Questões que um político cristão deve levar em conta
Prof. Dr. Jorge Pinheiro
1.
Devemos nos
distanciar do marxismo lido a partir do ateísmo e da religião que faz a
legitimação da dominação. E a partir desse distanciamento, procurar definir
caminhos para a militância política das comunidades cristãs. E aqui, sem
dúvida, encontramos uma complementaridade fundamental e necessária à teologia:
a atividade militante dos cristãos no interior das comunidades religiosas é
motivada por diferentes opções históricas, tanto a legitimação da dominação,
que pode ser chamada de religião superestrutural, como a crítica da dominação,
ou seja, da religião infraestrutural. Entre os dois extremos situa-se o campo
religioso, naturalmente ambíguo, já que a instituição religiosa necessita tanto
do organizador como do profeta. E é a partir da análise dessa ambiguidade que
devemos traçar questões que envolvem realidade brasileira e dão concretude à
práxis do militante cristão, que deve levar em conta:
2.
O momento
analético é a afirmação da exterioridade: não é somente a negação da negação do
sistema desde a afirmação da totalidade. É a superação da totalidade a partir
da transcendentalidade interna ou da exterioridade daquele que nunca esteve
dentro. O momento analético é crítico por isso: é a superação do método
dialético negativo. Afirmar a exterioridade é realizar o impossível para o
sistema, o imprevisível para a totalidade, aquilo que surge a partir da
liberdade não condicionada, revolucionária e inovadora. Como consequência, a
analética é prática: é uma economia, uma pedagogia e uma política que trabalham
para a realização da alteridade humana, alteridade que nunca é solitária, mas a
epifania de um sexo, de uma família, de uma classe social, de uma geração, de
um tempo e da espécie humana.
3.
Discutir a
religião como infraestrutura e superestrutura é superar a visão de que as lutas
de emancipação no Brasil e na América Latina tiveram origem nos movimentos
milenaristas, que se adaptaram e organizaram movimentos políticos ou
retrocederam convertendo-se em religiões alienantes no sentido mais limitado do
termo. A religião é a primeira consciência que o ser humano tem de si mesmo, e
as relações morais, do filho com os pais, do marido com a mulher, do irmão com
o irmão, do amigo com o amigo, enfim do ser humano com seu próximo, são
relações religiosas. Por isso, a religião é construtora de identidade.
4.
A religião,
enquanto conjunto de mediações simbólicas e rituais, como doutrina explicativa
do mundo e que se posiciona a partir da referência ao Absoluto, participa do
fechamento do sistema sobre si mesmo. Essa totalização do sistema é um processo
de divinização, que cumpre a função de ocultar a dominação. A noção de religião
superestrutural traduz esse processo de divinização do sistema europeu e depois
norte-americano na Modernidade: significa (des)historificar a totalidade
social, (des)dialetizar um processo que tem origem, crescimento e plenitude. A
divinização leva a um outro processo, à fetichização, que apresenta uma
constituição ahistórica da totalidade social vigente. A fetichização consiste,
então, na identificação da estrutura atual com a natureza, ou seja, ela está
aí, está colocada por vontade divina.
5.
As massas,
enquanto oprimidas e passivas, vivem a ideologia das classes dominantes, pois o
sistema apresenta de forma ambígua ideais utópicos que oferecem respostas às
suas necessidades. Ao aceitar a religião superestrutural da classe dominante
enquanto rito simbólico do triunfo dos dominadores e derrota dos dominados, as
massas vivem sob a resignação passiva, a paciência derrotista e a humildade
aparente.
6.
A miséria
religiosa é expressão da miséria real, entretanto, é também uma forma de
protesto contra a miséria real. A religião é o suspiro da pessoa oprimida, o
coração de um mundo sem coração, e o espírito de uma situação sem espírito. A
necessidade da religião em abandonar as ilusões sobre sua própria situação é a
exigência de que abandone uma situação que necessita de ilusões. Por isso, a
crítica da religião é a crítica deste vale de lágrimas que a religião apresenta
como expressão de santidade. A crítica da religião não elimina as correntes de
flores imaginárias para que o ser humano suporte as correntes reais, mas para
que ele se livre delas. A crítica da religião desmitifica para que o ser humano
pense, para que atue e transforme sua realidade como ser humano consciente.
