Jorge Pinheiro
Jean de Léry, meu irmão
Notas antropofágicas
sobre a questão huguenote-tupinambá
Veja no YouTube o livro áudio gratuito de Jean de Léry: Histoire d'un
voyage fait en la terre du Brésil. "Mais outre qu’à cause du bruit que les
sauvages firent en mangeant ce prisonnier : l’un d’eux avec un pied cuit
qu’il tenait en sa main me demandant si j’en voulais manger, me fit une
telle frayeur, qu’il ne faut pas demander si j’en perdis toute envie de
dormir."
Jorge Pinheiro
Jean de Léry, meu irmão
Notas antropofágicas sobre a questão huguenote-tupinambá
Dedico a Jean de Léry e aos huguenotes que pisaram a terra brasileira e
fizeram a viagem da utopia de um paraíso reformado.
AGRADECIMENTOS
Desejo agradecer, in memoriam, ao Prof. Dr. Antonio Gouvea Mendonça, com
quem conversei pela primeira vez sobre o tema que apresento agora como
livro. Assim como ao Prof. Dr. Etienne Higuet, que aceitou ser meu
supervisor de tese, e ao Prof. Dr. Jung Mo Sung, que considerou positiva a
ideia do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião da Universidade
Metodista de São Paulo dar abrigo ao projeto. De igual forma, agradeço ao
Prof. Dr. Jean-François Zorn, da Faculté de Théologie Protestante de
Montpellier, que apresentou sugestões ao trabalho e me abriu a biblioteca
daquela faculdade, assim como a biblioteca do Service Protestant de
Mission/Defap, em Paris. Agradeço também ao Prof. Dr. Raphaël Picon, que me
aceitou como residente da Faculté de Théologie Protestante de Paris, durante
o primeiro semestre de 2010, quando desenvolvi minha pesquisa bibliográfica
na França.
E, embora não o tenha conhecido pessoalmente, quero agradecer ao Prof. Dr.
Frank Lestringant por seu extenso trabalho sobre Jean de Léry e a França
Antártica, tornando-se assim uma referência viva e atual nas pesquisas que
empreendi. Do mesmo modo, sou devedor de três teóricos que estão presentes
no meu pensar teológico e, em especial, nesta pesquisa, Paul Tillich, Paul
Ricoeur e Edgar Morin.
E, sem dúvida, sou imensamente grato ao cacique Sátiro Terena, chefe de
tribo em aldeia Terena no Bananal, e ao pastor José Nascimento de Brito
Melo, missionário que convive com os índios Kanela, na Amazônia, há mais de
uma década. A ambos devo um conhecimento peculiar de história e vida das
nações tupi-guaranis.
Desejo agradecer também ao Prof. Dr. Lourenço Stélio Rego, diretor da
Faculdade Teológica Batista de São Paulo, que apoiou a pesquisa, assim como
minha ausência por um semestre para o desenvolvimento do projeto na
França.
À Profa. Dra. Naira Carla Di Giuseppe Pinheiro dos Santos, minha esposa,
com quem tive o prazer de conversar sobre questões expostas no
projeto.
A todos e todas que foram solidários, tanto no Brasil como na França, entre
os quais desejo citar o Pr. Ms. João Marcos Barreto Soares,
diretor-executivo da Junta (Batista Brasileira) de Missões Mundiais, e a
Gabrielle Brunschweiler, administradora da Faculté de Théologie Protestante
de Paris.
E agradeço, como herdeiro da tradição huguenote, ao Eterno, que se fez
humano e amigo.
Jorge e Jean – Uma Apresentação
Ricardo Quadros Gouvêa
Há pelo menos três excelentes razões para você comprar e ler este livro. A
primeira delas é que foi escrito por um dos mais brilhantes teólogos
brasileiros da atualidade. A segunda razão é que se trata de um livro sobre
Jean de Léry, esta curiosíssima figura das origens de nossa nação, um
protestante reformado envolvido no episódio da França Antártica.
Tenho convivido com Jorge Pinheiro há algum tempo, e com ele tenho trocado
idéias profusamente. Parece-me inquestionável que o professor Jorge Pinheiro
é um pensador incomum, um educador aprovado, um historiador antenado com o
que há de mais contemporâneo na metodologia e na filosofia da história, e um
teólogo que sabe lidar com os grandes desafios da produção acadêmica séria
com a tranqüilidade de quem domina o métier.
Este livro não é uma exceção à regra. Vale a pena perceber como Jorge
Pinheiro percebe os primórdios do Brasil Colônia, a chegada dos primeiros
protestantes, a Confissão de Fé da Guanabara e suas peculiaridades, e o
papel exercido por Jean de Léry nesta expedição que representa a primeira
investida dos calvinistas nas Américas, num tempo em que o Brasil ainda não
existia.
Resultado de uma pesquisa feita com muita atenção, interesse e competência,
esta obra é transdisciplinar e deve despertar o interesse de diferentes
grupos de estudiosos. Ela interessa aos historiadores, pois traz novos
descortinamentos acerca deste tempo tão fascinante e diferente, tempo de
navegantes europeus descobridores de novas terras, de confrontações com
tribos aborígenes de costumes insólitos e de um passado e um futuro ainda
indefinido e desconhecido.
Contudo, o texto está longe de ser apenas historiográfico, pois trata de um
tempo que é também de incertezas e elucubrações religiosas, o que faz o
livro de interesse de teólogos e cientistas da religião. Estes navegantes
descobridores de novas terras são eles mesmos o produto sócio-histórico de
uma nova realidade econômica européia, o chamado Mercantilismo,
contemporâneo e aliado de um cultural mais amplo, a Renascença, tempos de
crise cultural surgida com o colapso do projeto civilizatório medieval da
cristandade.
Mesmo sendo um projeto setorial e localizado, e mesmo contraposto a outro
megaprojeto civilizatório, o Islã, o projeto civilizatório medieval europeu
chamado de Cristandade, ao entrar em crise acabou por promover um período de
grande criatividade intelectual e de grande criatividade artística,
científica e filosófica.
A Reforma Protestante surge, neste contexto, como apenas mais uma das
muitas conseqüências deste vórtice cultural, este “swerving”, como sugere
Stephen Greenblatt, no livro ganhador do prêmio Pulitzer de 2012, The
Swerve: How the World Became Modern, sobre a redescoberta do romano Tito
Lucrécio Caro e seu poema, De Rerum Natura, pelos humanistas medievais
(Poggio Bracciolini, em particular) como símbolo da grande guinada
intelectual da Renascença, apontando para a sua “serendipidade sintética”,
como diria Vernor Vinge, isto é, a paradoxal realidade de uma inevitável
conjugação de acasos, que aponta para nosso tempo como um novo tempo de
crise civilizatória, crise que se exacerba na medida em que nos aproximamos
do que Vinge chama de “singularidade tecnológica”, o tempo da total
integração mental e comunicacional.
Neste livro de Jorge Pinheiro somos convidados a conhecer Jean
de Léry, personagem no qual encontramos um ponto de convergência de todos
esses diferentes aspectos do vórtice: a Renascença, o Mercantilismo, o
avanço tecnocientífico, os choques culturais e civilizatórios, a Reforma, o
Calvinismo, e toda a dúvida e insegurança de um tempo de crises.
O historiador e teólogo Jorge Pinheiro se propõe a seguir o
mesmo caminho de Stephen Greenblatt, pensando a crise civilizatória moderna
que hoje vivenciamos a partir da crise civilizatória de quinhentos anos
atrás. O seu Poggio Bracciolini é Jean de Léry, autor do livro Viagem à
Terra do Brasil, que representa, assim como o humanista da Renascença
representou em seu próprio, o paradigma da serendipidade sintética típica
dos confusos períodos de desconstrução e reconstrução metatéorica:
navegante, conquistador, missionário, sobrevivente, naturalista, teólogo,
renascentista, calvinista abstruso e anfibológico, filho de seu próprio
tempo, assim como Jorge Pinheiro é filho de seu tempo.
A
terceira razão, portanto, pela qual eu recomendo comprar e ler este livro,
livro sério e plenamente de acordo com os princípios de rigor acadêmico que
se fazem necessários na investigação abalizada, é que ele tem os requisitos
de uma obra que nos ajuda a pensar o nosso próprio tempo, em que o projeto
civilizatório moderno e seu institucionalismo colapsam. Hoje as instituições
estão sub judice, inclusive as instituições eclesiásticas. Há uma percepção
crescentemente popular que elas não são mais confiáveis. Exatamente como
pensavam os reformadores acerca das instituições eclesiásticas de seu
próprio tempo.
Assim como nos tempos de Jean de Léry, nova terra
incógnita está à vista, terras não mapeadas da realidade virtual, da
multiparadigmaticidade epistêmica, das neurociências, da sustentabilidade e
do direito às diferenças. Somos hoje como navegantes seiscentistas, soprados
pelos ventos, não mais do mercantilismo e do calvinismo, como origem do
mundo capitalista, mas da revolução informática e da sociedade de consumo,
que representam não as origens ou o terminus a quo do capitalismo, mas sim o
seu terminus ad quem, o seu ponto de chegada.
Quem não conhece o
seu passado está fadado a repetir seus erros no futuro. E em tempos de crise
civilizatória, nada como conhecer bem outros tempos de crise civilizatória.
Principalmente quando estamos interessados nas questões centrais da vida e
da experiência religiosa, pois, nesse caso, estamos nos perguntando pelo
próprio sentido da vida, e sobre os segredos do viver bem.
Assim
como Jean de Léry, somos todos navegantes no mar da existência. Porém, como
lembra Fernando Pessoa, “navegar é preciso, viver não é preciso”. Os
navegantes das naus feitas de madeira e pregos possuem recursos tecnológicos
para se dirigir, apesar das intempéries e incertezas do percurso. Os
navegantes das naus de carne e ossos não contam com os mesmos recursos,
porque a existência é incerta, não há precisão.
Por isso,
enquanto as naus aprendiam a chegar sem grandes riscos aos portos, estuários
e baías, mesmo que além do oceano, os corpos começavam também a compreender,
há quinhentos anos atrás, aquilo que hoje já não conseguimos mais evitar de
enxergar: não há portos metafísicos, e somos todos homini viatorum,
viajantes no mar sem fim das esperanças incertas e das incertezas da fé.
Nossa única bússola é a agulha da paixão apontando para o norte do amor. A
agulha descontrolada e louca que gira e gira, mas que ainda aponta para a
única verdade que realmente importa, que toda boa dádiva e todo dom perfeito
vêm do alto, do Pai das Luzes, luzes que guiam os navegantes que cruzam o
oceano dos mistérios, Pai cujo amor nunca muda, em quem não há sombra de
paralaxe, mas cujo convite para nós é que vivamos para sempre na aventura.
Saudamos mais uma vez os esforços da Fonte Editorial pela sua
perseverante e benfazeja aventura de trazer para o público leitor brasileiro
o que há de melhor na reflexão cristã nacional e internacional, para que
estes livros nos sirvam de guias e mapas enquanto navegamos, na errância dos
desbravadores, em direção de nossa missão além-mar, para longe dos portos
seguros, enquanto especulamos sobre o que a providência divina tem reservado
para nós, que leviatãs teremos ainda que enfrentar, que fomes iremos
enfrentar, com que povos estranhos seremos obrigados a lidar, com quem
teremos que falar de nossa fé, tentando explicar o inexplicável, traduzir o
intraduzível, dando nova vazão aos inevitáveis mal-entendidos que parecem
ser o fado eterno da teologia.
São Paulo, maio de 2012.
SUMÁRIO
Introdução
Primeiro Capítulo
Não há caminho
1.1 – São teus rastros
1.2 –
Caminhante e nada mais
Segundo Capítulo
Faz-se o
caminho
2.2 – Ao andar faz-se
2.3 – Ao olhar para trás
Terceiro Capítulo
Há somente sulcos no mar
3.1 – À senda não se volta
3.2 – Não se volta a pisar
Conclusão
BIBLIOGRAFIA
ADENDOS
RESUMO
ABSTRACT
INTRODUçÃO
Venho, faz alguns anos, estudando os encontros e desencontros do pensamento
calvinista com a cultura tupi-guarani nas ilhas de Laje e Sirigipe, na baía
de Guanabara, costa do Rio de Janeiro, entre os anos de 1555 e 1560. Minha
preocupação com a hermenêutica parte daí, já que na literatura produzida
pelo pensamento religioso calvinista, mais precisamente por Jean de Léry, no
século XVI, sobre a França Antártica e sobre a cultura e a religiosidade
tupinambá, seus intérpretes analisaram tais produções a partir de estruturas
e procedimentos ordenados. Frank Lestringant, estudioso de Léry e do projeto
França Antártica, diz no prefácio à terceira edição de seu livro Le huguenot
et le sauvage que “procurou mostrar como a controvérsia nascida do duplo
fracasso da França Antártica no Brasil (1555-1560) e da Flórida huguenote
(1562-1565) tiveram consequências de primeira importância sobre a
metodologia da história e a visão europeia dos povos distantes. Tratava-se
de retornar aos laços que uniram, pelos porta-vozes de Londres, de Paris e
de Franckfurt, a Genebra protestante de Calvino e de Thédore de Bèze a uma
América em projeto”. Essa é a uma parte da questão. Porém, Léry, a França
Antártica e os tupinambás nos apresentam relações tão complexas, tão novas
na época, que nos obrigam a ir além das opções ideológicas de uma religião
verdadeira, por um lado, e o encontro com o bom selvagem, por outro. Sem
eliminar tais leituras, e numa abordagem que se distancia da busca do
“corpus huguenot”, objeto de Lestringant em Le huguenot et le sauvage,
consideramos que a tentativa de estabilizar os encontros/desencontros de
huguenotes e tupinambás tornam as leituras do texto e da história incapazes
de compreender o mundo imaginado e sonhado naquelas relações nem sempre tão
cordiais.
Quando nos debruçamos sobre tais encontros e desencontros do pensamento
calvinista com a cultura tupi-guarani, devemos levar em conta, numa leitura
a partir da teologia da cultura, uma hermenêutica da complexidade e da
correlação entre ideologia e utopia, construtora da imaginação social e, por
extensão, presente na realidade social, que o protestantismo não era uma
realidade estanque. Isso porque as raízes do pensamento protestante não eram
apenas pensamentos, mas a expressão de seres políticos, de situações
culturais, cuja eclosão situamos em 1517, com a exposição das 95 teses de
Martinho Lutero e mais especificamente com a publicação das Instituições da
Igreja Cristã de João Calvino em 1536. Não se pode entender o pensamento dos
huguenotes quando se subestima as realidades sociais que deram origem a esse
mesmo pensamento.
É bom dizer que nos remetemos a Paul Tillich, Edgar Morin e
Paul Ricoeur como referenciais de coração, que são, antes de tudo,
companheiros de viagem na construção desta crítica às hermenêuticas
tradicionais no que se refere às leituras do texto de Léry e de sua
experiência com os tupinambás. Esta tese busca, assim, a metodologia que
discutimos em sala de aula, desconstruir as hermenêuticas modernas, a fim de
propor novas leituras de Léry, em que somos chamados a uma viagem de
mochileiro com destino em aberto.
A espiritualidade – e por
extensão a religiosidade – é conhecimento humano, particular, mas também
universal, que traduz maneira de busca do transcendente. A distância entre a
fé e a cultura, nessa leitura hermenêutica, é estreitada e possibilita a
compreensão de que no ser humano não é apenas o físico e material o padrão
maior de civilização. Se dissermos o óbvio, huguenotes e tupinambás são
seres humanos e criam seus próprios universos de significação; é em suas
culturas, no caso calvinista e tupi-guarani, respectivamente, que vamos
encontrar o ato e a forma de suas expressividades humanas como seres
históricos. O primeiro momento desta reflexão teológica sobre as culturas
calvinista e tupi-guarani, seus encontros e desencontros, consiste em ver
que, seja no ato de surgimento, seja na forma de atuação, a unidade dessas
culturas só pode ser pensada em oposição ao fluxo do tempo e à dispersão do
espaço onde as experiências se situaram.
Por isso, as raízes do
pensamento religioso – e aqui devemos nos referir aos huguenotes e
tupinambás – não podem agir com uma força igual em todo momento e em toda
comunidade. Um ou outro pode predominar, dependendo da situação social, das
comunidades ou formas de dominação presentes, pois correlacionam as
estruturas sociopsicológicas de interação com a situação social objetiva.
A unidade ontológica da cultura – e aqui estamos a nos referir a
calvinistas e tupi-guaranis – reside na relação dialética que vigora entre a
estrutura transcendental – de huguenotes e de tupinambás –, que se manifesta
no ato de suas criações culturais, e a idealização transcendental de suas
obras de cultura, manifestadas nas formas transtemporal e transespacial que
lhes asseguram perenidade simbólica. Donde a espiritualidade – e, de novo,
por extensão, a religiosidade – apresenta-se como paradigma da ontologia da
cultura, pois tematiza a transcendência do ato como interrogação sobre o que
é, tanto no que se refere à idealidade da forma, como na objetividade do ser
huguenote ou do ser tupinambá.
A partir de Tillich, podemos
dizer que as culturas e os valores compartilhados são essenciais para se
fazer a leitura das religiosidades de calvinistas e tupinambás. Em condições
dinâmicas, em que a vivência de Léry com os tupinambás e o texto foram
construídos por múltiplas e variadas possibilidades, leituras monolíticas,
ainda que polares, falharão na geração da criatividade necessária para
atravessar as possibilidades que se abriram naqueles momentos. Por isso, as
diversidades são importantes. O pensamento que não comporta multiplicidade
pode ser um fator para a crise de parte das leituras realizadas sobre essas
relações entre calvinistas e tupinambás no século XVI. A partir do próprio
texto de Jean de Léry, Viagem à terra do Brasil, trabalharemos aqui com uma
teologia da cultura, que procura correlacionar as complexidades do encontro,
num caminho aberto, nunca completado.
Como alguns cosmógrafos e
historiadores do nosso tempo já escreveram acerca das dimensões, formosura e
fertilidade desta quarta parte do mundo, chamada América ou terra do Brasil,
bem como a respeito das ilhas e terras adjacentes, inteiramente desconhecida
dos antigos, e das várias navegações que para aí se fizeram nestes primeiros
oitenta anos decorridos desde o seu descobrimento, não me deterei nessas
generalidades; minha intenção e meu objetivo serão apenas contar o que
pratiquei, vi ouvi e observei, quer no mar, na ida e na volta, quer entre os
selvagens americanos com os quais convivi durante mais ou menos um ano. E a
fim de que tudo se torne bem compreensível a todos, a começar pelo motivo
que nos levou a empreender tão penosa e longínqua viagem, direi em poucas
palavras como se originou ela.
Convém notar que a terra dos
brasis estava em alta bem antes da chegada de Jean de Léry. Cinco anos antes
da instalação da França Antártica, em 1550, quando o rei Henrique II e a
rainha Catarina de Médicis fizeram sua entrada triunfal em Rouen, foi
oferecida a eles uma festa brasileira, com trezentos figurantes, com brasis
levados à França, marinheiros normandos e prostitutas, todo mundo nu do
jeito brasil. Representaram cenas de amor, de caça, de guerra e de uma
abordagem a um navio português. E ocas foram adornadas com bananas, e
macacos e papagaios foram soltos nas árvores. O Brasil era o jardim do Éden.
Nosso primeiro referencial é a pessoa. Nesse sentido, ao
analisar essa relação entre o pensamento huguenote e a cultura tupi-guarani
devemos partir de uma fenomenologia política que leve em conta questões como
a origem do pensamento político e religioso calvinista, enquanto utopia do
cristianismo reformado. É bom lembrar que a conversão de João Calvino
(1509-1564) ao protestantismo se deu entre 1532 e 1533, quando tinha 23 ou
24 anos. Donde o protestantismo calvinista dos huguenotes, na baía de
Guanabara dos anos 1555-1560, tinha a plasticidade de um pensamento
político-religioso em construção. E é a partir daí, dessa plasticidade da
utopia reformada em construção, que devemos trazer à tona os elementos não
reflexivos desse pensamento e analisar como ele se relacionou com uma
cultura até aquele momento desconhecida.
E a questão da pessoa,
aí imbricada, leva-nos a uma antropologia existencial. Ora, a questão
existencial é traspassada aqui pela fé calvinista, de um lado, que era a
dimensão de profundidade na vida do jovem huguenote e, de outro, por
elementos da cultura tupi-guarani, que eram, também, dimensão de
profundidade na vida dos brasis tupinambás. Ao resgatarmos a metáfora
tillichiana – dimensão de profundidade – estamos dizendo que a fé huguenote
de Léry e a religiosidade tupi-guarani apontavam na direção daquilo que era
incondicional para o francês e para os brasis, respectivamente. Assim, num
sentido amplo, a fé de Léry era a preocupação fundante que se manifestou em
todas as funções criativas de sua vida e relacionamentos, mas também a
cultura tupi-guarani cumpria papel idêntico em relação à vida e
relacionamentos dos tupinambás.
Primeiro Capítulo
não há caminho
Pensar o século XVI, o fim da Idade Média e o projeto colonial
francês no litoral do Rio de Janeiro nos leva à pergunta sobre um
desencontro civilizatório. Nem sempre é necessário perguntar-se pelos
rastros de um fenômeno histórico, mas, quando não temos respostas para uma
realidade que se apresenta nova, então é necessário sair atrás desses
rastros: é, então, necessário procurar por tais rastros do pensamento
político-religioso nas pessoas e nas comunidades. E é esse caminho, que
parte da teologia da cultura, que nos direciona na análise dos tupinambás.
Sem uma utopia do humano, de suas forças e tensões, não se pode
dizer nada sobre as fundações políticas do pensamento e do ser religioso.
Sem uma teoria do humano não se pode construir uma teoria das orientações
políticas e religiosas. Mas o tupinambá, e aqui estamos falando da cultura
tupi-guarani, embora colado à mata, é pessoa e, por isso, ser dividido. Não
importa saber onde termina a mata e onde começa o tupinambá, não importa que
a passagem entre mata e tupinambá se tenha feito através de transições ou
por um salto. O importante é que, em determinado momento, a diferença ficou
clara.
O tupinambá tem consciência de si mesmo, distingue-se da mata
enquanto ser que se desdobra, tornando-se pessoa consciente de si mesma. A
mata ignora essa divisão, por isso o tupinambá não é uma combinação de duas
partes autônomas, tais como mata e corpo, mas um só ser, fendido em sua
unidade. Essas determinações gerais levam a algumas considerações no que se
refere à pesquisa do tupinambá e da cultura tupi-guarani. Elas negam
qualquer dedução da cultura tupi-guarani enquanto puro movimento reflexo
frente à mata.
Porque os pensamentos políticos e religiosos vêm do ser humano
enquanto unidade, a relação entre huguenote e tupinambá está enraizada no
ser que ambos são. É por isso que não se pode entender essa correlação entre
pensamento huguenote e cultura tupi-guarani sem contextualizar seu
enraizamento no ser humano enquanto ser imbricado a pulsões e interesses,
constrangimentos e aspirações constituintes do humano. Mas também é
impossível separar o huguenote de sua consciência, ou ver o tupinambá como
simples subproduto do ser tupi-guarani.
Direi, inicialmente, a fim de proceder com ordem, que os
selvagens do Brasil, habitantes da América, chamados tupinambás, entre os
quais residi durante quase um ano e com os quais tratei familiarmente, não
são maiores nem mais gordos que os europeus; são porém mais fortes, mais
robustos, mais entroncados, mais bem dispostos e menos sujeitos a moléstias,
havendo entre eles muito poucos coxos, disformes, aleijados ou doentios.
Apesar de chegarem muitos a 120 anos (sabem contar a idade pela lunação),
poucos são os que na velhice têm os cabelos brancos ou grisalhos, o que
demonstra não só o bom clima da terra, sem geadas nem frios excessivos que
perturbem o verdejar permanente dos campos e da vegetação, mas ainda que
pouco se preocupam com as coisas deste mundo. E de fato nem bebem eles
nessas fontes lodosas e pestilenciais que nos corroem os ossos, dessoram a
medula, debilitam o corpo e consomem o espírito, esses fontes em suma que,
nas cidades, nos envenenam e matam e que são a desconfiança e a avareza, os
processos e intrigas, a inveja e a ambição. Nada disso tudo os inquieta e
menos ainda os apaixona e domina, como adiante os mostrarei. E parece que
haurem todos eles na Fonte da Juventude.
A consciência estrutura o ser huguenote enquanto ser social, em
cada um de seus elementos, inclusive as sensações pulsantes mais primitivas.
Mas, quando se tenta desfazer laços, passa-se ao largo da primeira e mais
importante característica daquilo que é humano, de que há uma consciência
inadequada ao ser, uma falsa consciência, que, no entanto, não invalida a
unidade do ser e da consciência. Isso porque não é possível haver falsa
consciência quando o que é designado não é conhecido.
A consciência ajustada é uma consciência que emerge da pessoa e
ao mesmo tempo a determina. Não pode ser uma coisa sem ser a outra, porque o
humano é uma unidade na divisão, e dessa unidade nascem as raízes do
pensamento político e religioso. O ser humano, quer seja o huguenote
recém-desembarcado no litoral do Rio de Janeiro ou o tupinambá estabelecido
na mata atlântica, se encontra enquanto realidade dada, assim como seu
ambiente.
O desafio para quem analisa símbolos, quer ideológicos, quer
utópicos, é o próprio exercício da leitura. O desejo de conservar a
linguagem, como ela se nos apresenta numa primeira leitura, pode levar a uma
solução oposta àquela que se pretende. Considerar o simbólico como
desprovido de relevância é, em última instância, separar ideologia e utopia.
