ação, pois o mal é o que não devia estar, devemos ter uma ética de responsabilidade social, de combate a este estado e domínio na vida de meu próximo e da sociedade.


Mil anos depois de Agostinho, a questão do mal continuava em discussão e a teodicéia, ainda em construção, oscilou entre dois imperativos aparentemente excludentes, o da soberania de Deus, (ICr.29:11-14; Sl.139:1-16; Is.45:1-13; 63:16-17; Ef.1:11; Jo.6:44; Rm.9:11-24) e o do livre arbítrio (II Pe.2:1 redenção, IJo.2:2 propiciação, IICo. 5:19; reconciliação, Is. 53:6, Jo.1:29, 3:16-18, 4:42, ITm. 4:10, IIPe.3:9). Mas, no início do século XX, a partir da teologia dialética, passou-se a ver tais imperativos como conjunto ou totalidade. Assim eleição e oferta aberta foram lidos como termos complementares, e a cruz como base da salvação e da condenação, Jo.3:18,36.


Mas vamos analisar a dialética de tais imperativos sob um novo ângulo. Em 1970, Manuel Ballestero publicou em Madri, pela Siglo XXI, La Revolución del Espíritu (Tres pensamientos de libertad), analisando o caráter radical da liberdade no pensamento de três gênios da modernidade: Nicolas de Cusa, Lutero e Marx. Ballestero diz que sua preocupação residiu em analisar o projeto de libertação desses três pensadores, sabendo que o ato livre e a autonomia são concebidos de maneiras diferentes e mesmo antagônicas, embora existam, no contexto da obra dos três, analogias de fundo, “já que neles, em um e outro plano, liberdade significa abolição da lei, colapso da determinação exterior, e não – à maneira conservadora – comportamento que se adequou aos limites da ordem. Liberdade para os pensadores que aqui analisamos significa a destruição de toda ordenação que seja exterior e anterior ao próprio ato livre.”


Os ensaios mostram que a revolução teórica empreendida por Cusa e Lutero não é gratuita, nem produto de um simples ato ideal, mas se enraíza no tecido histórico do movimento de decomposição global da formação social pré-capitalista. Cusa e Lutero clamam por essa destruição. Sem entrar nos detalhes das mutações vividas no século 16, com a ruptura do equilíbrio cidade/campo, o surgimento das manufaturas e consolidação do sistema de trabalho assalariado, vemos que a dimensão negativa da condição humana na incipiente sociedade capitalista será percebida por Cusa e Lutero: a autonomia do sujeito se dá como dor. Mas ambos consideram essa subjetividade liberada pelo início da arrancada capitalista como desequilíbrio. Assim, tanto Cusa quanto Lutero partem da negação dessa subjetividade alienada do nascente capitalismo, considerando que deve ser superada para que o Espírito floresça. Aí, então, teríamos o fim da inessencialidade do sujeito alienado e a inserção deste na totalidade objetiva. Mas isso não pode acontecer sem a transformação dessa realidade objetiva em realidade espiritual, que sustém o ser humano. Dessa maneira, para os dois pensadores, o Espírito constrói num nível superior o universo anteriormente negado.


O jovem Marx, seguindo os passos de Hegel, partirá dessa discussão. Para ele, a religião é a realização imaginária da essência do ser humano, já que essa essência do ser humano não tem realidade alguma. Mas há um ponto de interligação nessa perspectiva, quando vê, assim como Cusa e Lutero, a liberdade como abolição da legalidade, como coincidência do momento subjetivo com o momento objetivo, e como responsabilidade suprema do ser humano. Para entender esse ponto de partida de Marx é bom ler seus manuscritos econômicos e filosóficos, mas também sua Introdução à Crítica da Economia Política (Marx, São Paulo, Abril Cultural, 1982), texto que só foi descoberto em 1902 e publicado por Kautsky em 1903.


 “O cristão é senhor de todas as coisas e não está submetido a ninguém. O cristão é servo em tudo e está submetido a todo mundo” (Lutero, Les grands écrits reformateurs, Paris, Aubier, 1955, p. 225). Livre e não submisso, servo e escravo. Para Lutero, o ser humano existe como estrutura ontológica dual. Sua conceituação traduz a ansiedade teórica do século XVI, mas traduz-se em superação da subjetividade alienada. O cristão é senhor de todas as coisas, não está submetido a ninguém e esse senhorio radical é produto da graça. Sua liberdade é fruto da fé que transforma a subjetividade alienada em realidade objetiva. Nesse sentido, o caráter espiritual da autonomia do cristão se dá como processo. Morre o imediato, o alienado, e tem início a construção de uma segunda natureza. A liberdade surge como deslocamento do ser humano natural, como distanciamento crítico daquilo que foi naturalmente dado. O primeiro momento da liberdade parte de uma concepção trágica, porque o senhorio num primeiro momento implica em servidão, criando tensão e luta... “É necessário desesperar-se por você mesmo, fazer com que você saia de dentro de você e escape de sua prisão” (Lutero, Les grands écrits, p. 259). Mas, superada a tensão, temos a liberdade enquanto espiritualidade, uma dimensão de combate. O ser humano, que em Cristo vive essa metamorfose, tem a liberdade que vai além, a liberdade no Espírito que é fonte de realidade e ação. Assim, o cristão transforma-se em receptáculo da fé, em intencionalidade aberta ao Absoluto.





Verdade. o que é isso?


Aletheia, em grego antigo ἀλήθεια, verdade, no sentido de desvelamento, de a-lethe, é a negação do esquecimento. Para os pensadores pré-socráticos physis, logos e aletheia formavam a base primeira do pensar filosófico. 


Aletheia transcende o humano, por ser uma palavra que se coloca fora do tempo, antes do tempo, como fundamento do tempo. É a palavra da justiça, que envolve a memória, confiança, poder de persuasão e adesão última. 


Os pensadores pré-socráticos não trabalhavam uma oposição rígida entre verdade e falsidade, por isso outros pares de opostos como memória e esquecimento, certo e errado, confiança e engano rompiam esse padrão. 


Aletheia é um conceito aberto, e não uma correspondência de julgamento. É um conceito mítico, que expressa a força da physis enquanto natureza, cosmo. Traduz a verdade dos justos e dos sábios, mas é frágil, sujeita a erro e à fraude -- uma palavra para o léthé. 


