As concepções conservadoras e progressistas
Jorge Pinheiro, PhD
A concepção conservadora admite o surgimento do eterno no tempo, que repousa no passado. Por essa razão nega toda mudança, presente ou futura.[1] A força dessa concepção repousa no fato de que considera o eterno como dado e não como resultado da ação cultural e religiosa do ser humano.
Paul Tillich ao falar da plenitude do tempo no evento Jesus, explica a construção de sua concepção de kairós: um tempo carregado de tensão, de possibilidades e impossibilidades, qualitativo e rico de conteúdo. Nem tudo é possível sempre, nem tudo é verdade em todos os tempos, nem tudo é exigido em todo momento. Diversos mestres, diferentes poderes cósmicos, reinam em tempos diferentes, e o Senhor que triunfa sobre anjos e poderes, reina no tempo pleno de destino e de tensões, que se estende entre a Ressurreição e a Segunda vinda. Ele reina no tempo presente que, em sua essência, é diferente dos outros tempos do passado.
É nessa viva e profunda consciência da história que está enraizada a idéia de kairós, e é a partir dela que deve ser elaborado o conceito de uma filosofia consciente da história.[2] A concepção conservadora também reconhece o kairós, mas o situa no passado. Desconsidera que se aconteceu no passado como acontecimento único, é ele quem se revela em todos os sim e não do passado, do presente e futuro. Sob tal visão repousa o pensamento político conservador. Perdeu o sentido supratemporal do kairós.[3]
O mito expressou com profunda riqueza este estado de coisas, com o testemunho de objetos e eventos nos quais o grupo humano percebe sua origem. Em todos os mitos ressoa a lei cíclica do nascimento e da morte. Todo o mito é mito da origem, responde à pergunta da providência e conta porque somos segurados na origem e estamos debaixo de seu império.[4]
A consciência mítica original é a raiz de todo o pensamento político conservador e romântico. A consciência mítica não apresenta a origem de forma abstrata, mas concreta, sob a forma de poderes originais determinados. A existência humana distinta e suas origens são diferentes, assim como o são os poderes da origem, percebidos no mito e atualizados no culto. Porém, é possível operar alguns reagrupamentos significantes de poderes originais que têm uma grande importância política. [5]
Embora haja pontos de contato entre os conceitos expressos por Paul Tillich e o pensamento marxista, principalmente no que se refere à construção de um pensamento político conservador, é interessante ver as diferenças. Para Marilena Chauí, filósofa brasileira, teórica do Partido dos Trabalhadores, o mito deve ser entendido enquanto conceito antropológico, no qual a narrativa é a solução imaginária para tensões, conflitos e contradições que não encontram caminhos para serem resolvidos no nível da realidade.
Um mito fundador é aquele que não cessa de encontrar novos meios para exprimir-se, novas linguagens, novos valores e idéias, de tal modo que, quanto mais parece ser outra coisa, tanto mais é a repetição de si mesmo.[6]
Dessa maneira, para Marilena Chauí, o mito é sempre falsa consciência. Mas o ser humano vai além do colocar-se como realidade dada, vai além do saber colocar-se diante do ciclo do nascimento e a morte. Faz a experiência de uma exigência que separou o imediato da vida e o leva a colocar-se diante da pergunta da providência uma outra pergunta: por que? Esta pergunta quebra o ciclo de uma maneira fundamental, eleva o ser humano acima da esfera do simples viver. Porque é a exigência de algo que não está aí, que tem que se tornar realidade.
Quando se faz a experiência desse tipo de exigência não se está mais colado à origem. Vai-se além da afirmação do que já está. A exigência nomeia o que deve ser. E o que deve ser não é determinado com a afirmação daquilo que já é, disso que é, significa que tal exigência impôs ao ser humano o incondicionado. O por que não está dentro dos limites da fonte. É o incondicionalmente novo. Através desse por que o ser humano deve alcançar algo de incondicionalmente novo. Este é o sentido da exigência, quando o humano, por ser dividido, faz esta experiência. Ele detém um conhecimento próprio, por isso é possível ir além da realidade, além daquilo que o cerca.
Tal é a liberdade do ser humano: não que ele tenha uma vontade livre, mas não está preso, enquanto humano, ao que está dado. O ciclo do nascimento e morte foi quebrado, sua existência e sua ação não estão amarradas na simples propagação de sua origem. Quando esta consciência se impõe, são rasgados os laços da origem, o mito original está quebrado. A ruptura do mito original pela exigência incondicional é a raiz do pensamento político liberal, democrático e socialista.
A concepção progressista considera o eterno um alvo infinito, existente em cada época, mas que não se apresenta enquanto revolução. Assim, os tempos tornam-se vazios, sem decisão, sem responsabilidade. Na concepção progressista existe uma tensão diante do que foi. Mas a consciência de que o alvo é inacessível a debilita e produz um compromisso continuado com o passado. A concepção progressista não oferece nenhuma opção ao que está dado. Transforma-se em progresso mitigado, em crítica pontual desprovida de tensão, onde não há nenhuma responsabilidade última. Este progressismo mitigado é a atitude característica da sociedade burguesa. É um perigo que ameaça constantemente, é a supressão do não e do sim incondicionais, a supressão do anúncio da plenitude dos tempos. É o verdadeiro adversário do espírito profético.[7]
A exigência que o ser humano faz na experiência diante do incondicionado não é estranha a ele. Se fosse estranha à sua essência, não lhe seriam concernentes e ele não poderia discernir tal coisa como exigência. Se ela lhe toca é porque coloca diante de seus olhos sua essência enquanto exigência. Funda-se a incondicionalidade, a irrevogabilidade com que o dever-ser aborda o humano e exige ser afirmado por ele. Se a exigência é a própria essência do humano, então ela encontra seu fundamento na sua origem, e então a providência e o destino não pertencem a mundos diferentes. Ainda, diante do original, o que é requerido é o incondicionalmente novo. Assim, a origem é ambígua. Há nela uma separação entre origem verdadeira e a origem real.
