A responsabilidade cristã
Jorge Pinheiro
Os relatos bíblicos descrevem a
criação do céu e da terra, obra do Eterno, através da indicação “e o Espírito de Deus se movia por cima da
água” (Gn 1.2). Isto quer dizer que o Espírito divino é Pessoa criadora e presença
do Eterno, tendo sido a criação uma realidade formatada por Ele. E é o mesmo
Espírito quem clama pela liberdade redentora da criação escravizada.
“Um dia o próprio Universo ficará livre do poder destruidor que o mantém
escravo e tomará parte na gloriosa liberdade dos filhos de Deus. Pois sabemos
que até agora o Universo todo geme e sofre como uma mulher que está em trabalho
de parto” (Rm 8.21-22).
Foto de Naira Pinheiro
O Espírito é o poder atuante do Criador e a força de vida das criaturas. O
Espírito é a fonte da vida. Por isso, tudo o que existe e vive manifesta a
presença dele. Ele transforma a comunhão com o Pai e o Filho na comunhão da
criação, na qual todas as criaturas, cada qual a seu modo, se comunicam com
Deus. A existência, a vida e os relacionamentos estão firmados no Espírito, “pois nele vivemos, nos movemos e existimos”
(At 17.28).
Assim, a partir da comunhão
trinitária, o ser humano faz parte da criação e é dependente dela. Vive dentro
de um contexto de interdependência com a criação. Desde o início, nosso futuro
está ligado ao solo, à água e ao ar. Deus nos coloca junto e com a natureza
para trabalhar essa mesma natureza (Gn 2.15). Não haveria falta (2.8-9) se
soubermos administrar. Dependemos do solo e dele recebemos o nosso sustento.
Pertencemos a este mundo criado e é ele que fornece a base para nossa
existência. A vida começa e se orienta
sob o cuidado de Deus.
“Ó Senhor, tu tens feito tantas coisas e foi com sabedoria que as
fizeste. A terra está cheia das tuas criaturas” (Sl 104.24).
“Todos esses animais dependem de ti, esperando que lhes dês alimento no
tempo certo. Tu dás a comida, e eles comem e ficam satisfeitos. Quando escondes
o rosto, ficam com medo; se cortas a respiração que lhes dás, eles morrem e
voltam ao pó de onde saíram. Porém, quando lhes dás o sopro de vida, eles
nascem; e assim dás vida nova à terra” (Sl 104.27-30).
Hoje, pensamos que o mundo é um
objeto para nossa exploração, em vez de sujeito para a glorificação de Deus. Em
grande parte, ignoramos as necessidades de outras formas de vida. Essa atitude
utilitarista de ver e agir é pecado, é uma falta de respeito para com o
Espírito de Deus.
O desafio do cuidado
É Deus quem dá e quem sustenta a vida de todo o universo. Sua preocupação por atender às necessidades básicas (comer, beber e vestir) não se restringe ao ser humano, mas se estende a toda a natureza, refletida nos pássaros e nas flores do campo.
“É Deus quem veste a erva do campo, que hoje dá flor e amanhã
desaparece, queimada no forno. Então é claro que ele vestirá também vocês, que
têm uma fé tão pequena!” (Mt 6.30).
O universo inteiro depende do
cuidado amoroso de Deus, que não descuida de nenhuma criatura. Os lírios, por
exemplo, caracterizados por sua fragilidade e vida curta, são vestidos de tal
modo que nem Salomão usava roupas tão bonitas como essas flores. (Mt 6,29).
Criação significa que tudo é completamente obra de Deus. Deus é o autor de tudo, o Deus pessoal e salvífico, que se revelou como puro amor. Toda a realidade brota da pura iniciativa deste amor divino, puro dom gratuito.
Foto de Naira Pinheiro
Mas, o ser humano faz parte da criação, depende dela e é seu cuidador. O ser
humano, como o restante da criação, foi criado “de acordo com a sua espécie”
(Gn 1.24 e 25), só que à imagem e semelhança de Deus (Gn 1.26-27). A imagem de
Deus é elaborada em termos do domínio administrativo que o ser humano teria
sobre o resto da criação. O ser humano foi criado à imagem de Deus, não somente
por sua liberdade e direito à escolha, mas também pela postura que assume
diante da criação, uma postura de soberania em amor e comunhão, que deve
refletir a soberania de Deus (Gn 1.26-28). O ser humano não foi criado apenas
para realizar uma administração espiritual, mas foi criado para ordenar a
criação.