Aletheia, assim, para os pensadores pré-socráticos significava fora do lethe, fora do esquecimento, e nos fala da experiência de colocar-se fora de uma situação que a princípio deveria ser esquecida ou deixada de lado. É uma experiência ontológica. Não é apenas uma recurso de linguagem. É um conceito governado pelo lethe. Baseia-se no fato de que é necessário desvelar, trazer à revelação aquilo que estava fora ou colocado no esquecimento. Este é o âmago da expressão entre os pensadores pré-socráticos e poetas como Homero e Hesíodo. 


Desde Platão, em sua Alegoria da caverna, aletheia aparece como o brilho da idéia. Mas, há um pressuposto presente no pensamento de Aristóteles, que vai influenciar todo o pensamento moderno, quando aletheia é entendida enquanto dimensão lógica: uma coisa não pode ser e não ser ao mesmo tempo. Ou seja, aletheia aparece, então, ligada ao princípio da não-contradição. Aletheia passa a traduzir a idéia de que algo realmente não pode ser e não-ser. 


E no pensamento moderno, aletheia ressurge no pensar matemático, em Descartes, e no fenômeno, em Kant. E será entendida como o "intellectus adaequatio". Assim, aletheia passa a ser compreendida na modernidade como uma correspondência entre a idéia e a coisa. Ou seja, quando esta construção do conhecimento é estabelecida a aletheia é atingida. 


Mas será Martin Heidegger quem confrontará a posição aristotélica, ao entender que a lógica fica em suspensão em relação à aletheia do ser, quando se aplica o princípio da contradição em um círculo. 


Martin Heidegger voltou ao significado original da ideia de aletheia, partindo dos pré-socráticos, Parmênides, Heráclito, Anaximandro e também de Homero, o poeta. Para os primeiros pensadores pré-socráticos, três temas -- physis, logos e aletheia -- estão em contato, porque são conceitos fundamentais para se pensar a filosofia. E essa relação deve ser mantida. 


Heidegger põe em xeque o postulado aristotélico, e volta às origens gregas para desconstruir a dimensão lógica do conceito aletheia. Ou seja, retorna à compreensão ontológica de aletheia, que exige deixar de fora do conceito a idéia exclusiva de acordo e retidão de julgamento. E assim, em Heidegger, aletheia volta a ser um conceito aberto, como fora para os pensadores pré-socráticos, em especial para Parmênides. 


Para Platão, a aletheia é um evento, e não levar em conta que o evento ocorreu produz perda de sentido, porque esse esquecimento é perda metafísica de sentido, o que para Heidegger é catástrofe e colapso. 


Aletheia em Platão não é um acontecimento em processo, mas o resultado de um processo. O acontecimento é fato dado. Ou seja, estamos diante da mutação da essência e por extensão do ser. 


Para Heidegger, aletheia caminha pari passo com o bem. E isso está posto a partir de Platão, que na República, apresenta o bem supremo como regulador, é aletheia/bem. Ou seja, Platão vai além dos pré-socráticos Parmênides e Heráclito nas suas construções primeiras de aletheia. E Heidegger seguiu a trilha aberta por Platão. 


Martin Heidegger trabalha aletheia como inauguração do estar e não como um acordo de início. Assim o conceito aletheia remete, a partir de Heidegger, a duas compreensões fundamentais: (1) eficácia: o logos não está separado de sua realização, porque traduz as forças da natureza; (2) intemporalidade: o logos é pronunciado em um tempo que escapa a sucessão de passado, presente e futuro. 


Segundo Heidegger, não podemos afirmar que hoje a aletheia deixou de existir, mas que, como entendeu Emmanuel Levinas, deu-se em relação a ela uma perda de precisão, ou seja, de sentido.





É tempo de reconstruir o Brasil 



A solidariedade é um tema que aquece corações e desafia mentes. Edgar Morin, desde os tempos da Guerra Civil Espanhola, se debruçou sobre tal desafio e sua relação intrínseca com a economia e a política. Hoje vamos pensar, em vôo de pássaro, a reconstrução do Brasil levando em conta o papel da solidariedade. 


Façamos um breve balanço da pandemia, que eu chamo de peste. Em poucos meses transformou-se numa das principais causas de morte no mundo: matou mais de 3 milhões de pessoas em um ano e meio. 


Desde o seu aparecimento, a peste matou 3 milhões de pessoas para 140 milhões de casos registrados, de acordo com levantamento da Universidade Johns Hopkins, de 18 de abril de 2021. Os Estados Unidos são o país mais enlutado com mais de 1/2 milhão de mortos (para 31 milhões de casos). Seguem-se o Brasil com cerca de 400 mil mortos (para 13 milhões de casos) e o México, com 200 mil mortos (para 2 milhões de casos). A Índia está em quarto lugar, com 180 mil mortos (para 14 milhões de casos). 


As pestes são um fenômeno tanto de saúde quanto social. Elas mostram as vulnerabilidades estruturais da sociedade e desafiam o status quo. A pandemia de influenza de 1918 trouxe com suas tragédias grandes mudanças políticas e sociais no mundo: passou-se a ter uma nova visão, positiva, do movimento trabalhista e dos sindicatos, e criaram-se sistemas universais de saúde no correr das décadas seguintes. É verdade que essas mudanças se realizaram de forma diferente de um país para outro. 


Da mesma forma, a pandemia do Covid 19 evidenciou as desigualdades existentes em nossa sociedade, que afeta principalmente as pessoas marginalizadas, tornadas invisíveis ou desumanizadas, como idosos e deficientes físicos. Assim como, também, os milhares de encarcerados em prisões. 


Mas evidenciou também a situação daqueles que vivem em áreas onde a superlotação e a falta de acesso aos recursos são difíceis, como nas comunidades indígenas. Seus efeitos são modulados por local de residência, origem étnica, gênero, classe social. Corremos mais risco de sermos infectados com Covid 19 nos bairros onde as comunidades negras residem do que em outras regiões. As mulheres tiveram que absorver a parcela mais importante das chamadas tarefas domésticas, e as crianças de famílias pobres passaram a ter mais dificuldade em recuperar o atraso escolar acumulado. Sem falar nos impactos em escala global, onde a corrida por equipamentos e por vacinas amplia a lacuna do apartheid global. 


