dimanche 17 avril 2016

O caminho da espiritualidade e da liberdade


A halakha[1] da espiritualidade e da liberdade
Jorge Pinheiro, PhD


A este povo dirás: Assim diz Iaveh: Eis que ponho diante de vós o caminho da vida e o caminho da morte. (Jeremias 21:8)

Pois os meus pensamentos não são os vossos pensamentos, nem os vossos caminhos são os meus caminhos, diz Iaveh. (Isaías 55:8)

Primeiros passos ...

Théodore Monod[2] disse que não somos meio termo, mas complemento. Não somos cinza, mas cores do espectro. Na verdade, os escritos judaicos da Era Comum nos dizem que o Eterno construiu o ser humano e, em seguida, retirou-se para que este humano pudesse construir sua liberdade e o seu lugar. Dessa forma, o ser humano é potencialmente autônomo dentro dos limites da existência, constrói livre-arbítrio e, portanto, responsabilidade. 

Os escritos judaicos, entregues no caminhar da diáspora, entendem que o Eterno aposta na construção permanente do ser humano. A criação, vista dessa forma, não está completa, o ser humano, enquanto pessoa e comunidade, continua a criação. Por isso, a construção da espiritualidade é a chave para o futuro humano. É o que leva à criação permanente. Textos do misticismo judaico, como os da Cabala, quando falam do acesso ao mundo do Espírito, perguntam: "Você se tornou o que você é?" 

O ser humano, enquanto pessoa e comunidade, é criador de si mesmo. Sua vida é uma viagem com a finalidade do tornar-se. Ele deve saltar do "conhece a ti mesmo" para "tornar-se quem ele é" e "descobrir para que serve". É a viagem da existência humana, e a liberdade é uma viagem dentro de si mesmo, numa comunhão que engloba o cosmo, e deve ser realizada através do corte da pedra, símbolo do ser humano, do material em direção ao espiritual. 

O macho e o suspiro

"Adão teve relações com Eva, a sua mulher, e ela ficou grávida. Eva deu à luz um filho e disse: — Com a ajuda de Deus, o Senhor, tive um filho homem. E ela pôs nele o nome de Caim. Depois teve outro filho, chamado Abel, irmão de Caim. Abel era pastor de ovelhas, e Caim era agricultor. O tempo passou. Um dia Caim pegou alguns produtos da terra e os ofereceu a Deus, o Senhor. Abel, por sua vez, pegou o primeiro carneirinho nascido no seu rebanho, matou-o e ofereceu as melhores partes ao Senhor. O Senhor ficou contente com Abel e com a sua oferta, mas rejeitou Caim e a sua oferta. Caim ficou furioso e fechou a cara. Então o Senhor disse: — Por que você está com raiva? Por que anda carrancudo? Se tivesse feito o que é certo, você estaria sorrindo; mas você agiu mal, e por isso o pecado está na porta, à sua espera. Ele quer dominá-lo, mas você precisa vencê-lo. Aí Caim disse a Abel, o seu irmão: — Vamos até o campo. Quando os dois estavam no campo, Caim atacou Abel, o seu irmão, e o matou". (Gênesis 4:1-8)

O relato da história de Caim e Abel mostra o embate entre dois irmãos e dois modos de vida: de um lado temos o agricultor e de outro o pastor. A história dos dois irmãos personificam a fratura da "imago Dei" e a consequente alienação humana, em sua diversidade, distanciamento do Criador, alienação psicológica, sociológica e ecológica.

Quando nasce Caim, Eva -- do hebraico חַוָּה, hawa, vivente --, a Mãe, feliz diz: alcancei do Senhor um macho. Que é um trocadilho com o verbo qanah, adquirir, que vai dar a palavra Qayn. Em relação a Abel, seu nome hevel significa sopro, suspiro, uma brisa leve, no sentido de que teve vida curta e não deixou filhos.

A história do choque entre os dois irmãos, entre duas espiritualidades, conta que o Eterno recebeu de bom grado a oferenda de Hevel porque ele "ofereceu as melhores partes ao Senhor". Enquanto Qayn "um dia pegou alguns produtos da terra", ou seja, ofereceu com descuido, o que não lhe deu trabalho, o que tinha de sobra. 

