Algumas questões teóricas sobre o movimento de
massas
A palavra massa, para Paul Tillich [Masse et
Esprit, Études de philosophie de la masse] [1], transformou-se em slogan político e social.
Expressão esta que conota superioridade e idolatria. Por isso, quando se deseja
discutir seriamente o conceito massa é necessário definir seus contornos e
esfriar um pouco a fervura do slogan. [2]
Segundo Tillich, há dois conceitos de massa, um
formal e outro material, o primeiro de ordem psicológica e sociológica e o
segundo de ordem histórica e social. [3] Em termos formais, a massa consiste numa
associação de pessoas que, na associação, deixam de ser indivíduos. Sua individualidade
se perde e ele se submete à coletividade. A pessoa se torna um átomo,
desprovido de suas qualidades, seu movimento próprio, e se transforma em pura
quantidade subordinada ao movimento da massa. Através da psicologia das massas
pode-se ver como a alma perde sua forma individualizada uma vez que toma a
forma da massa e como o indivíduo entra em contradição com ele próprio, já que
é um átomo da massa ou um ser bem singularizado. [4]
Tillich considera que no movimento psíquico da
massa alguns elementos se separam e se isolam, adquirindo eficiências por eles
próprios. Isto porque um indivíduo é o resultado de uma longa evolução interior
e sua alma está ligada a milhares de liames à vida da alma em sua totalidade,
que assim torna-se autônoma. [5] Na massa, as forças de inibição, de reflexão e de
matizações caducam. Tudo se transforma. Assim, podemos resumir essas
transformações em duas leis. A lei da imediaticidade, segundo a qual a massa
não reflete, mas é. Ela tem uma existência objetiva, não subjetiva como afirmou
Hegel, ela é em si, não para si. [6]
A massa não sabe porque ela faz aquilo que faz.
Quando acede a ela própria é sempre através de certos indivíduos, um orador ou
chefe. A massa é imediata, vive inteiramente o presente, sem ligações com o passado
ou o futuro, sem lembranças ou reflexões. Suas motivações são irracionais. Mas
para Tillich, a lei da imediaticidade explica o desabrochar dos instintos
biológicos imediatos, que estavam inibidos. Também mostra a existência de um
princípio espiritual imediato que se faz presente, que pode ser traduzido como
o abandono ao instinto do momento em direção à disponibilidade da revelação
espiritual do presente, revelação de uma espiritualidade subjetiva impura. [7]
Ou seja, a irracionalidade das motivações pode
dirigir ao irracional de baixo, à demência, ou ao irracional de cima, à
novidade criadora. A outra lei da psicologia das massas, segundo Tillich, é a
lei da amplificação. Se a vida espiritual do indivíduo perde suas inibições, se
tal fato se repete em cada indivíduo presente, como num alternador, o vivido
por um, suscita em outro experiência idêntica, porque a massa vivencia ela
própria o ser massa. Essa lei nos leva a
dois aspectos da vida da alma, o aspecto emocional e o aspecto intelectual.
Em todo movimento da massa podemos observar a força
do entusiasmo, a amplificação das paixões, da coragem, que podem levar ao seu
sacrifício e destruição. Do lado intelectual, a lei da amplificação age de
forma mais discreta, porque o processo de reflexão não convém à massa por causa
de sua complexidade. [8] De certo ponto de vista, explica Tillich, o
indivíduo está mais alerta que a massa, mas a massa pode se elevar bem acima
das consciências subjetivas, com suas intuições mais simples, mas também
maiores e também com sua clarividência disso, que prepara o espírito objetivo
no momento presente. [9] A amplificação pode levar ao monumental e ao
heroísmo, mas também ao demoníaco e à destruição. E as intuições da massa podem
se conformar ao espírito ou lhe ser refratário. [10]
As leis da psicologia das massas são leis naturais,
afirma Tillich. Elas são sempre válidas e necessárias onde uma pluralidade se
encontra reunida. Elas têm valor para todos os estamentos sociais, para um
grupo de marginais, assim como para uma assembléia de nobres. Com ironia
superior, elas regem uma reunião de convencidos individualistas, assim como
explicam o sentimento de superioridade existente na palavra massa, quando
usado como slogan [11]. Segundo Paul Tillich, no conceito material de
massa, a essência de um grupo de homens determinado é ser essencialmente
formado conforme a psicologia das massas. [12]
Por isso, no sentido histórico do termo, a massa,
quer sejam classes ou ordens, raças ou círculos, partilha do destino de ser
excluído de toda formação espiritual individual. Vemos, então, que para Tillich
a imediaticidade da massa faz com que desabroche nela instintos biológicos que
estavam inibidos no indivíduo, o que traz à tona um princípio espiritual
imediato: a disponibilidade à revelação espiritual do momento presente.
Essa imediaticidade é o que leva a massa ao
irracional de baixo, à demência, ou ao irracional de cima, à novidade criadora.
Ao lado da imediaticidade, os aspectos emocional e intelectual são
amplificados. As forças do entusiasmo e da coragem são amplificadas de tal modo
que podem levá-la ao sacrifício e destruição. Assim, a massa se eleva acima das
consciências individuais com intuições simples, mas com clarividência disso.
Este processo prepara o espírito objetivo no momento presente. Quando objetivamente a massa vive esse processo de
espiritualização, nela, religião e
cultura se misturam. A esse primeiro momento de evolução da massa Tillich chama
de massa mística.