“Os múltiplos exemplos de solidariedade que surgiram durante a pandemia revelaram as deficiências desta solidariedade na situação dita “normal”, deficiências causadas pelo próprio desenvolvimento da nossa civilização, que reduz enormemente a solidariedade sob o efeito do individualismo cada vez mais egoísta, juntamente com o efeito de uma compartimentação social cada vez mais fracionada. Na verdade, a solidariedade estava adormecida em cada um e despertou com o infortúnio vivido em comum. Para suprir a carência de poderes públicos, assistimos ao surgimento de um grande número de atos e iniciativas de solidariedade: produção alternativa à falta de máscaras por empresas reconvertidas, roupas artesanais ou domésticas, agrupamentos de produtores locais, entregas ao domicílio gratuitas, ajuda mútua entre vizinhos, alimentação distribuída a moradores de rua, acompanhamento de crianças e contatos mantidos nas piores condições entre professores e alunos”. (Edgar Morin, Necesitamos funerales para despedirnos, y otras lecciones de la pandemia, El País online, 05.11.2020).


Outras medidas importantes foram adotadas por diferentes governos no contexto da peste: benefício de emergência, proibição de despejo de moradias, liberação de presos, planos de regularização de pessoas sem status, abertura de quartos de hotel para acomodação de pessoas na falta de moradia, colaboração internacional em pesquisa científica, planos de ação sobre mudanças climáticas, que estão intrinsecamente ligados às pandemias. Essas intervenções são reformas de pequena escala que estabelecem as bases para novas políticas necessárias. 


Assim, essa pandemia, como a de 1918, nos força a ver nossas fraquezas em meio à dor e às lágrimas. E nos coloca frente a frente com as falhas dos sistemas que construímos. Também nos mostra como corrigi-los. A decisão de fazer isso depende de nós. 


A pandemia apresenta possibilidades para perceber a fragilidade do mundo. Questiona as interações entre meio ambiente e saúde e o papel da biodiversidade em sua propagação. Refletindo uma visão solidária da saúde pública, pode ser o prenúncio de uma democracia da saúde se a política de saúde se tornar um assunto coletivo e não for mais reservado estritamente a políticos e profissionais de saúde. Esta crise nos exorta a ir além do caráter rotineiro da existência para nos aproximar de uma segunda via. É, este é o desafio, devemos buscar uma maneira diferente de viver. E a solidariedade se mostra como caminho, já que durante a pandemia nos tornamos conscientes de nossa dependência e vulnerabilidade. Assim, pandemia versus solidariedade nos confrontam com a questão do significado da vida. 


“A crise também estimulou uma série de iniciativas, que buscaram diferentes remédios para os males que a pandemia causou ou agravou. Textos de intelectuais, cientistas, médicos, depoimentos, sugestões, apelos de artistas solidários e também reflexões e propostas de cidadãos para diagnosticar, prever e expor as bases de uma nova política que visa reformar e até transformar a sociedade.” (Edgar Morin, idem). 


É, de novo afirmo: pandemia versus solidariedade nos confrontam com a questão do significado -- o confinamento é fonte de angústia. O desaparecimento de reuniões, refeições compartilhadas, ritos de amizade fecham as cidades em uma economia doméstica incerta. Porque toda vida foi e está exposta. 


Na medida em que a saúde de cada um depende da saúde de todos, só um serviço público de saúde, equipado com material e pessoal necessários ao seu bom funcionamento, pode permitir-nos evitar outras pestes. Para Morin, “esta crise deve abrir as nossas mentes, há muito confinadas ao imediato”. Porque por trás disso estava a corrida pela rentabilidade, a digitalização da sociedade, a economia just-in-time, a transferência dos serviços públicos para os mercados. Estas fragilidades da sociedade que construímos exigem uma reflexão estratégica sobre nosso futuro comum. 


“A crise em uma sociedade desencadeia dois processos contraditórios. O primeiro estimula a imaginação e a criatividade na busca de novas soluções. A segunda pode ser traduzida em uma tentativa de retornar a uma estabilidade anterior ou de se inscrever para uma salvação providencial. A angústia provocada pela crise motivou a busca e denúncia de um culpado. Esse culpado pode ter cometido erros que causaram a crise, mas também pode ser um culpado imaginário, um bode expiatório que deve ser eliminado” (Morin, idem). 


Estou convencido de que existem possibilidades positivas além desta pandemia, se ela nos permitir tomar consciência de nossas fraquezas e voltarmos a nos concentrar no essencial. No entanto, essa compreensão não pode atender apenas à parte mais precária da população, aquela que paga o preço mais alto pela pandemia. As medidas de contenção amplificam as desigualdades. O fechamento da economia aumenta a precariedade e a transforma em pobreza. É essencial, a curto prazo, organizar a ajuda às famílias e empresas em dificuldade para lidar com o vírus. Mas é fundamental, a médio prazo, mobilizar as lições da crise para lançar as bases de economia e políticas solidárias. Devemos propor o retorno ao estado de bem-estar social. 


A indústria deve ser reconvertida para poder produzir equipamentos médicos e medicamentos, mas também equipamento de triagem, reposição de estoques e produção de máscaras. E, logicamente, devemos manter as medidas de barreiras sanitárias. Mas, para além da emergência sanitária, a injeção de liquidez na economia real, já iniciada em alguns países, tanto a nível nacional como comunitário, deve estar presente na economia solidária, evitando que este capital acabe em mercados especulativos. E atenção, deve ser terminantemente proibida a especulação sobre os títulos da dívida pública. 


Uma política solidária de emprego ativa é absolutamente necessária para fazer face ao desemprego que se fez presente. Provavelmente, estará ligada ao setor de serviços, de suporte, de atendimento e de utilidade social, mas também à produção e comercialização de alimentos. 


Finalmente, a política social solidária deverá ser renovada através da reavaliação dos mínimos sociais, um aumento geral dos salários e das pensões mais baixas. Nesta mudança de paradigma, as autoridades e seus parceiros sociais têm um lugar especial a ocupar. Primeiro porque a crise mostrou que é a nível local que ocorre a mudança. E segundo porque não é possível enfrentar tal crise seguindo uma política de especialistas, que se sentem muito seguros de suas habilidades para ouvir aqueles que estão vivendo na carne a pandemia que se abateu sobre o planeta. 


A pandemia abriu perspectivas e possibilidades solidárias. E se você entender isso, assim como os governos que você eleger, um Brasil solidário será possível. Pense como e em que medida você será necessário nesta nova etapa que se abre.





A religião é o ópio do povo



O ser humano é um ser cheio de espiritualidade, e essa espiritualidade pode se expressar de várias formas, sem precisar de um lugar definido. E a religião ocupa um espaço privilegiado nessa espiritualidade, que nada mais é do que a dimensão da profundidade do espírito humano. Por isso existe a busca humana que nos direciona à espiritualidade, à fé e à religião. Ou seja, o homem é um ser religioso.