Um exame da ideologia e da utopia, afirma Ricoeur, revela duas
características comuns aos dois fenômenos. Em primeiro lugar, ambos estão no
ponto mais alto dos fenômenos ambíguos. Cada um tem um lado negativo e um
lado positivo, construtivo e um destrutivo, uma dimensão constitutiva e uma
dimensão patológica. Em segundo lugar, têm em comum que em ambos o aspecto
patológico vem em primeiro lugar, o que nos leva a proceder de forma
regressiva, a partir da superfície das coisas. Assim, quando uma tradição
passa a ser apenas um conjunto fechado costumamos dizer que compreendemos a
referida tradição. Mas ao fazer isso, na verdade, eliminamos a possibilidade
de ir além da superfície de tal tradição e restaurar seu emaranhado de
intenções. Mas, logicamente, uma leitura tem como ponto de partida e exige
como garantia a compreensão do primeiro discurso.
O pensamento de liberdade entre os tupis-guaranis repousava nas
origens, traduzidas nas revelações de seus heróis civilizadores: fundadores
míticos que lhes transmitiram conhecimentos, e formataram afinidades sociais
entre as diferentes tribos do grupo tupi-guarani. Um desses heróis, presente
na tradição ancestral tupinambá, era Monan, que a leitura francesa disse se
assemelhar ao Deus judaico-cristão. Mas, ao lado de Monan, existia outro,
designado Maire, ou seja, alguém que muda as coisas. Seria conhecedor
daquilo que está oculto às pessoas e foi essa parceria entre Monan e Maire
que teria introduzido a agricultura entre os ancestrais dos tupinambás.
Monan e Maire deram aos ancestrais os vegetais necessários para
a alimentação dos tupinambás e lhes revelaram os segredos das plantas
alimentícias, separando os vegetais úteis dos nocivos, mostrando como
poderiam usá-los, inclusive, como medicina. Mas, segundo essa leitura
cristã, também coube à dualidade Monan-Maire o papel civilizador no que
tange aos costumes e à construção de uma ética. O fato de Monan-Maire ou
Maire-Monan aparecerem sempre juntos, como correlação necessária, também
possibilitou a leitura de que dentro da mitologia tupinambá estaríamos
diante de um herói único, fusão de duas personalidades complementares.
É importante salientar o papel transformador de costumes desse
super-herói de duas faces que, por vezes de maneira cruel, levantou sobre si
a cólera dos homens que recebiam o seu castigo. A vida de Maire-Monan foi
rica em peripécias e, fruto de sua passagem marcante e contraditória, foi
condenado à morte. Conta-se que o convidaram para uma festa e o obrigaram a
saltar por cima de três fogueiras. Depois de ter sido bem-sucedido na
primeira, Maire-Monan desmaiou na segunda e foi consumido pelas chamas. O
estalo de seu crânio queimando produziu o trovão, enquanto as labaredas da
fogueira criavam raios. Essas mesmas virtudes de que se revestiam a memória
de Maire-Monan foram encontradas depois entre os tupis na figura de Pai
Çumé.
Os dados coletados por Nóbrega e Simão de Vasconcelos viam em
Çumé a figura de Tomé, o apóstolo da dúvida, que há dois mil anos teria sido
um herói civilizador em terras dessa ocidentalidade. A tradição católica
antiga nos fala de Tomé como o apóstolo que teria percorrido a Índia, a
China e algumas ilhas da Oceania. Entretanto, o nome desse apóstolo também
aparece entre os nossos tupis e isso nos serve de útil indicação. Existe uma
versão relatada pela população do baixo-Amazonas que diz:
Quando São Tomé esteve entre os índios, meteu-se numa igarité
com quatro caboclos reforçados, deu um remo a cada um, ficou no jacuman
(remo de popa que serve de leme) e mandou remar rio acima. De vez em quando
um caboclo cansava e parava de remar. O santo não dizia nada, batia com o
jacuman na traseira dele. E onde o jacuman do santo batia, a carne ia
murchando como por milagre.
Versões encontradas na Bahia afirmam que Çumé teria, entre
outros atos, percorrido a região ensinando aos índios o cultivo da mandioca
e suas múltiplas utilidades. Çumé também foi legislador: proibiu a poligamia
e a antropofagia. Conta-se que alguns índios, enraivecidos pela limitação de
sua liberdade, atearam fogo à casa de Çumé. Outros falam que foi alvo de
flechadas ou ainda que o amarraram a uma pesada pedra e o jogaram no rio. E
há quem diga que foi submetido a uma prova de resistência e teve que
caminhar sobre o fogo.
Os tupis acreditavam que Çumé partiu caminhando sobre as águas
do Atlântico, mas prometeu voltar um dia para continuar sua obra
civilizatória. Outra versão conta que Çumé ao ser perseguido pelos
tupinambás foi para o Paraguai e dali para o Peru. Para essa travessia teria
aberto uma estrada que ficou conhecida como “peabiru” ou o caminho das
montanhas do Sol. A arqueologia procurou reconstituir tal estrada, mas os
marcos aparentemente encontrados não nos dão elementos para confirmar a
hipótese de existência desse caminho em direção aos Andes.
De todas as maneiras, não se deve descartar a possibilidade de
que possa ter havido um intercâmbio entre os indígenas do Brasil e os do
Peru. Outra lembrança interessante dos atos de Çumé é o vestígio de uma
pegada, aparentemente humana, gravada em pedra na região de São Gabriel da
Cachoeira, no rio Negro (Amazonas). Uns a atribuem a um anjo, outros ao Pai
Çumé. Fala-se ainda de que nas costas da Bahia existiriam nas escarpas
marinhas as marcas da fuga de Çumé, e também de que inscrições existem na
Bolívia e Peru, atestando a presença do herói apostólico. Essas histórias
não justificam por si só a passagem do apóstolo por essas latitudes. Mas a
notícia de sua existência na América meridional, entre um povo procedente do
Pacífico, não constituiria uma tradição dos povos asiáticos que tenham
estado em contato com o nascente cristianismo antes da migração por via
marítima? Desalojado dos Andes ou da orla do Pacífico por algum povo mais
forte veio o tupi estender-se ao longo do Atlântico e executava ainda a
conquista gradual da terra quando Cabral ancorou em Porto Seguro.
Essas são as hipóteses que se levantam em torno do arriscado
problema etnológico tupi-guarani; mas das conjecturas em torno das raças que
aqui habitaram na época do descobrimento destacam-se os indícios das
tradições colhidas pelos missionários e naturalistas que acreditam na
possibilidade de uma caminhada migratória que, seguindo do norte, através da
Sibéria oriental, alcançasse o estreito de Behring, tomasse a direção sul,
atravessando a América do Norte, e pelo estreito do Panamá se derramasse na
parte meridional do continente.
Esse êxodo milenar modificaria, assim, por montanhas e vales, o
povo retirante, alternando-lhe a cor, a crença, o hábito, a linguagem, o
porte, segundo as terras, os céus, as águas, os rios percorridos, mas não
teria o dom de apagar de todo as tradições comuns, que surgem transformadas
no espaço e no tempo, como ecos de uma origem recuada. Mas há também a
hipótese, que não elimina a anterior, de uma travessia da Oceania em direção
à costa leste da América do Sul. Diante dos relatos podemos dizer que mais
do que nos remeter a um discípulo de Jesus, a revelação de Çumé constitui
elemento para se trabalhar a possibilidade da procedência andina do tupi e,
provavelmente, sua origem asiática.
A questão dos heróis civilizadores nos remete à questão da
espiritualidade dos brasis, mas reconstruí-la não é fácil: primeiro porque
se trata de diferentes povos, com culturas diversas, segundo, porque, devido
à movimentação desses povos pelo território brasileiro, os seus costumes e
também as suas crenças sofreram modificações através do tempo.
Do lado francês, a epopeia da França Antártica começou com
Nicolau Durand de Villegagnon (1510-1571), que foi colega de João Calvino
durante seus estudos em Paris. Junto com os Cavaleiros de Malta, a partir de
1531, participou das expedições militares de Carlos V contra Argel. Mas
ficou conhecido como navegador. Vice-almirante da Bretanha, sua aventura
mais empolgante foi a fundação, em 1555, do projeto colonial que recebeu o
nome de França Antártica, na baía de Guanabara. Para desenvolver tal projeto
recebeu o apoio do almirante Gaspard de Coligny, homem de confiança do rei e
militar de importante presença protestante, e dez mil libras para financiar
a empreitada.
A intenção francesa era fundar uma colônia no Brasil, a fim de
fazer frente à expansão espanhola e portuguesa nas Índias Ocidentais e no
Novo Mundo, onde calvinistas pudessem praticar o seu catolicismo reformado e
evangelizar os brasis. Três navios partiram de Le Havre, com mais de
quatrocentos colonos, a maioria ex-presidiários indultados por se juntarem à
aventura de Villegagnon. E assim chegaram ao Brasil em novembro de 1555.
Villegagnon construiu, então, o forte Coligny em uma ilha na baía de
Guanabara e passou a usar o título de vice-rei da França Antártica.
As relações com os brasis da região se mostraram tão boas que
Villegagnon e os colonos passaram a frequentar as festas, travaram contato
com a estrutura social igualitária dos brasis e muitos colonos acabaram por
optar por essa nova forma de vida.
A França Antártica, a princípio, foi tolerante com os costumes dos brasis e
as opções dos colonos, mas, com o tempo, Villegagnon percebeu que estava a
perder seus homens. Estes passaram a ter companheiras tupinambás, a viver
nas aldeias e adotavam a cultura dos brasis. Foi, então, que Villegagnon,
por razões militares e de ocupação do território, proibiu todo comércio com
os brasis, os acasalamentos e exigiu que seus colonos abandonassem as
aldeias e voltassem ao forte. Ora, exigência quase impossível de ser
respeitada, afinal aqueles homens tinham sido libertos das prisões franceses
com a proposta de viajar para um novo mundo de aventuras inimagináveis.
Segundo Lestringant, a rebelião eclodiu no início de fevereiro
de 1556, apenas três meses após a chegada de Villegagnon à baía de
Guanabara. Ela foi liderada por um normando, que tinha sido obrigado a
abandonar sua mulher brasil por não ter se casado formalmente com ela. A
disciplina rigorosa imposta às tropas de mercenários, ex-condenados e
aventureiros, que formaram a maior parte da colônia, aliada à comida ruim,
ao trabalho pesado de terraplenagem da ilha e à proibição, sob da pena de
morte, de envolverem-se com as brasis que cruzavam nuas em canoas as águas
limítrofes ao forte, levaram à conspiração contra Villegagnon. Não podemos
nos esquecer que esses franceses tinham encontrado nessa França Antártica,
com espaços sem fim, mulheres brasis e sexo sem constrangimentos. Tinham
descoberto que a alegria é a prova dos nove.
Se a ancestralidade civilizadora era fundante para o pensamento
de liberdade tupinambá, a instituição social que possibilitou a integração
dos franceses na cultura tupi-guarani, por parte dos tupinambá, foi o
cunhadismo, costume de integrar os recém-chegados à comunidade. Consistia em
dar ao “língua”, truchement, uma jovem índia como esposa. Ao assumir tal
relacionamento, estabelecia laços que o tornavam parente de praticamente
toda a tribo.
O sistema de parentesco dos índios era horizontal, ou melhor,
matrilinear. Por isso, o “língua”, ao aceitar a moça, passava a ter nela sua
temericó; assim, todos da sua própria geração passavam a ser seus cunhados.
Da mesma forma, os parentes da geração dos pais. E o mesmo ocorria em
relação à geração inferior, filhos ou genros. Dessa forma, termos de
afinidade classificavam as pessoas da tribo como transáveis ou não
transáveis. Em relação aos parentes da geração dos pais, a geração superior,
as relações sexuais deviam ser evitadas. Mas, nos demais casos, na geração
da temericó, ou da geração inferior, as relações sexuais eram abertas.
Para os franceses recém-chegados o papel dos “línguas” era de
suma importância, pois, ao contar com tantos parentes, podia pô-los a
serviço da França Antártica, para cortarem e transportarem pau-brasil até as
naus francesas. Como cada “língua” de uma tribo podia fazer vários
casamentos, a instituição funcionava como forma de recrutamento de mão de
obra para os trabalhos pesados de cortar pau-brasil, transportar e carregar
as naus, de caçar e amestrar papagaios e saguis.
Segundo Darcy Ribeiro, os tupis do litoral carioca não
conseguiram estabelecer alianças duradouras entre si. Uma, porém, teve
relevância: foi a Confederação dos Tamoios, fomantada com o apoio dos
franceses.
Reuniu, de 1563 a 1567, os Tupinambá do Rio de Janeiro e os
Carijó do planalto paulista – ajudados pelos Goitacá e pelos Aimoré da Serra
do Mar, que eram de língua jê – para fazerem a guerra aos portugueses e aos
grupos indígenas que os apoiavam. Nessa guerra inverossímel da Reforma
versus Contra-Reforma, dos calvinistas contra os jesuítas, em que tanto os
franceses como os portugueses combatiam com exércitos indígenas de milhares
de guerreiros – 4557, segundo Léry; 12 mil nos dois lados na batalha final
do Rio de Janeiro, em 1567. ... jogava-se o destino da colonização.
Os brasis se sentiam prestigiados pela presença dos “línguas” na
tribo, porque isso lhes possibilitava ter acesso às ferramentas de metal e
mesmo a armas de fogo, necessárias para desenvolver guerras contra as tribos
inimigas.
1.1 – São teus rastros
O cunhadismo traduziu um processo de inserção civilizatória,
fruto desse relacionamento dos índios com os franceses, que gerou, em apenas
cinco anos, mais de mil mamelucos, que viviam ao longo dos rios que deságuam
na baía da Guanabara e na atual ilha do Governador, onde estava a ser
implantada a França Antártica. Diante de tal crescimento demográfico,
Capistrano de Abreu afirmou que por muito tempo não se soube se o Brasil
seria português ou francês, tal a força de sua presença e o poder de sua
influência junto aos brasis. É certo que, anos depois, outros mamelucos
surgiram desse processo civilizatório, fruto da mestiçagem com os
Potiguaras, na Paraíba, e com os Caetés, em Pernambuco. Esses agrupamentos
franceses prosperaram graças às mercadorias indígenas, já que os brasis,
além de carrear pau-de-tinta para as naus, produziam pimenta da terra,
algodão e aprisionavam papagaios e saguis, que eram levados para a Europa.
Esse processo de inserção civilizatória, de tamanha força,
trouxe para dentro do pensamento francês uma questão fundante, o da
estrutura de parentesco. Essa estrutura de parentesco, aparentemente nova e
revolucionária, traduzia uma forma já existente no Mediterrâneo, sem,
contudo, apresentar a radicalidade tupinambá. Era a matrifocalidade.
A matrifocalidade não é um subsistema do matriarcado, mas um
sistema dependente do patriarcado que, por sua vez, o reproduz. O
patriarcado é estrutura baseada na distinção dos gêneros,
masculino/feminino, apresentados como complementares, mas vividos em
assimetria de poder e, em muitos casos, concordes na proibição da
sexualidade homoerótica, embora esse não fosse o caso entre os tupinambás. O
matriarcado propriamente dito não existia nem no Mediterrâneo nem entre os
tupinambás. Assim, não falamos de matriarcado entre os tupinambás, mas
trazemos da antropologia o conceito de matrifocalidade, que fornece sentidos
para compreender os laços de parentesco do cunhadismo tupinambá.
Nessa compreensão da matrifocalidade vivida pelos “línguas” está
presente como modelo o papel da cunhã, onde o espaço físico interno à tribo
era categoria de gestão da chefia feminina e de arranjos extensos presentes
nos grupos de parentesco. Nesses arranjos a centralidade da cunhã e de seu
papel, além de ser traço característico, exercia um eixo estruturador, que
produzia e reproduzia modos de ser do modelo familiar.
A presença matrifocal no modelo tupinambá não estava associada à
ideia de pessoas e comunidades fracas do ponto de vista da sobrevivência,
mas denotavam a expansão da presença das cunhãs. Mas referir-se às cunhãs
fortes utilizando-se a expressão matriarcal é um erro. O termo correto é
matrifocalidade, que deve ser entendido, em seu sentido expandido, como
gestão interna à tribo por cunhãs, que lhes confere um espaço de relativo
poder. E no modelo matrifocal tupinambá, que nos interessa desde uma
perspectiva cultural, as cunhãs não eram chefes da tribo, mas os homens, pai
e filhos, aceitavam sua chefia interna. Assim, é importante entender que a
matrifocalidade tupinambá não representava ausência do homem na comunidade,
e nem implicava em chefia de cunhãs distantes das gerações do cunhadismo.
A matrifocalidade tupinambá deve ser entendida como construção e
expansão da utopia da cunhã, que concentrava poder entendido como força
simbólica circulante, que se fundamentava em presença conquistada na
trajetória da própria tribo. Essa presença se traduzia na definição de
espaço que era fruto do prestígio adquirido na comunidade, já que recebia o
estatuto de referência coletiva pela sua trajetória e pelo tipo de funções
desempenhadas, de parteira de todos os parentes da tribo, responsável por
trazer à tribo, com suas próprias mãos, todos os filhos das novas gerações.
A relação do cunhadismo, assim, não se fundamentava sobre o
homem, mas na universalidade da cunhatã, pois ela era a mãe de todos os
pais. Nessa estrutura, havia uma ruptura da ideologia da paternidade, o que
dava à maternidade um caráter supracultural, pois rompia os laços de sangue.
Então, o pai não era mais pai, nem o filho era filho do pai, mas da mãe.
Nesse sentido, tal desconstrução levava radicalmente à ruptura da estrutura
de parentesco patrilinear conhecida pelos franceses, de filho do pai, e
propunha para os “línguas” a universalidade da maternidade suprabiológica e
supracultural.
Lestringant diz que, para a França, tudo começou pelo Brasil:
que foi aí, nessa geografia, que aprendeu, se não a colonizar, ao menos o
comércio com os povos do Novo Mundo. Foi no Brasil que experimentou com
sucesso a técnica do uso de "intérpretes", truchements, através de jovens
marinheiros colocados nas tribos indígenas, usados como intermediários para
a coleta de madeira e a captura de macacos e araras. Enfim; no Brasil, os
marinheiros franceses entraram na familiaridade do Novo Mundo.
Nesse mundo aparentemente às avessas, a estrutura de parentesco
tupinambá soava como liberdade dos laços de sangue, do biológico e dos
condicionamentos culturais da patriarcalidade europeia. E foi através do
cunhadismo que os jovens truchements encontraram uma ponte de diálogo com
essa cultura herética e revolucionária dos tupinambás, a estrutura de
parentesco matrifocal, que tinha como possibilidade de construção o
parentesco definido pelo gozo, mas também por seu oposto, o abandono.
Gilberto Freire cita Gabriel Soares de Sousa:
Nestes o amor foi só o físico; com gosto só de carne, dele
resultando filhos que os pais pouco se importavam de educar ou de criar à
moda europeia ou à sombra da Igreja. Meninos que cresceram à toa, pelo mato;
alguns tão ruivos e de pele tão clara, que, descobrindo-os mais tarde a eles
e a seus filhos entre o gentio, os colonos dos fins do século XVI facilmente
os identificaram como descendentes de normandos e bretões. Destes franceses
escreveria em 1587 Gabriel Soares, no seu Roteiro Geral que “muitos se
amancebaram na terra, onde morreram, sem se quererem voltar para França, e
viveram como gentios com muitas mulheres, dos quaes, e dos que vinham todos
annos à Bahia e ao rio Segeripe em náos da França, se inçou a terra de
mamelucos, que nasceram, viveram, e morreram como gentios; dos quaes ha hoje
seus descendentes, que são louros, alvos e sardos, e havidos por índios
Tupinambás, e são mais barbaros que elles”.
Tal postura levou à escolha adotiva e, nesse sentido, apontava
para a liberdade, mas, também, em oposição, à escravidão, ambas, liberdade e
escravidão, em relação à natureza e às construções daí decorrentes.
Fruto da boa vida no paraíso dos brasis, os colonos não
concordaram com seu vice-rei, se revoltaram, e aliados aos brasis, agora
seus parentes, passaram a tramar o assassinato de Villegagnon. Diante da
guerrilha que se avizinhava, o vice-rei recorreu ao amigo Calvino que, por
esses tempos, exilara-se em Genebra, e pediu para mandar reforço religioso a
fim de restaurar a moral e os bons costumes. E, em setembro de 1556,
quatorze huguenotes, entre os quais dois pastores, Chartier e Richer, e um
jovem muito promissor, Jean de Léry, deixaram a Suíça, embarcaram em
Honfleur, sob a liderança de Du Pont de Corguilleray, e chegaram ao forte de
Coligny em março 1557. Mas essa já é outra história.
Contra a realidade social, vestida e opressora, ... a realidade
sem complexos, sem loucura, sem prostituições e sem penitenciárias do
matriarcado de Pindorama.
No encontro do pensamento calvinista com a cultura tupi-guarani
estamos diante de algo novo, que não existia antes, que poderia produzir uma
consciência diferente das originais de cada grupo. A realidade daquilo que
huguenotes e tupinambás eram estava a priori colocada, era algo próprio. Mas
agora tínhamos uma tensão entre o ser-próprio huguenote e tupinambá e o
ser-posto frente a frente no litoral do Rio de Janeiro. Aqui a origem não
liberta. Não se pode dizer que eram e que não são mais. Sem dúvida, eram
puxados pela origem, que os segurava firme, fazendo-os submergir. E se a
origem é o que estabelecia como algo huguenote e tupinambá, ser-posto frente
a frente supunha caminhar para a morte ou em direção ao novo.
O calvinismo não se dava simplesmente como processo de adequação
da mente de Léry ao novo que lhe era apresentado. Impunha o processo
cognoscitivo que este novo tivesse uma leitura ideológica: uma relação em
que Léry operasse como portador da utopia e o novo como ideologia. O
calvinismo do jovem huguenote não se processava entre realidades
ahistóricas, mas em relação espacial e temporal, exigindo que a interação
entre ele e a realidade se estruturasse em algo maior, alguma coisa além de
ambos, não causal, mas essencial.
Em Genebra, Calvino estava a promover uma nova interpretação da
Bíblia, colocondo-a como centro da vida, reformando o pensamento teológico e
a constituição da Igreja. Mas, também, começava a deixar sua marca no
capitalismo ocidental que estava a ser construído. Sobre essa questão,
François Dermange pergunta: então Calvino é o pai do capitalismo? Sim e não,
responde, partindo da reflexão de Weber que considerou uma mediação
tríplice: a passagem de Calvino para o calvinismo, a passagem do calvinismo
para o puritanismo e, finalmente, a secularização progressiva do puritanismo
em meio aos barões da indústria. Assim, é pai do capitalismo, pois as
motivações psicológicas eram dependentes da doutrina calvinista da
predestinação, que forneceu razão adicional para a acumulação, o que
justificou o enriquecimento pessoal como um sinal de excelência e até mesmo
como sinal de eleição divina. Mas o sim é relativo, pois se podemos atribuir
ao calvinismo a tradição da poupança como fato que possibilitou a
acumulação, e considerar que graças à ética calvinista a economia
capitalista em vias de desenvolvimento se tornou liberal, solta, livre dos
escrúpulos do cristianismo anterior e, mais além, da ideologia econômica da
Idade Média, outros fatores, históricos, políticos e sociais, vão se fazer
presentes nessa construção, tirando de Calvino e do calvinismo a
responsabilidade solitária pela paternidade do capitalismo.
Calvino considerou a natureza palco da glória de Deus. Mas
naquele momento de França Antártica, na experiência de Jean de Léry, as
cenas dessa peça estavam a ser pintadas enquanto utopia do jardim huguenote.
A utopia do jardim marcou o sonho huguenote no século XVI. Esse
jardim foi visto como refúgio diante das perseguições. E o jardim de Léry se
fez tupinambá e brasileiro, lugar de encontro de huguenotes e tupi-guaranis,
onde o protestantismo pensava cumprir uma missão, carpir o mato bravo do
teatro da glória de Deus. O jardim e a cultura da terra traduziam, assim,
uma vocação divina, entregue lá atrás a Adão. Mas o estar no jardim dos
tupinambás fazia aflorar uma questão: estariam os brasis irremediavelmente
perdidos?
Na verdade, considera Jean-François Zorn, o próprio Léry se faz
essa pergunta. De onde vieram esses selvagens? E sua resposta está baseada
na interpretação do texto de Gênesis 9.18-27, que fala do assentamento dos
três filhos de Noé: Sem, Cão e Jafé. Para Léry, como para os historiadores
espanhóis da época, esses americanos eram descendentes de Cão, povo maldito
e abandonado por Deus. Embora admita que tal hipótese possa ser discutida,
Léry a valida usando um argumento teológico, a partir da doutrina da dupla
predestinação: se os tupinambás são gente pobre, isso se dá porque são
pessoas vazias e desprovidas de qualquer bom sentimento que provenha de
Deus. Seria tal consideração, pergunta Zorn, fatal para a evangelização dos
brasis? Não necessariamente, embora Léry tenha se encontrado numa situação
de fronteira diante de sua teologia calvinista e o afeto que nutria pelos
brasis. De todas as maneiras, disse conhecer bem os brasis e ter entendido a
diferença entre os que são iluminados pelo Espírito Santo e aqueles que
foram abandonados e deixados à margem.
Há na utopia do jardim uma construção histórica. O protestantismo, saindo
que estava da heteronomia medieval, fazia-se humanista por amor às fontes e
pelo desejo de aprender no Livro e dos livros, incluído aí o livro da
natureza. Tal visão foi particularmente atraente para o jovem Jean de Léry.
Como decifrar os mistérios de Deus senão através da revelação que o Novo
Mundo apresentava?
