A existência a partir da tradução
Ou, “há que ler o desejo:
sem terra, sem pátria e sem objeto, ele vaga por um deserto, cujas trilhas
conduzem o leitor à experiência limite mais-além do que aparece na imagem”.
Prof. Dr. Jorge Pinheiro
O fazer da existência vale a
pena. A eternidade aprecia esse bem-fazer humano, que tem seu próprio tempo,
que integra a existência de cada ser na história dos fazeres humanos. É por
isso que Bereshit, o primeiro texto na Torá, apresenta um ponto zero. O tempo
zero vai do entardecer à meia-noite. É quando o sol desilumina o nosso espaço
de forma gradual. O tempo do não-ser não é uma fratura do tempo, é tempo da
história. Qoh não contempla a passagem do tempo, mas a vinda do tempo. O tempo
significa nada ou pouco para o eterno, mas há um sentido de tempo para o
humano. A conclusão de Qoh é que temos de ser no tempo para dar valor à
eternidade que brota do nada do não-ser. E a partir de Qoh vamos a Paulo de
Tarso.
Pede-se ser levantado
“Você está falando de bens materiais, de coisa
frágil. Se você tem certeza de que esses bens ficarão sempre com você, fique
com eles sem partilhar com ninguém. Mas se você não é o senhor absoluto deles,
se tudo que você tem depende mais da sorte do que de você mesmo, por que este
apego a eles?”.[1]
Fuks
conta que Freud, um dia depois do sepultamento do pai, sonhou com um cartaz
onde estava escrito: “Pede-se fechar os olhos”. Mais tarde, em carta a Fliess,
o pai da psicanálise falou dos sentidos subjetivos da frase: “era parte da
minha auto-análise, minha reação diante da morte de meu pai, vale dizer, diante
da perda mais terrível na vida de um homem”.[2]
Não vou entrar nos
detalhes das leituras que o próprio Freud fez da frase que apareceu em seu
sonho. Diria ao leitor que vale a pena ler Freud e a Judeidade. Pretendo aqui
levantar uma proposta de Fuks: “há que ler o desejo: sem terra, sem pátria e
sem objeto, ele vaga por um deserto, cujas trilhas conduzem o leitor à
experiência limite mais-além do que aparece na imagem”. É a partir dessa hermenêutica,
que vamos ler trechos do final da primeira carta de Paulo aos Coríntios.
“... Foi sepultado e foi
despertado do sono no terceiro dia, de acordo com o escrito”.
A frase acima, e a
continuação do texto, é uma das mais importantes sobre a egeiro e anástasis,
duas expressões gregas não substancialmente diferentes, que sintetizam a
teologia da anástase dos cristãos do primeiro século. As traduções posteriores,
e creio que dificilmente poderiam ser diferentes, criaram um padrão de imagem
que dificultam a experiência do ir além. Por isso, fomos obrigados antes da
tradução transversa fazer a desconstrução histórico-filosófica da anástase.
As leituras da anástasis
e egeiró remontam a Homero e ao grego antigo e com seus sentidos correlatos axanástasis,
anhistémi e anazaó, que podem ser traduzidas por “ficar de pé”,
“ser levantado” e “voltar à vida”, foram fundamentais para a construção do
conceito anástase, amplamente utilizado pelas ciências do espírito. Mas é com
Platão, na literatura filosófica, que vamos encontrar um debate fundamental
para a teologia da anástase, quando apresenta a alma enquanto semelhança do
divino e o corpo enquanto semelhança do que é físico e temporário.
Platão, em Fédon[3], num
diálogo entre Sócrates e seus amigos defendeu a idéia da imortalidade da alma.
Sócrates foi condenado à morte por envenenamento, mas não teve medo, por crer
ser a alma imortal. Para Platão, as almas possuem semelhanças com as formas,
que são realidades eternas por trás do mundo físico, natural. Nesse sentido,
para Platão, o corpo morre, mas a alma não. Ele parte do padrão cíclico da
natureza, frio/ quente/ frio, noite/ dia/ noite. Assim, os mortos despertam
numa nova vida depois da morte: caso contrário, a vida desapareceria.
E dirá através de Sócrates
em Fédon: “(...) perguntemos a nós mesmos se acreditamos que a morte seja
alguma coisa? (...) Que não será senão a separação entre a alma e o corpo?