Que a religião está presente em todas as ações do espírito humano: na ética, na estética, no conhecimento. Por isso, quando alguém rejeita a religião em nome da ética, da estética, ou da busca do conhecimento, está rejeitando a religião em nome da própria religião, porque ela constitui a substância, o fundamento e a profundidade da vida espiritual do ser humano.


Podemos dizer que espiritualidade é aquela relação da pessoa com a transcendência. Nesse sentido, a espiritualidade é a totalidade da vida. A religião, por sua vez, traduz uma dimensão dessa espiritualidade. Por exemplo, quando multidões assistem a um filme como A paixão de Cristo, de Mel Gibson, e as pessoas são despertadas, cada qual à sua maneira, para sua miserabilidade humana, vemos aí uma expressão da espiritualidade. As experiências humanas com o que é sagrado envolvem escolha, disciplina e prática, e levam o ser humano às experiências religiosas, porque a religião traduz o que é sagrado para a vida do crente. Dessa forma, a espiritualidade sempre será traduzida em religiosidade.


Em relação à realidade brasileira, percebemos mais diversidade confessional do que religiosa. Oitenta e nove por cento dos brasileiros confessam ser cristãos, cuja fé está presente no desejo de justiça social e solidariedade. Diante dessa religiosidade cristã invisível, cientificamente podemos dizer que quase todos os brasileiros são cristãos em alguma medida. Tomemos, como exemplo, a igreja católica, que não pode ser analisada como una, pois abriga diferentes manifestações de religiosidade. Além dessa pluralidade católica, há centenas de igrejas evangélicas que incluem as históricas, as pentecostais, as neopentecostais e as importações mais recentes, produtos da globalização.


A religião é um fator de agregação e de desagregação social. Ou seja, pode ser as duas coisas. Talvez seja melhor trabalharmos com um exemplo recente: a posição de setores da igreja evangélica durante os anos da ditadura militar no Brasil. Algumas igrejas, e até denominações, apoiaram o governo militar, a repressão, e tivemos até casos de torturadores evangélicos, membros de igrejas importantes. Desagregamos quando nos ligamos à corrupção, ao clientelismo e às benesses. Agregamos quando defendemos a vida humana, seja ela evangélica ou não. Com isso, constatamos que podemos ser uma coisa ou outra.


Seria um erro uniformizar a atuação de evangélicos nesse período, crentes também foram torturados. Mas o certo é que muitos irmãos, em nome da agregação, do fanatismo e de conceitos bíblicos errados, foram cúmplices de torturas e mortes.


Muitas vezes nos perguntamos: em que a fé cristã ajudou a melhorar o mundo?Para entendermos o papel do cristianismo, é necessário, antes, compreendermos que Deus é o Deus do tempo e da história. Isso significa, em primeiro lugar, que Ele é o Deus que atua na história visando uma meta final. Com o cristianismo monoteísta e a sua mensagem o círculo trágico da sucessão dos deuses do politeísmo, com poderes ilimitados e injustos sobre os povos, foi superado. Em Cristo, salva-se o Universo. Vivemos a plenitude da história e a história alcançará, no reino universal de Deus, o reinado da justiça e da paz. Esta é a mensagem cristã para as nações.


Mas, é bom não esquecer, a religião sempre teve, e continuará tendo, um papel político: a defesa da justiça. Todas as pessoas compreendem a necessidade de justiça e a política, com base no poder, cumpre uma função legítima quando serve às reivindicações da justiça. Às vezes, infelizmente, as religiões se perdem, caem na espiritualidade negativa, ao negarem a diferença, e se tornam instrumentos da guerra e da morte. Não estamos isentos disso. Ao contrário, vemos isso no fundamentalismo islâmico e no fundamentalismo evangélico.


Para entendermos a relação entre religião e Estado, vale a pena nos reportarmos a uma entrevista do filósofo Hans Georg Gadamer, concedida em 1999, às vésperas de completar cem anos de idade. Na ocasião, ele disse que “o respeito pelas outras religiões é um bem que pode nos salvar da catástrofe, mas o caminho para a salvação tem inimigos dentro e fora da Igreja...”. Em outras palavras, estava querendo dizer que devido a muitos países possuírem tecnologias capazes de destruir a vida sobre o planeta, o diálogo franco entre as religiões é indispensável. Ainda segundo esse filósofo luterano, o problema para isso é que as confissões religiosas são muito diferentes e é difícil encontrar uma linguagem comum. Até para os diferentes ramos do cristianismo é difícil o entendimento.


Talvez devessem partir daquilo que todas as culturas e religiões têm em comum. E segundo Gadamer, esse tema unificador são os direitos humanos. Neste sentido, a questão não é tanto a discussão sobre a possibilidade de manutenção de Estados laicos, mas a construção de um diálogo inter-religioso que possibilite a construção da paz mundial. E isso só será possível quando os líderes religiosos de diferentes pontos de vista e credos não impedirem a construção de princípios comuns de defesa da vida humana.



Assim, não é possível falar de pluralismo religioso sem falar de poder, fica uma questão: amor e poder são compatíveis? As igrejas, como qualquer outra ordem social instituída, têm uma existência objetiva que remete à prática do serviço ao próximo. Para isso, não podemos deixar as igrejas (confissões e denominações), se tornem totalitárias, ou seja, mesmo como Igreja de Cristo não podemos negar os limites de nosso poder. E esse limite é o amor. Dessa forma poderemos conviver pacificamente com outras religiões e seguir o caminho da justiça.


Karl Barth negava a necessidade da apologética. Dizia que Deus não tem necessidade de que o defendam. Já Paul Tillich entendia a teologia com apologética. Concordo com Tillich, mas defendo uma apologética do amor. Entendo que a apologética só tem sentido se antes houver testemunho. Por isso, quando falo de apologética do amor estou resgatando Karl Barth, que só entendia vida cristã na plenitude do Espírito. Aí está a chave da questão: sem plenitude do Espírito não há vida cristã, nem testemunho, e, logicamente, a apologética que sair daí não terá amor. Antes, será uma arma de guerra: conduzirá à morte.






Somos bichos? 



Até que ponto o comportamento humano é tão diferente do comportamento dos animais? Logicamente, responder a esta pergunta nos leva a discutir se de fato há liberdade e responsabilidade no comportamento humano. Se voltarmos, por exemplo, a Baruch Spinoza o comportamento humano deve ser descrito em termos de causas mecanicistas, como os demais fenômenos da natureza. Spinoza dedica ao problema moral e à sua análise os livros III, IV e V da Ethica. No livro III faz uma história natural das paixões, isto é, analisa as paixões teoricamente e cientificamente, e não desde um ponto de vista moral. 