O calvinismo francês era rural, mas se fazia urbano
principalmente pela curiosidade diante das novidades. Os huguenotes eram
minoria que se aventurava em descobertas no Novo Mundo. Perseguidos,
buscaram o paraíso em outras terras, desconhecidas, para eles virgens,
fazendo viagens que nos remetem à terra-sem-mal dos guaranis.
No processo de construção desse calvinismo em solo brasileiro,
Léry também se encontrava em construção, já que era partícipe e não senhor
do processo. Era alguém colocado no espaço e no tempo dos brasis, que
estabelecia relações com a realidade que o cercava dentro do processo
cognoscitivo, a princípio calvinista, enquanto dimensão humana e histórica.
Devo dizer com relação ao casamento dos nossos americanos que
eles observam tão-somente três graus de parentesco; ninguém toma por esposa
a própria mãe, irmã ou filha, mas o tio casa com a sobrinha e em todos os
demais graus de parentesco não existe impedimento. A cerimônia matrimonial é
a seguinte: quem quer ter mulher, seja viúva ou donzela, indaga de sua
vontade e em seguida dirige-se ao pai ou na falta deste, ao parente mais
próximo, para pedi-la em casamento. Se lhe responderem afirmativamente leva
consigo a noiva como legítima mulher sem que se lavre nenhum contrato. Se
porém recebe um não o pretendente desterra-se sem se sentir humilhado.
Antes de nossa chegada ao Brasil os intérpretes normandos
abusavam das raparigas em muitas aldeias, mas nem por isso elas ficavam
difamadas e quando se casavam procuravam não mais claudicar, de medo de
serem mortas ou repudiadas como já disse. Direi mais que apesar do clima da
região em que habitam e não obstante serem orientais, nem os mancebos nem as
donzelas núbeis da terra se entregam à devassidão como fora de supor; e
prouvera a Deus que o mesmo acontecesse por aqui.
E Hans Staden agrega algumas informações interessantes.
A maioria dos homens tem só uma mulher, alguns porém têm mais, e
muitos dos seus principais têm treze e quatorze. O chefe Abatí-poçanga, ao
qual fui dado de presente ultimamente, e do qual os franceses me resgataram,
tinha muitas mulheres, e uma, que lhe havia sido a primeira, era suprema
entre elas. Cada uma tinha o seu espaço exclusivo na cabana, seu fogo
próprio e sua plantação de mandioca particular. Mantinha-se o varão no
espaço pertencente àquela com quem lidava e que lhe dava de comer. E assim
alternativamente. (...) as mulheres vivem em boa harmonia umas com as
outras.
A análise das correlações entre huguenotes e tupinambás deve
basear-se em leituras que tenham por base modelos diferentes daqueles em que
se pensa o mundo como uma máquina, governando por princípios de regularidade
e ordem, onde as coisas são a soma das partes. As relações entre huguenotes
e tupinambás nos mostram que a percepção e a simbologia das tradições e,
como consequência, a compreensão da cultura tupi-guarani por parte desse
jovem calvinista em construção, só podem ser entendidas através de
abordagens não lineares.
1.2 – Caminhante e nada mais
Edgar Morin se pergunta: o que é complexidade? E diz que, à
primeira vista, é um fenômeno quantitativo, uma quantidade extrema de
interações e interferências num grande número de unidades. Mas a
complexidade não é apenas a quantidade de unidades e interações que desafiam
nossa capacidade de cálculo: inclui incertezas, indeterminações, fenômenos
aleatórios. Por isso, a complexidade tem sempre um sentido de acaso.
Nas leituras dos encontros e desencontros entre huguenotes e
tupinambás, os sentidos da palavra complexidade são fundantes, pois remetem
à diversidade, elementos, conjuntos, fatos e circunstâncias que têm nexo
entre si, mas também em que estão presentes o imprevisível, no sentido de
que compreensões e resultados são incertos, pois aí estão sistemas ordenados
e aleatórios, combinando ordem e desordem: donde a presença do acaso. E
caos, conceito que sempre aparece quando se discute a complexidade, aqui
deve ser entendido como vazio que propicia a geração do mundo. Mas, na
construção dessa leitura, vemos que complexidade e caos são aqueles
comportamentos não previsíveis que aparecem nas relações entre os franceses
e os tupinambás. Dessa maneira, leituras sobre as relações entre huguenotes
e tupinambás, que partam da complexidade e do caos de tais encontros e
desencontros, remetem às equações não lineares que regeram a tentativa de
plantação da França Antártica no Rio de Janeiro, onde pequenas alterações no
valor de parâmetros geraram mudanças significativas no projeto francês.
Jean de Léry nasceu em 1536 na cidade de La Marguelle, na
Borgonha. Sua conversão à fé reformada o levou, devido às perseguições desse
tempo, a se refugiar em Genebra. E, assim, em 1556, ou seja, com apenas
vinte anos, se juntou à pequena missão enviada por João Calvino ao Brasil,
onde Villegagnon liderava um projeto colonial, a França Antártica.
Foi, na verdade, por sugestão do almirante Coligny que a colônia
foi implantada em novembro de 1555, na entrada da baía da Guanabara, uma
região que os portugueses não haviam ocupado. Tal escolha procurou evitar um
confronto com as forças portuguesas, que tinham, por decreto papal, o
Tratado de Tordesilhas, recebido essas terras. Dessa maneira, os franceses
romperam o decreto e criaram uma nova concepção dos direitos territoriais
sobre o Novo Mundo, baseada na ocupação efetiva e não em direitos
concedidos. Assim, apoiados em tal direito de ocupação, iniciaram a
plantação da França Antártica. Tal tese, conforme nos diz Perrone-Moisés,
também foi defendida na Espanha por Francisco de Victoria, que afirmava:
Contrariamente à perspectiva herdada da Idade Média, que a
jurisdição do Papa limitava-se ao espiritual, o que não lhe dava o direito
de realizar a distribuição das“‘terras novamente descobertas” na América.
Antes da invasão e início da colonização havia um relativo
equilíbrio entre católicos e protestantes, tanto na França continental como
no Brasil. Mas questões outras estavam a causar problemas. Uma delas era o
relacionamento entre franceses e os brasis.
Os franceses haviam desenvolvido uma técnica para melhor se
relacionar com os brasis, colocar nas tribos grumetes que deveriam viver com
eles e como eles. Assim, em poucos anos, passavam a ter “especialistas” nas
culturas locais, que dominavam o idioma e, muitas vezes, se tornavam
conselheiros dos índios, tanto em relação ao comércio, como também em
relação ao enfrentamento com tribos inimigas. Esses jovens, conhecidos como
“línguas” (truchements), por serem intérpretes, deram início a um fecundo
processo de miscigenação.
Num mundo que se via de ponta-cabeça, a estrutura de parentesco
tupinambá soava como liberdade dos laços de sangue, do biológico e dos
condicionamentos culturais da patriarcalidade europeia. E foi através do
cunhadismo que os jovens truchements encontraram uma ponte de diálogo com
essa cultura herética e revolucionária dos tupinambá, a estrutura de
parentesco matrifocal, que tem como possibilidade de construção o parentesco
definido pelo gozo, mas também por seu oposto, o abandono. Tal postura levou
à escolha adotiva e, nesse sentido, apontava para a liberdade, mas, também,
em oposição, à escravidão; ambas, liberdade e escravidão, em relação à
natureza e às construções daí decorrentes.
Assim, diante de tais questões dizemos ser impossível
compreender as correlações entre franceses e tupi-guaranis numa abordagem
tradicional de causa e efeito. As dificuldades surgem quando se tenta isolar
os ruídos externos ao encontro, construindo leituras eurocêntricas que levam
a distorções de compreensão.
Entretanto, o que deve ser visto é que na dinâmica vivida por
huguenotes e tupinambás a incerteza e o caos eram gerados internamente pelo
próprio encontro, devido à sua não linearidade e não exclusivamente por
fatores externos. Ou seja, a complexidade e o caos surgiam das regras de um
e outro aplicadas de forma recursiva. As respostas, então, para as questões
históricas suscitadas do relacionamento entre huguenotes e tupinalbás não
estão tanto na procura de mais informações para tentar encontrar uma relação
de causa e efeito, mas em entender quais regras regeram os comportamentos da
relação simbólica das duas religiosidades confrontadas. Ou que tipo de
retroalimentação existiu e de que forma essa retroalimentação atuou nas
relações.
E aqui temos uma: a matrifocalidade tupinambá extrapolava o
universo da naturalidade, conforme compreendida pelo cristianismo calvinista
em formação, pois apontava para o novo mundo a construir – a gravidez e o
parto da cunhatã, que não tinha simbolicamente a vulva como própria, mas
acontecia para a exterioridade da tribo. Assim, a cunhatã preanunciava o
tempo de uma desconstrução, a abolição da maternidade como ato pessoal e a
expansão da matrifocalidade. O filho era sempre filho da tribo. Essa
desconstrução, sem dúvida, construía o parentesco tupinambá.
A matrifocalidade rompeu a ausência e o distanciamento paterno
daqueles jovens franceses. O que ela fazia era, também, trazer para os
tupinambás a realidade da ancestralidade para o presente. Heróis
civilizadores deixavam de estar no passado e passavam a estar no cotidiano
da vida, nas coisas que são feitas e que representavam no dia a dia a
manutenção da vida. Nesse sentido, a matrifocalidade não era representação
do pai ou do filho, mas novo parentesco. Diante da matrifocalidade todos
eram filhos e não havia um filho mais importante.
Essa matrifocalidade, presente no imaginário dos franceses em
seus relacionamentos com as cunhãs, possibilitou a construção de pontes
entre a cultura tupinambá, hegemônica, e homens com uma tradição a
construir, movidos pela utopia da França Antártica. Essa compreensão nos
remete ao diálogo político de tupinambás e franceses, em que a
universalidade incipiente repousava em colo feminino. E porque uma cunhã deu
à luz e tornou-se geradora de nova criação, o gênero feminino e não o
masculino ocupava a centralidade da estrutura de parentesco do cunhadismo.
Assim, a cunhã introduziu com gozo o jovem truchement na cultura tupinambá.
Mas ao possibilitar novas construções simbólicas para a
estrutura de parentesco patriarcal como consequência da expansão da
matrifocalidade, dogmas que repousavam no inconsciente europeu foram
ameaçados. Assim, a matrifocalidade significou para os franceses uma
revolução que ameaçava a própria fé cristã.
A aceitação do cunhadismo, com sua consequência mais visível, o
relacionamento sexual entre jovens franceses e mulheres tupinambás,
inclusive meninas, chegou ao conhecimento da França continental. E tal
costume foi considerado licencioso. O vice-rei então proibiu aos franceses
da colônia todo e qualquer relacionamento sexual com brasis. Mas os
truchements permaneceram nas aldeias e se negaram a deixar suas mulheres.
Está claro que, com exceção deles, até aquele momento, praticamente nenhum
francês entendia a cultura tupinambá e muito menos a sua estrutura de
parentesco. Assim, diante da negativa dos truchements e da possibilidade de
uma rebelião generalizada, apoiada pelos tupinambá, que consideravam o
abandono das mulheres uma ruptura da aliança por parte dos franceses,
Villegagnon recorreu ao seu amigo Calvino, refugiado em Genebra, para que
lhe enviasse reforços a fim de estabelecer a ordem moral e espiritual da
colônia. Em setembro de 1556, quatorze huguenotes, entre os quais o jovem
Jean de Léry, e os pastores Richer e Chartier, deixam a Suíça. Embarcam em
Honfleur no começo de 1557, sob o comando de Du Pont de Corguilleray, e
chegam ao forte de Coligny em março de 1557.
O fato é que franceses e huguenotes eram adaptativos, suas
regras de comportamento mudavam à medida que eram confrontados com
realidades antes desconhecidas. Na verdade, esse novo mundo huguenote não é
aquele representado pela metáfora de uma máquina. As coisas são mais do que
a soma de suas partes. Equilíbrio é morte. Causas são efeitos e efeitos são
causas. Desordem e paradoxo estão presentes na simbologia do texto de Léry,
Viagem à terra do Brasil.
Segundo Capítulo
faz-se O caminho
O protestantismo francês teve início com o reformador católico
Jacques Lefevre, que começou suas pregações em 1514, antes de Lutero. Paris
desde cedo se interessou pela Reforma. Talvez por curiosidade intelectual,
exotismo, necessidades do mercado, mas a partir de 1523 a nova seita
brilhou. No entanto, o protestantismo só se tornou francês em 1540, quando o
calvinismo substituiu o luteranismo. E, assim, cresceu em Languedoc,
Dauphine, Guyenne, Gasconha, Saintonge. Em 1559, alcançou o apogeu: um
milhão de protestantes numa população de quinze milhões de pessoas.
Para o reformador francês, a tarefa maior da teologia
protestante era restaurar a doutrina de Cristo na Europa católica. E esse
era um debate teológico, entre cristãos. Para ele, isso significava
apresentar o papel mediador de Cristo. Mediador é a palavra que Calvino mais
usou em relação a Cristo. Para ele, a revelação de Deus em Cristo era o
exemplo maior de como Deus acomodou-se às necessidades humanas. Assim, ainda
que o ser humano tivesse permanecido sem a mancha do pecado, ainda assim
seria impossível aproximar-se de Deus sem mediador.
Seguindo a tradição da cristologia de Calcedônia, Calvino
afirmou que Jesus Cristo era tanto Deus verdadeiro como homem verdadeiro. O
redentor em carne era um só com o eterno Filho de Deus. Na encarnação,
Cristo não renunciou à sua divindade, mas ocultou-a sob o véu da carne.
Isso, no entanto, não significava para Calvino uma postura docetista. Para
ele, Cristo viveu realmente a extrema pobreza da manjedoura, as tristezas
reais do Getsêmani; enfim, não há profundidade a que Jesus não tenha
mergulhado para tornar-se irmão humano.
É interessante que, para Calvino, embora Jesus Cristo tivesse as
naturezas humana e divina, elas não se apresentavam fundidas. Essa é uma
peculiaridade de sua cristologia. E afirmou a distinção entre divindade e
humanidade do redentor. Outra formulação que até hoje cria dificuldades para
os póprios calvinistas é a de que o Filho de Deus tinha uma existência “além
da carne”. É certo que não foi muito mais longe. O extra Calvinisticum, como
ficou conhecida tal formulação, é considerada como uma forma de salientar a
identidade entre a Palavra redentora na carne e a Palavra eterna que, com o
Pai e o Espírito, era a fonte da criação e da redenção. Assim, a intenção de
Calvino era mostrar que no Cristo encarnado não estamos diante da natureza
humana elevada a uma potência “n”, mas de Deus manifestado na carne.
Assim, o objetivo calvinista era levar o cristianismo reformado
à Europa católica. Mas como falar aos povos do Novo Mundo? Jean Vermeil
expressa esse momento com o chamado de Jean de Léry:
Partir, ficar? Vamos lá. O sol cozinha Genebra, julho de 1556.
Ouve-se o apelo, uma ordem do senhor Calvino: necessitamos de voluntários
para fazer crescer a França Antártica! Uma colônia de reformada que clama,
outro refúgio, longe, na América, de onde se extrai a madeira do Brasil. O
almirante de Coligny, líder do partido protestante, foi quem a fundou, por
isso leva seu nome. Eis o destino: forte Coligny, na terra do Brasil, a
França Antártica. Quem é voluntário?
Que desafio era esse que extropolava o próprio conceito de
reforma e expunha jovens huguenotes aos desencontros do Novo Mundo?
Muitas vezes, como pude presenciar, sentindo-se atormentados,
exclamavam subitamente enraivecidos: “Defendei-nos de Ainhan que nos
espanca”. E afirmavam que o viam realmente ou sob a forma de um quadrúpede,
ou de uma ave ou de qualquer outra estranha figura. Admiravam-se muito
quando lhes dizíamos que não éramos atormentados pelo espírito maligno e que
isso devíamos ao Deus de quem tanto lhes falamos, pois, sendo muito mais
forte do que Ainhan, lhe proibia fazer-nos mal. E acontecia que, sentindo-se
amedrontados, prometiam crer em Deus. Mas passado o perigo zombavam do
santo, como se diz no provérbio, e não se recordavam mais de suas promessas.
Léry acreditava que os brasis estavam sob danação. E que era
esse estado que os impedia de aceitar o Deus cristão. Quando falamos de
complexidade na análise histórico-teológica das correlações entre huguenotes
e tupinambás partimos de compreensões não lineares, em que o caos refere-se
às áreas de instabilidade de fronteira. No caso de Léry, quando se refere à
possessão demoníaca sobre os tupinambás, o caos se apresenta no movimento
entre o aparente equilíbrio da doutrina calvinista da predestinção e a
complexa situação randômica da interpretação do acontecimento inusitado.
A partir de Tillich, entendemos que o estado da existência é o
estado da alienação. Ou seja, o ser humano se encontra alienado do
fundamento do seu ser, dos outros seres humanos e de si mesmo. E essa
alienação é fruto da ruptura com o mundo ideal da criação, da natureza
perfeita, o que dá origem à consciência. Mas é importante entender a relação
entre alienação e a comunidade humana, tribal ou não. Para Tillich, uma
comunidade é uma estrutura de poder, onde existe conflito potencial ou real,
mesmo que exista ação solidária da comunidade como um todo. Na comunidade
não necessariamente existe culpa coletiva, mas existe destino universal e
todos participam desse destino. E o destino se acha inseparavelmente unido à
escravidão e liberdade, e nele é experimentado fracasso e conquista.
Em acontecimentos caóticos não lineares, como é o caso da
experiência vivida por Léry, diante da “possessão” dos tupinambás, causas e
efeitos desaparecem pela amplificação da retroalimentação que transforma
variações em consequências trágicas. O que acontece não é passível de ser
plenamente conhecido, de imediato. Donde a importância de uma leitura da
complexidade para que se possa compreender a relação entre a simbologia do
acontecimento e a interpretação de suas expressões.
Numa abordagem teológica da cultura, a questão da origem é
fundamental para o estudo dessa “possessão” de brasis tupinambás, pois
posiciona o mal em condições e momentos diferentes. A relação origem versus
mal sublinha a alienação humana como estado da existência, o que permite a
leitura de que eram pessoas confrontadas com o desafio da escravidão e da
liberdade existencial. E que no uso da liberdade estava contida a
possibilidade de oposição ao definido e nomeado. A alienação, no caso
descrito por Léry, consiste nisso, na decisão autônoma dos brasis de
distanciarem-se da ordem e do estabelecido. Esse deslocamento, de ruptura
com a natureza, permitiu aos tupinambás colocarem-se como centro de sua
vontade e de seu fazer, produzindo distanciamento da natureza, mas
consciência dependente ou livre na sua própria existência. Nesse sentido,
essa ruptura, esse distanciamento, é um encontro, e aí está colocada a
possibilidade da “possessão”. Ou, como diz Clastres, ao analisar a alienação
existencial:
Mau encontro: acidente trágico, azar inaugural cujos efeitos não
cessam de ampliar-se, a tal ponto que é abolida a memória do antes, a tal
ponto que o amor da servidão substituiu-se ao desejo de liberdade. O que diz
La Boétie? Mais do que qualquer outro clarividente, afirma inicialmente que
essa passagem da liberdade à servidão deu-se sem necessidade, afirma
acidental – e, desde então, que trabalho pensar o impensável mau encontro!.
Assim, aquelas “possessões” eram a corrupção da liberdade dos
brasis tupinambás por eles próprios que, por essa corrupção, se colocavam em
estado de servidão voluntária. Ou, se preferirmos, podemos dizer que
deixavam-se dominar por suas próprias paixões. Assim, o entendimento da
“possessão” enquanto alienação e abertura à perda de liberdade fornecia
elementos para a espiritualidade tupinambá, já que a “possessão” e os
espíritos remetiam à própria liberdade.
Bem, tais leituras são complexas e amplas e têm como finalidade
abrir horizontes, já que as interpretações calcadas num aparato de
retroalimentação negativo levaram a leituras formais da dogmática huguenote
e a acreditar que os franceses no Rio de Janeiro, expostos às novas
realidades, caminharam na direção correta pela correção de seus desvios do
plano traçado. À luz da complexidade hermenêutica o quadro é mais
complicado: as interpretações de origem medieval estavam corretas para
leituras ligadas às rotinas da formalidade huguenote isolada, mas no que
tange à produção criativa de conhecimento, que respondesse às necessidades
das relações sociais no Novo Mundo, como entre huguenotes e tupinambás, elas
se mostraram limitadas. Os resultados não desejados de suas ações não podem
ser plotados porque a estrutura do sistema religioso huguenote, amaciado
pela realidade do cunhadismo, entre outras realidades do universo tupinambá,
tornou o futuro impossível de ser controlado. O corolário é que o dogma
viável não é algo que é o resultado de um intento prévio de um intérprete
visionário; ao invés disso, emerge das múltiplas possibilidades lançadas por
várias dinâmicas em colisão entre a vida humana e a tradição. Assim, os
leitores do texto de Léry em sua confluência no multiculturalismo de
calvinistas e huguenotes precisam se pensar como jardineiros, que ao invés
de intencionarem devem trabalhar possibilidades.
Há um verso de Nietzsche que pode nos servir de guia nessa
leitura a partir da complexidade:
Agora celebramos, seguros da vitória comum, / a festa das
festas: / O amigo Zaratustra chegou, o hóspede dos hóspedes! / Agora o mundo
ri, rasgou-se a horrível cortina, / É hora do casamento entre a Luz e as
Trevas...
Estamos diante da ausência de horizontes: não há razão autônoma.
Assim, é o caso de se perguntar: é possível existir algum contato com a
chamada realidade hermenêutica quando huguenotes e tupinambás,
conscientemente ou não, criaram possibilidades de mundo que foram mais reais
que o real, quando o encontro multicultural glosou a uniformidade?
A identidade do texto não pode ser encarada como uma forma de
ser plena e apriorística, mas como realidade relacional. Ou seja, no texto
se entrecruzam questões de identidade textual e comunitária, o que acaba por
revelar uma dimensão estrangeira, a manifestação de um outro. Na medida em
que há constante busca identitária, o confronto com esse outro supõe sempre
uma comparação, explícita ou implícita, e se integra naquilo que serão as
representações do outro.
É coisa quase incrível e de envergonhar os que consideram as
leis divinas e humanas como simples meios de satisfazer sua índole corrupta,
que os selvagens, guiados apenas pelo seu natural, vivam com tanta paz e
sossego. (...) Se acontece brigarem dois indivíduos (o que é tão raro que
durante a minha permanência de quase um ano entre eles só me foi dado
presenciar duas vezes) não procuram os outros separá-los: deixam-nos até
furarem os olhos mutuamente sem dar palavra. Entretanto se um deles é ferido
prendem o ofensor, que recebe dos parentes próximos do ofendido ofensa igual
e no mesmo lugar do corpo; e ocorrendo morrer a vítima, os parentes do
defunto tiram a vida do assassino. Em resumo, é vida por vida, olho por
olho, dente por dente etc. É verdade que isso sucede muito raramente entre
os selvagens, como já ficou dito.
Ideologia e utopia são passíveis de transformação civilizadora,
em que, no caso que estudamos, o relacionamento de calvinistas e tupinambás
traduziu um momento de complexidade sem precedentes, em que as coisas
mudaram mais rapidamente que suas habilidades de compreender. Para Ricoeur,
a ideologia traduz sempre um processo de distorção através do qual a pessoa
ou comunidade define sua situação, mas sem conhecer ou reconhecer, de fato,
tal situação. Assim, por exemplo, a ideologia pode refletir a situação
social de uma pessoa, sem que ela tenha plena consciência dela. Mas esse
processo de ocultamento também produz conforto. Da mesma forma, o conceito
de utopia é considerado como representando uma espécie de sonho social que
não apresenta os passos necessários para a sua realização. Mas, nesse
processo de construção do imaginário social, ambos conceitos apresentam
lados positivos e negativos, e a polaridade ou a tensão entre eles são
características estruturais fundantes para a compreensão da cultura e suas
leituras.
Devemos resistir à tentação de procurar respostas simples para
esses relacionamentos, pois o que parece ser força interpretativa da leitura
pode transformar-se em fraqueza que nos deixa abandonados à mercê da sorte.
Diante disso, será possível distinguir entre ideologia e fé na relação das
comunidades calvinistas e tupinambás, se a utopia do imaginário construiu a
nova realidade? Bem, como calvinistas e tupinambás viveram num mundo em
processo de equilíbrio instável, para entendê-lo devemos ir às margens
daquele sistema.
A partir da complexidade vemos o fenômeno da leitura do texto de
Léry como marginal e emergente. Não está fixo, porque a complexidade é
móvel, momentânea e o momento marginal de seu aparecimento é inevitavelmente
complexo. E aqui devemos nos lembrar que uma situação de complexidade sempre
aparece como confusão e dificuldade. Longe de ser um estado, esse momento
emergente deve reconstituir o fluxo de tempo, enquanto impulso que mantém o
texto em movimento. É interessante que a palavra momento derive da ideia de
impulso em latim, mostrando movimento como sendo também impulso. Embora
represente um ponto simples, o momento é inerentemente complexo. Seus
limites não podem ser firmemente estabelecidos, porque sempre estão trocando
de modos, que dão fluidez ao momento. Nessa leitura estamos sob o domínio do
intermediário.
O Novo Mundo de huguenotes e tupinambás não é transparente
porque não temos a informação adequada e necessária para estabelecer leis;
assim, a completude da operação desse encontro de mundos é inacessível. A
partir dessa compreensão de caos e complexidade, duas razões podem ser
destacadas na abordagem do texto de Léry e das tradições tupinambás.