O que é realmente original não é o que é original de verdade. Dessa maneira, a realização da origem é esta exigência e este dever-ser pelo qual o humano é confrontado. O por que do ser humano é a realização da sua providência. A origem real é negada pela origem verdadeira; mas certamente, não é uma pura e simples negação. A origem real tem que levar à verdadeira, ela é sua expressão, mas também disfarce e distorção. A pura consciência mítica original ignora todas as ambigüidades da origem. É por isto que esta consciência está presa à origem e considera sacrilégio toda a ultrapassagem da origem. Só a consciência que, fazendo a experiência da exigência da incondicionalidade, se livra dos laços de origem e se apercebe da ambigüidade da origem.
A exigência quer a realização da origem verdadeira. Porém o ser humano não recebe uma exigência incondicionada de outros. É no reencontro do "eu e você" que a exigência torna-se concreta. Seu conteúdo é reconhecido no você com a dignidade do "eu", a dignidade para ser livre, portador da realização daquilo que apontada à origem. Reconhecer no você uma dignidade igual a do eu, isto é justiça. A exigência que nos arrasta à ambigüidade da origem é a exigência de justiça. A origem não rompida conduz a poderes em tensão que procuram a dominação e destroem um ao outro.
Quando a origem é rompida vem o poder do ser, o declínio dos poderes que expiam e são julgados por seu sacrilégio, de acordo com a ordem do tempo, como já evocou a filosofia grega. A exigência incondicional eleva acima deste ciclo trágico. Diante do poder e da impotência do ser, opõe a justiça, que provém do dever-ser. Mas essa teoria tillichiana de uma justiça criativa não deve levar aquele que a pratica ao esquecimento das violências do passado, quando grupos se lançaram uns contra os outros, mas nos opormos a essas ações e outras semelhantes, pois o amor pode ir além da separação, não ignorando diferenças, mas dirigindo as partes aos valores mais elevados.
Esse é o desafio da justiça criativa: trabalhar a partir das relações pessoais e comunitárias para sobrepujar os problemas do passado e as estruturas existentes, a fim de desenvolver novos modelos de relacionamento e criar leis novas que contribuam para unir as pessoas e os povos, e aumentar o poder. A justiça criativa constitui a última interrelação do amor, do poder e da justiça, mas podemos senti-la e mesmo experimentá-la de maneira fragmentária e momentânea, em meio às ambigüidades da vida. A justiça criativa põe em evidência o poder transformador do amor.[8]
Portanto, não há oposição entre justiça e poder, porque o dever-ser é a realização do ser. A justiça é o verdadeiro poder do ser. Nisto se torna realidade o que é apontado na origem. Na relação entre os dois elementos da existência humana e as duas raízes do pensamento político, a exigência predomina sobre a pura origem, e a justiça, sobre o puro poder do ser. A pergunta do por que é superior à da providência. O mito original não deve representar no pensamento político mais do que uma crença rompida, uma crença desvelada. Esse é o caminho da utopia. Sem o espírito utópico não há protesto, nem crítica profética. Para Tillich, esse espírito profético está envolvido na situação histórica concreta, tem coragem de decidir e colocar-se sob julgamento ao nível do particular, sem esquecer que sua relação aponta ao incondicionado, e que o ponto mais elevado que é possível alcançar no tempo está submetido ao não. Por isso, o espírito profético não deve perder a audácia do não e do sim concretos.
Notas
[1] Paul Tillich, “Kairos II. Idées à propos de la situation spirituelle du temps présent”, in Christianisme et Socialisme, Écrits socialistes allemands (1919-1931), Paris, Genebra, Québec : Les Éditions du Cerf, Éditions Labor et Fides, Les Presses de l’Université Laval, 1992, pp. 253-267. “Kairos II, Ideen zur Geisteslage der Gegenwart”, Die Widerstreit von Raum und Zeit, Gesammelte Werke VI, 1963, pp. 29-41. Trad. fr. Nicole Grondin e Lucien Pelletier.
[2] Paul Tillich, “Kairós II”, in Christianisme et socialisme, Écrits socialistes allemands (1919-1931), op. cit., pp. 259-260.
[3] Paul Tillich, “Kairós II”, in Christianisme et socialisme, Écrits socialistes allemands (1919-1931), op.cit., p. 260.
[4] Martin Leiner, “Mythe et modernité chez Paul Tillich”, in Marc Boss, Doris Law, Jean Richard (ed.), Mutations religieuses de la modernité, Actes du XIVe. Colloque International Paul Tillich, Marselha, 2001, Hamburgo, Londres, LIT, 2002, p. 13.
[5] Paul Tillich, La Décision Socialiste, op. cit., p. 17.
[6] Marilena Chauí, Brasil, mito fundador e sociedade autoritária, São Paulo, Editora Fundação Perseu Abramo, 2000, p. 9.
[7] Paul Tillich, “Kairós II”, op.cit., p. 260.
[8] Mary Ann Stenger, “La justice créative dans les écrits de Tillich sur le socialisme et dans ‘Amour, pouvoir et justice’”, in Etudes théologiques et religieuses, ETR, 79o. ano, 2004/4, p. 527, Montpellier, Institut Protestant de Théologie, 2004.
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