O Eterno valoriza a sinceridade dos sentimentos que gera a oferta e não o contrário, por isso ele disse "odeio, eu detesto as suas festas religiosas; não tolero as suas reuniões solenes. Não aceito animais que são queimados em sacrifício, nem as ofertas de cereais, nem os animais gordos que vocês oferecem como sacrifícios de paz. Parem com o barulho das suas canções religiosas; não quero mais ouvir a música de harpas. Em vez disso, quero que haja tanta justiça como as águas de uma enchente e que a honestidade seja como um rio que não para de correr". (Amós 5:21-24).

Assim a história dos dois irmãos apresenta a metáfora da fratura psicológica, social, ecológica e espiritual da humanidade.

O caminhar sob missão

O caminhar com o Eterno não pode estar separado do colocar-se sob missão do Espírito, pois a construção da liberdade humana nasce da revolução do espírito e confronta as solidões dos caminhos próprios. 

Duas noções fundamentais, a do ser e a do devir, estão intimamente ligadas às ideias da halakha e da revolução permanente do espírito. Só o Eterno é único. Na tradição judaica, quando falamos "Ser" estamos a falar do Eterno. Mas os humanos caminham no sentido de se tornarem ser. Precisam caminhar sua viagem, simbólica, do material em direção ao espiritual, a fim de integrar, interiorizar a simplicidade sublime do Ser Eterno. É nesse sentido que o caminhar deve gerar harmonia, paz que leva à coexistência de progresso e tradição. 

Assim a história dos dois irmãos apresentam a metáfora da fratura psicológica, social, ecológica e espiritual da humanidade.

1. Ao nível psicológico, Qayn e Hevel apontem para o conflito entre o certo e o errado, entre o realizar os desejos na natureza humana e o viver a construção da liberdade humana no caminhar com o Deus Eterno. E neste conflito, quando a natureza humana é vitoriosa o embate resulta em morte, em fracionamento, em cisão do humano que somos.

Ao matar Hevel, Qayn se torna um pária de si mesmo, um nômade marcado pela falta daquilo que constitui a vida plena, a personalidade livre da culpa. Passa a ser uma pessoa que sem norte, que andarilha distante de sua integralidade como ser humano. É ser dividido, fraturado.

2. Ao nível social, Qayn e Hevel simbolizam duas humanidades, divididas, que se confrontam no correr da história.

É conflito permanente entre uma humanidade, simbolizada por Qayn, que se rebela, mata o irmão e através da violência assenhoreia-se da natureza, levando-a ao desequilíbrio e destruição; e outra humanidade, simbolizada por Hevel, que procura a comunhão com seu Criador, com seus irmãos, e com a própria natureza.

3. Ao nível espiritual, e este é o principal centro do relato, Qayn e Hevel apontam para uma fratura na alma humana em sua forma de se relacionar com o Deus Eterno.

Uma dualidade que definiu dois tipos de busca -- uma formal, estereotipada em valores próprios, e outra de colocar-se sob missão à vontade do Deus Eterno.

Espiritualmente, há uma divisão no âmago da alma humana, no relato do conflito entre Qayn e Hevel. É uma parábola do ser humano que sacrifica uma parte de seu ser. Qayn de agricultor passa a andarilho para depois se tornar um construtor de cidades. E Abel de pastor torna-se símbolo da fé sob missão e, num contexto espiritual, de mártir da entrega ao Deus Eterno.

Qayn é a metáfora de uma humanidade que mata dentro de si o Hevel da entrega e da vida plena em sintonia com a vontade de Deus. E para não viver como andarilho, na solidão de si mesmo, Qayn funda uma cidade. É sua forma de dizer não à vontade de Deus Eterno, que considera injusta.

A liberdade do partir do pão

A comunidade de fé, enquanto comunhão, não deve ser obstáculo para o caminhar espiritual. Ao contrário, compreendido o conceito de comunidade, de estar junto para repartir o pão, tal comunhão não deve desenvolver ambição, orgulho ou reflexo xenófobo, mas abertura para o humano. Seu significado não é excluir a fraternidade, mas estendê-la da comunidade em direção a todos os humanos. O objetivo é difícil, mas não há esperança se não perseveramos em direção ao sucesso.