Primeiro, devemos entender que as tradições culturais e
religiosas são sistemas abertos. E, segundo, que as estruturas do texto de
Léry e os sistemas das tradições tupinambás envolvem relações que não podem
ser entendidas apenas em termos de modelos lineares de causalidade. Na obra
de Léry é impossível medir as condições iniciais com precisão para
determinar as relações causais desse período limitado de tempo em que
conviveu com os brasis. Então, a imprevisibilidade é inevitável. Ao
contrário dos sistemas lineares, nos quais causas e efeitos são
proporcionais, no texto de Léry a avaliação é complexa, porque seu texto se
autoalimentou da vida de seus leitores nos últimos quatro séculos e meio e
tal recorrência gerou causas que tiveram efeitos desproporcionados.
Uma leitura da complexidade está menos interessada em
estabelecer a fuga ou o caos determinado, pois oscila entre ordem e caos. O
momento de complexidade é o ponto no qual sistemas organizados emergem para
criar novos padrões de coerência e estruturas de relação. Assim, em Viagem à
terra do Brasil a percepção da complexidade pode ser utilizada para iluminar
as questões da correlação entre huguenotes e tupinambás, isso porque a
possibilidade da vida, que faz a travessia de um regime equilibrado de ordem
e caos, é o que há de comum entre os processos complexos.
2.1 – Ao andar faz-se
Ao receber as suas cartas e ouvir as notícias trazidas, a igreja
de Genebra rendeu antes de mais nada graças ao Eterno pela dilatação do
reino de Jesus Cristo em país tão longínquo, em terra estranha e entre um
povo que ignorava inteiramente o verdadeiro Deus. Em seguida, atendendo aos
pedidos de Villegagnon, o finado senhor almirante, a quem também se
escrevera para o mesmo efeito, solicitou por carta a Felipe de Corguilleray,
senhor Du Pont (que se havia retirado para perto de Genebra e fora seu
vizinho em França, em Chatillon-Sur-Loing), que empreendesse a viagem a fim
de conduzir os que desejassem encaminhar-se para essa terra do Brasil. A
mesma solicitação foi feita também pela igreja e seus ministros de Genebra e
embora já fosse velho e se sentisse alquebrado, o senhor Du Pont, animado
pelo grande desejo que tinha de empregar-se em tão bela obra, acedeu em
fazer o que lhe era requerido, abandonando todos os seus outros negócios,
para ir tão longe, e deixando mesmo seus filhos e sua família.
A situação do texto dentro da rede que envolve trocas de
diferentes tipos, econômicas, religiosas, simbólicas, constitui relações de
particularidade. O texto se torna o que é em virtude de sua situação dentro
de redes complexas. Essas, porém, não são redes fechadas e estáveis, mas
estão abertas. Então, a subjetividade nunca é um produto acabado, está em
mudança porque as redes dentro das quais se inscreve estão em permanente
mudança.
Os rastros podem se apresentar de diferentes modos. Um dos
problemas como percebemos a utopia da França Antártica é que não está
separada da maneira como percebemos as revelações tupinambás. Assim, vamos
ressaltar um aspecto da dogmática calvinista: Deus é onisciente e pode
controlar tudo, já que nas comunidades tudo está sendo visto. Temos então a
economia da representação calvinista que faz as leituras das revelações
tupinambás a partir de operações dentro de estruturas de referência que
reivindicam para si o referir-se ao outro e são estruturas de ego-referência
que usam o outro para a conformação de uma leitura de dominação.
No esforço para afiançar a identidade entre intérprete e texto e
estabelecer sua presença, o hermeneuta descobre diferença e ausência. Embora
lute para negar isso, essa é a realidade. A procura pela presença em
autoconsciência conduz à descoberta da ausência. A autoafirmação e a negação
provam estar ligadas indivisivelmente. E, assim, o intérprete se faz
caminhante e o texto, viagem. Por isso, a viagem de volta ao ato de
interpretar é uma viagem perigosa, pois na representação o texto é quebrado
e aberto. A quebra do texto é registrada pela travessia. A travessia é, em
geral, a abertura do texto à exterioridade, à relação enigmática de um
interior atravessado pela externalidade. A ausência sempre está presente e o
exterior é sempre isto: morte. O presente vivo sempre é marcado pela morte.
E essa morte é a não conservação que assombra a presença e dentro do caminho
da travessia se inscreve uma cruz que marca o local do desaparecimento do
texto.
Os caminhantes necessitam compreender o que é a ideologia da
imagem, e como pode ser usada para prover uma interface mais íntima entre o
que é humano e a relatividade hermenêutica, e como dados sensoriais se
transformam em experiência real. No entanto, o fundamental é analisar a
representação que se coloca por trás da ideologia e dentro da estrutura.
Pode-se dizer que tudo que o intérprete faz é simulação. Assim, a realidade
da ideologia, que poderia ser um novo paradigma, se torna uma metáfora. É um
conceito estranho e provocante, com certo senso de aventura. Essa
compreensão da hermenêutica leva a uma totalidade estrutural na qual tudo
está dentro e tem seu próprio outro. Assim, alteridade e diferença são
componentes essenciais do ato de caminhar, e a relação entre alteridade e
diferença é, em última instância, ato de fazer a travessia do texto.
Por isso, o texto de Léry tem valor na construção do caminhante.
Quando o texto resiste a esse papel, quando se recusa a ser usado ou
consumido, sua territorialidade é invadida e sua alteridade colonizada.
Dessa maneira, a ideologia que Viagem à terra do Brasil nos oferece termina
sendo real. Promete a realidade, que deixa de ser metáfora, e se transforma
em criação verdadeira. Nesse sentido, a ideologia deixa de ser metáfora e se
faz metafísica.
A leitura mundializada do texto de Léry criou uma perspectiva do
que são os textos calvinistas e católicos sobre a França Antártica e sobre
os tupinambás. Ou seja, estamos diante da recorrência da teoria da
complexidade. Se a perspectiva anterior era a divisão, a perspectiva da
leitura mundializada do texto é a integração forçada. Esses processos de
mundialização criaram uma cultura de leitura da Viagem à terra do Brasil
cuja lógica complexa e dinâmica só agora começamos a entender. O contraste
entre grades e teias clarifica a transição do sistema anterior para o da
cultura em rede. O sistema anterior nasceu para manter a estabilidade
através de relações complexas e situações que deveriam ser simplificadas em
termos de grades com oposições precisas. Essas eram leituras em que as
paredes pareciam prover segurança. Paredes e grades, porém, não oferecem
nenhuma proteção diante da possibilidade de se criar teias. Assim, as
paredes se desmoronam. Novas estruturas deslocam o velho, embora isso não
signifique a aparição imediata do novo. Nessa situação, as oposições
estruturais que tinham formado o pensamento hermenêutico sobre Viagem à
terra do Brasil se desfazem e o equilíbrio de forças desaparece.
Considerando que as paredes dividiam e traduziam um esforço para impor ordem
e controlar, teias relacionam o emaranhado dos mundos, transformando
conexões nas quais nenhum caminhante está no controle. Como proliferam
conexões, a mudança se acelera, trazendo tudo à extremidade do caos.
Partindo de Derrida:
Podemos dizer que o fim do ser humano, como limite
antropológico, anuncia--se ao pensamento hermenêutico depois do fim do ser
humano como abertura determinada. O intérprete é aquele que tem relação como
o fim, e o fim transcendental só pode aparecer e desdobrar-se sob a condição
da mortalidade, por isso o intérprete se inscreve na metafísica entre estes
dois fins.
Taylor vai dizer:
A unidade destes dois fins do intérprete, a unidade da sua
morte, do seu acabamento, do seu cumprimento, envolve os conceitos de fim,
lugar e subjetividade. Dessa maneira, o fim do intérprete sempre esteve
prescrito na metafísica. E o que hoje é difícil pensar é um fim do
intérprete que não seja uma teleologia na primeira pessoa do plural. Nesse
sentido, quando a hermenêutica articula a consciência natural e a
consciência filosófica assegura a proximidade para si de fixo e central, e
aí se produz essa reaproximação circular. Mas, a partir do niilismo o
intérprete reconhece que a reductio ad hominem é percebida atualmente como
uma reductio hominis, por isso a noite trazida pelo fim do fundamento é uma
noite em que toda identidade texto/intérprete perece. Quando o fundamento
desaparece, o intérprete não se levanta autônomo e só. Deixa de estar de pé,
deixa de colocar-se a si próprio e ao texto, deixa de ser autônomo e
separado. Já não conserva pessoalidade e autoconsciência, já não conserva
identidade e autonomia. Por isso, o fim do fundamento encarna a morte de
toda hermenêutica autônoma.
Mas será que a obra de Léry, que se pensava firme e objetiva,
que sustentou a fé calvinista diante de incertezas, desmoronou sob as
imagens? Podemos arriscar uma hipótese e dizer que não necessariamente, pois
se intérpretes oscilaram entre enfatizar ideologia e utopia, quando alguns
tentaram afirmar a ideologia diante da degradação da realização humana, e
outros procuraram estabelecer a utopia como afirmação dos valores humanos,
nos perguntamos: o que a alternativa ideologia versus utopia omite? Na
verdade, ideologia e utopia nos falam do imaginário social, que é formador
da realidade social. Assim, a imaginação cultural, ao operar como força
construtiva, mas também destruidora, confirma a situação vivida. Esses
fenômenos explicam a polaridade entre ideologia e utopia e como se
relacionam com os diferentes descompassos do imaginário social, sinalizando
que os aspectos positivos e negativos dos dois conceitos devem ser
entendidos como em permanente relação mútua. Como vimos, Ricoeur considera
ideologia e utopia fenômenos que correlacionam termos ambíguos. Ambos têm
aspectos negativos e aspectos positivos, um papel negativo e um papel
positivo, uma dimensão constitutiva e uma dimensão patológica. E a segunda
questão em comum, tanto na ideologia como na utopia, é que o aspecto
patológico aparece primeiro, o que faz com que, ao partir da superfície do
fenômeno, se proceda de forma regressiva. Mas é o caso de perguntar: além do
aspecto patológico, há um elemento correlacional que vaga entre a dialética
de cada um e de ambos? Esse elemento poderia não ser nem ideologia, nem
utopia? Esse elemento abre o espaço-tempo da cultura tupi-guarani hegemônica
diante do calvinismo em construção, uma diferença diferente e um outro
outro, que subverte as reflexões de polaridades. Tal espaço-tempo nos leva a
um modo de pensar que nos mantém abertos a uma diferença que Léry não pode
controlar. Isso significa falar dos limites, uma parapráxis que resiste ao
fechamento da leitura ideológica, que simplifica o mundo, e da leitura
utópica, que santifica o mundo. Nem a não declaração da leitura ideológica,
nem a declaração positiva da leitura utópica criam espaços através dos quais
tal espaço-tempo pode ser olhado como afirmação de alteridade e diferença
sem fim. Tais questões mostram as falhas das leituras totalizantes. Ou, como
disse Nietzsche, a crença dos metafísicos é a crença nas oposições de
valores. Nem aos mais cuidadosos entre eles ocorreu duvidar aqui, no limiar,
onde mais era necessário: mesmo quando tinham jurado duvidar de tudo. Pois é
possível duvidar, primeiro, que existam absolutamente opostos. E, segundo,
que as oposições sejam mais que avaliações de fachada, perspectivas
provisórias, vistas de um ângulo, de baixo para cima, talvez. Assim, as
leituras totalizantes se expõem enquanto relações amarradas às presenças
possíveis de uma ideologia real e estruturas culturais de dominação.
O texto de Léry sobre a França Antártica e os tupinambás precisa
ser desenredado e nada decifrado. A estrutura pode ser percebida,
desenrolada como a linha das meias em todos os pontos e níveis, mas nada
haverá debaixo disso: o espaço da escrita é para ser percorrido, não
violado. Dessa maneira, a escrita, ao recusar aceitar determinado segredo,
transforma-se em atividade última, atividade essa revolucionária posto que a
recusa de fixar sentidos é, afinal, a recusa da hipótese de razão, ciência e
lei. Assim, o fim do fundamento hermenêutico é seguido pela morte do tema
autônomo. O desaparecimento de um requer o desaparecimento do outro. Mas o
fundamento não desapareceu simplesmente, ele foi lançado fora. Esta é a
questão: o fundamento não morreu, tornou-se humano. Pois uma das coisas que
precisam ser pensadas nesse contexto é a leitura mundializada do texto. É o
caso de perguntar qual será o impacto das novas hermenêuticas na noção
tradicional do textos de Léry. Outra questão é a relação entre espaço e
identidade entre viagem e viajante, já que a geografia e a cultura são
fundamentais para o caminhante, enquanto mediação simbólica. Parte do
processo de leitura mundializada é seguramente a mundialização do texto e o
fluxo livre dele através de redes no mundo inteiro, pois já não está
restrito aos limites franco-brasileiros.
Infelizmente não se fala do ato hermenêutico propriamente,
quando caminhantes livres, usuários dessa viagem, rompem com a geografia
produzindo uma desterritorialização, que coloca de lado a relação entre
lugar físico e identidade entre viagem e viajante e de outro a noção de
espaço simbólico. Da mesma maneira, por serem usuários, ao esquecerem o
lugar primário da comunidade huguenote, a identidade entre viagem e viajante
pode ser trocada do lugar físico para um espaço ideológico, criando um tipo
diferente de configuração hermenêutica. E esse espaço ideológico mediado
pelas tecnologias cresce em importância. Os processos de
desterritorialização não são totalmente negativos. Se o caminhante livre
olha a partir da leitura mundializada e compreende as lutas hermenêuticas
presentes no mundo da leitura do texto, o esforço para retificar o choque
territorial pode ser positivo, pois uma das oportunidades é criar um espaço
para a troca de informações. E isso é muito importante para caminhantes
livres que podem entrar nesse espaço para apresentar modos construtivos e
criativos.
O desafio é repensar ideologia e utopia de tal modo que possamos
imaginar estruturas hermenêuticas não totalizantes, que possam criar
possibilidades para conexão e cooperação, que reconhecem a necessidade e a
inevitabilidade de interconexões sem ter estruturas repressivas. Uma análise
que procura explorar a natureza da mudança histórica pode ter problemas para
avançar quando perde a possibilidade de desenvolver uma visão abrangente. A
incompatibilidade entre a ideologia e a utopia não pode ser entendida como
extremos radicais. Quando se procede assim, perdemos a compreensão da
possibilidade das mudanças históricas. A ideologia é, em última análise, um
sistema de ideias que se torna obsoleto, porque não supera a realidade
presente. Já as utopias são benéficas na medida em que contribuem para a
internalização das mudanças. Por isso, diz Ricoeur, nessa relação falamos de
“juízo de conveniência”, ou seja, maneira de resolver o problema de
incompatibilidade entre ideologia e utopia: uma espécie de acordo, fruto da
capacidade de avaliar o que é apropriado em uma determinada situação. Se é
impossível romper o círculo ideologia/utopia, o conceito de conveniência
pode nos remeter à ideia de um círculo em espiral. A metáfora teias traduz
outra compreensão do círculo ideologia/utopia, processo em que os espaços
vazios são tempos de utopia que atravessam os espaços ideológicos. Pensar
teias cria a possibilidade para superar o impasse no qual nos achamos na
relação entre hermenêuticas e a leitura mundializada de Viagem à terra do
Brasil, produto do pensamento calvinista sobre a França Antártica e os
relacionamentos entre huguenotes e tupinambás. Esse é o terreno que precisa
ser explorado.
2.2 – Ao olhar para trás
Villegagnon e João Cointa assim falavam: “este é meu corpo, este
é meu sangue”, e tais palavras só podiam significar que ali se encontravam o
corpo e o sangue de Jesus Cristo. Mas, perguntareis: como as entendiam eles,
se rejeitavam a transubstanciação e a consubstanciação? Creio que eles nada
entendiam, pois quando lhes mostrávamos por outros trechos que essas
palavras e locuções são figuradas, não as refutavam com argumentos
procedentes para provar o contrário, mas permaneciam obstinados. Queriam
assim embora sem saber como fazê-lo, comer a carne de Jesus Cristo, não só
espiritualmente, mas ainda materialmente, à maneira dos selvagens guaitaká,
que mastigam e engolem a carne crua.
Na leitura transversa do texto de Léry, dos relacionamentos
entre huguenotes e tupinambás, suas ideologias e utopias, utilizamos o
caminho da correlação tillichiana, como forma de aproximação de nosso
objeto. O método da correlação relaciona polos, o discurso e a interpretação
desse discurso que deve levar em conta a situação daqueles a quem ela se
destina. Situação, aqui, são as formas culturais, éticas e políticas através
das quais as pessoas e grupos exprimem as suas interpretações da existência.
Nesse sentido, o método da correlação possibilita que perguntas venham à
tona, que haja individuação das respostas, permitindo travessias correlatas
às perguntas colocadas pela própria existência.
Lévi-Strauss, quando viveu sua experiência junto aos brasis
nhambiquaras, conta em Tristes Trópicos, publicado em 1955, que,
compenetrado em suas anotações, foi surpreendido por brasis que pegaram
lápis e papel, rabiscaram coisas e depois devolveram a folha. O gesto tinha
uma razão: os nhambiquara queriam que ele lesse o que haviam escrito.
Ler pressupõe algum grau de entendimento não contido no que se
lê. E decifrar não é função meramente visual. É necessário recorrer a algo
mais, acionar uma rede de neurônios para dar sentido ao conjunto de letras e
espaços em branco. Assim, cabe ao escritor fornecer o nível de informação
necessário para que o leitor possa atravessar a mensagem.
Atravessar o texto, arrancar dele significações, é um desafio
que não se resume a ato pessoal, nem se restinge a um curto período de anos.
É nosso pressuposto que o texto de Léry apresenta mais conteúdos do que é
perceptível numa primeira leitura. Aqui há uma dialeticidade que permanece
no equilíbrio de seus contrários, sem solução ou síntese. A necessidade
histórica de atravessar Viagem à terra do Brasil nasce daí, desse processo
construtivo entre ideologia e utopia. Em relação ao texto, a tarefa do
viajante consiste na explicitação da mensagem através de um raciocínio
dirigido e sistematizado. As conclusões nada acrescentam às ideologias e
utopias presentes no texto, pois estavam contidas ali; embora sejam novas
para o viajante. Em si não são diferentes, porque estavam gravadas no
subsolo do texto, que foi atravessado. Mas por ser obra antiga, de época de
transição, as interpretações não se esgotam. Cada novo corte no texto
aprofunda travessias, mas sempre é possível avançar. As interpretações se
sucedem no tempo, mas se situam no mesmo locus.
Cabe ao viajante reconstruir a realidade sociocultural em que o
texto foi construído, caminhando por um labirinto de indagações e respostas
até um porto seguro. Exatamente por isso, partimos do pressuposto de que
Viagem à terra do Brasil possibilita um rico diálogo, que permite
reconstruções das ideologias e utopias de huguenotes e tupinambás. Por essa
razão, tal estudo deve partir do próprio texto, sabendo que quando falamos
de texto nos referimos apenas a um lado da questão, a manifestação do
calvinista Jean de Léry, e nos esquecemos de que estamos diante de um
diálogo, pois todo texto implica em interação, na existência de um outro
personagem, o viajante, que não somente escuta e lê, mas vive.
A questão antropoteológica no processo de travessia de Viagem à
terra do Brasil é determinante, nos leva a um processo desigual e combinado
da leitura, em que elementos se sobrepõem e se complementam. Dentre eles, os
mais fascinantes são as imbricações entre ideologia e utopia. A travessia do
texto exige adequação histórica e linguística. Entretanto, esse conhecimento
não demanda unicamente a apreensão de uma determinada realidade. Faz-se
necessário que a realidade seja apreendida de determinada maneira, consoante
a uma construção de análise e síntese. Como premissa fundante temos que
reconhecer uma justaposição entre conhecimento intuitivo e conhecimento
discursivo. O conhecimento intuitivo faz-se a partir das condições
necessárias para que ele se processe, imediatamente, frente a uma
determinada realidade, ao passo que o discursivo requer passar de algo
conhecido, através de uma série de juízos, à apreensão do ainda não
apreendido. Ao primeiro processo chamamos juízo sintético e ao segundo juízo
analítico.
A travessia não se dá simplesmente como processo de adequação da
mente do viajante ao novo que lhe é apresentado. Impõe-se que o novo,
inerente ao processo cognoscitivo, tenha um sentido. Uma relação em que o
viajante abre trilhas na mata da utopia e o novo se lhe apresenta como
realidade ideológica. Dessa forma, a travessia não se processa entre
realidades ahistóricas, mas em relação espacial e temporal, exigindo, para
que a interação viajante/realidade se estabeleça, que haja algo maior,
alguma coisa além, não causal, mas essencial. No processo da travessia de
Viagem à terra do Brasil, o viajante se encontra em construção, não é pleno
senhor do processo. É um viajante colocado no tempo da medievalidade que
finda e num espaço de experiências novas, que estabelece relação com a
realidade que cerca o texto dentro do processo cognoscitivo enquanto
dimensões históricas de huguenotes e tupinambás.
Dizemos que o viajante do texto de Léry necessita de qualidades
sem as quais os símbolos serão mortos, e o viajante morto para eles. Langer
fala da simbolização como um ato essencial ao pensamento, anterior a ele,
uma necessidade básica da mente. As sensações captadas pelos sentidos são
transformadas em símbolos, ideias que servem para acumular informações de um
jeito pré-raciocinativo, mas não pré-racional. Langer coloca o cérebro como
transformador e a simbolização como o ponto de partida da intelecção. Os
atos são, segundo ela, governados por representações, símbolos de várias
espécies. Somente uma parte do comportamento do viajante é prática. O
restante surge de uma necessidade interna de expressar essas representações
sem a preocupação de satisfazer outras necessidades, exceto a própria ação
do simbólico no cérebro.
Sendo, então, tal capacidade, o simbolizar, fundamental para o
pensar e o agir, quais seriam as qualidades essenciais do viajante para que
construa trilhas sobre o papel de um símbolo? Podemos partir de uma
constatação empírica, a de que a viagem se apresenta através do simbólico,
em níveis de complexidades crescentes, em que aquilo que é evidente só será
visto no caminhar, com densidade na definição dos símbolos e no entendimento
deles. Ou seja, qualquer viagem deve ser feita pelo viajante por inteiro e
não utilizando apenas partes do que é, já que o símbolo faz-se ponte entre
as partes visando a construção de uma totalidade maior.
Na correlação, ato de rodear o texto, a viagem acontece ao redor
dos símbolos e as travessias subjetivas atravessam o caminhar em todo o
tempo.
Torna-se quase impossível a viagem sem entender a travessia
através da empatia com o que se lê, enquanto atração pelas significações
presentes no texto. Essa travessia empática traduz a atração que o viajante
deve ter pelo texto, uma cumplicidade, um amor pelo diálogo a que foi
chamado. Essa correlação empática no diálogo está na atitude de colocar o
texto como momento de uma viagem que extrapola limites, indo além do
momento, atravessando a História. Esse choque empático diante da
significação deslumbra o viajante, criando curiosidade e deslumbramento.
Compreendemos tal postura e acreditamos que nenhum viajante deixará de levar
tal fenômeno em conta, mas a tarefa da travessia está desafiada a
equilibrar-se entre a compreensão desse deslumbramento e a análise dos
componentes simbólicos do texto, responsáveis pela construção do destino, lá
atrás, de huguenotes e tupinambás, já que tal simbolismo visa manter a
ligação com a totalidade de processos históricos e transistóricos.
Compreendemos, assim, que os signos presentes em Viagem à terra
do Brasil são representações construídas pela religiosidade huguenote, que
expuseram os estados mentais da comunidade calvinista estabelecida na França
Antártica. A viagem traduz a totalidade da leitura. Esse processo se
perpetua através da manutenção dos signos por operações mentais e materiais,
conectando os viajantes às culturas de fé e apontando sempre em direção a um
processo histórico e transistórico. Essa terra do Brasil, no processo, se
realiza no tempo presente enquanto expressão ideológica, que possibilita a
construção da consciência do viajante. Permite que o viajante, ao participar
daquela comunidade, ultrapasse a si mesmo, quando pensa, quando age no
caminhar da viagem, quando desfruta das sensações de integração. É um ato
através do qual a comunidade huguenote toma forma e existe, por meio de
movimentos exteriores, de significações, pois o caminhar domina o viajante e
a comunidade de fé huguenote é sua fonte. Há nesse processo um imbricamento
de forças, concepções pessoais e ideologias. Essa é a forma pela qual Viagem
à terra do Brasil se abre ao viajante, através de bases conceituais e da
vida das comunidades huguenotes, mas também daquelas dos tupinambás. Assim,
para que apareça a consciência de tais comunidades é preciso que se produza
uma síntese das consciências particulares, no caso de Jean de Léry e seus
entrevistados, que desencadeia uma multiplicidade de sentimentos, ideias e
significações.
Todo esse processo está localizado num tempo, com dias e
momentos religiosos definidos, e num espaço, numa geografia delimitada à
França Antártica e às aldeias tupinambás do litoral carioca. Tais definições
permitem que a viagem produza um acúmulo de imagens, por uma associação de
ideias e sentimentos, o que subordina o teólogo às ações religiosas das
referidas comunidades. De todas as maneiras, permanece o ato pessoal do
viajante. Essa experiência tão intensa traduz um ponto de vista positivo, de
poder subjetivo. É a travessia empática presente no processo de travessia da
Viagem à terra do Brasil.
Mas se falamos de empatia, há uma segunda travessia nessa
construção, é a espiritualidade do viajante, compreendida como entendimento
que o leva a sentir o que está além do símbolo. E aqui relacionamos símbolo
e estrutura, construindo uma estrutura simbólica, por funcionar como
reorganização estrutural ao nível do psiquismo. Essa reorganização
estrutural possibilita a edificação de processos orgânicos, do psiquismo e
do pensamento, atuando sobre o inconsciente. Ou seja, atua sobre a função
simbólica, e por extensão sobre a fonte da história de huguenotes e
tupinambás e suas ideologias.