O filósofo deve humanas actiones non ridere, non lugere, neque detestari, sed intelligere; assim se exprime Spinoza no proêmio ao II livro da Ethica. Tal atitude científica, em Spinoza, é favorecida pela concepção determinista da realidade, em virtude da qual o mecanismo das paixões humanas é tão necessário como o mecanismo físico-matemático, e as paixões devem ser tratadas com a mesma serena indiferença que as linhas e superfícies das figuras geométricas. E bom passa a ser apenas uma palavra para descrever coisas que nos dão prazer e mau coisas que nos causam dor. Na verdade, foi o marquês de Sade (1740-1814), antes de Nietzsche, a dizer que o que move a ação do ser humano é o bom e o ruim. E o bom, para Sade, é tudo o que causa prazer ao indivíduo, ao passo que o ruim não é o que causa desprazer, mas antes o que vai contra à Natureza. Por isso, podemos chegar a Bataille partindo de Spinoza e passando por Sade, para quem a essência do bom é uma inversão de valores, que visa transformar o mundo em outro que se acredita melhor. 


Talvez seja necessário partir daí, da experiência marcada pelo prazer. O prazer de viver. Tal leitura procura superar a acentuação de uma teologia da alienação, com a consequente culpa infindável, que perpassa a tradição cristã, no mínimo, pós-agostiniana. Aliás, a tradição cristã traduz este tropeço, uma vez que em sua metanarrativa fundante pesa a sombra de um instrumento de tortura, a cruz. Mas sem negar a dor e o mal, talvez seja possível, mesmo no cristianismo, recuperar o prazer de viver. Ou, como disse Gonzaguinha, "viver e não ter a vergonha de ser feliz. Cantar e cantar a beleza de ser um eterno aprendiz. Eu sei que a vida devia ser bem melhor e será. Mas isso não impede que eu repita: é bonita, é bonita e é bonita". O que é o que é, Gonzaguinha. 


Assim, prazer, do latim placere, traduz a idéia de emoção agradável que resulta da atividade satisfeita, inclusive de gozo sensual, mas por oposição nos lembra dor e aflição. Nesse sentido, costumamos chamar aquele prazer que envolve a sexualidade de erotismo, já que aí está implícita a idéia de amor sensual. Por isso, erotismo pode ser considerado a indução ou tentativa de indução de sentimentos, mediante sugestão, simbólica ou alusiva, da questão sexual, o que nos leva ao prazer erótico. João Ubaldo Ribeiro, em entrevista ao jornal português Diário de Notícias, de 22/1/2000, conta que uma cadeia de supermercados portuguesa recusou-se a vender seu livro, A Casa dos Budas Ditosos, invocando o fato de esta ser pornográfica. Para o escritor tal atitude traduz o fato de que na cultura cristã, “há um sentimento de culpa ligado ao prazer, que tem marcado o pensamento ocidental. A ponto de Epicuro (...) passar a ser olhado com uma certa reserva, por ser o filósofo do prazer. (...) Numa sociedade que suspeita do prazer. É comum nós, cristãos, ou pelo menos de formação cristã e católica, sentirmo-nos desconfiados no momento em que estamos felizes”. 


Georges Bataille, 1897-1962, nasceu em Billon, Puy-de-Dôme, França. Filósofo e escritor francês, ficou conhecido como o metafísico do mal. Sua obra está marcada por três experiências centrais: a experiência cristã de sua formação católica e jesuítica, a experiência estética no âmbito do surrealismo e a experiência política de esquerda. Escreveu sobre sexo, morte, degradação e as potencialidades do prazer. 


Considerava que o objetivo de todo intelectual, artista e teólogo, deveria ser a aniquilação da racionalidade em um ato violento, transcendental de comunhão. Bataille cursou teologia, com a intenção de ser padre, participou do movimento surrealista, mas acabou por se dedicar à sociologia, religião e literatura. Fundou e editou jornais. Foi o primeiro a publicar pensadores como Barthes, Foucault e Derrida. Casou-se duas vezes. Primeiro com Sylvia, que depois de divorciar-se de Bataille casou-se com o psicanalista Jacques Lacan. Em 1946, Bataille casa-se com a princesa Diane Kotchoubey de Beauharnais, filha do príncipe Eugene Kotchoubey de Beauharnais e Helen Pearce. Georges e Diane tiveram uma filha, Julie Bataille, que nasceu em 1949. 


Uma de suas obras mais polêmicas é a Histoire de l’oeil (1928), que foi filmada, e que influenciou, entre outros, a filmografia do diretor japonês Nagisa Oshima (Império dos Sentidos) e a produção do cantor pop islandês Björk Guödmundsdóttir. Outras obras importantes são Le bleu du ciel (1945), L’abbé (1950). No campo da religião produziu um clássico chamado O Erotismo. Sua bibliografia é muito vasta e influenciou alguns dos principais pensadores modernos, que não lhe poupam elogios, como Jürgen Habermas, Barthes, Foucault e Derrida. Um ano antes de sua morte, em 1961, Pablo Picasso, Max Ernst e Juan Miró organizaram um leilão de pinturas para ajudar Bataille a superar suas dificuldades financeiras. Bataille morreu em Paris no dia 8 de julho de 1962. 


Em O Erotismo, Bataille apresenta uma chave de análise dos aspectos fundamentais da natureza humana, o ponto limite entre o natural e o social, o humano e o inumano. Bataille vê a experiência do prazer como aquela que permite ir além de si mesmo, superar a descontinuidade que condena o ser humano. E a partir dessa constatação, se propõe tratar da questão sob três perspectivas, o prazer dos corpos, o prazer dos corações e o prazer sagrado, já que o desafio é substituir o isolamento do ser, a sua descontinuidade, por um sentimento de continuidade profunda. 


Quando, devido à secura das vidas, os ascetas monásticos sentiam que o seu maior inimigo, a sensualidade, os abandonava, eles inventavam outro inimigo. Desta forma, mantinham à frente daqueles que não eram santos a imagem de seres especiais, em luta contra o mal. E, assim, tudo que era natural, as sensações de prazer, a sensualidade era apresentada como má, pecaminosa, fazendo com que as pessoas vivessem num mundo de medo, inseguras e desconfiadas ao lidar com as emoções. Por isso, para Nietzsche, até nos sonhos revelava-se a consciência atormentada dos santos. Essa associação do natural com o pecado, equívoco dos ascetas, dos sacerdotes e dos metafísicos, levou a um resultado pior do que o pretendido. Ao acreditar que o ser homem era mau e pecador por natureza, ao invés de melhorá-lo, considerava Nietzsche, a herança monástica tornava o humano pior. 