Morrer, então, consistirá em apartar-se da alma o corpo, ficando este reduzido
a si mesmo e, por outro lado, em libertar-se do corpo a alma e isolar-se em si
mesma? Ou será a morte outra coisa? (...) Considera agora, meu caro, se pensas
como eu. Estou certo de que desse modo ficaremos conhecendo melhor o que nos
propomos investigar. És de opinião que seja próprio do filósofo esforçar-se
para a aquisição dos pretensos prazeres, tal como comer e beber?”
Paulo conhecia a discussão
filosófica grega acerca da anástase, já que isso se evidencia em seus escritos,
principalmente no trecho que estamos analisando, mas é certo que construiu seu
conceito também levando em conta a tradição judaica, acrescentando novidades ao
debate teológico. Existem referências ao ser trazido de volta à vida nas
escrituras hebraico-judaicas. Mas a preocupação judaica era existencial, como
vimos em Qohélet. Mais do que remeter a um futuro distante, embora tais
leituras estejam presentes na teologia de alguns profetas, as histórias de
anástase relacionadas aos profetas Elias e Eliseu falam do aqui e agora. Aliás,
este último, mesmo de depois de morto, trouxe à vida um defunto que foi jogado
sobre sua ossada. Ao tocar os ossos de Eliseu, o morto ficou vivo de novo e se
levantou. Esse caminho será a novidade da compreensão cristã/ helênica da
anástase.
“Somos arautos de que o
ungido foi levantado do meio dos mortos: como alguns podem dizer que não há o
ser erguido dos mortos? E, se não há o despertar do sono da morte, também o
ungido não foi levantado. E se o ungido não foi levantado, é inútil o que
falamos e também inútil a nossa crença. Somos então testemunhas falsas, porque
anunciamos que Deus ergueu o ungido. Mas se ele não foi levantado, os mortos
também não são erguidos. E se os mortos não são erguidos, o ungido também não o
foi. E, se o ungido não foi erguido, a nossa crença é inútil e vocês continuam
a vagar sem destino. E os que foram colocados para dormir no ungido estão
destruídos”.
Outras
fontes de Paulo foram o profeta Daniel e outras literaturas
intertestamentárias, que trabalharam com a idéia de “despertar subitamente do
sono”. Chifflot e De Vaux[4] situam o
livro de Daniel no período helênico por entender que é uma edição de antigos
fragmentos do período babilônico, compilados, organizados e contextualizados ao
momento histórico descrito no capítulo onze. Nesse capítulo, as guerras entre
lágidas e selêucidas, assim como as investidas de Antíoco IV Epífanes contra
Jerusalém e o templo são narradas com riquezas de detalhes. Ao contrário do que
acontece nos livros proféticos anteriores, aqui o autor cita fatos
aparentemente insignificantes, querendo demonstrar que é uma testemunha ocular
da história. Dessa maneira, a edição que conhecemos do livro de Daniel deve ser
situada no período da grande perseguição de Antíoco IV Epífanes, possivelmente
entre os anos de 167 e 164 a.C., segundo Chifflot e De Vaux, já citados. A
partir desse enquadramento, os capítulos 7 a 12 de Daniel, enquanto edição são
chamados de “vaticinia ex eventu”, dado que o texto é contemporâneo aos
acontecimentos descritos. Esses capítulos expressam a reação contra a helenização
da Judéia e das perseguições em curso, mas, paradoxalmente, uma forma de
pensamento afetado pela civilização helênica.
A
partir da segunda metade do livro, o autor trabalha sobre dois temas
registrados na primeira metade: que o judeu deve ser fiel a Deus em meio à
tentação e à provação; e que Deus defende o servo leal que prefere morrer a
violar os mandamentos. Nos seis capítulos finais, o sábio (ou grupo de sábios,
cujos escritos foram compilados por um redator) retoma o conteúdo das visões
que teve em relação à profanação do templo, em 167 a.C., e o erguimento da
“abominação desoladora”.
Durante
o período helênico idéias novas afloraram em meio à vida judaica, entre elas a
esperança da recompensa escatolõgica apresentada pelas profecias apocalípticas,
como em 2Macabeus 7, Daniel 12:2-3 e o Escrito de Damasco 4:4, que se traduzem
concretamente na anástase.
Assim, os elementos novos
da compreensão paulina da anástase já aparecem delineados no profeta Daniel:
“Muitos dos que dormem no pó da terra despertarão, uns para a vida eterna, e
outros para vergonha e horror eterno. Os que forem sábios, pois, resplandecerão
como o fulgor do firmamento; e os que a muitos conduzirem à justiça, como as
estrelas, sempre e eternamente”. Paulo, porém, somará um componente existencial
à compreensão de Daniel, dirá que a morte, o maior de todos os odiados pela
espécie humana, será privada de força.