Aprender a liberdade é o primeiro momento dessa construção, comemorada na Páscoa, enquanto caminhar em esperança. Caminhamos em direção ao outro e para cima. Esta tradição foi transmitida aos judeus pela Torá, e está presente nos 613 mandamentos, em que se baseiam a coesão da comunidade judaica. 

O caminhar associado a revolução permanente do espírito deve levar a uma espiritualidade que voa acima de dogmas e formalizações. É um caminhar baseado na fraternidade universal. Donde, tradição e progresso podem fazer sentido na existência do humano, enquanto elo da cadeia da vida. 

Nesse caminhar descobrimos, conforme nos foi revelado, que o Eterno é impensável, incognoscível e impenetrável, mas presente no universo em todos os seus planos. O Eterno não pode ser nomeado. A única designação autêntica é precisamente a rejeição de qualquer definição é "ein Sof"[3], aquele que não tem fim, Eterno. O Espírito absoluto é essência por si só. O Eterno é o único, única manifestação visível do invisível. Mas a harmonia universal resulta da complementaridade dos opostos. A vida é um ponto na eternidade. 

Devemos ser, todos nós humanos, aqueles que esperam pelo mundo do Espírito. E o caminhar na liberdade do Espirito nos leva ao amor, que é chave para a comunhão. Pois, amar o outro é reconhecer que ele também foi criado para a liberdade do Espírito. É com ele caminhar em direção ao sentido pleno da vida. 

O amor dá dignidade ao caminhar. Semeia as sementes da revolta contra a injustiça e a opressão, inclusive religiosa. Reconhece o fato de que o sofrimento é um desequilíbrio do mundo. Mas, a liberdade do Espírito nos dá consciência, de que o amor não pode ser rebaixado a concepções que degradam a dignidade do ser humano. Ou seja, amar o outro não é fé, não é destino, é ato de construção do espírito e da liberdade com todos e todas.

E a halakha se constrói caminhando ...

É por isso que dizemos: Abel, um humano sob missão, foi o primeiro mártir espiritual da humanidade -- aponta para Jesus, o Cristo.

"Jesus foi com os discípulos para um lugar chamado Getsêmani e lhes disse: — Sentem-se aqui, enquanto eu vou ali orar. Então Jesus foi, levando consigo Pedro e os dois filhos de Zebedeu. Aí ele começou a sentir uma grande tristeza e aflição e disse a eles: — A tristeza que estou sentindo é tão grande, que é capaz de me matar. Fiquem aqui vigiando comigo. Ele foi um pouco mais adiante, ajoelhou-se, encostou o rosto no chão e orou: — Meu Pai, se é possível, afasta de mim este cálice de sofrimento! Porém que não seja feito o que eu quero, mas o que tu queres". (Mateus 26.36-39)

"Ele tinha a natureza de Deus, mas não tentou ficar igual a Deus. Pelo contrário, ele abriu mão de tudo o que era seu e tomou a natureza de servo, tornando-se assim igual aos seres humanos. E, vivendo a vida comum de um ser humano, ele foi humilde e obedeceu a Deus até a morte — morte de cruz". (Filipenses 2:6-8)

Eis o desafio da halakha, seguir o caminho aberto por Abel -- da humanidade sob missão à vontade do Deus Eterno. 

Eis o desafio da halakha, seguir o caminho de Jesus, o Cristo -- que ao abrir mão do aparente que se deteriora, nos ensinou a construir a espiritualidade e a liberdade que fazem de cada um de nós humanos de fato. E é este caminhar que nos leva a dizer: não se faça o que quero, mas o que Tu queres. 

Notas

[1] A halakha ou lei judaica, é um ramo da literatura rabínica. Ela trata das obrigações religiosas às quais devem se submeter os judeus em suas relações com o próximo e com o Eterno. Ela engloba todos os aspectos da existência. Aqui vamos utilizar halakha em seu sentido mais amplo de caminho. 
[2] Le Chercheur d’absolu, Le Cherche midi, 1997.
[3] Ein Sof ou ayn Sof, (hebraico אין סוף), na Cabala, é entendido como Deus antes de Sua automanifestação na produção de qualquer reino espiritual, provavelmente derivado do termo de Ibn Gabirol, "o único Infinito". Ein Sof pode ser traduzido por "sem fim", "interminável", "não há fim", ou infinito.

















































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