E as travessias da empatia e da espiritualidade nos levam a
falar da razão, que analisa, ordena e reconstrói, noutro nível, o símbolo,
mas o faz a partir da empatia e da fé. A travessia da razão cumpre a tarefa
de examinar os símbolos num processo de correlação daquilo que está em cima
e daquilo que está embaixo. Mas não pode fazer isso se a empatia não tiver
lembrado tal relação, se a espiritualidade não tiver chamado à cena o que
estava oculto. Só então a razão, indo além do discurso, se tornará analógica
e o símbolo poderá ser interpretado.
Ao entrarmos na semiologia descobrimos trilhas que procuram
romper com a força das comunidades presentes no texto, favorecendo os
processos simbólicos, entendidos como visões que interpretam o mundo. Mas um
dos problemas é a definição de símbolo. Poderíamos dizer que o símbolo
permite a fusão de ideias e imagens, e que por isso poderia ser interpretado
de muitos modos, por ser uma forma dinâmica de pensamento, que coloca as
ideias em movimento e as mantém nesse movimento. Se for assim, o símbolo é
passível de interpretação, mas não de solução. Ou seja, o símbolo é uma
representação expressiva de algo que em si mesmo está além da esfera da
expressão e comunicação, uma realidade escondida e inexpressível.
Essa definição de símbolo nos remete ao signo, sinal ou marca,
categoria que pode ser subdividida em uma complexa série de associações, em
geral de caráter emocional. Nessas definições podemos ver a ideia de
polivalência dos símbolos, que funcionariam como tijolos numa construção,
como conjunto de classificações cognoscitivas que estabeleceriam a ordem no
universo, mas também dispositivos capazes de despertar e canalizar emoções.
Apesar da importância dos símbolos, as culturas calvinista e
tupi-guarani continuam a ocupar seus espaços como fator emergente que
possibilita a centralidade do ser huguenote e do ser tupinambá, que têm a
oportunidade de se expressarem no diálogo. O ser huguenote e o ser tupinambá
são as matrizes simbólicas de suas comunidades. Essa compreensão nos leva da
ideia de diálogo à ideia de conversa, em que não temos apenas huguenote e
calvinismo, e tupinambá e cultura tupi-guarani, mas a novidade que foi
aberta com a conversa. Nesse contexto, os símbolos passam a ser estudados a
partir daquele que chama à conversa, quer pessoa, quer comunidade. Temos
então a ideia de símbolos multivocais, ou seja, passíveis de significações,
mas ancorados numa nova estrutura, a partir de canais de comunicação
expressos na relação entre huguenote/calvinismo e tupinambá/cultura
tupi-guarani, representações que traduzem a ordem temporal da estrutura.
Essa nova compreensão da estrutura como trindade simbólica nos
remete àquele que abre a conversa a partir de sua manifestação. Nesse
sentido, a palavra civilizatória de Léry, agora texto, sintetiza essa
manifestação e, por isso, deve ser entendida como elemento que possibilita
as travessias da empatia, da espiritualidade, da razão e da cultura.
Essas travessias subjetivas fundamentam a natureza genética da
viagem, que se encontra em constante devir. Dessa maneira, ideologia e
utopia estão intimamente ligadas à viagem, enquanto palavra civilizatória e
construção histórica e social. Assim, compreendemos que, dependendo da
utilização de determinado objeto ou realidade, o tupinambá conhece de
determinada forma e no processo pode construir conceitos diferentes a partir
de um objeto ou realidade anteriores. Podemos inferir ao que isso conduz. A
ancestralidade civilizadora tupi-guarani, por exemplo, está ligada à vida do
tupinambá, já que será tal experiência que agregará valor ao objeto ou
realidade conhecidos e vividos. Dessa maneira, uma universalidade
transcende, a partir da própria experiência de vida.
Mas ainda não definimos a importância da ideologia e da utopia
dentro do processo do mundo mágico da ancestralidade. Se a ancestralidade é
histórica, é importante notar que a própria ancestralidade age sobre a vida
tupinambá, sobre a historicidade tupi-guarani. E mais do que isso, ao
definir a historicidade tupi-guarani muda o próprio meio onde o tupinambá
vive e atua. Dessa forma, a ancestralidade cria processos de idealizações,
escalas de valores, normas e condicionamentos. E é aí que reside a
problemática da ancestralidade enquanto conhecimento: como o tupinambá a
partir da ancestralidade civilizadora pode conhecer seu propósito e dar um
sentido ao mundo que o cerca?
Terceiro Capítulo
Há somente sulcos no mar
A verdade da ancestralidade civilizadora é a ideologia que uma
determinada realidade tem para a comunidade tupi-guarani e para o tupinambá.
Há uma construção ideológica, quando a experiência civilizadora produz uma
interação entre o tupinambá e a ancestralidade, sem que essa experiência
necessariamente influa no processo discursivo de conhecimento. Mas mesmo
nesse caso o tupinambá não abandona ou perde sua formação. Não deixa de ser
aquilo que é: tupinambá inserido na cultura tupi-guarani. Mesmo quando esse
processo dá-se em um nível superior, instantaneamente, sem elaboração
discursiva, o tupinambá está condicionado pela historicidade ideológica. E
dentro dessa condicionante sempre se processa a interação
tupinambá/realidade. Aqui, sentimentos e afetividades, que geralmente passam
despercebidos, são realçados. Isso porque, nesse momento específico,
determinada realidade passa a ter ideologia. E nesse caso o conhecimento da
ancestralidade civilizadora faz do tupinambá ser utópico. Assim, a
ancestralidade civilizadora dá ao tupinambá uma ideologia. O tupinambá,
enquanto pessoa e comunidade, através da ancestralidade civilizadora, passa
a estar dotado de ideologia, mas ao mesmo tempo esse conhecimento, essa
ideologia dada, não se dá sem história, mas dentro das limitações de sua
própria obediência. Podemos, então, concluir que a partir da ancestralidade
civilizadora o tupinambá é significante ideológico na construção da
comunidade, pois através do conhecimento da ancestralidade civilizadora é
ele quem historicamente pode modificar causas e efeitos, imprimindo ao
processo nova direção.
Mas como se processa a relação entre ideologia e utopia, quer no
caso isolado da interação entre tupinambá e realidade, quer no caso de todo
o processo simbólico da ancestralidade civilizadora? Se dentro do
conhecimento da ancestralidade o tupinambá é significante ideológico,
podemos, então, ver que a escala de valores do sistema ético, oferecido pela
ancestralidade à comunidade, é parte integrante de conteúdos utópicos dados
ao mundo tupi-guarani pela própria ancestralidade civilizadora. Donde,
dentro de uma correlação ideologia-utopia, existem elementos dinâmicos de
transformação.
A mata é o mundo do tupinambá. Nesse sentido, aí ele constrói
seu habitat. Dessa forma, através da ideologia dada pelo tupinambá à
natureza, enquanto domínio e expansão, dentro de uma ideologia de utilização
que lhe empresta, atua sobre ela, produzindo cultura e transformação.
Partimos da definição de Claude Lévi-Strauss de que a cultura é o conjunto
integrado de costumes, aptidões, hábitos, instituições e crenças, como a
ancestralidade, presente na comunidade.
Existem nessa definição duas ordens de fatos ligados à teologia
da cultura, uma que diz respeito ao que construímos a partir de ideologias e
utopias; e, de outra parte, todo o universo onde vivemos enquanto membros de
uma comunidade. O viajante, armado de um caminhar teológico, procura fazer
na ordem da cultura trilhas através das necessidades fundamentais e das
necessidades cujas origens estão nas ideologias e nas utopias e, por isso,
idênticas no seio da espécie Homo sapiens. Ao viajante que se faz teólogo da
cultura, interessa o geral, mas não pode esquecer as modulações, diferentes
segundo as comunidades e as épocas, que se impuseram a uma matéria-prima,
por definição, sempre idêntica e presente em todos os lugares.
Para o viajante, um dos centros de discussão é a linguagem, pois
ela faz a ponte entre as características e necessidades estruturais do Homo
sapiens e o fato cultural. É uma característica, uma aptidão que vem da
tradição externa, mas ao mesmo tempo é instrumento essencial, o meio
privilegiado que dá possibilidade à realização do Homo sapiens. Mas, ao
mesmo tempo em que é manifestação da ordem cultural e, nesse sentido,
manifestação histórica, permite o estabelecimento de um relacionamento entre
a pessoa e sua historicidade.
No entanto, o uso da linguagem é mais complexo quando se trata
da espiritualidade do que em relação a outras formas estéticas, já que usa e
combina não somente elementos fornecidos pela linguagem propriamente dita,
mas também elementos brutos, que estariam no plano da natureza, mas não
culturalizados.
A ancestralidade civilizadora – e o tupinambá faz parte dela –
não pode ser identificada apenas como expressão daquilo que é ancestral, nem
somente com os estados que provoca no tupinambá. Cada estado de consciência
subjetiva tem algo de pessoal e momentâneo que o torna inapreensível e
incomunicável em seu conjunto, mas a ancestralidade está destinada a servir
de intermediária entre tupinambá e cultura tupi-guarani.
A linguagem enquanto representação da ancestralidade
civilizadora no mundo sensível, sem nenhuma restrição, é acessível à
percepção. Mas, ainda assim, não podemos reduzir a ancestralidade
civilizadora à linguagem, pois acontece que a ancestralidade civilizadora,
deslocando-se no espaço e no tempo, muda de aspecto e reformata conteúdos. A
linguagem da ancestralidade traduz na maioria das vezes apenas a utopia, que
na consciência da cultura tupi-guarani corresponde a uma significação, dada
pelo que tem de comum os estados subjetivos provocados pela linguagem nos
membros da comunidade.
Além desse núcleo central, pertencente à consciência
tupi-guarani, há em todo ato de percepção da ancestralidade elementos
psíquicos subjetivos, que podem ser entendidos como fatores associativos de
percepção emocional e estética. Tais elementos subjetivos podem, por sua
vez, ser objetivados, mas somente na medida em que sua qualidade geral ou
sua quantidade são determinadas pelo núcleo central, situado na consciência
da comunidade. Quanto às diferenças qualitativas, é evidente que a
quantidade de representações e emoções subjetivas é mais considerável numa
ancestralidade em construção do que naquela que já foi conscientizada
coletivamente. O primeiro momento da construção da ancestralidade deixa a
cargo do tupinambá imaginar quase toda a contextura do tema, enquanto que a
ancestralidade conscientizada pela comunidade tupi-guarani suprime quase por
completo a liberdade de suas associações subjetivas pela enunciação concisa.
É dessa maneira que, indiretamente, através do núcleo
pertencente à consciência tupi-guarani, que os conteúdos subjetivos do
estado psíquico do tupinambá perceptor adquirem um caráter objetivamente
semiológico, similar ao que têm as significações acessórias de uma palavra.
Ao negarmos a relação existente entre a ancestralidade civilizadora e um
estado psíquico subjetivo rejeitamos a realidade estética da ancestralidade.
Sem esses conteúdos, emocional e estético, a ancestralidade pode no máximo
atingir uma objetivação indireta na qualidade de significação acessória
potencial. Porém, não podemos dizer que esses conteúdos, emocional e
estético, fazem necessariamente parte da percepção da ancestralidade, mas,
sem dúvida, no processo progressivo da ancestralidade há épocas em que esses
conteúdos tendem a reforçá-la, assim com há outras épocas em que perdem
força ou mesmo, aparentemente, desaparecem.
3.1 – À senda não se volta
É no contexto dos fenômenos sociais que a ancestralidade,
enquanto fenômeno social distintivo, é capaz de caracterizar e representar
época e história. Não podemos confundir história da ancestralidade com
história da cultura tupi-guarani, pois essa história acontece como
subconjunto da história da ancestralidade. É verdade que a relação entre
ancestralidade e contexto social muitas vezes nos parece mal-amarrada.
Quando dizemos que a ancestralidade civilizadora visa a transformação
definitiva do contexto social, não afirmamos com isso que ela coincide
necessariamente com ele, mas que, como signo, tem sempre uma relação
indireta com o contexto social, mesmo enquanto metáfora. Assim, da natureza
semiológica da ancestralidade decorre que jamais uma ancestralidade
específica deve ser explorada como documento histórico ou sociológico sem a
interpretação prévia de seu valor documentário ou da qualidade de sua
relação com o contexto dado de fenômenos sociais.
Dessa maneira, o estudo objetivo dos fenômenos ideológicos e
utópicos da ancestralidade deve considerar cada herói civilizador específico
como um signo composto de símbolo sensível criado pela ancestralidade; de
uma significação estética e emocional depositada na consciência da
comunidade; e de uma relação com a realidade da utopia, que projeta a
comunidade no futuro. O segundo desses componentes contém a estrutura
propriamente dita da ancestralidade.
É por isso que dizemos que a ancestralidade tem a função de
utopia autônoma. Mas, ao lado da função de utopia autônoma, a ancestralidade
tem ainda a função de utopia comunicativa. Assim, uma ancestralidade dada
não funciona somente como ancestralidade, mas também como fala que exprime
um estado da vida, pensamento, emoção etc. A ancestralidade tem, portanto,
uma dupla função utópica, autônoma e comunicativa. Por isso, vemos aparecer
no movimento progressivo da ancestralidade a antinomia dialética da função
de utopia autônoma e de utopia comunicativa.
É lógico que não podemos separar ou opor tupinambá e cultura
tupi-guarani. Se entendermos por ancestralidade o conjunto das manifestações
dos heróis civilizadores em determinado universo vivido, é claro que a
cultura tupi-guarani faz parte do tupinambá e não somente o tupinambá da
cultura tupi-guarani. Quando opomos tupinambá e cultura tupi-guarani,
tomamos o termo tupinambá num sentido restrito, de conteúdo apriorístico.
Mas tupinambá e cultura tupi-guarani se antepõem porque a cultura
tupi-guarani não provém do conteúdo apriorístico, mas da tradição externa.
Podemos dizer que existem tupinambás, que esses tupinambás falam, estão
organizados em comunidades que se distinguem uma das outras, tudo isso é
parte da cultura tupi-guarani, e mais do que isso, é particularidade e
diversidade dessa cultura tupi-guarani.
A simbologia da ancestralidade, enquanto correlação entre
ideologia e utopia, é dialética, pois se é ela que faz o tupinambá e a
cultura tupi-guarani projetar a utopia, como, por exemplo, a caminhada em
direção à Yvy marã’ei, terra-sem-mal, permite ao tupinambá e sua comunidade
transferir ao mundo que o cerca a cosmovisão que utiliza essa mesma
significação. Ao fazer utopia a realidade da caminhada, o tupinambá dá
origem a transformações, engendra causas e passa à construção do futuro, já
não como utopia, mas como realidade. Para viabilizar tais transformações é
necessário que apresente, enquanto comunidade, novas ideologias aos
processos históricos e sociais. Assim, através da correlação estabelecida
entre ideologia e utopia encontraremos as causas de conotações.
Para Derrida, a metáfora é perda provisória de sentido, mas é
história que visa o horizonte da reapropriação circular do sentido próprio.
É por isso que a metáfora é ameaçadora e estranha ao olhar e ao contato, ao
conceito e à consciência. Mas é cúmplice do que a ameaça, na medida em que o
desvio é um regresso guiado pela função de semelhança.
Mas o que mais nos maravilhava nessas brasileiras era o fato de
que, não obstante não pintarem o corpo, braços, coxas e pernas como os
homens, nem se cobrissem de penas, nunca pudemos conseguir que se vestissem,
embora muitas vezes lhes déssemos vestidos de chita e camisas. Os homens,
como já dissemos, ainda se vestiam por vezes, mas elas não queriam nada
sobre o corpo e creio que não mudaram de ideia. Em verdade, alegavam, para
justificar sua nudez, que não podiam dispensar os banhos e lhes era difícil
despir-se tão amiúde, pois em quanta fonte ou rio encontravam, metiam-se
n’água, molhavam a cabeça e mergulhavam o corpo como caniços, não raro mais
de doze vezes por dia. Suas razões eram plausíveis e quaisquer esforços para
convencê-las do contrário foram aliás inúteis. E tão forte era esse hábito e
tanto se deleitavam com a nudez que não só se obstinavam em não se vestir as
mulheres dos tupinambás, que viviam no continente em plena liberdade, com
seus maridos e parentes, mas ainda as próprias prisioneiras de guerra, que
compráramos, e conservávamos no forte para trabalhar; embora as cobríssemos
a força, despiam-se às escondidas ao cair da noite e passeavam nuas pela
ilha, por mero prazer. E se não fossem obrigadas a chicote, preferiam sofrer
o calor do sol e esfolar o corpo na condução contínua de terra e pedras a
suportar sobre a pele o mais simples objeto.
Donde a hipótese maior é esta: a vida existe enquanto
extremidade do caos. Fundamental nessa discussão é entender como e porque as
fundações da religiosidade calvinista foram abaladas pela cultura tupinambá,
apesar do discurso teológico e textual aparentemente permanecer incólume.
Uma das deficiências da leitura linar foi a dificuldade para entender que os
huguenotes no ambiente cultural tupinambá caminharam para a reconstrução de
suas fundações, embora tal reconstrução surgisse como metáfora, como perda
provisória de sentido.
Embora os franceses vissem os brasis nus, nada mais estranho
para os tupinambás tal ideia. Não sentiam necessidade de cobrir o corpo, já
que as pinturas corporais funcionavam como código social: cada uma delas
indicava uma situação específica, de nascimento de filhos, guerra, lutos.
Para os tupinambás, o código presente em cada pintura informava sobre seu
estado e sua condição. Coisa que as roupas dos franceses não fazia.
Facilitava, também, a comunicação entre tribos que não falavam a mesma
língua. Isso porque os brasis não se pintavam por pintar, mas usavam padrões
baseados na natureza, a espinha do peixe, a casca de jabuti, os rastos da
cobra, do veado e da onça.
Assim, ao discutir o encontro entre huguenotes e tupinambás
devemos levar em conta que há rastros de metafísica nas palavras de Léry:
entender é um exemplo disso. Entender algo é não agarrar alguma coisa
superficialmente. O ato cognitivo envolve apreensão dentro de condições de
superfície e relativos à profundidade. A distinção entre informação e
entendimento é muito complexa. No domínio em que as pessoas pensam em
informação devemos falar de sobrecarga de informação. Entender é um modo de
organizar e estruturar a informação. É crucial compreender o poder das
interpretações que criaram grades culturais para huguenotes e tupinambás.
Essas grades culturais proveram vigamentos interpretativos que nem sempre
criaram possibilidades de compreensão das informações recebidas.
No caso que estamos analisando, temos dois mundos. Um é o mundo
medieval reformado: o mundo do texto de Jean de Léry, tal como o recebemos.
É um mundo platônico, no qual o assunto percebido é colocado num nível
agradável de fundação. Esse mundo está presente, mas também está acima, é
ideológico. Esse modelo se torna um modo de saber. Quando começamos a
conceber algo, concebemos figurando em termos de modelo. Através do
contraste descrevemos um mundo no qual um modelo diferente predomina. Temos
interações de planos, modelos e processos. Viagem à terra do Brasil, assim
entendido, pode ser chamado de local de consumo da ideologia reformada. Mas
uma estrutura não é aquilo que alguém busca, pois as correlações entre
huguenotes e tupinambás enfatizam movimento, transferência mútua e troca de
informação.
Os modelos hermenêuticos de que falamos não são apenas
conceituais, pois o conhecimento utópico da Viagem à terra do Brasil emerge
de uma interação entre entendimento e as formas de fé, que são filtros
através dos quais a informação foi processada. Essas categorias devem ser
vistas como universais. Quando Jean de Léry pensa tais categorias como um
vigamento de interpretação, em processo de formação, deformação e reforma,
estamos diante de um salto epistemológico. Começamos então a ver os modos
como se processaram a experiência, em que o conhecimento foi constituído em
fluxo constante. Não é apenas uma questão de como Léry pensava, é uma
questão de como via, ouvia e temia. O ponto em que se faz a troca também é
uma questão importante. Ao invés de falar de um local de origem, Viagem à
terra do Brasil deve ser entendido como constituído dentro e pelas redes de
troca no qual está imbricado. É um tipo complexo de reversão. Pensando
nessas estruturas como criadas por uma situação original, temos que pensar
no encontro como função das redes estruturais nas quais estava situado.
Essas redes estruturais levam a diferentes tipos de formas, podem ser
culturais, econômicas, religiosas, sociais. Entender o encontro de Léry com
os tupinambás como constituído por redes de troca é muito importante.
Todas as partes do corpo, inclusive as tripas, depois de bem
lavadas, são colocadas no moquém, em torno do qual as mulheres,
principalmente as gulosas velhas, se reúnem para recolher a gordura que
escorre pelas varas dessas grandes e altas grelhas de madeira; e exortando
os homens a procederem de modo que elas tenham sempre tais petiscos, lambem
os dedos e dizem: iguatu, o que quer dizer “está muito bom”.
3.2 – Não se volta a pisar
A metáfora do jaguar é uma das imagens mais ricas na discussão
da originalidade da antropofagia tupinambá. No diálogo entre o chefe
tupinambá Cunhambebe e Hans Staden, quando o chefe dos arawetés se deliciava
diante de um cesto de carne humana, ele perguntou se não gostaria de
participar do repasto. Staden disse: "Um animal irracional não come um outro
parceiro, e um homem deve devorar um outro homem?". O tupinambá retrucou:
"Jauára ichê" – sou jaguar.
A resposta de Cunhambebe é uma metáfora. Para o guerreiro ele
era um jaguar a devorar a perna de um inimigo. Claro está, alerta Viveiros
de Castro, que era um jaguar possuidor da tecnologia do fogo, já que comia
carne moqueada. Mas o importante aqui era que Cunhambebe não comia um
semelhante e nem carne crua.
A sua antropofagia era um tornar-se fera, mas com a posse e o
domínio do fogo. O modo de falar de Cunhambebe determinava seu modo de
comer, que era modo de pensar; tornar-se jaguar, além disso, parece, mais
uma qualidade do ato, não do sujeito.
A metáfora de Cunhambebe mostra um aspecto importante da
originalidade antropofágica: o guerreiro se faz animal carnívoro. E a
metáfora traduz elementos sobre o jaguar na cultura tupi-guarani. Aqui,
jaguar e tupinambá são realidades que se confrontam, mas se relacionam. O
jaguar come pessoas, come carne, mas nem sempre o tupinambá consegue comer o
jaguar.
A originalidade consiste em que o guerreiro não pode ser
influenciado por nada diferente da relação jaguar/tupinambá. O
jaguar-metáfora é perda provisória de sentido, mas é história que visa o
horizonte da reapropriação do próprio sentido. A originalidade da
antropofagia define a liberdade como autonomia que não recebe a lei de
outro. A impossibilidade da troca da heteronomia huguenote pela autonomia
tupinambá exige troca de condicionamento: significou não receber a lei de
outro alguém, mas procurar a lei na internalidade da própria cultura
tupi-guarani. Por isso, a metáfora se mostrou estranha ao olhar e ao
contato, ao conceito e à consciência huguenote. Isso quer dizer que o gesto
livre do jaguar/tupinambá é algo não determinado ou que se exclui. Esse é o
centro referencial da noção de liberdade na antropofagia tupinambá.
É interessante ver que a antropofagia tupinambá tinha sido
privilegiada, um pouco antes, pelos próprios huguenotes, como opção diante
da controvérsia eucarística sobre a presença real do corpo e do sangue de
Jesus no pão e vinho servidos na Ceia. A discordância dos huguenotes diante
do sacramento católico levou-os “a optar pela fúria canibal dos tupinambá à
antropofagia da transubstanciação praticada pelos papistas”, abandonando o
espaço geográfico da França Antártica recém plantada e instalando-se nas
aldeias da região.
CONCLUSÃO
Nesses rastros de leituras caminhamos a partir da teologia da
cultura e da hermenêutica da complexidade, mas entendemos que as relações
entre huguenotes e tupinambás estavam e sempre estiveram abertas ao fogo das
ideologias, ou seja, a um conjunto de ideias orientado para as ações
culturais e religiosas. É um conceito que remete aos processos pelos quais o
sentido é produzido, contestado e transformado, por isso nos preocupamos em
teorizar os processos de produção de sentido dessas correlações como
realidades culturais e religiosas de huguenotes e tupinambás. Daí que nossa
busca hermenêutica se correlacionou com outras formas de interpretação, como
a crítica cultural, a crítica sociológica e a crítica ética.
Fizemos leituras em três dimensões: a relação entre a linguagem
e a produção de sentido; os diferentes discursos presentes no texto de Léry;
e a natureza das relações de poder entre huguenotes e tupinambás. A partir
dessas leituras vimos como Léry construiu Viagem à terra do Brasil dentro
das realidades ideológicas e utópicas huguenotes.
A partir da hermenêutica da crítica ideológica levamos em conta
que a consciência de huguenotes e tupinambás foi sempre cultural, histórica
e social, e sofreu influência das condições concretas da existência em
terras brasileiras. Isso significa que as ideias nem sempre representavam a
realidade exatamente como ela era, mas que por causa das determinações
culturais, históricas e sociais nos apresentaram essa realidade de forma
distorcida. Daí a necessidade de trabalhar com a hermenêutica da crítica
ideológica, para descobrir as ideologias que se confrontaram na produção dos
encontros e confrontos entre huguenotes e tupinambás e, em especial, nas
leituras interpretativas huguenotes.