Tal mal-estar, oriundo das culpas imaginárias, acumulava impressões pesarosas, fazia com que se acreditasse que o pecado era tamanho que somente uma força sobrenatural poderia arrancá-lo daquele sofrimento, da sensação de sentir-se perdido. Essa vida, que na verdade era morte, criou o clima para que os herdeiros do monasticismo saíssem em busca da salvação, já que induzidos pelo engano, acreditavam estar irremediavelmente extraviada. Por isso, Nietzsche vai constatar que o que provoca a angústia nos cristãos, assim como a redenção pretendida de modo algum "corresponde em absoluto a uma pecaminosidade real, e sim a uma falta imaginária". Os cristãos, considerava Nietzsche, lutam o tempo inteiro contra os fantasmas criados pelos ascetas, pelos sacerdotes e pelos metafísicos. Espectros que ficavam pairando ao redor deles como se fossem assombrações das quais eles jamais conseguiam se livrar. E esses fantasmas assombraram o jovem jesuíta Georges Bataille. 


“Se alguém se confessa angustiado, é preciso mostrar o vazio das suas razões. Ele imagina a solução para seus tormentos: se tivesse mais dinheiro, uma mulher, uma outra vida... a frivolidade da angústia é infinita. Ao invés de ir até a profundeza de sua angústia, o ansioso tagarela, degrada-se e foge. E, no entanto, a angústia era a oportunidade: ele foi escolhido na medida dos seus pressentimentos. Mas que desperdício, se ele se esquiva: sofre da mesma maneira, humilha-se, torna-se estúpido, falso, superficial. A angústia evitada faz de um homem um jesuíta agitado, mas em vão. (...) o homem não é contemplação (ele só possui a paz, fugindo), ele é súplica, guerra, angústia, loucura”. 


Mas se o monasticismo e a cultura do corpo mau eram herança presente, devemos nos remeter também ao pensamento libertário herdado por Georges Bataille. E vamos fazê-lo a partir do Marquês de Sade (Donatien Alphonse François de Sade, 1740-1814) e de Friedrich Nietzsche. 


Sade foi um precursor da moral que ganhou espaço no mundo contemporâneo depois do Maio francês de 1968, ou seja, foi precursor da revolução sexual, incluindo nessa leitura a homossexualidade. Em Os 120 Dias de Sodoma satiriza o domínio do pensamento heterossexual e a condenação à morte de pessoas acusadas de comportamentos desviantes. É interessante, que este romance, onde nobres abusam de crianças raptadas e fechadas num castelo, num clima de violência, com coprofagia, mutilações e assassinatos, foi produzido durante sua prisão, manuscrito em letras miúdas num rolo de papéis colados, e teve sugestões dadas por sua mulher, Renné. Ela, aliás, passou parte da vida a defender o marido nos tribunais e só se separou dele quando o marquês foi libertado da cadeia, por breve intervalo de vida livre depois da Revolução Francesa. 


Clássico maldito, o surrealismo e a psicanálise encamparam a visão da política prazer e dor que a obra de Sade expõe. Vemos sua influência nos filmes de Luis Buñuel, quando em A Idade do Ouro, retrata a saída de Yeshua e dos libertinos do castelo das orgias de Os 120 Dias de Sodoma. De igual modo nas imagens em que a navalha cega o olho da mulher em O Cão Andaluz. Também vemos referências em A Bela da Tarde e em Via Láctea, na cena em que Sade converte uma menina ao ateísmo. A influência de Sade pode ser notada também na obra de Jean Genet, dramaturgo, homossexual, ladrão e presidiário, que retomou muitos dos temas do marquês (O balcão, Os negros e Os biombos). Mas, sem dúvida, a obra que melhor retratou em toda sua crueza o paradoxo do prazer e da dor, ou seja, do erótico em Sade foi Saló ou Os 120 Dias de Sodoma, de Píer Paolo Pasolini. O filme situa-se na Itália fascista, durante a Segunda Guerra Mundial, e apresenta cenas de tortura e degradação de um grupo de adolescentes. 


Bataille, admirador de Sade, entendeu a linguagem erótica como liberdade que viabiliza a negação da transgressão que gera a proibição. Ao realizar tais explorações, como possibilidade de vida, Sade e Bataille fazem a crítica explícita da tradição cristã e expõem os princípios que negam o humano. Eles se impõem à tarefa de ouvir a voz humana dos algozes, considerando o que para a sociedade são as suas não-razões, de forma a construir uma cumplicidade no conhecimento do mal. Nesse sentido, Bataille tem uma explicita admiração por Sade. Em A literatura e o mal, o chama de gênio: 


"À primeira vista, a Revolução marca na literatura francesa uma época pobre. Propõe-se uma importante exceção, mas ela diz respeito a um desconhecido (que teve uma reputação durante a vida, mas deplorável). Se bem que o caso excepcional de Sade não infrinja de modo algum uma opinião que ele logo iria confirmar. É preciso dizer em primeiro lugar que o reconhecimento do gênio, do valor significativo e da beleza literária das obras de Sade é recente: os escritos de Lean Paulhan, de Pierre Klossowski e de Maurice Blanchot o consagraram; é certo que uma manifestação clara, sem insistência, evidente não foi dada antes de uma opinião tão vasta, que suscitou homenagens ruidosas e que se impôs lenta, mas seguramente". Georges Bataille, A literatura e o mal. 


E o peso libertário de Nietzsche não foi menor, mas nessa abordagem queremos partir de uma mulher: Lou Andréas-Salomé (1861-1937). Feminista, no sentido revolucionário da expressão, e psicanalista freudiana, em seu ensaio Reflexões Sobre o Problema do Amor, de 1900, analisou como a feminilidade e o sentimento amoroso encontram eco em nossas experiências contemporâneas. Nesse sentido, a palavra vida, no sentido apaixonante do termo, o de usufruir com vontade e ardor a existência, é central no pensamento de Lou. E no correr dessa vida apaixonada/ apaixonante, ela encantou e foi encantada por personagens exuberantes como os filósofos Paul Rée, Friedrich Nietzsche e o poeta Rainer Maria-Rilke. E o que nos interessa aqui, é que para essa pensadora, nascida em uma abastada família russa como Ljolia von Salomé, na São Petersburgo de 1861, amor era sinônimo de libertação. 