“Caso o ungido só sirva
para esta vida, somos as pessoas mais dignas de lástima. Mas o ungido foi
levantado dentre os mortos e foi o primeiro fruto dos que foram colocados para
dormir. Porque se a morte chegou pela humanidade, também o ungido dará à luz
nova vida. Como morre a espécie, no ungido ela recebe vida. E isso acontece
numa ordem: o ungido é o primeiro fruto, depois os que pertencem ao ungido,
quando ele aparecer. E veremos o limite, quando o ungido entregar o reino a
Deus e Pai, e tornar inoperante o império, os poderes e os exércitos. Convém
que seja rei até derrubar os odiados por terra. O último odiado a ser privado de
força é a morte, porque o resto já foi colocado debaixo de seus pés”.
É interessante que Paulo
em seu texto sobre a anástase cita o dramaturgo, filósofo e poeta grego
Menandro (342-291 a.C.), que num verso disse: “as más companhias corrompem os
bons costumes”. E voltando ao Misantropo: “insisto que, enquanto você é dono
deles, você deve usá-los como um homem de bem, ajudando os outros, fazendo
felizes tantas pessoas quantas você puder! Isto é que não morre, e se um dia
você for golpeado pela má sorte você receberá de volta o mesmo que tiver dado.
Um amigo certo é muito melhor que riquezas incertas, que você mantém
enterradas”. Tudo indica que Paulo gostava de teatro e de comédias.
Que Paulo recorreu à
tradição profética fica claro quando cita o profeta Oséias literalmente: “eu os
remirei do poder do inferno e os resgatarei da morte? Onde estão ó morte as
tuas pragas? Onde está ó morte a tua destruição?”. Mas há uma correlação entre
Platão e a tradição hebraico-judaica, que pode ser lida nesta carta de Paulo.
Isto porque, como afirma Fuks, o leitor desconstrói, pois ler não é repetir o
texto: é um modo de criação e de transformação. Por isso, digo que ler é um ato
de anástase. E Paulo trabalhou de forma brilhante o termo, tanto nas suas
leituras e estudos, como na reconstrução do próprio conceito.
“Que farão os que se
batizam pelos mortos, se os mortos não são chamados de volta à vida? Por que se
batizam então pelos mortos? Por que estamos a cada hora em perigo? Protesto
contra a morte de cada dia. Eu me glorio por vocês, no ungido Iesous a quem
pertencemos. Combati em Éfeso contra animais ferozes, mas o que significa isso,
se os mortos não podem ressurgir? Comamos e bebamos, porque amanhã morreremos.
Mas não vamos nos enganar: as más companhias corrompem os bons costumes”.
Na sequência da tradição
hebraico-judaica, ou como diz Fuks, “os antigos hebreus não estavam
trabalhados, como nós, pela necessidade de abstração, de síntese e de precisão
na análise conceitual do real, herança dos gregos”, Paulo está preocupado com o
corpo, com a vida.
“Mas alguém pode
perguntar: como os mortos são trazidos à vida? E com que corpo? Estúpido! O que
se semeia não tem vida, está morto. E, quando se semeia, não é semeado o corpo
que há de nascer, mas o grão, como de trigo ou qualquer outra semente. Deus dá
o corpo como quiser, e a cada semente o corpo que deve ter. Nem toda a carne é
uma mesma carne, há carne humana, de animais terrestres, de peixes, de aves. E
há corpos celestes e corpos terrestres, uma é a dignidade dos celestes e outra
a dos terrestres. Diferente é o esplendor do sol do esplendor da lua e das
estrelas. Porque uma estrela difere em brilho de outra estrela. Assim também o
ser levantado dentre os mortos. Semeia-se o corpo perecível; levantará sem
corrupção. Semeia-se na desgraça, será levantado em excelência. Semeia-se em
debilidade, será erguido vigoroso. Semeia-se corpo controlado pela psiquê,
ressuscitará corpo espiritual. Se há corpo controlado pela psiquê , também há
corpo espiritual”.
Para Paulo, anástase leva
à uma teologia da vida que nasce do corpo. Mas, não é simplesmente ter de volta
a vida do corpo material, tanto que em certo momento Paulus diz que “deveremos
ser a imagem do homem do céu”.