A tarefa do caminhante, para Ricoeur, na crítica das ideologias
é desmascarar os interesses que impedem a realização da pessoa e pautar a
construção da linguagem sem limite e coação. Habermas, citado por Ricoeur,
apresenta três interesses como constitutivos desse processo: o interesse
técnico, baseado no conhecimento empírico-analítico; o interesse prático,
que constrói a esfera da comunicação a partir do conhecimento
histórico-hermenêutico; e o interesse pela emancipação, constituído pelo
conhecimento social crítico. Aqui partimos da hermenêutica
histórico-crítica, o que nos possibilitou entender que o interesse pela
liberdade funcionou para Léry e para os tupinambás como mola propulsora do
encontro e, também, dos desencontros. Assim, situamos a base de atuação dos
encontros/desencontros na comunicação. Foi no reconhecimento desse espaço
que se constituiu a ideia reguladora da conversa livre da dominação entre
Léry e os tupinambás. Ora, a comunicação, herança cultural de franceses e
tupi-guaranis, foi criada e recriada pelas realidades da ideologia e da
utopia. O ideal da comunicação de ambas as culturas nada mais era do que uma
antecipação. Ou, como entendeu Habermas:
Não podemos antecipar simplesmente no vazio, um dos lugares da
exemplificação do ideal da comunicação é justamente nossa capacidade de
vencer a distância cultural na interpretação das obras recebidas do passado.
É bem provável que quem não é capaz de reinterpretar seu passado, também não
seja capaz de projetar concretamente seu interesse pela emancipação.
Partindo de Heidegger, quando fala dos poetas, podemos dizer que
o teólogo da cultura diante desses encontros e desencontros deve ser o vigia
da casa do ser, daquilo que eram huguenotes e tupinambás. Por isso, as
interpretações do texto de Léry devem ser ações de vigiar a casa do ser,
sabendo não ser huguenote ou tupinambá. Caminhar não é explicar nem
analisar, é conduzir à conversa poética, onde o real se manifesta na sua
verdade dialógica. A caminhada não substitui a obra da ancestralidade, a
matrifocalidade, nem a antropofagia, mas possibilita a conversa. O teólogo
da cultura não salvaguarda o mundo que a obra da ancestralidade,
matrifocalidade e antropofagia abriu, mas salvaguarda a abertura de mundo.
Salvaguardar a abertura de mundo manifesta a obra da ancestralidade,
matrifocalidade e antropofagia como vigor de ter sido. Assim, a leitura da
teologia da cultura é acontecer que não se propõe, criticamente, como a
única verdadeira.
Ancestralidade, matrifocalidade e antropofagia esconderam
ideologias, fossem elas as predominantes na comunidade tupinambá ou aquelas
que se encontravam à margem. Ora, a tendência daqueles que produzem ideias é
separarem-se dos que produzem coisas e, à medida que ancestralidade,
matrifocalidade e antropofagia vão ficando cada vez mais distantes, quem se
debruça sobre o texto de Léry começa a acreditar que a consciência e o
pensamento estão, em si e por si mesmos, separados das coisas materiais,
existindo em si e por si mesmos. Esse é um perigo presente na leitura de
Viagem à terra do Basil, já que os caminhantes, devido à ideologia, tendem a
acreditar na independência entre consciência e mundo material. Surge, então,
a compreensão do texto como leitura predominantemente ideológica.
Assim, a ideologia torna-se ideologia quando aparece como
explicação ideal das comunidades huguenote e tupinambá. A ideologia parte de
um processo de distorção ou dissimulação, quando exprime uma situação, sem a
conhecer de fato. A ideologia surge quando desloca as realidades da
ancestralidade, matrifocalidade e antropofagia e apresenta ideias descoladas
delas sobre o tupinambá. Esse tipo de leitura apoia-se em hermenêuticas que
possibilitam imagens de ocultamento da realidade comum, apresentando uma
lógica ideológica de dominação social e política. Por isso, ao fazer a
Viagem à terra do Basil, somos chamados à conversa com o lado de ocultamento
da ideologia, mas também a escutar a voz do real utópico na palavra da
ancestralidade, da matrifocalidade e da antropofagia. Nessa escuta, que
advém da apropriação do que somos, o teólogo da cultura não está preso a uma
mediação definida, mas conversa sem definir limites. O teólogo da cultura
abre-se, então, para a escuta e o sentido do ser enquanto ethos.
Esse abrir-se implica em leituras e não um exteriorizar-se
diante do texto. Não consiste numa contemplação externa ou interna, mas num
abrir-se para a vigência do real ideológico e utópico, construtor da
imaginação social, pela qual se dão, nas leituras, experiências com a
ancestralidade, matrifocalidade e antropofagia. E, assim, quem advém é o
real ideológico e utópico como mundo. Experienciar a verdade do real
ideológico e utópico como mundo é, então, apropriar-se do que nos é próprio.
Ou, como cantou o poeta sevilhano António Machado:
Caminante, son tus huellas / el camino, y nada más; / caminante,
no hay camino, / se hace camino al andar. / Al andar se hace camino, / y al
volver la vista atrás / se ve la senda que nunca / se ha de volver a pisar.
/ Caminante, no hay camino, / sino estelas en el mar.
A apropriação se dá nos limites da travessia. Fazer teologia da
cultura, dessa maneira, na leitura da Viagem à terra do Brasil, é vivenciar
a experiência de ser huguenote e de ser tupinambá. Ser é o apropriar-se em
toda travessia do vigor de ter sido. Por ter sido huguenote e tupinambá nas
leituras transversas da Viagem à terra do Brasil é que podemos nos projetar
nos caminhos da viagem. Por isso, os encontros/desencontros nas leituras da
Viagem à terra do Brasil colocam a questão da viagem como possibilidades e
sentidos. É sempre uma travessia.
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BIBLIOGRAFIA
Documentos históricos e comentários
Esta bibliografia – textos em francês – foi levantada e
pesquisada a partir de historiadores franceses que trabalham com o tema, em
especial por Frank Lestringant, mas também por Jean-François Zorn, que me
levou a textos históricos não citados anteriormente e presentes na
biblioteca da Faculté Protestante de Théologie de Montpellier e nos Archives
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Gouverneur de Berry par ung ministre dudit Sancerre nomme de Lery comme
ensuit – Aix-en-Provence. Bibliothèque Méjanes. Ms. 445 (308-R-472) pièce
n.º 68, p. 333-343. – O manuscrito é o esboço do futuro capítulo X da
Histoire memorable de la ville de Sancerre.
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Contenant les Entreprinses, Siege, Approches, Bateries, Assaux et autres
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et delivrance notable des assiegez. Le nombre des coups de Canons par
journees distinguees. Le catalogue des morts et blessez à la guerre, sont à
la fin du livre.
______ (Genève: 1574. In-8º de 253 p.). Bibliotèque nationale de
France: Tolbiac – Rez-de-jardin – magasin: 8- LB33- 350 (A) support imprimé.
Reedição anotada por Géralde Nakam sob o título: Au lendemain de la
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Rez de jardin – Magasin/ LB33-386, Tolbiac – Rez de jardin – Magasin/
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8- LB33 – 388/ Tolbiac – Rez-de-jardin – magasin MFICHE 8- LB33- 388/
Tolbiac – Haut-de-jardin – communication en banque de salle P89/331;
Bibliothèque municipale, Avignon, Vaucluse: Cote et fonds 8° 19282,
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Médiathèque municipale Jean Lévy. Lille, Nord: Cote et fonds: 9474, Fonds
ancien avant 1952.; Bibliothèque nationale de France: Cote et fonds:
4-OI-34, Tolbiac - Rez de jardin – Magasin/ 4-H-4168 (1), Arsenal – Magasin/
Ms. Rothschild-4 (6, 102), Richelieu – Manuscrits occidentaux – Magasin; (?)
(1874) / Tolbiac – Haut-de-jardin – communication en banque de salle
P90/1053/ Tolbiac – Rez-de-jardin – magasin MFICHE 8- OI- 199/ Tolbiac –
Rez-de-jardin – magasin 8- OI- 199/ Tolbiac – Rez-dejardin – magasin Z
RENAN- 3327; Bibliothèque Méjanes. Aix-en-Provence, Bouchesdu-Rhône: Cote et
fonds: F. 1487, Impr. 1500-1900/ P. 4206, Pécoul.
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eucharestiae, traditions, ab eius Ministris in Francia Antarctica euulgatae
responsiones. Biblioteca Nacional: Classificação: 230.42 Localização:
22,5,10. Sigla do Acervo: DRG; Bibliothèque municipale Auxerre, Yonne: Cote
et fonds A 2551 4°, Registres: Bibliothèque municipale. Section d’études et
d’information. Grenoble, Isère: Cote et fonds F.14367, CGA; Bibliothèque
municipale Versailles, Yvelines: Cote et fonds F.A. in-4 O 11 h, VE2 / F.A.
in-4 O 11 h, ancien; Bibliothèque nationale de France: D-5950 (1), Tolbiac -
Rez de jardin – Magasin / D-88601 (1), Tolbiac – Rez de jardin – Magasin /
MFICHE D-88601 (1), Tolbiac – Rez de jardin – Magasin /P94/4241, Tolbiac –
Haut de jardin – communication en banque de salle.
______ (1553). Bello melitensi ad Carolum caesarem. Biblioteca
Nacional: Classificação: 945.85. Localização: Obras Raras/121,02,18, n. 2.
Sigla do Acervo: OR (exemplar danificado); Bibliothèque Méjanes.
Aix-en-Provence, Bouches-du-Rhône: Cote et fonds: P. 9292, Pécoul/ Cote et
fonds D. 6484, Impr. 1500-1900; Bibliothèque municipale. Section d’études et
d’information. Grenoble, Isère: Cote et fonds : F.18020 Rés., CGA;
Bibliothèque nationale de France: Cote et fonds: RES-H-1615, Tolbiac Rez de
jardin – Magasin/ K-4474, Tolbiac – Rez de jardin – Magasin/ K-3606, Tolbiac
– Rez- de jardin – Magasin / 4-LL11-1, Tolbiac – Rez de jardin – Magasin.
______ (1553). Bello melitensi, [et] eius eventu Francis
imposito, ad Carolu[m] Caesarem V. Nicolai Villagagnonis... Biblioteca
Nacional. Classificação: 945.85. Localização: Obras Raras, Sigla do Acervo:
OR; Bibliothèque nationale de France: Cote et fonds K-3605 (1), Tolbiac -
Rez de jardin – Magasin/ MFILM K-3605 (1), Tolbiac – Rez de jardin – Magasin
/ 4-H-2778 (6), Arsenal – Magasin.
______ (1561). De Coenae contriversiae Philippi Melanchthonis
judicio. Ad serenissimum Ferdinandum Caesarem semper Augustum, et as
illustrissimos sacri imperii Electores, Per Nicolaum Villegagnonem equitem
Rhodium Francum – Paris: Andrpe Wechel, In-4º de 121. p. Bibliothèque
municipale Versailles, Yvelines: Cote et fonds: F.A. in-12 O 62 h, VE2 /
F.A. in-12 O 62 h, ancien; Bibliothèque nationale de France: Cote et fonds
D-5950 (2), Tolbiac – Rez de jardin – Magasin/ D-88601 (2), Tolbiac – Rez de
jardin – Magasin / MFICHE D-88601 (2), Tolbiac – Rez de jardin – Magasin
/P94/4242, Tolbiac – Haut de jardin – communication en banque de salle.
______ (1561). Responce par le Chevalier de Villegaignon aux
Remonstrances faictes à la Royne mere du Roy. Paris, André Wechel:
Bibliothèque nationale de France: Cote et fonds – Tolbiac – Rez-de-jardin –
magasin LB33-19/ Tolbiac – Haut-de-jardin – communication en banque de salle
P94/4107/ Tolbiac – Rez-de-jardin – magasin MFICHE LB33 – 19/ Tolbiac –
Rez-de-jardin – magasin 4- LB33- 19; Bibliothèque municipale, Avignon,
Vaucluse: Cote et fonds – 8° 19282, Théologie; Bibliothèque municipale.
Lyon, Rhône: Cote et fonds - 325269, CGA; Bibliothèque Méjanes.
Aix-en-Provence, Bouches-du-Rhône: Cote et fonds - 8° 4385, Impr. 1500-1987.
______ (1563). De Venerandissimo ecclesiae sacrificio...
Bibliothèque municipale Versailles, Yvelines: Cote et fonds: F.A. in-12 O 62
h, VE2 / F.A. in-12 O 62 h, ancien.
______ (1562). De Venerandissimo ecclesiae sacrificio ad
Ludovicum Herquivillerum regium in senatu Parisiensi consiliarum; per
Nicolaum Villagagnonem... Médiathèque municipale Jean Lévy, Lille, Nord:
Cote et fonds 42504, Fonds ancien avant1952; Bibliothèque Nationale de
France: Cote et fonds D-88601 (4), Tolbiac – Rez de jardin – Magasin/ D-5971
(2), Tolbiac V Rez de jardin – Magasin / MFICHE D-88601 (4), Tolbiac – Rez
de jardin – Magasin/ P94/4244, Tolbiac – Haut de jardin – communication en
banque de salle.
______ (1561). Lettres sur les remonstrances etc. Bibliothèque
municipale, Avignon, Vaucluse: Cote et fonds 8° 19282, Théologie.
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résolution des sacremens, de Maistre Jehan Calvin, Ministre de Geneve.
Bibliotèque municipale Dijon, Côte d’Or: Cote et fonds 9071, CGA;
Bibliothèque municipale. Lyon, Rhône: Cote et fonds 338734(2), CGA; (1562)
Bibliothèque municipale. Lyon, Rhône: Cote et fonds - 325273, CGA.
______ (1561). Paraphrase sur la resolution des sacremens de
Calvin. Bibliothèque municipale, Avignon, Vaucluse: Cote et fonds 8° 19281,
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______ (1560). Articulos Calvinianae traditionis de Eucharistia
responsiones. Bibliothèque municipale, Avignon, Vaucluse: Cote et fonds 8°
20974, Théologie (Mais duas edições de 1562).
______ (1569). De Consecratione, mystico Sacrificio, et Duplici
Christi oblatione adversus Vannium Lutherologiae profefsorum etc... a
Nicolao Villagagnone. Bibliothèque municipale. Section d’études et
d’information. Grenoble, Isère: Cote et fonds F.14381, CGA; Bibliothèque
nationale de France: Cote et fonds D-21979, Tolbiac – Rez de jardin –
Magasin; Bibliothèque Méjanes. Aix-en-Provence, Bouches-du-Rhône: Cote et
fonds 8° 7190, Impr. 1500-1987.
______ (1563). D. Nicolai Villagagnonis... adversus novitiu [m]
Calvini, Melanchthonis, atq [ue] id genus sectatioru [m] dogma de Sacramento
Eucharistiae, opuscula tria, recens conscripta, et in lucem edita...
Bibliothèque municipale Versailles, Yvelines: Cote et fonds F.A. in-12 O 62
h, VE2/F.A. in-12 O 62 h, ancien.
______ (1562?). Histoire memorable de la guerre faite par le Duc
de Savoye contre ses subjectz des Vallées. (1972) Bibliothèque nationale de
France: Cote et fonds 8-K-9106 (1), Tolbiac - Rez de jardin – Magasin /
8-LK2-3198, Tolbiac – Rez de jardin – Magasin/ (1562) Tolbiac –
Rez-de-jardin – magasin; 8- LK2- 3198; Bibliothèque municipale. Section
d’études et d’information. Grenoble, Isère: Cote et fonds V.29258,
Dauphinois.
______ (1553) [Le] Discours de la guerre de Malte, contenant la
perte de Tripoli et autres forteresses, faulsement imposées aux François,
escrit en latin à Charles V par le seigneur Nicolas de Villegagnon, puis
traduit en nostre vulgaire, par M. N. Edoard. Bibliothèque nationale de
France: Cote et fonds – 8-LL11-3, Tolbiac – Rez de jardin – Magasin/
8-LL11-3, Tolbiac – Rez de jardin – Magasin/ 8-H-3884, Arsenal – Magasin/
4-H-1412, Arsenal – Magasin.
______ (1895). Lettre inédite de Villegagnon sur l'expédition de
Charles-Quint contre Alger, publiée par A. Dujarric-Descombes...
Bibliothèque nationale de France: Cote et fonds 8-LK8-1876, Tolbiac – Rez de
jardin – Magasin/ MFICHE LK8-1876, Tolbiac – Rez de jardin – Magasin/
P90/1052, Tolbiac – Haut de jardin – communication en banque de salle /
Tolbiac – Rez-de-jardin – magasin 8 – OI- 269.
______ (1745). A Lamentable and piteous treatise... wherin is
contayned not onely the high entreprise... of themperour [_sic_] Charles the
V. and his army in his voyage made to the towne of Argier, in Affrique...
but also the myserable chaunces of wynde and wether... Whiche was written
and sent unto the Lorde of Langest. Truly and dylygently translated out of
Latyn into Frenche, and out of Frenche into English, 1542... Bibliothèque
nationale de France: Cote et fonds – Tolbiac – Rez-de-jardin – magasin, Z –
6392; (1808) Bibliothèque nationale de France: Cote et fonds – Tolbiac –
Rez-de-jardin – magasin 8 – NA- 521.
______ (1574). Historicum opus, in quatuor tomos divisum, quorum
tomus I Germaniae antiquae illustrationem continet, in qua veterum autorum
descriptiones... elaboratis commentariis explicantur... Tomus II
comprehendit ea quae sub imperio Caroli V.,... acciderunt... Tomus III
historias complectitur quae venerunt in gubernationem Ferdinandi I.,... una
cum epitoma rerum gestarum in variis orbis terrarum partibus a confirmatione
ejusdem Caesaris... usque ad finem anni 1564. Tomus IIII res gestas in se
continet, quae incurrerunt in Maximiliani II.,... imperium, una cum epitoma
rerum quae sub eodem Cesare... variis in orbis terrarum plagis peractae
sunt... A viro quodam erudito [Simone Schardio]... collectum... Bibliothéque
nationale de France: Cote et fonds – Tolbiac – Rez-de-jardin – magasin M-
424/ Tolbiac – Rez-de-jardin – magasin M- 425/ Tolbiac – Rez-de-jardin –
magasin M- 426.
______ (1565). Response au livre inscrit _Pour la majorité du
roy François second_, ensemble ledit livre. Bibliothéque nationale de
France: Cote et fonds – Tolbiac - Rez-de-jardin – magasin 8- LA22- 1 (1)/
Tolbiac – Rez-de-jardin – magasin RES 8- LA22- 1 (1,RES)/ Tolbiac –
Haut-de-jardin – communication en banque de salle P92/1483/ Tolbiac -
Rez-de-jardin – magasinMFICHE LB32- 11/ Tolbiac – Rez-de-jardin – magasin 8-
LB32- 11/ Tolbiac – Rez-dejardin – magasin / Z FONTANIEU- 153 (1)/ Arsenal –
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Cornelio Sceppero editi]. Bibliothèque nationale de France: Cote et fonds –
Tolbiac – Rez-de-jardin – magasin M- 14292/ Tolbiac – Rez-de-jardin –
magasin 8- OI- 10; Bibliothèque municipale d’études et de conservation.
Besançon, Doubs: Cote et fonds – 209161, Fonds ancien.
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libris propugnanda suscepit. Bibliothèque nationale de France: Cote et fonds
– Tolbiac – Haut-de-jardin – communication en banque de salle P94/4243/
Tolbiac – Rez-de-jardin – magasin MFICHE D- 88601 (3)/ Tolbiac -
Rez-de-jardin – magasin D- 88601 (3); Bibliothèque municipale. Angers,
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Bibliothèque nationale de France: Cote et fonds – Tolbiac – Rez-de-jardin –
magasin 8-LL11- 2/ Tolbiac – Rez-de-jardin – magasin RES- LL11- 2/ Arsenal –
magasin 4- H- 9495/ Arsenal – magasin 8- H- 3883/ Arsenal – magasin 4- H-
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ADENDO 1
Três capítulos de Jean de Léry, Viagem à terra do Brasil
Tradução de Sérgio Milliet, segunda edição de Paul Gaffarel, São
Paulo, Livraria Martins Editora, 4ª. edição, 1967.
VIII
Índole, força, estatura, nudez, disposição e ornatos dos homens
e mulheres brasileiros, habitantes da América, entre os quais permaneci
quase um ano
Depois de discorrer acerca do que vimos no mar, tanto na ida
para o Brasil, como no regresso à França, depois de narrar o que se passou
na ilha e forte de Coligny, onde residiu Villegaignon, enquanto aí
estivemos, e igualmente após divagar sobre o rio Guanabara, quando também me
referi demoradamente aos fatos ocorridos anteriormente a meu embarque,
cabe-me dizer o que observei com referência ao modo de vida dos selvagens e
a outras coisas singulares e desconhecidas aquém-mar, que vi nesse país.
Direi, inicialmente, a fim de proceder com ordem, que os
selvagens do Brasil, habitantes da América, chamados tupinambás, entre os
quais residi durante quase um ano e com os quais tratei familiarmente, não
são maiores nem mais gordos que os europeus; são porém mais fortes, mais
robustos, mais entroncados, mais bem dispostos e menos sujeitos a moléstias,
havendo entre eles muito poucos coxos, disformes, aleijados ou doentios.
Apesar de chegarem muitos a 120 anos (sabem contar a idade pela lunação),
poucos são os que na velhice têm os cabelos brancos ou grisalhos, o que
demonstra não só o bom clima da terra, sem geadas nem frios excessivos que
perturbem o verdejar permanente dos campos e da vegetação, mas ainda que
pouco se preocupam com as coisas deste mundo. E de fato nem bebem eles
nessas fontes lodosas e pestilenciais que nos corroem os ossos, dessoram a
medula, debilitam o corpo e consomem o espírito, esses fontes em suma que,
nas cidades, nos envenenam e matam e que são a desconfiança e a avareza, os
processos e intrigas, a inveja e a ambição. Nada disso tudo os inquieta e
menos ainda os apaixona e domina, como adiante os mostrarei. E parece que
haurem todos eles na Fonte da Juventude.
Quanto à sua cor natural, apesar da região quente em que
habitam, não são negros; são apenas morenos como os espanhóis ou os
provençais. Coisa não menos estranha e difícil de crer para os que não os
viram, é que andam todos, homens, mulheres e crianças, nus como ao saírem do
ventre materno. Não só não ocultam nenhuma parte do corpo, mas ainda não dão
o menor sinal de pudor ou vergonha. Não são como alguns imaginam e outros o
querem fazer crer, cobertos de pêlos ou cabeludos. Ao contrário. Têm pêlos
como nós, mas apenas lhes repontam pêlos em qualquer parte do corpo, mesmo
nas pálpebras e sobrancelhas, arrancam-nos com as unhas ou pinças que lhes
dão os cristãos, e tal como fazem, ao que se diz, os habitantes da ilha de
Cumuna, no Peru. Aliás o fato de arrancá-los das pálpebras e sobrancelhas
torna-lhes a vista zarolha e feroz. Entretanto, os nossos tupinambás
excetuam os cabelos, que nos homens são desde a juventude tosquiados bem
rentes na parte superior e anterior do crânio, como uma coroa de frade, e na
nuca à moda dos nossos antepassados ou dos que deixam crescer a cabeleira
aparando os pêlos do pescoço.
E para nada omitir, se possível, nesta matéria, direi que
existem nesse país certas plantas cujas folhas da largura de quase dois
dedos, côncavas como a palha do milho grosso, a que chamamos em França de
trigo mourisco e com os quais os velhos usam envolver o membro viril
atando-as com fios de algodão; também costumam envolvê-los em lenços ou
pedaços de pano que lhes dão os europeus. Entretanto tal costume não é
seguido por todos e nunca por rapazes ou meninos. Embora pareça à primeira
vista que o façam por lhes restar ainda algum resquícios de pudor natural,
suponho que seja apenas para ocultar alguma enfermidade que na velhice lhes
ataca tal órgão. Os rapazes têm por hábito furar o beiço inferior logo na
infância, e usam no buraco um osso bem polido, alvo como marfim, feito à
semelhança de uma carrapeta; e como a parte pontuda sai para fora uma
polegada mais ou menos e fica o osso retido por um ressalto entre o beiço e
a gengiva, eles o tiram e colocam como querem. Mas só usam esse osso branco
na adolescência; quando adultos, curumim-açu (isto é, menino crescido), usam
no furo do beiço uma pedra verde, espécie de falsa esmeralda, do tamanho de
uma moeda do lado de fora e do lado de dentro presa por uma parte mais
larga; algumas existem compridas e roliças como um dedo e destas trouxe eu
uma para a França. Quando retiram a pedra do beiço e por divertimento enfiam
a língua pela fenda, apresentam como que duas bocas, o que, como é de
imaginar, os deforma horrivelmente. Ademais vi homens que não contentes com
usar essas pedras verdes nos lábios ainda as traziam nas duas faces, furadas
para esse fim
Quanto ao nariz, em vez de fazerem como as nossas parteiras que
por ocasião do nascimento das crianças apertam-lhes as ventas com os dedos a
fim de tornar-lhes o nariz afilado, os nossos americanos o esmagam com o
dedo polegar logo ao saírem os filhos do ventre materno, pois a formosura se
mede entre eles pela chateza do nariz (assim ocorre também na França com os
cachorrinhos). Entretanto, afirmam que existe uma certa região do Peru
índios com o nariz tão ultrajosamente grandes que nele penduram esmeraldas,
turquesas e outras pedras brancas e vermelhas seguras por filetes de ouro.
Além disso, os nossos brasileiros pintam muitas vezes o corpo
com desenhos de diversas cores e escurecem tanto as coxas e pernas com o
suco do jenipapo que ao vê-los de longe pode-se imaginar estarem vestidos
com calças de padre. Essa pintura preta do fruto do jenipapo imprime-se de
tal maneira na carne que, embora os silvícolas se metam na água e se lavem
amiudadamente, dura de dez a doze dias. Usam também crescentes de osso liso,
brancos como alabastro, a que dão o nome de jac, lua; e trazem-nos pendentes
ao pescoço por meio de cordões de algodão.