Nietzsche foi o homem que ousou apaixonar-se por Lou e que, depois de um período de amizade, de onde resultaram livros capitais de ambos, teve seu amor recusado. Através das cartas trocadas entre Nietzsche e o objeto de sua paixão, podemos acompanhar o processo de enlouquecimento de um homem que, roído de dor e ciúme, acompanha os desvarios da irmã Elisabeth, que organiza uma campanha de difamação pública contra Lou ao ver o irmão mergulhado num caminho sem volta. 


Lou, Rée e Nietzsche, logo no início dessa criativa amizade, quase viveram juntos, sob o mesmo teto, à maneira de uma santíssima trindade. Não podemos nos esquecer que Paul Rée, também apaixonado por Lou, pôs fim à vida, atormentado pela ausência de Lou. 


Lou casou-se com um homem quinze anos mais velho, Carl Andreas, seu companheiro durante mais de quatro décadas, fidelidade que talvez seja explicada pelo fato de nunca ter imposto a ela as obrigações de esposa no contexto do século 19, e que aparentemente fechou os olhos aos admiradores que Lou colecionou no correr da vida. 


A única paixão de Lou começou em 1897 quando, já com 36 anos, casada com Carl, conheceu o poeta René-Marie Rilke, de 22 anos. Foi uma política fecunda para ambos: Rilke cresceu como poeta e Lou escreveu A humanidade da mulher e Reflexões sobre o problema do amor (1899 e 1900), sob o impacto da intensa experiência vivida. Até a morte de Rilke, em 1928, e muitos anos depois, até a sua própria morte, em fevereiro de 1937, aos 73 anos, Lou faria do poeta a razão de sua existência e afeto. 


Em 1910, Lou escreveu o ensaio O Erotismo, que encontrou ressonância no pensamento de Georges Bataille. No ensaio, propõe aos leitores a necessidade de correlacionar experiência e o conhecimento. Lou Andréas-Salomé colocou-se assim como interlocutora de Nietzsche e, por extensão, de Bataille. 


A religiosidade antiga, para Bataille, extraiu das proibições o espírito da transgressão, enquanto, a religiosidade cristã se opôs ao espírito de transgressão. A visão de bom e mau, prazer e pecado, nos limites do cristianismo está ligada a esta relativa oposição. 


Há no cristianismo um movimento duplo. Nos seus fundamentos o cristianismo quis abrir-se às possibilidades dum amor que era princípio e fim. Quis encontrar em Adonai a continuidade perdida, invocar os delírios rituais para além das violências reguladas, o amor total e sem cálculo dos fiéis. Os homens, transfigurados pela continuidade divina, eram chamados, em Adonai, a amarem-se uns aos outros. 


Assim, o cristianismo jamais abandonou a esperança de levar este mundo de descontinuidade ao reino da continuidade, abraçado pelo amor. O movimento inicial da transgressão derivou no cristianismo na visão duma superação da violência, que foi. transmutada no seu próprio contrário. Há neste sonho algo de sublime e trágico. 


A transgressão é a desordem organizada, ao introduzir num mundo organizado algo que o ultrapassa. Mas essa organização, fundada no trabalho, tem por base a descontinuidade do ser. O mundo organizado do trabalho e o mundo da descontinuidade são o mesmo mundo. Se os utensílios e produtos do trabalho são coisas descontínuas, aquele que se serve do utensílio e fabrica produtos é também um ser descontínuo e a consciência da sua descontinuidade aprofunda-se na utilização e criação de objetos descontínuos. 


E é no mundo descontínuo do trabalho que a morte se revela: já que para quem trabalha a descontinuidade se faz presente, com poder, através da morte. Ela é tragédia elementar que evidencia a inanidade do ser descontinuo. 


Ao reduzir o sagrado, o divino, à pessoa descontínua de um Adonai criador, o cristianismo foi longe e transformou o outro mundo num local onde se prolongavam todas as almas descontínuas. Povoou céus e infernos de multidões condenadas à descontinuidade eterna de cada ser isolado. Eleitos e condenados, anjos e demônios, transformaram-se em fragmentos, para sempre divididos, para sempre distintos uns dos outros, para sempre desligados dessa totalidade do ser à qual era contudo necessário religá-los. 


Assim, o dilema está colocado: como continuar religioso sem perder o prazer? Tal como a proibição criou, na violência organizada das transgressões, o prazer inicial, proibindo a transgressão organizada, o cristianismo aprofundou os graus da perturbação sensual. 


E o prazer se ligou à transgressão. Mas o mal não é a transgressão, é a transgressão condenada. O mal é o pecado. É o pecado de que fala Baudelaire, já que segundo Otto Maria Carpeaux, Baudelaire era espiritualista porque levou às últimas consequências o pecado como condição da alma, ora enfatizando audazmente a dissolução, ora padecendo pelo que a consciência lhe dita. Daí o ser denominado poeta do tormento humano. As narrativas dos shabats, por exemplo, correspondem a uma procura da alienação. Sade negou o mal e o pecado, pois ser arrebatado não é sempre resultado do objeto duma paixão. O que destrói um ser arrebata-o também. O arrebatamento é a ruína de quem antes se colocou os limites do mal. 


Mas teve que introduzir a idéia de irregularidade para transmitir o desencadeamento da crise voluptuosa. Teve de recorrer à blasfêmia. Sentiu que a profanação era inócua, se o blasfemo negava o caráter sagrado do bem, que pretendia macular. A necessidade e a impotência das blasfêmias de Sade são significativas. A Igreja negou o caráter sagrado do prazer, encarado como transgressão. 


Por isso, filósofos e poetas negaram o que a Igreja considerava sagrado. Por isso Nietzsche disse que onde quer que a neurose religiosa tenha aparecido na terra, nós a encontramos ligada a três prescrições dietéticas perigosas: solidão, jejum e abstinência sexual. Nessa negação, a Igreja perdeu em parte o poder religioso de evocar uma presença sagrada: perdeu-o quando o diabo deixou de estar na base duma perturbação fundamental. Ao mesmo tempo, os espíritos livres deixaram de acreditar no mal. Desse modo, encaminharam-se para um estado de coisas em que o prazer, deixando de ser um pecado, deixava de poder encontrar-se na certeza de fazer o mal, o que implica a destruição da sua própria possibilidade. Num mundo profano só haverá mecânica animal. A consciência da alienação pode manter-se, mas só se mantém ligada à consciência de um logro. 