“Assim também está
escrito: o primeiro ser humano, terrestre, foi feito ser-que-deseja, o futuro
humano será um espírito-cheio-de-vida. Mas o que não é espiritual vem primeiro,
é o natural, depois vem o espiritual. O primeiro ser humano, da terra, é
terreno; o segundo humano, a quem pertencemos, é celestial. Como é o da terra,
assim são os terrestres. E como é o celeste, assim são os celestiais. E, como
somos a imagem do terreno, assim seremos também a imagem do celestial”.
O pensamento grego,
platônico, está presente na anástase paulina, já que a eternidade não é
construída em cima da carne e do sangue. Vemos aqui a dualidade entre a
realidade física e o mundo das formas. O dualismo metafísico de Paulo admite
aqui duas substâncias que regem o ser humano, no mundo natural, a psiquê,
e no mundo pós-anástase, o pneuma. E dois princípios, nesse sentido bem
próximo a Platão, o bem e o mal.
“E agora digo que a carne
e o sangue não podem herdar o reino de Deus, nem a corrupção herdar a
eternidade. Digo um mistério: nem todos vamos adormecer, mas seremos
transformados. Num momento, num abrir e fechar de olhos, ante a última
trombeta, porque a trombeta soará, os mortos serão levantados incorruptíveis, e
seremos transformados. Convém que o corrompido seja tornado eterno, e o que é
mortal seja tornado imortal. E, quando o que é corruptível se vestir de
eternidade, e o que é mortal for transformado em imortal, então será cumprida a
palavra que está escrita: a morte foi conquistada definitivamente. Onde está, ó
morte, a tua picada? Onde está, ó inferno, a tua vitória? Ora, a picada da
morte é o desviar-se do caminho da honra e da justiça, e a força do erro é a
lei. Mas a alegria que Deus dá é a vitória por Iesous, o ungido, a quem
pertencemos. Sejam firmes e persistentes, abundantes no serviço daquele a quem
pertencemos, conscientes de que o trabalho árduo e duro não é desprezado por
aquele a quem pertencemos”. [Ver texto na Vulgata].
Caso
voltemos à análise do conceito anástase no capítulo 15 da primeira carta aos
Coríntios, tomando como ponto de partida o desafio de Fuks: “há que ler o
desejo: sem terra, sem pátria e sem objeto, ele vaga por um deserto, cujas
trilhas conduzem o leitor à experiência limite mais-além do que aparece na
imagem”, vemos que Paulo traduziu para as novas gerações o desejo
judaico-helênico, humano, da anástase: “Pede-se ser levantado”.
Vulgata
-- 1Coríntios 15
[50]
Hoc autem dico, fratres: quia caro et sanguis regnum Dei possidere non possunt:
neque corruptio incorruptelam possidebit.
[51]
Ecce mysterium vobis dico: omnes quidem resurgemus, sed non omnes immutabimur. [52]
In momento, in ictu oculi, in novissima tuba: canet enim tuba, et mortui
resurgent incorrupti: et nos immutabimur. [53]
Oportet enim corruptibile hoc induere incorruptionem: et mortale hoc induere
immortalitatem. [54]
Cum autem mortale hoc induerit immortalitatem, tunc fiet sermo, qui scriptus
est: Absorpta est mors in victoria. [55]
Ubi est mors victoria tua? ubi est mors stimulus tuus?
[56]
Stimulus autem mortis peccatum est: virtus vero peccati lex. [57]
Deo autem gratias, qui dedit nobis victoriam per Dominum nostrum Jesum
Christum. [58]
Itaque fratres mei dilecti, stabiles estote, et immobiles: abundantes in opere
Domini semper, scientes quod labor vester non est inanis in Domino.
Bibliografia
recomendada
Andrés
Torres Queiruga, Repensar a ressurreição,
São Paulo, Paulinas 2010.
Jonas Machado, Morte e ressurreição de Jesus, São Paulo, Paulinas, 2009.
Marko Ivan Rupnik, Ainda que Tenha Morrido,
Viverá/ Ensaio Sobre a Ressurreição dos Corpos, São Paulo, Paulinas,
2010.
[1] Menandro, O Misantropo. Site: Oficina de teatro. WEB:
www.oficinadeteatro.com
[2] Betty Fuks, Freud e a Judeidade, a vocação do exílio, Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor,
2000, pp. 127-133.
[3] Platão, Fédon, Coleção
Os Pensadores, São Paulo, Nova Cultural, 1987.
[4] Th.-G Chifflot e R. De Vaux, La Sainte Bible, Les Editions Du Cerf, Paris, 1973. Tradução:
A Bíblia de Jerusalém, Ed. Paulinas, São Paulo, 1985, p. 1347.
Aucun commentaire:
Enregistrer un commentaire