7.
A tarefa do
cristianismo solidário consiste, uma vez que desapareceu o mais além da
verdade, em verificar a verdade que está aqui. E é tarefa do cristianismo
solidário, que se encontra ao serviço da história, uma vez que está
desmascarada a santidade da auto-alienação humana, desmascarar a auto-alienação
em suas formas não santas. De tal modo que a crítica do céu se transforme em
crítica da terra, e a crítica da religião em crítica do direito, e a crítica da
teologia em crítica da política.
8.
A expressão religião infraestrutural indica a anterioridade da responsabilidade prática que se tem
com o oprimido dentro do sistema. Essa anterioridade não diz respeito
exclusivamente à superestrutura de um sistema futuro, mas diz respeito também à
sua infraestrutura. O ser humano religioso transcende o sistema vigente de
dominação e vê como responsabilidade sua o serviço ao excluído. A religião
nesse caso é a instauração de uma nova práxis. E o fato de que a práxis
religiosa infraestrutural possa se tornar superestrutural não nega o fato de
que a profecia continua a irromper na história. Essa presença de
responsabilidade social com o excluído de bens e possibilidades mostra a vigência do clamor profético e
funciona como freio das pressões alienantes e superestruturais.
9.
O ateísmo,
enquanto negação dessa necessidade de essencialidade, perde sentido, pois, ao
negar Deus, afirma mediante a negação a existência do ser humano. Mas o
cristianismo solidário não necessita dessa mediação, pois surge enquanto
consciência sensível, teórica e prática do ser humano e da natureza como
essência. É autoconsciência positiva do ser humano, não mediada pela superação
da religião, do mesmo modo que a vida real é realidade positiva para o ser
humano, não mediada pela superação da propriedade privada. O cristianismo
solidário surge como negação da negação da emancipação e da recuperação humana,
é o princípio dinâmico do porvir, mas não é em si a finalidade do
desenvolvimento humano, a forma última e única da sociedade humana.
10.
A militância
religiosa faz parte de uma luta mais ampla, onde a religião infra estrutural
cumpre papel de aliado estratégico, levando o militante religioso a assumir
tarefas, práxis nos níveis político, econômico e não apenas ideológico. O
ateísmo, por isso, é ocultamento, pois fecha as portas ao aliado estratégico, à
religião infra estrutural, que se fará presente enquanto houver seres humanos
obstinados pela responsabilidade diante do excluído, sentido incondicional de
justiça, esperança de um novo kairós.
11.
Assim, para o
cristão a história universal é produção humana a partir do trabalho humano, que
transforma a natureza e produz o nascimento do ser humano em sociedade. É nesse
processo permanente que o ser humano constrói sua essencialidade: do ser humano
em direção ao ser humano, como existência da natureza, e da natureza para o ser
humano, como existência do ser humano.
12.
O êxito nesse processo depende das condições de possibilidade, ou seja,
é impossível separar teoria e práxis. Por isso, uma teologia da vida deve saber
integrar os princípios enunciados na escolha de fins, meios, e métodos que
devem levar à práxis crítica do sujeito histórico, aqueles que estão excluídos do sistema-mundo. Este
sistema-mundo, ou modernidade, ao impossibilitar a produção e reprodução da
vida semeia doenças, fome, terror e morte. As vítimas são os seres humanos,
cujas dignidades e vidas são destruídas. A modernidade e sua globalidade levam
a um assassinato em massa e ao suicídio coletivo. Porém, a práxis do
solidarismo caminha sempre sobre o fio da navalha: de um lado está o anarquismo
contrário à instituição e de outro o reformismo pró-integração. Por isso,
estratégia e tática devem ser enquadrados dentro de princípios gerais, crítico e ético, a fim de que com factibilidade crítico-ética se possa negar as causas
da negação da vítima. Essa é uma luta desconstrutiva, que exige meios
proporcionais àqueles contra os quais a luta é travada. Mas, se a práxis traduz
uma ação desconstrutiva, promove transformações construtivas: leva à uma nova
ordem com base num programa planejado que é realizado progressivamente, mas
nunca totalmente.
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