No contexto geral de uma análise do socialismo, não
se pode deixar de levar em conta que a evolução histórica dá nascimento a
diferentes tipos de massa, conforme o modelo de desenvolvimento das relações
entre religião e cultura. [13] O primeiro estado consiste em uma unidade onde os
dois ainda não se distinguem. Uma segunda etapa é marcada pela autonomia da
cultura: assim, ela se diferencia mais e mais da religião, a ponto de gerar a
secularidade moderna. Mas esta ruptura e separação são catastróficas tanto para
a cultura como para a religião. E serão então superadas pela etapa final da
teonomia, caracterizada pela presença de conteúdo religioso em todas as formas
autônomas da cultura. [14]
Podemos facilmente reconhecer os elementos desse
esquema na descrição que Tillich faz dos diferentes tipos de massa. A massa
mística corresponde à religião de origem: é a fusão dos indivíduos numa única
comunidade que engloba tudo. Vem em seguida a etapa da autonomia, onde os
indivíduos se diferenciam cada vez mais da comunidade de origem, até
tornarem-se completamente independentes e separados. Mas ainda é massa sem
forma e cultura, que não se colocou em movimento e caminhou para um estado de
individualização. Essa é o estado de massa técnica ou mecânica, característico
da moderna sociedade industrializada. [15]
A partir daí surge a perspectiva de uma etapa final
onde a massa e a individualidade pessoal formarão uma nova união, uma síntese
nova, chamada massa orgânica, que corresponderá ao ideal da teonomia.
Logicamente, nem sempre se caminhará em direção a este ideal: mas o tempo
histórico que orienta nessa direção é o da massa dinâmica [16]. Dessa maneira, para Tillich, a massa dinâmica
é sempre revolucionária, não unicamente no sentido político do termo –
inclusive este é o sentido menos freqüente --, mas sempre em um sentido de fé
espiritual e social. É necessário que ela seja revolucionária, porque o sentido
de seu movimento é precisamente ir além do estado de massa e todas as formas
que são responsáveis por este regulamento. [17]
Assim, para Tillich o movimento da massa dinâmica
parte da massa mecânica e é essencialmente um movimento de libertação: o
movimento da massa dinâmica parte da massa mecânica, já existente ou em perigo
de aparecer, e visa a supressão da massa, visa à massa orgânica, não importando
que esse começo seja ou não atendido. [18]
Vemos aqui que Tillich tem uma compreensão
diferente daquela de Gramsci, que entende a vanguarda enquanto intelectualidade
orgânica, mas não vê a massa em processo dinâmico que pode levar ao surgimento
de uma massa orgânica. Sem desejar fazer um confronto entre os dois pensadores,
tocamos apenas no ponto que metodologicamente nos interessa: a vanguarda não se
limita ao militante ou intelectual, é um processo maior que tem na massa
orgânica uma dupla ação, de liderança da sociedade e de transformação da situação-limite.
Uma tal visão abre
perspectivas interessantes na análise e compreensão de diferentes situações
históricas. A
questão da transformação da sociedade, as reivindicações cidadãs e democráticas são compreendidas melhor através do caminho
metodológico construído por Paul Tillich em seus escritos socialistas. E como
ele afirmou, todas as questões convergem para uma mesma resposta: a humanidade
deve ter origem nas profundezas de um novo conteúdo, onde será superada a
oposição entre massa e personalidade. Onde um novo conteúdo será produto da
graça e do destino. [19]
[1]
Publicado em Berlim e Frankfurt por Edições da Comunidade Operária, em 1922, e
mais tarde em Christianisme et Socialisme, Écrits socialistes allemands
(1919-1931), Les Éditions du Cerf, Éditions Labor et Fides, Les Presses de
L’Université Laval, 1992, pp. 48-112.
[2]
Idem, op.cit., p. 75.
[3]
Idem, op.cit., p. 75.
[4]
Idem, op.cit., p. 76.
[5]
Idem, op.cit., p. 76.
[6]
Idem, op.cit., p. 76.
[7]
Idem, op.cit., p. 76.
[8]
Idem, op.cit., p. 77.
[9]
Idem, op.cit., p. 77.
[10]
Idem, op.cit., p. 77.
[11]
Idem, op.cit., p. 77.
[12] Idem, op.cit., p. 77.
[13] Jean Richard, Introduction au Tillich
Socialiste, La masse prolétarienne, in Paul Tillich, Christianisme et
Socialisme, Écrits socialistes allemands (1919-1931), Les Éditions du Cerf,
Éditions Labor et Fides, Les Presses de L’Université Laval, 1992, p. XLI.
[14]
Idem, op.cit., p.XLI.
[15]
Idem, op.cit., pp. XLI-XLII.
[16]
Idem, op.cit., p. XLII.
[17]
Idem, op.cit., p. XLV.
[18] Paul Tillich, Masse et Esprit in Christianisme
et Socialisme, Écrits socialistes allemands (1919-1931), Les Éditions du
Cerf, Éditions Labor et Fides, Les Presses de L’Université Laval, 1992, p. 81.
[19]
Idem, op. cit., p.72.
1 commentaire:
Meu Professor, a catarse durante a manifestação das massas não poderá eleger um Bode expiatório para aplacar a dor manifesta? A crise mimética é imediata aos crucificantes do mundo atual... Acredito que inocentes pagarão pela cura da enfermidade do caos social... Abraço! EduNeri
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