Com grande paciência pulam contra um pedaço de grés uma
infinidade de pedacinhos da grande concha marinha chamada vinhol;
arredondam-nos e os fazem delgados como um dinheiro tornês. Em seguida são
furados ao centro e enfiados em cordões como colares; chamam a estes boüre e
os enrolam no pescoço como nos países europeus se faz com os cordões de
ouro. Parece-me que é a isso que chamam aqui porcelana e as mulheres usam
como cintos, alguns de mais de três braças de comprimento e muito bonitos
como observei quando chequei em França. Esses selvagens também usam colares
de certa espécie de madeira preta muito adequada a esse mister por ser quase
tão pesada e luzidia quanto o azeviche.
Além disso criam os nossos americanos grande quantidade de
galinhas comuns, cuja raça foi introduzida pelos portugueses. Depenam as
brancas e com instrumento de ferro (antes de os terem com peças aguçadas)
picam bem miúdo o frouxel e as penas pequenas; depois fervem e tingem de
vermelhos com pau-brasil e esfregam o corpo com certa resina apropriada
grudam-nos em cima, ficando assim vermelhos e emplumados como pombos
recém-nascidos. Isso talvez tenha levado alguns observadores apressados a
propalarem o boato de serem os selvagens cabeludos; não o são, entretanto,
como acima ficou dito. Já se escreveu que também os cumaneses se untam com
certa resina e depois se cobrem de penas de diversas cores, à semelhança do
que fazem os tupinambás. Quanto ao ornato da cabeça, além da coroa de frade
e da guedelha na nuca a que me referi, os tupinambás amarram penas
encarnadas ou de outras cores, tiradas das asas de certas aves, em frontais
muito semelhantes aos que costumam as senhoras usar em frança, parecendo até
que se tenham inspirado nesta invenção, cujo nome entre os selvagens é
jempenambi. Também usam nas orelhas ornatos de osso branco quase da mesma
forma que os dos rapazes acima descritos. Existe no país uma ave, o tucano,
que tem a plumagem negra como a do corvo, à exceção do papo, de quase quatro
dedos de comprimento por três de largura, todo coberto de penas miúdas,
amarelas e orladas de preto na parte inferior. Esfolam esse papo, a que
denominam tucano como a ave, e depois de seco pregam-no com uma cera chamada
iraieti nas faces, abaixo das orelhas de modo que lembram as chapas de cobre
usadas nas cambas dos freios dos cavalos.
Quando vão à guerra, ou quando matam com solenidade um
prisioneiro para comê-lo, os selvagens brasileiros enfeitam-se com vestes,
máscaras, braceletes e outros ornatos de penas verdes, encarnadas ou azuis,
de incomparável beleza natural, a fim de mostrar-se mais belos e mais
bravos. Muito bem mescladas, combinadas e atadas umas às outras sobre
talicas de madeira formam vestuários que parecem de pelúcia e que podem
rivalizar com os dos melhores artífices de França. Do mesmo modo enfeitam as
guarnições de seu dardos e clavas de madeira, os quais, assim decorados,
produzem um efeito deslumbrante.
No preparo de seu vestuário utilizam-se de grandes penas de
avestruz, obtidas com seus vizinhos. Isso prova a existência, em alguma
região do país, dessas enormes aves; mas não posso dizer que as tenha visto.
As plumas, que são pardas, ligam-se pela haste central, ficando soltas as
pontas que se encurvam à maneira de uma rosa e formam grandes penachos
denominados araroyé,50 os quais são usados amarrados à cintura por um cordel
de algodão. E como a parte larga fica para fora e a estreita junto da carne,
parece que, assim adornados, carregam à cinta uma capoeira de frangos. Mais
adiante direi com minúcias como os seus maiores guerreiros, a fim de mostrar
valentia e indicar quantos inimigos mataram e quantos prisioneiros comeram,
retalham o peito, os braços e as coxas, esfregando as incisões com certo pó
preto e indelével; e dir-se-ia que usam calções e jibões suíços riscados.
Para dançar, beber e cauinar,51 o que constitui sua preocupação
ordinária, procuram algo que os anime, além do canto com que em geral
acompanham as danças; para isso colhem certo fruto do tamanho da castanha
d’água e com ela parecido. Depois de secá-lo, tiram-lhe os caroços e colocam
no lugar algumas pedrinhas; amarram-nos então aos tornozelos, pois assim
dispostos fazem tanto barulho quanto os guizos dos europeus, dos quais aliás
mostram-se muito cobiçosos. Existe também no país uma árvore que dá frutos
do tamanho e da forma do ovo de avestruz. Os selvagens os furam no centro
como as crianças francesas furam as nozes grandes para fazer molinetes;
esvaziam-nos depois, colocando dentro pedrinhas redondas ou grãos de milho,
e atravessam-nos com um pau de pé e meio de comprimento. Têm assim o
instrumento a que chamam maracá e que faz mais barulho que uma bexiga de
porco cheia de ervilhas. Os brasileiros os trazem em geral na mão e quando
me referir à sua religião direi qual a sua opinião acerca do maracá e da sua
sonoridade, sobretudo depois de enfeitados com lindas plumas e empregados em
determinada cerimônia.
Eis em suma o que sei com referência à índole, vestuário e
ornatos dos nossos tupinambás. Além disso, como trouxemos em nossos navios
grande quantidade de fazendas vermelhas, verdes, amarelas etc. e mandamos
fazer casacos e calções sarapintados para trocá-los com víveres, bugios,
papagaios, pau-brasil, algodão, pimenta e outras coisas do país que carregam
em geral os nossos navios, vestem eles às vezes calças de marujo, outros
somente casacos que lhes chegam às nádegas. Em geral, depois de se
contemplar um pouco e passear com a vestimenta, o que não deixava de ser
cômico, despiam-se e largavam os trajes em casa até que lhes desse de novo
na veneta vesti-los. O mesmo faziam com os chapéus e as camisas.
Se quiserdes agora figurar um índio, bastará imaginardes um
homem nu, bem conformado e proporcionado de membros, inteiramente depilado,
de cabelos tosquiados como já expliquei, com lábios e faces fendidos e
enfeitados de ossos e pedras verdes, com orelhas perfuradas e igualmente
adornadas, de corpo pintado, coxas e pernas riscadas de preto com o suco de
jenipapo, e com colares de fragmentos de conchas pendurados ao pescoço.
Colocai-lhe na mão seu arco e suas flechas e o vereis retratado bem garboso
ao vosso lado. Em verdade, para completar o quadro, devereis colocar junto a
esses tupinambás uma de suas mulheres, com o filho preso a uma cinta de
algodão e abraçando-lhe as ilhargas com as pernas. Ao lado deles ponde ainda
um leito de algodão feito com rede de pescaria e suspensa no ar. E
acrescentai o fruto chamado ananás, que mais tarde descreverei e que é um
dos melhores da terra.
Esse o aspecto comum dos selvagens. Para imaginá-lo sob outro
aspecto, tirai-lhe todos esses adornos, untai-o com resina e cobri-lhe todo
o corpo, braços e pernas, com pequenas plumas picadas, à maneira de uma
crina pintada de vermelho, e vereis como fica lindo assim, todo coberto de
penugem.
Finalmente sob um novo aspecto ainda podemos dizer que,
deixando-o seminu, calçado e vestido com as nossas frisas de cores, som uma
das mangas verdes e outra amarela, apenas lhe falta o cetro de palhaço.
Acrescentai-lhe agora na mão o maracá, colocai-lhe na cintura o
penacho de plumas denominado araroyé e ao redor das pernas os guizos feitos
de frutos e o vereis trajado para a cerimônia da dança, do salto, da bebida
e da cabriola como adiante o mostrarei.
Para dar uma justa idéia dos artifícios, já descritos, de que
usam os selvagens para adornar e enfeitar o corpo, seriam necessárias muitas
figuras a cores, o que exigiria um livro especial. Todavia, afora o que já
disse, ainda os descreverei na guerra, furibundos, a manejarem a clava de
madeira, o arco e a flecha.
Entretanto, antes disso vejamos se as suas mulheres e filhas, a
quem chamam cunhãs Marias em certos lugares onde os portugueses tomaram pé,
andam mais bem ornadas e ataviadas. Já contei, no início deste capítulo, que
as mulheres nuas como os homens; devo acrescentar que, como eles, arrancam
totalmente os pêlos, inclusive pestanas e sobrancelhas. É verdade que não
fazem o mesmo com os cabelos, pois não os tosquiam na frente nem os aparam
na nuca, deixando-os, ao contrário, crescerem à vontade. Mas, tal qual as
mulheres de cá, lavam-se cuidadosamente e os penteiam, entrançando-os
algumas vezes com cordéis de algodão tintos de vermelho. O mais das vezes,
porém, desgrenhadas com os cabelos soltos sobre os ombros.
Diferem também dos homens pelo fato de não furarem os lábios nem
as faces, não usando, por conseguinte, pedras no rosto. Mas furam de um modo
horrível as orelhas para nelas colocarem arrecadas e quando as retiram podem
facilmente meter os dedos nos buracos. Esses brincos são feitos com grandes
conchas marinhas, brancas, roliças e do tamanho de uma vela de sebo meã, à
qual chamam vinhol; e quando se penteiam, os penduricalhos caem-lhe sobre os
ombros e o peito e de longe parecem orelhas de cão perdigueiro.
Quanto ao rosto, eis como o embelezam. Com um pequeno pincel
traçam uma roda no centro da face e a prolongam em espiral, azul, amarela ou
verde, mosqueando e sarapintando o rosto inteiro. Também pintam as
sobrancelhas e pálpebras como o fazem, ao que se diz, as mulheres impudicas
de França.
Fabricam braceletes de quase pé e meio, só comparáveis aos que
usamos no jogo da péla. São eles compostos de várias peças de osso branco,
talhados à maneira de grossas escamas e reunidas muito habilmente umas às
outras com ceras e resinas colantes. Também usam colares brancos chamados
boyra mas não no pescoço como os homens, porém enrolados no braço. Por isso
achavam lindas as pequenas contas multicolores de vidro que havíamos levado
em grande quantidade para traficar; chamavam-nas moruhi e com elas faziam
colares. Quando íamos a suas aldeias ou vinham elas ao nosso fortim,
apresentavam-nos frutas e outros produtos da terra propondo trocá-los por
tais miçangas e nos lisonjeavam dizendo: Mair, deagotoren amabé morubi, o
que quer dizer: francês, tu és bom, dá-me os braceletes de conta de vidro. O
mesmo faziam para obter pentes, a que chamavam guyap ou kyap, espelhos que
denominavam aruá e outras mercadorias que lhes agradavam.
Mas o que mais no maravilhava nesses brasileiras era o fato de
que, não obstante não pintarem o corpo, braços, coxas e pernas como os
homens, nem se cobrissem de penas, nunca pudemos conseguir que se vestissem,
embora muitas vezes lhes déssemos vestidos de chita e camisas. Os homens,
como já dissemos, ainda se vestiam por vezes mas elas não queriam nada sobre
o corpo e creio que não mudaram de idéia. Em verdade, alegavam, para
justificar sua nudez, que não podiam dispensar os banhos e lhes era difícil
despir-se tão amiúde, pois em quanta fonte ou rio encontravam, metiam-se
n’água, molhavam a cabeça e mergulhavam o corpo como caniços, não raro mais
de doze vezes por dia. Suas razões eram plausíveis e quaisquer esforços para
convencê-las do contrário foram aliás inúteis. E tão forte era esse hábito e
tanto se deleitavam com a nudez que não só se obstinavam em não se vestir as
mulheres dos tupinambás, que viviam no continente em plena liberdade, com
seus maridos e parentes, mas ainda as próprias prisioneiras de guerra, que
compráramos, e conservávamos no forte para trabalhar; embora as cobríssemos
a força, despiam-se às escondidas ao cair da noite e passeavam nuas pela
ilha, por mero prazer. E se não fossem obrigadas a chicote, preferiam sofrer
o calor do sol e esfolar o corpo na condução contínua de terra e pedras a
suportar sobre a pele o mais simples objeto.
Eis em resumo os adornos, anéis e jóias comuns às mulheres
americanas. Quando adiante tratar do casamento dos selvagens, direi como se
vestem os filhos na infância. Tinha eu grande prazer em ver os meninos acima
de três ou quatro anos, a que chamam curumimirim gorduchos e mais fornidos
que os meninos europeus e já enfeitados com suas arrecadas de osso nos
beiços furados e com os cabelos tosquiados a seu modo. Tinham não raro o
corpo pintado e nunca deixavam de vir dançar diante de nós, em grupos,
quando nos viam chegar às suas aldeias. Rodeavam-nos, na esperança de uma
recompensa, afagando-nos e pedindo repetidamente na sua gíria: cutuassá
amabé pindá (meu amigo aliado, dá-me anzóis para pescar). E se para
satisfazer o pedido, como o fiz muitas vezes, fincávamos na arei ou na
terra, dez a doze anzóis pequenos, era de ver-se com que rapidez a turba de
fedelhos nus se lançava ao solo e esgaravatava como láparos de coelheira.
Durante um ano que passei nesse país, contemplei com curiosidade adultos e
crianças e quando me recordo agora desses garotos parece-me tê-los diante
dos olhos; mas não se me afigura possível descrevê-los com exatidão nem
pintá-los com fidelidade. É preciso vê-los em seu país. Em verdade é a
viagem bem longa e difícil, por isso quem não tiver bom olho e bom pé ou se
sentir temeroso de tropeços, que não se arrisque. Veremos ainda,
oportunamente, como são as casas, utensílios domésticos e outros costumes
dos selvagens.
Antes porém de encerrar este capítulo, quero responder aos que
dizem que a convivência com esses selvagens nus, principalmente entre as
mulheres, incita à lascívia e à luxúria. Mas direi que, em que pese às
opiniões em contrário, acerca da concupiscência provocada pela presença de
mulheres nuas, a nudez grosseira das mulheres é muito menos atraente do que
comumente imaginam. Os atavios, arrebiques, postiços, cabelos encrespados,
golas de rendas, anquinhas, sobressaias e outras bagatelas com que as
mulheres de cá se enfeitam e de que jamais se fartam, são causas de males
incomparavelmente maiores do que a nudez habitual das índias, as quais,
entretanto, nada devem às outras quanto à formosura. Se a decência me
permite dizer mais, tenho certeza de que responderia a quaisquer objeções
com vantagem. Limito-me a apelar para os que estiveram no Brasil e como eu
viram essas coisas.
Não é de meu intento, entretanto, aprovar a nudez contrariamente
ao que dizem as Escrituras, pois Adão e Eva, após o pecado, reconhecendo
estarem nus se envergonharam; sou contra os que a querem introduzir entre
nós contra a lei natural, embora deva confessar que, neste ponto, não a
observam os selvagens americanos. O que disse é apenas para mostrar que não
merecemos louvor por condená-los austeramente, só porque sem pudor andam
desnudos, pois os excedemos no vício oposto, no da superfluidade de
vestuário. Praza a Deus que cada um de nós se vista modestamente, mais por
decência e honestidade do que por vanglória e mundanismo.
XV
De como os americanos tratam os prisioneiros de guerra e das
cerimônias observadas ao matá-los e devorá-los
Resta saber agora como são tratados os prisioneiros. Logo depois
de chegarem são não somente bem alimentados mas ainda lhes concedem mulheres
(mas não maridos às prisioneiras), não hesitando os vencedores em oferecer a
própria filha ou irmã em casamento. Tratam bem o prisioneiro e
satisfazem-lhe todas as necessidades. Não marcam antecipadamente o dia do
sacrifício; se os reconhecem como bons caçadores e pescadores e consideram
as mulheres boas para tratar das roças ou apanhar ostras conservam-nos
durante certo tempo; depois de os engordarem matam-nos afinal e os devoram
em obediência ao seguinte cerimonial.
Todas as aldeias circunvizinhas são avisadas do dia da execução
e breve começam a chegar de todos os lados homens, mulheres e meninos.
Dançam então o cauinam. O próprio prisioneiro, apesar de não ignorar que a
assembléia se reúne para seu sacrifício dentro de poucas horas, longe de
mostrar-se pesaroso enfeita-se todo de penas e salta e bebe como um dos mais
alegres convivas. Depois de Ter comido e cantado durante seis ou sete horas
com os outros, é ele agarrado por dois ou três dos personagens mais
importantes do bando e sem que oponha a menos resistência, é amarrado pela
cintura com cordas de algodão ou de fibra de uma árvore a que chamam vyire,
semelhante à nossa tília. Deixam-lhe os braços livres e o fazem passear
assim pela aldeia, em procissão, durante alguns momentos.
Não se imagine porém que o prisioneiro com isso se deprima. Ao
contrário, com audácia e incrível segurança jacta-se das suas proezas
passadas e diz aos que o mantêm amarrado: “Também eu, valente que sou, já
amarrei e matei vossos maiores”.
Cada vez mais feroz volta-se para ambos os lados exclamando para
uns e outros: “Comi teu pai, matei e moqueei65 a teus irmãos; comi tantos
homens e mulheres, filhos de vós outros tupinambás, a que capturei na
guerra, que nem posso dizer-lhes os nomes; e ficai certos de que para vingar
a minha morte os maracajás da nação a que pertenço hão de comer ainda tantos
de vós quantos possam agarrar”.
Em seguida, após ter estado assim exposto às vistas de todos, os
dois selvagens que o conservam amarrado afastam-se dele umas três braças de
ambos os lados e esticam fortemente as cordas de modo a que o prisioneiro
fique imobilizado. Trazem-lhe então pedras e cacos de potes; e os dois
guardas, receosos de serem feridos, protegem-se com rodelas de couro de
tapiruçu e dizem-lhe: “Vinga-te, antes de morreres”. Começa o prisioneiro a
atirar projéteis com todas as suas forças contra os que ali se reúnem em
torno dele, algumas vezes em número de três ou quatro mil. E é desnecessário
dizer que não escolhe suas vítimas.
Com efeito, estando eu numa aldeia chamada Sariguá, vi um
prisioneiro lançar uma pedra com tanta violência na perna de uma mulher que
supus havê-la quebrado. Esgotadas as provisões de pedras e cacos e de tudo
que o prisioneiro pode apanhar junto de si, o guerreiro designado para dar o
golpe, e que permanecera longe da festa, sai de sua casa, ricamente
enfeitado com lindas plumas, barrete e outros adornos; e armado de um enorme
tacape aproxima-se do prisioneiro e lha dirige as seguintes palavras: “Não
és tu da nação dos maracajás, que é nossa inimiga? Não tens morto e devorado
aos nossos pais e amigos?”
O prisioneiro mais altivo do que nunca, responde no seu idioma
(margaiás e tupiniquins se entendem reciprocamente) “pa, che tan tan ajucá
atupavé”— “Sim, sou muito valente e realmente matei e comi muitos”.
Em seguida, para excitar ainda mais a indignação do inimigo,
leva as mãos à cabeça e exclama: “Eu não estou a fingir, fui com efeito
valente e assaltei e venci os vossos pais e comi”. E assim continua até que
seu adversário, prestes a matá-lo, exclama: “Agora estás em nosso poder e
serás morto por mim e moqueado e devorado por todos”. Mas tão resoluta
quanto Atílio Régulo ao morrer pela República Romana, a vítima ainda
responde: “Meus parentes me vingarão”.
Embora os selvagens temam a morte natural, os prisioneiros
julgam-se felizes por morrerem assim publicamente no meio de seus inimigos,
não revelando nunca o mínimo pesar como se verá do exemplo seguinte.
Achando-me certo dia em uma aldeia da grande ilha chamada
Piraniju deparei com uma mulher prisioneira prestes a ser morta pelo modo
por que descrevi. Aproximei-me e disse-lhe que se recomendasse a Tupã, o que
não quer dizer Deus entre eles mas sim trovão. Eu me adaptava ao seu falar e
lha disse que orasse como eu orasse como eu lhe ia ensinar. Em resposta ela
meneou a cabeça e motejando: “O que me darás para que eu faça o que dizes?”—
“Pobre coitada, repliquei, já não precisas de nada neste mundo, mas como
crês na alma imortal (o que os selvagens confessam como direi adiante) pensa
no que lhe vai suceder depois de tua morte”. Mas ela riu-se de novo e foi
morta de acordo com o ritual.
Voltando ao assunto direi que o colóquio continua, falando
muitas vezes vítima e algoz. O selvagem encarregado da execução levanta
então o tacape com ambas as mãos e desfecha tal pancada na cabeça do pobre
prisioneiro que ele cai redondamente morto sem sequer mover braço ou perna.
E dir-se-ia um magarefe abatendo um boi. Em verdade muitas vezes as vítimas
estrebucham no chão, mas isso por causa do sangue e dos nervos que se
contraem. O executor costuma bater com tal destreza na testa ou na nuca que
não se faz necessário repetir o golpe e nem a vítima perde muito sangue.
É comum dizer-se nesse país: Quebro-te a cabeça e os franceses
empregavam habitualmente essa frase em substituição do Je te creverai que os
nossos soldados e os nossos rixentos costumam usar.
Imediatamente depois de morto o prisioneiro, a mulher (já disse
que a concedem a alguns) coloca-se junto do cadáver e levanta curto pranto;
digo propositadamente curto pranto porque essa mulher, tal qual o crocodilo
que mata o homem e chora junto dele antes de comê-lo, lamenta-se e derrama
fingidas lágrimas sobre o marido morto mas sempre na esperança de comer-lhe
um pedaço. Em seguida, as outras mulheres, sobretudo as velhas, que são mais
gulosas de carne humana e anseiam pela morte dos prisioneiros, chegam com
água fervendo, esfregam e escaldam o corpo a fim de arrancar-lhe a epiderme;
e o tornam tão branco como na mão dos cozinheiros os leitões que vão para o
forno. Logo depois o dono da vítima e alguns ajudantes abrem o corpo e o
espostejam com tal rapidez que não faria melhor um carniceiro de nossa terra
ao esquartejar um carneiro. E então, incrível crueldade, assim como os
nossos caçadores jogam carniça aos cães para torná-los mais ferozes, esses
selvagens pegam os filhos uns após outros e lhes esfregam o corpo, os
braços, e as pernas com o sangue inimigo a fim de torná-los mais valentes.
Depois da chegada dos cristãos a esse país, principiaram os
selvagens a cortar e retalhar o corpo dos prisioneiros, animais e outras
presas com facas e ferramentas dadas pelos estrangeiros, o que faziam antes
com pedras aguçadas como me foi dito por um ancião.
Todas as partes do corpo, inclusive as tripas depois de bem
lavadas, são colocadas no moquém, em torno do qual as mulheres,
principalmente as gulosas velhas, se reúnem para recolher a gordura que
escorre pelas varas dessas grandes e altas grelhas de madeira; e exortando
os homens a procederem de modo que elas tenham sempre tais petiscos, lambem
os dedos e dizem: iguatu, o que quer dizer “está muito bom”.
Eis como os selvagens moqueiam a carne dos prisioneiros de
guerra, processo de assar que nos é desconhecido. Quanto à forma do moquém,
lembro aos leitores que já expliquei no capítulo X. Limitar-me-ei a refutar
o erro daqueles que, como se pode ver de seus mapas universais, não somente
nos representaram os selvagens do Brasil assando carne humana em espetos
como fazemos com a de carneiro e outras, mas ainda no-los pintaram a
cortá-la sobre bancas, com grande cutelos, como entre nós os carniceiros
fazem com a carne de vaca. Em verdade tais fantasias são tão verdadeiras
quanto a história que conta Rabelais a respeito de Panurge, o qual teria
escapulido do espeto lardeado e semicozido. Quem tais coisas escreveu dos
selvagens do Brasil era pessoa ignorante do assunto que tratava. Tanto os
brasileiros desconheciam o nosso modo de assar que certo dia ao nos verem em
uma aldeia assando aves no espeto zombaram de nós e se recusaram a acreditar
que uma ave assim continuamente volteada viesse a cozer, só o admitindo
afinal pela comprovação do fato.
Quando a carne do prisioneiro, ou dos prisioneiros, pois às
vezes matam dois ou três num só dia, está bem cozida, todos os que assistem
ao fúnebre sacrifício se reúnem em torno dos moquéns, contemplando-os com
ferozes esgares; e por maior que seja o número de convidados nenhum dali sai
sem o seu pedaço. Mas não comem a carne, como poderíamos pensar, por simples
gulodice, pois embora confessem ser a carne humana saborosíssima, seu
principal intuito é causar temor aos vivos. Move-os a vingança, salvo no que
diz respeito às velhas, como já observei. Por isso, para satisfazer o seu
sentimento de ódio, devoram tudo do prisioneiro, desde os dedos dos pés até
o nariz e cabeça, com exceção porém dos miolos, em que não tocam.
As caveiras conservam-nas os nossos tupinambás em tulhas nas
aldeias, como conservamos nos cemitérios os restos dos finados. E a primeira
coisa que fazem quando os franceses os vão visitar é contar-lhes as suas
proezas e mostrar-lhes esses troféus descarnados, dizendo que o mesmo farão
a todos os seus inimigos. Guardam muito cuidadosamente os ossos das coxas e
dos braços para fazer flautas e pífanos, e os dentes para seus colares, como
já expliquei no precedente capítulo. O autor da História geral das Índias
refere que os habitantes da ilha de Zamba pregam às portas de suas casas as
cabeças das vítimas que mataram e sacrificaram e também usam os dentes delas
pendurados no pescoço.
Os executores desses sacrifícios humanos reputam o seu ato
grandemente honroso; depois de praticada a façanha retiram-se em suas choças
e fazem no peito, nos braços, nas coxas e na barriga das pernas sangrentas
incisões. E para que perdurem toda a vida, esfregam-nas com um pó negro que
as torna indeléveis. O número de incisões indica o número de vítimas
sacrificadas e lhes aumenta a consideração dos companheiros. E se após essa
horrível tragédia a mulher concedida ao prisioneiro engravida, os matadores
do pai, alegando que o filho procede da semente inimiga, cometem o ato
incrível de comê-lo ao nascer ou, se lhes apraz melhor, quando já taludinho.
