Terça-feira, 11 de Março de 2014 | ISSN 1519-7670 - Ano 17 - nº 789
VERSUS
Sobre um
certo jornal
Por Jorge
Pinheiro em 25/08/2009 na edição 552
Numa
primeira olhada era um jornal da contracultura, de linguagem mítica, que tinha
como referência a América Latina. A partir dessa linguagem viveu a política sob
novas perspectivas. Passou, por exemplo, a editar um caderno dedicado à questão
negra, "Afro-Latino-América", que se tornou um espaço de resistência
do movimento negro. Tornou-se também uma embaixada de exilados
latino-americanos, que chegavam atraídos por sua linguagem continental.
Era grande o
seu prestígio entre artistas e intelectuais. Nomes como Milton Nascimento,
Chico Buarque, MPB-4, Simone e o grupo Tarancón participaram de um show de
apoio ao jornal, com a presença de 15 mil pessoas, transmitido por sistemas de
som para outras 20 mil no congresso alternativo da Sociedade Brasileira para o
Progresso da Ciência (SBPC), no segundo semestre de 1977, em São Paulo.
Marcou
época, junto com outros jornais e revistas da imprensa alternativa, nos anos
1970. Foi criado por Marcos Faerman, que na época trabalhava no Jornal da
Tarde. O primeiro número saiu em outubro de 1975.
Vez e voz
Em janeiro
de 1978, recém-chegado de meu segundo exílio, depois de passar um ano na Europa
a observar e participar da organização de partidos socialistas na Espanha e
Portugal, entrei para o jornal.
"Alguns
boatos corriam nas mesas dos botequins de São Paulo. Entre um suspiro e outro
se comentava: o pessoal do Versus recebeu dinheiro da social-democracia
européia, há uma fita gravada que comprova tudo." [Ênio Bucchioni e Omar
L. de Barros Filho, "O editorial dos editoriais", São Paulo, Versus
nº 28, janeiro de 1979, pp. 3-9]
Nascia o ano
de 1978 e, com ele, uma indagação para a equipe. Um desafio: a hora era da
discussão de perspectivas. E textos especiais foram publicados: Chico Pinto,
José Álvaro Moisés, Fernando Henrique Cardoso. O tema da discussão eram os
novos partidos. E pensamos o passado. Vimos que ao movimento popular de 1964
faltaram lideranças. E como colegas escreveram, era um movimento de base
frágil, a receber inspiração de fora. Foi abandonado, sem esboço de reação de
seus líderes. Entre as lideranças faltosas estava a figura de um ex-presidente.
Foi assim
que o jornal correlacionou contracultura e discurso político. Passou a discutir
conjuntura, a se identificar com correntes que pensavam a construção da
democracia. E sonhou o socialismo: Almino Affonso, Edmundo Moniz, Plínio de
Arruda Sampaio, a Tendência Socialista do MDB no Rio Grande do Sul tiveram voz
e vez. Mas o jornal entendeu que a questão política era questão nacional, mas
também global, onde entravam estudantes, mulheres, negros, índios e
trabalhadores.
Jornalismo
autônomo
O jornal se
pautou, então, por uma ética do companheirismo que nascia da filosofia da
práxis. E fez da autonomia crítica diante da autocracia do regime sua
perspectiva de ação contra o egoísmo econômico e político. Proclamou a
necessidade de uma nova ordem, na qual o sentido de comunidade fosse o
fundamento da organização social.
Tal ética
fez a denúncia do egoísmo da economia das multinacionais e dos governos
latino-americanos que a elas serviam e levavam à expropriação de muitos em
benefícios de poucos. Propôs uma economia solidária onde a alegria não fosse
meramente fruto do ganho, mas do próprio trabalho. E condenou o egoísmo de
classe, onde cada qual procurava enriquecer através da exploração do próximo, e
as consequências desse processo, como o privilégio da educação para uma elite.
Mas condenou
também o egoísmo internacional do comércio e da força, que justificava a
violência e a guerra sobre povos, nações e continentes. Assim, pregou a
submissão das nações, fossem ricas ou pobres, à ideia do direito e à construção
de uma consciência comunitária, soldada sobre a paz, que levasse a um
internacionalismo real entre as nacionalidades.
Apesar de
ter uma ética que repousava sobre a filosofia da práxis, o jornal entendeu que,
no Brasil, a alma da unidade espiritual é a religião, e que o fracionamento
espiritual característico da segunda metade do século 20 no país traduzia
fracionamento econômico, distanciamento e choque entre classes. E que qualquer
processo cultural de unidade futura levaria a uma nova base de unidade e
solidariedade econômica e social.
Nesse
sentido, viu que havia na realidade brasileira e latino-americana um processo
de desenvolvimento que se realizava de forma desigual na história do
continente, mas que combinava mudanças espirituais e transformações econômicas
e sociais. Diante de tais circunstâncias, considerou que o jornalismo autônomo
e crítico frente aos poderes estava eticamente obrigado a fazer uma escolha: ou
participava do processo, inspirando e atuando a favor desse desenvolvimento, ou
se retraía e entrava em processo de caducidade ao afastar-se da vida real das
comunidades.
Nova
esquerda
Levantou,
então, a bandeira da construção de um amplo e democrático Partido Socialista,
que deveria partir, para isso, das "leis vigentes no país, que
consideramos restritivas, não democráticas e antipopulares. Lutamos para que
esse partido seja construído através de uma ampla e livre discussão interna,
que integre todos os que se reclamam socialistas, organizando núcleos de base
por locais de trabalho" [Ênio Bucchioni e Omar L. de Barros Filho, idem,
op. cit., p. 8].
Procurou
somar contrários não antagônicos em direção ao sonho maior. E assim construiu
uma maneira profética de fazer jornalismo: integrou três linguagens como forma
de ação, a da contracultura, a reflexão sociológica e a discussão da instância
diretamente política.
Tal presença
contracultural e política na vida de milhares de brasileiros, principalmente
daqueles envolvidos com a democratização do país, fez do jornal um bastião
avançado nas lutas pelas liberdades democráticas.
"Estivemos
na linha de frente na campanha pela Anistia e pelas liberdades democráticas,
reclamadas pela população brasileira. Fomos duramente atingidos pelos vários
organismos repressivos do regime, inclusive com as prisões de alguns
companheiros da redação, administração e colaboradores. Fomos sufocados
financeiramente, e houve momentos em que a sobrevivência material diária ficou
em mãos de nossos amigos e companheiros. No entanto, permanecemos e nos
transformamos, nesse terceiro ano de vida, o mais agitado, sem dúvida. Ousamos
nos entranhar na realidade social e política, e nos definimos. Acreditamos na
profundidade de nossos ideais e estamos convencidos de rumar no mesmo sentido
da história, sendo uma de suas parcelas vivas e atuantes." [Ênio Bucchioni
e Omar L. de Barros Filho, ibidem, op. cit., pp.3-9.]
Sua produção
jornalística remeteu ao pensamento da intelectualidade socialista da época. O
debate de ideias traduziu força e formatou um dos pólos da nova esquerda: o
ideal do convergir sem diluir-se em estruturas.
Dessa
maneira...
Versus,
versus
Li a
linha
Geisel já
vai tarde
Entrei na
fileira
Cresceu a
revolta
Marchei na
coluna
Levantei
fuzis de reconstrução
Versus,
versus
É canto e
dança!
...foi e
ainda é fonte para a compreensão do pensamento socialista da época e da nova
esquerda em particular.
***
Jornalista e escritor
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