Ultrapassar uma situação não pode significar regressos ao ponto de partida. Há na liberdade a impotência da liberdade, mas nem por isso a liberdade deixa de ser disposição de nós por nós próprios. As ações dos corpos podem, na lucidez, abrir-se, apesar dum empobrecimento, à recordação inconsciente duma metamorfose infindável, cujos aspectos não deixarão de estar disponíveis, afirmou Bataille. 


O prazer dos corações, o prazer mais ardente, ganhará aquilo que o prazer dos corpos tiver perdido, o que nos remete à fêmea do louva-a-Adonai como heroína sadiana. Didier Ottinger, Retrato da fêmea do louva-a-Adonai como heroína sadiana, nos conta que “em maio de 1934, a revista Minotaure traz efetivamente um estudo de Roger Caillois: "La mante religieuse, de la biologie à la psychanalyse", em que o autor fornece aos futuros exegetas do louva-a-Adonai as chaves de sua interpretação sadiana. Um ano mais tarde, o artigo desenvolvido constituirá um capítulo da obra de Caillois, O mito e o homem. 


Se lhe aplicássemos as apreciações típicas de André Breton, o louva-a-Adonai pertenceria sem dúvida alguma à categoria dos obcecados. Caillois nos ensina que o inseto é um matador apenas por lubricidade. Cita o entomólogo Raphael Dubois, de acordo com quem um acridídeo, se decapitado, executa melhor e mais demoradamente os movimentos reflexos e espasmódicos próprios da cópula. Os biólogos F. Goltz e H. Busquet, a partir dessa constatação, se indagam se a fêmea do louva-a-Adonai, ao decapitar o macho antes do acasalamento, não teria por finalidade obter, mediante a ablação dos centros inibidores do cérebro, execução mais prolongada e melhor dos movimentos espasmódicos do coito, de tal forma que, em última análise, fosse o próprio princípio do prazer que lhe ordenasse a morte do amante. 


O prazer nos deixa na solidão. Prazer é aquilo sobre que é difícil falar. Por razões que não são meramente convencionais, o prazer, principalmente o dos corpos, é definido pelo segredo. Não pode ser público. Tal experiência prazerosa situa-se fora da vida de todos os dias. No conjunto da nossa experiência, permanece separada da comunicação que fazemos das nossas emoções. Trata-se de tabu. Evidentemente que nada é completamente tabu, há sempre transgressões. Mas o tabu intervém para que se possa dizer que o prazer, sendo intensa emoção, já que nossa existência está presente sob a forma de linguagem, existe como se não existisse. 


Há em nossos dias uma atenuação deste tabu, mas, apesar de tudo, o prazer ficará sempre como algo de exterior, algo que só é possível sob uma condição: sair para mergulhar na solidão, numa separação do mundo em que estamos. Assim, a experiência prazerosa leva ao silêncio. 


Não sucede a mesma coisa com a santidade. A emoção experimentada na experiência da santidade pode ser expressa no discurso, pode ser objeto dum sermão. A experiência prazerosa, contudo, talvez seja vizinha da santidade. 


Isto não quer dizer que prazer e santidade tenham a mesma natureza. Mas que uma e outra experiência têm uma intensidade extrema. Quando se fala da santidade, fala-se da vida que determina a presença em nós de uma realidade sagrada, de uma realidade que pode nos perturbar completamente. A emoção da santidade e a emoção do prazer, quando traduzem uma intensidade extrema, nos aproximam de outras pessoas e nos afastam delas, nos deixam na solidão. 


A passagem do prazer à santidade tem sentido, afirma Bataille. É a passagem do que é maldito e rejeitado ao que é abençoado e bendito. O prazer é crime solitário, que não salva senão opondo-nos a todos os outros, que não salva senão na euforia de uma ilusão, uma vez que aquilo que no prazer leva ao extremo grau da intensidade atinge-nos ao mesmo tempo com a maldição da solidão. Já a santidade faz sair da solidão, com a condição de aceitar este paradoxo -- felix culpa! -- cujo próximo excesso resgata. 


Só um desvio permite nestas condições regressar aos nossos semelhantes. Este desvio merece sem dúvida o nome de renúncia, uma vez que no cristianismo não podemos simultaneamente operar a transgressão e gozar dela, e só outros podem gozar dela na condenação da solidão. O acordo com os seus semelhantes só é encontrado pelo cristão sob condição de nunca mais gozar daquilo que o liberta, daquilo que nunca é mais do que transgressão, violação das proibições sob as quais repousa a civilização. 


Se seguirmos o caminho indicado pelo cristianismo, considera Bataille, podemos não apenas sair da solidão, mas aceder a uma espécie de equilíbrio, que escapa ao desequilíbrio primeiro e que nos impede de conciliar disciplina e trabalho com a experiência dos extremos. A santidade cristã abre-nos pelo menos a possibilidade de levar até ao fim a experiência desta convulsão final, a morte. Aquele que compreende a importância do prazer apercebe-se que esse valor é o valor da morte. Talvez seja um valor, mas a solidão abafa-o. 


Por isso, para Bataille, o santo vive como se morresse, mas vive a fim de encontrar a vida que é a vida. A santidade é sempre um projeto. Talvez não o seja em essência. A intenção da vida eterna liga-se à santidade como se liga ao seu contrário. Como se, na santidade, só um compromisso permitisse entregar o santo à multidão, entregar o santo a todos os outros: à multidão, ou seja, ao pensamento comum. 


O mais estranho é que possa haver ligação entre a transgressão deliberada e a condição de não se falar dela. Este acordo é encontrado nas religiões arcaicas. O cristianismo inventou um caminho aberto à transgressão que permite se falar da transgressão. Reconhecemos assim que o pensamento, que no cristianismo vai além, tende a negar tudo o que se assemelha à transgressão, a negar tudo o que se assemelha à proibição. 


Na palavra do prazer erótico há uma recusa de viver o tempo que produz desprazer, que leva à angústia. Esse tempo é morto, sacrificado na linguagem do erótico, que substitui a angústia pelo tempo subjetivo: evita assim que a pessoa se torne refém das exigências externas ao se submeter ao desejo do outro. Mas, a morte do tempo que produz desprazer leva à ressurreição, leva a um novo tempo. Por isso, na linguagem do prazer erótico, como a vê Bataille, há libertação porque na sequência gozo, angústia, desejo, o gozo não é mais atemporal, mas temporal. 


Assim, no plano do prazer, temos a palavra do prazer, que é negação da proibição, negação da transgressão que gera a proibição. Aqui, a linguagem do prazer é negação que define o humano em oposição ao animal.