“No entanto, fizeste o ser humano inferior somente a ti mesmo e lhe
deste a glória e a honra de um rei. Tu lhe deste poder sobre tudo o que
criaste; tu puseste todas as coisas debaixo do domínio dele: as ovelhas e o
gado e os animais selvagens também; os pássaros e os peixes e todos os seres
que vivem no mar” (Sl 8.5-6).
Essa administração humana sobre a
criação nós chamamos de mandato cultural. Ser criado à imagem de Deus é ser
responsável pelo planeta e por todas as formas de vida!
A soberania humana implica responsabilidade para preservar a ordem que Deus criou e promover a existência de todos os seus elementos. Tal soberania não implica em liberdade para roubar, matar e destruir. Os seres humanos são mordomos de Deus, responsáveis diante dele e cuja primeira tarefa é assegurar a permanência e equilíbrio da criação.
O primeiro ato salvador
A preocupação divina com a salvação espiritual não é alheia da sua preocupação pelo bem-estar da sua criação material. A criação é o primeiro dos atos salvadores de Deus.
“Mas tu, ó Deus, tens sido o nosso Rei desde o princípio e nos salvaste
muitas vezes. Com o teu grande poder, dividiste o Mar e esmagaste as cabeças
dos monstros marinhos. Esmagaste as cabeças do monstro Leviatã e deste o seu
corpo para os animais do deserto comerem. Fizeste com que corressem fontes e
riachos e secaste grandes rios. Criaste o dia e a noite, puseste o sol, a lua e
as estrelas nos seus lugares. Marcaste os limites da terra e fizeste o verão e
o inverno” (Sl 74.12-17).
Não devemos conceber a
participação do ser humano no mundo como opcional, nem como secundária sua
missão na salvação de vidas. Desde o início, a criação fazia parte do plano
salvador de Deus. A conversão de seres humanos não é o último dos atos
salvadores de Deus, mas o estabelecimento de novos céus e nova terra, ou seja,
uma nova criação (Ap 21.1), a libertação da própria criação em si (Rm 8.20-22).
Até o fim, a criação fará parte do plano salvador de Deus. A mesma graça de Deus que se manifestou em Cristo, também se manifestou na criação.
“Deus falou muitas vezes e de muitas maneiras aos nossos antepassados,
mas nestes últimos tempos ele nos falou por meio do seu Filho. Foi ele quem
Deus escolheu para possuir todas as coisas e foi por meio dele que Deus criou o
Universo. O Filho brilha com o brilho da glória de Deus e é a perfeita semelhança
do próprio Deus. Ele sustenta o Universo com a sua palavra poderosa. E, depois
de ter purificado os seres humanos dos seus pecados, sentou-se no céu, do lado
direito de Deus, o Todo-Poderoso” (Hb 1.1-3).
E a graça do Eterno manifesta alcançará
o seu propósito de submeter a Cristo todas as coisas.
“Por isso Deus deu a Jesus a mais alta honra e pôs nele o nome que é o
mais importante de todos os nomes, para que, em homenagem ao nome de Jesus,
todas as criaturas no céu, na terra e no mundo dos mortos, caiam de joelhos e
declarem abertamente que Jesus Cristo é o Senhor, para a glória de Deus, o Pai”.
(Fp 2.9-11).
“As Escrituras Sagradas dizem: Deus pôs todas as coisas debaixo do
domínio dele. É claro que dentro das palavras “todas as coisas” não está o próprio
Deus, que põe tudo debaixo do domínio de Cristo. Mas, quando tudo for dominado
por Cristo, então o próprio Cristo, que é o Filho, se colocará debaixo do
domínio de Deus, que pôs todas as coisas debaixo do domínio dele. Então Deus
reinará completamente sobre tudo” (1Co 15.27-28).
Existe
uma eco-teologia bíblica, que envolve o uso responsável e sustentável dos
recursos da criação de Deus e a transformação das dimensões culturais, econômicas,
morais, intelectuais e políticas da vida. Isto inclui a recuperação de um
sentido bíblico de mordomia, que implica em administração e cuidado responsável.
Da mesma maneira, o conceito bíblico de descanso semanal recorda que se deve
por limites às atividades de produção e ao consumo.
Devemos usar a
riqueza e o poder no serviço dos demais. É um compromisso de trabalhar para
libertar os ricos da escravidão ao dinheiro e ao poder, e possibilitar aos que
têm menos obter acesso à dignidade e às oportunidades de desenvolvimento. A
esperança de tesouros no céu nos livra da tirania de Mamon. E fazendo assim
estaremos compreendendo o sentido maior do cuidado da natureza e da vida criadas pelo Eterno.
Aucun commentaire:
Enregistrer un commentaire