Mas esses bárbaros não só se deleitam no extermínio de seus inimigos, mas
ainda exultam vendo os seus aliados europeus fazerem o mesmo. Por isso,
quando nos convidavam a compartilhar seus banquetes, duvidavam de nossa
lealdade se o recusávamos, o que sempre nos aconteceu, a mim e a outros, que
graças a Deus não esquecemos a nossa crença. Com pesar sou, porém, forçado a
reconhecer aqui que alguns intérpretes normandos, residentes há vários anos
no país, tanto se adaptaram aos costumes bestiais dos selvagens que, vivendo
como ateus, não só se poluíam em toda espécie de impudicícias com as
mulheres selvagens mas ainda excediam os nativos em desumanidade,
vangloriando-se mesmo de haver morto e comido prisioneiros. E conheci um
rapazote de treze anos que já copulava com mulheres.
Continuemos entretanto a descrever a crueldade dos nossos
tupinambás para com seus inimigos. Durante a nossa estada no Brasil
aconteceu-lhes lembrarem-se de que na Ilha Grande, de que já falei, residia
um grupo de margaiás que, no começo da guerra, isto é, cerca de vinte anos
antes, se rendera aos nossos aliados tendo sido deixado em paz. Entretanto,
certa vez, após beberem cauim os tupinambás, muito excitados, resolveram
saqueá-los, alegando tratar-se de descendentes de inimigos mortais. Para lá
se dirigiram à noite, apanhando a pobre gente desprevenida, e tal
carnificina fizeram que causava dó clamarem as vítimas. Avisados, já quase à
meia-noite, alguns franceses bem armados embarcaram às pressas para a dita
aldeia que distava quatro ou cinco léguas de nosso fortim. Antes de
chegarem, porém, já tudo se consumara. Enfurecidos e encarniçados os nossos
selvagens já haviam incendiado as choças para desalojar os moradores e a
muitos já haviam morto. Segundo me foi dito só se viam homens e mulheres
espostejados nos moquéns e até crianças de peito assadas inteiras.
Valendo-se da escuridão da noite, alguns indivíduos mais corajosos se
lançaram ao mar e escaparam a nado, vindo asilar-se em nossa ilha.
Souberam-no os tupinambás e se mostraram descontentes com o fato de
abrigarmos esses infelizes e, para acalmá-los, foi preciso não só muita
energia como donativos em mercadorias. Deixaram-nos finalmente conosco como
escravos.
Doutra feita eu e mais quatro ou cinco franceses encontramos em
uma aldeia dessa mesma Ilha Grande, chamada Piraniju, um prisioneiro belo e
robusto, metidos em ferros adquiridos pelos selvagens aos cristãos.
Aproximando-se de nós, disse-nos em português (pois dois da nossa comitiva,
que falavam espanhol, o compreenderam) que estivera em Portugal, era cristão
e se chamava Antônio. Embora margaiá, sua estada em outro país lhe fizera
perder o barbarismo e, por isso, desejava que o libertássemos das mãos de
seus inimigos. Era nosso dever salvá-lo, tanto mais quanto nos moviam à
compaixão a sua qualidade de cristão e o seu nome Antônio. Um companheiro
nosso que entendia o espanhol e era serralheiro de profissão disse-lhe que
na manhã seguinte lhe traria uma lima para limar os ferros. Que se
escondesse em seguida em certas moitas perto da praia, enquanto
distraíssemos os seus algozes, e lá esperasse que a nossa barca, de
regresso, o pudesse tomar. E depois combinaríamos com os seus detentores um
modo de conservá-lo no nosso fortim. Satisfeitíssimo e agradecido, o pobre
moço prometeu fazer tudo o que lhe aconselhávamos. A turba dos selvagens,
porém, embora não compreendesse o que dizíamos, desconfiou de que lhe
queríamos arrancar das mãos o prisioneiro e apenas deixamos a aldeia
chamaram os vizinhos mais próximos e sacrificaram o coitado. E quando, no
dia seguinte, a pretexto de buscar farinha e outros víveres, voltamos à
aldeia com a lima e perguntamos pelo prisioneiros, levaram-nos os tupinambás
a uma casa onde vimos os pedaços do pobre Antônio postos no moquém; e como
sabiam que nos tinham enganado mostravam-nos a cabeça com grandes
gargalhadas.
Certo dia os nossos selvagens surpreenderam dois portugueses em
um casebre de barro em que viviam, dentro da mata, próximo à fortaleza
chamada Morpion. Defenderam-se os assaltados valentemente desde a manhã até
à tarde e depois de esgotadas as munições de arcabuz e as setas das bestas,
saíram com espadas de duas mãos e ainda mataram e feriram muitos dos
assaltantes; mas os selvagens queriam pegá-los vivos e o conseguiram afinal,
levando-os prisioneiros, e de seus despojos vendeu-me um selvagem algumas
vestimentas de couro, tendo também um dos intérpretes trocado por duas facas
apenas uma salva de prata cujo valor os assaltantes ignoravam.
Na aldeia os selvagens arrancaram as barbas aos dois portugueses
e depois os mataram cruelmente. E como esses pobres homens assim flagelados
se lamentassem, os bárbaros vencedores, zombando, perguntavam: — “Como
depois de vos terdes tão valentemente defendido mostrai menos coragem do que
mulheres, agora que devíeis morrer com honra?” Poderia aduzir outros
exemplos da crueldade dos selvagens para com seus inimigos, mas creio que o
que disse já basta para arrepiar os cabelos de horror. É útil, entretanto,
que ao ler semelhantes barbaridades, não se esqueçam os leitores do que se
pratica entre nós. Em boa e sã consciência tenho que excedem em crueldade
aos selvagens os nossos usurários, que, sugando o sangue e o tutano, comem
vivos viúvas, órfãos e mais criaturas miseráveis, que prefeririam sem dúvida
morrer de uma vez a definhar assim lentamente. Por isso deles disse o
profeta que esfolam a pele, comem a carne e quebram os ossos do povo de
Deus. Entretanto, mesmo não falando por metáforas, não encontramos aqui, nem
na Itália e alhures, pessoas, condecoradas com o título de cristãos, que não
satisfeitas com trucidar seu inimigo ainda lhes devoram fígado e coração? E
que vimos em França durante a sangrenta tragédia iniciada a 24 de agosto de
1572? Sou francês e pesa-me dizê-lo. Entre outros atos de horrenda
recordação não foi a gordura das vítimas trucidadas em Lyon, muito mais
barbaramente do que pelos selvagens, publicamente vendida em leilão e
adjudicada ao maior lançador? O fígado e o coração e outras partes do corpo
de alguns indivíduos não foram comidos por furiosos assassinos de que se
horrorizam os infernos? Depois de miseravelmente morto não picaram o coração
a Coeur de Roi, confessor da religião reformada em Auxerre, não lhe puseram
os pedaços à venda e não os comeram afinal, para saciar a raiva, como
mastins? Milhares de testemunhas desses horrores, nunca dantes vistos em
qualquer povo, ainda vivem, e livros já impressos o atestam à posteridade.
Depois dessa horrível carnificina, alguém cujo nome declaro
ignorar, reconhecendo que crueldade ultrapassava todos os limites, compôs os
seguintes versos:
Riez Pharaon
Achab, Néron
Herodes aussi;
Votre barbarie
Est ensevelie
Par ce fait
ici.
Não abominemos portanto demasiado a crueldade dos selvagens
antropófagos. Existem entre nós criaturas tão abomináveis, se não mais, e
mais detestáveis do que aquelas que só investem contra nações inimigas de
que têm vingança a tomar. Não é preciso ir à América, nem mesmo sair de
nosso país, para ver coisas tão monstruosas.
XVII
Do casamento, poligamia e graus de parentesco entre os selvagens
bem como o modo de tratar os filhos
Devo dizer com relação ao casamento dos nossos americanos que
eles observam tão-somente três graus de parentesco; ninguém toma por esposa
a própria mãe, a irmã ou filha, mas o tio casa com a sobrinha e em todos os
demais graus de parentesco não existe impedimento. A cerimônia matrimonial é
a seguinte: quem quer ter mulher, seja viúva ou donzela, indaga de sua
vontade e em seguida dirige-se ao pai ou na falta deste ao parente mais
próximo, para pedi-la em casamento. Se lhe respondem afirmativamente leva
consigo a noiva como legítima mulher sem que se lavre nenhum contrato. Se
porém recebe um não o pretendente desterra-se sem se sentir humilhado.
Note-se que sendo a poligamia permitida podem os homens ter
quantas mulheres que lhes apraz e quanto maior o número de esposas mais
valentes são considerados, o que transforma portanto o vício em virtude. Vi
alguns com oito mulheres, cuja enumeração era feita com a intenção de
homenageá-los. O que me parece admirável é que havendo sempre uma, entre
elas, mais amada do marido, não se revoltem as outras e nem sequer
demonstrem ciúmes; vivem em paz, ocupadas no arranjo das casas, em tecer
redes, limpar horta e plantar suas raízes. E deixo aos meus leitores
considerarem se, ainda que não fosse proibido por Deus Ter mais que uma
mulher, se acomodariam as européias com esse regime matrimonial. Melhor
seria condenar um homem às galés do que metê-lo no meio de tanta intriga e
ciumeira; acontecer-lhe-ia sem dúvida o que ocorreu a Jacó por ter tomado
por esposa a Lia e Raquel, não obstante serem irmãs. Como poderiam as nossas
damas viver unidas se o simples preceito, imposto por Deus à mulher, de
ajudar e socorrer ao marido, já as torna o demônio familiar das próprias
casas? Minha censura entretanto não visa àquelas que fazem o contrário e
obedecem como de direito aos seus maridos; embora não façam mais do que
cumprir o seu dever, eu as julgo tão dignas de louvor quanto as outras
merecedoras de vitupérios.
Voltando ao casamento dos nossos americanos, devo dizer que o
adultério feminino lhes causa tal horror que o homem enganado pode repudiar
a mulher faltosa, despedi-la ignominiosamente ou mesmo matá-la regendo-se
pela lei natural. É certo que antes de casá-las os pais não hesitam em
prostituí-las a qualquer varão. Antes de nossa chegada ao Brasil os
intérpretes normandos abusavam das raparigas em muitas aldeias, mas nem por
isso elas ficavam difamadas e quando se casavam procuravam não mais
claudicar, de medo de serem mortas ou repudiadas como já disse. Direi mais
que apesar do clima da região em que habitam e não obstante serem orientais,
nem os mancebos nem as donzelas núbeis da terra se entregam à devassidão
como fora de supor; e prouvera a Deus que o mesmo acontecesse por aqui.
Todavia, para não apresentá-los melhores do que são, direi que quando se
disputam se insultam de tivira, o que quer dizer sodomita. Isso me leva a
crer, embora não o possa afirmar, que entre eles existe esse abominável
vício.
Mesmo grávida a mulher não deixa de cuidar de seu trabalho
cotidiano e apenas evita carregar fardos pesados. Na verdade as mulheres dos
nossos tupinambás trabalham muito mais do que os homens, pois estes, à
exceção de roçar o mato para as suas culturas, o que fazem sempre de manhã
exclusivamente, nada mais lhes importa a não ser a guerra, a caça e a pesca
e a fabricação de tacapes, arcos, flechas e adornos de penas para enfeites.
Quanto ao parto, eis o que presenciei. Pernoitando com outro
francês em uma aldeia, certa ocasião, ouvimos, quase à meia-noite, gritos de
mulher, e pensamos que estivesse sendo atacada pelo jaguar, essa fera
carniceira que já descrevi. Acudimos imediatamente e verificamos que se
tratava apenas de uma mulher em horas de parto. O pai recebeu a criança nos
braços, depois de cortar com os dentes o cordão umbilical e amarrá-lo. Em
seguida, continuando no seu ofício de parteira, esmagou com o polegar o
nariz do filho, como é de praxe entre os selvagens do país. Note-se que as
nossas parteiras, ao contrário, apertam o nariz aos recém-nascidos para dar
maior beleza afilando-o. Apenas sai do ventre materno, é o menino bem lavado
e pintado de preto e vermelho pelo pai, o qual, sem enfaixá-lo, deita-o em
uma rede de algodão. Se é macho dá-lhe logo um pequenino tacape e um arco
miúdo com flechas curtas de penas de papagaio; depois de colocar tudo isso
junto ao menino, beija-o risonho e diz: “Meu filho, quando cresceres serás
destro nas armas, forte, valente e belicoso para te vingares dos teus
inimigos”.
Quanto ao nome, o pai da criança que eu vi nascer o denominou
oropacan, isto é, “arco e corda”, pois a palavra se compõe de oropá (arco) e
can (corda). Tal como fazemos com os nossos cachorros e outros animais, dão
eles às crianças nomes de coisas ou bichos; assim sarigué quer dizer
quadrúpede, arinhan, galinha, arabutan, pau-brasil, pindoba, certa árvore
grande, etc.
A alimentação da criança consiste em certas farinhas mastigadas
e carnes tenras juntamente com o leite materno; a mãe fica de resguardo um
dia ou dois; em seguida pendura o filho no pescoço por uma cinta de algodão
e vai tratar da horta como de costume. Não digo isso com o fito de censurar
as nossas mulheres que, por causa dos maus ares do país, guardam o leito de
quinze dias a três semanas e são tão delicadas que embora nada as impeça de
amamentar os filhos, como as mulheres americanas, cometem a desumanidade de
entregá-los a pessoas estranhas mandando-os para longe, onde muitas vezes
morrem sem que o saibam as mães, as quais só os querem junto de quando, já
bem grandinhos, podem diverti-las. E se alguma dessas melindrosas julgar que
a ofendo comparando-a com as mulheres selvagens cujo trato rural (como
poderão alegar) nada tem de semelhante ao seu corpo franzino e delicado,
dir-lhe-ei para adoçar o amargor da censura, que todos os animais a começar
pelos passarinhos ensinam essa lição e revelam o cuidado que têm em criar
seus filhos. E a fim de evitar quaisquer outras objeções possíveis, direi
ainda que tais damas não serão mais delicadas de corpo do que outrora certa
rainha de França, a qual ao saber que seu filho mamara em outra mulher ficou
tão enciumada que só teve sossego depois de fazer a criança vomitar o leite
estranho.
Voltando ao assunto, cumpre-me observar que na Europa
consideramos, em geral, que se as crianças não forem bem apertadas em sua
primeira infância, e bem enfaixadas, terão pernas tortas ou ficarão
aleijadas. Isso não se verifica em absoluto com os filhos dos nossos
americanos; desde cedo se conservam sem faixas de pé ou deitados e não há
por certo crianças mais desempenadas do que essas no andar.
Admitindo entretanto que em parte isso se deva à temperatura e à
benignidade do clima desse país, concordo em que no inverno conservemos os
meninos enroupados, bem cobertos e aconchegados em seus berços, pois do
contrário não resistiriam ao clima. Mas no verão e nas estações temperadas
parece, pela experiência que tenho, que melhor seria deixá-los espernearem à
vontade em leitos de que não pudessem sair. Com efeito, creio que muito
prejudica a essas pequenas e tenras criaturas ficarem constantemente
aquecidas e semi-assadas nesses cueiros que servem tanto no inverno como no
verão. Todavia, a fim de que não se diga que estou a meter-me no que não é
da minha conta, deixo aos pais e amas de nossa terra que governem os filhos
como bem entendam. Acrescentarei entretanto que embora as mulheres desse
país não tenham fraldas para limpar o traseiro dos filhos e que nem sequer
se sirvam de folhas de árvores, que possuem em abundância, são tão
caprichosas que com pauzinhos em forma de pequenas cavilhas os limpam com
muito asseio; e tão bem o fazem que jamais os vereis emporcalhados.
Já que estou a discorrer sobre essa matéria suja, direi ainda
que os meninos selvagens, depois de crescidos, urinam em geral no meio das
casas e se estas não exalam mau cheiro isso se deve ao fato de serem areadas
e às fogueiras que acendem por toda parte; quanto aos excrementos, costumam
as crianças deitá-los longe das casas.
Os selvagens cuidam de todos os filhos, aliás numerosos, embora
entre os brasileiros não se encontre nenhum pai com seiscentos como se
escreveu de um rei das Molucas,68 o que reputo realmente prodigioso. Os
filhos varões são mais estimados do que as fêmeas por causa da guerra, pois
entre os selvagens só os homens combatem e só a eles cabe a vingança contra
o inimigo.
Se me perguntarem ainda o que ensinam os selvagens aos filhos,
quando grandes, responderei que nos capítulos VIII, XIV e XV e noutros
trechos desta narrativa já me referi à índole guerreira dessa gente e a seus
costumes em relação aos seus inimigos. Como é fácil de imaginar, não possuem
colégios nem escolas de ciências ou artes liberais; a ocupação ordinária de
todos, grandes e pequenos, é a caça e a guerra, no que se mostram
verdadeiros sucessores de Lamech, Nemrod e Essaú; mas também se ocupam em
matar e comer gente.
Ainda com relação ao casamento dos tupinambás, afirmarei, dentro
da possível decência, que, ao contrário do que se imagina, os homens
conservam sua honestidade natural e nunca copulam com suas mulheres em
público, no que se mostram bem superiores ao filósofo cínico que, apanhado
em flagrante, não se envergonhou e disse apenas que estava plantando um
homem. Também são incomparavelmente mais infames do que os nossos selvagens
esses bodes fedorentos que em nossos dias não se ocultam para praticar as
suas obscenidades.
Permanecemos quase um ano nesse país, visitando amiúde os
selvagens e suas aldeias, mas nunca percebemos nas mulheres sinais de
menstruação. Penso que os afastam ou empregam modos de sangrar diversos das
européias, pois vi meninas de doze a quatorze anos cujas mães ou parentas as
punham de pés juntos sobre uma pedra e com um dente afiado de animal lhes
faziam incisões no corpo desde o sovaco até as coxas e o joelhos; e as
raparigas, com grandes dores, sangravam assim por certo espaço de tempo.
Creio que procedem deste modo desde o início para que não lhes vejam as
impurezas.
Se me objetarem os médicos, ou outros mais sábios do que eu em
tais matérias, que não podem ser tão prolíficas as mulheres casadas, como
disse que eram, já que sem menstruação não é possível conceber nem procriar,
responderei que não é minha intenção resolver o problema nem discuti-lo.
No fim do capítulo VIII refutei o que escreveram alguns acerca
da nudez das mulheres selvagens, alegando que desse modo excitam mais os
homens à concupiscência do que vestidas; também aí e noutros trechos me
referi à alimentação e aos costumes dos meninos americanos; portanto, o
leitor que desejar maiores informações a esse respeito recorrerá a esse
capítulo.
ADENDO 2
A Confissão de Fé da Guanabara de Jean de Bourdel, Matthieu
Verneuil, Pierre Bourdon e André la Fon
Anglada, Paulo R. B., Sola Scriptura: A Doutrina Reformada das
Escrituras, São Paulo, Editora Os Puritanos, 1998, pp. 190-197. Vide:
Crespin, Jean: l' Histoire des Martyres, 1564. A Tragédia da Guanabara:
História dos Protomartyres do Christianismo no Brasil, tradução de Domingos
Ribeiro de On the Church of the Believers in the Country of Brazil, part of
Austral America: Its Affliction and Dispersion, do texto original atribuído
a Jean Lery, Histoire des choses mémorables survenues en le terre de Brésil,
partie de l' Amérique australe, sous le governement de N. de Villegaignon,
depuis l' an 1558, publicado em 1561.
A Confissão de fé aqui transcrita tem como fonte primeira
Crespin, Jean, A Tragédia da Guanabara; História dos Protomartyres do
Christianismo no Brasil, pp. 65-71.
Os huguenotes vindos para a França Antártica foram acusados de
heresia. Alguns fugiram, outros foram presos e condenados à morte por
Villegaignon. Foram enforcados e seus corpos atirados morro abaixo, em 1558.
Antes da execução, porém, professaram por escrito sua fé. Quatro deles, Jean
de Bourdel, Matthieu Verneuil, Pierre Bourdon e André la Fon escreveram,
assim, a primeira Confissão de fé protestante das Américas.
Texto da Confissão de fé da Guanabara
Segundo a doutrina de S. Pedro Apóstolo, em sua primeira
epístola, todos os cristãos devem estar sempre prontos para dar razão da
esperança que neles há, e isso com toda a doçura e benignidade, nós abaixo
assinados, Senhor de Villegaignon, unanimemente (segundo a medida de graça
que o Senhor nos tem concedido) damos razão, a cada ponto, como nos haveis
apontado e ordenado, e começando no primeiro artigo:
I. Cremos em um só Deus, imortal, invisível, criador do céu e da
terra, e de todas as coisas, tanto visíveis como invisíveis, o qual é
distinto em três pessoas: o Pai, o Filho e o Santo Espírito, que não
constituem senão uma mesma substância em essência eterna e uma mesma
vontade; o Pai, fonte e começo de todo o bem; o Filho, eternamente gerado do
Pai, o qual, cumprida a plenitude do tempo, se manifestou em carne ao mundo,
sendo concebido do Santo Espírito, nasceu da virgem Maria, feito sob a lei
para resgatar os que sob ela estavam, a fim de que recebêssemos a adoção de
próprios filhos; o Santo Espírito, procedente do Pai e do Filho, mestre de
toda a verdade, falando pela boca dos profetas, sugerindo as coisas que
foram ditas por nosso Senhor Jesus Cristo aos apóstolos. Este é o único
Consolador em aflição, dando constância e perseverança em todo bem. Cremos
que é mister somente adorar e perfeitamente amar, rogar e invocar a
majestade de Deus em fé ou particularmente.
II. Adorando nosso Senhor Jesus Cristo, não separamos uma
natureza da outra, confessando as duas naturezas, a saber, divina e humana
nele inseparáveis.
III. Cremos, quanto ao Filho de Deus e ao Santo Espírito, o que
a Palavra de Deus e a doutrina apostólica, e o símbolo, nos ensinam.
IV. Cremos que nosso Senhor Jesus Cristo virá julgar os vivos e
os mortos, em forma visível e humana como subiu ao céu, executando tal juízo
na forma em que nos predisse no capítulo vinte e cinco de Mateus, tendo todo
o poder de julgar, a Ele dado pelo Pai, sendo homem. E, quanto ao que
dizemos em nossas orações, que o Pai aparecerá enfim na pessoa do Filho,
entendemos por isso que o poder do Pai, dado ao Filho, será manifestado no
dito juízo, não todavia que queiramos confundir as pessoas, sabendo que elas
são realmente distintas uma da outra.
V. Cremos que no santíssimo sacramento da ceia, com as figuras
corporais do pão e do vinho, as almas fiéis são realmente e de fato
alimentadas com a própria substância do nosso Senhor Jesus, como nossos
corpos são alimentados de alimentos, e assim não entendemos dizer que o pão
e o vinho sejam transformados ou transubstanciados no seu corpo, porque o
pão continua em sua natureza e substância, semelhantemente ao vinho, e não
há mudança ou alteração. Distinguimos todavia este pão e vinho do outro pão
que é dedicado ao uso comum, sendo que este nos é um sinal sacramental, sob
o qual a verdade é infalivelmente recebida. Ora, esta recepção não se faz
senão por meio da fé e nela não convém imaginar nada de carnal, nem preparar
os dentes para comer, como santo Agostinho nos ensina, dizendo: "Porque
preparas tu os dentes e o ventre? Crê, e tu o comeste." O sinal, pois, nem
nos dá a verdade, nem a coisa significada; mas Nosso Senhor Jesus Cristo,
por seu poder, virtude e bondade, alimenta e preserva nossas almas, e as faz
participantes da sua carne, e de seu sangue, e de todos os seus benefícios.
Vejamos a interpretação das palavras de Jesus Cristo: "Este pão é meu
corpo." Tertuliano, no livro quarto contra Marcião, explica estas palavras
assim: "este é o sinal e a figura do meu corpo." S. Agostinho diz: "O Senhor
não evitou dizer: — Este é o meu corpo, quando dava apenas o sinal de seu
corpo." Portanto (como é ordenado no primeiro cânon do Concílio de Nicéia),
neste santo sacramento não devemos imaginar nada de carnal e nem nos
distrair no pão e no vinho, que nos são neles propostos por sinais, mas
levantar nossos espíritos ao céu para contemplar pela fé o Filho de Deus,
nosso Senhor Jesus, sentado à destra de Deus, seu Pai. Neste sentido
podíamos jurar o artigo da Ascensão, com muitas outras sentenças de Santo
Agostinho, que omitimos, temendo ser longas.
VI. Cremos que, se fosse necessário por água no vinho, os
evangelistas e São Paulo não teriam omitido uma coisa de tão grande
conseqüência. E quanto ao que os doutores antigos têm observado
(fundamentando-se sobre o sangue misturado com água que saiu do lado de
Jesus Cristo, desde que tal observância não tem fundamento na Palavra de
Deus, visto mesmo que depois da instituição da Santa Ceia isso aconteceu),
nós não podemos hoje admitir necessariamente.
VII. Cremos que não há outra consagração senão a que se faz pelo
ministro, quando se celebra a ceia, recitando o ministro ao povo, em
linguagem conhecida, a instituição desta ceia literalmente, segundo a forma
que nosso Senhor Jesus Cristo nos prescreveu, admoestando o povo quanto à
morte e paixão do nosso Senhor. E mesmo, como diz santo Agostinho, a
consagração é a palavra de fé que é pregada e recebida em fé. Pelo que,
segue-se que as palavras secretamente pronunciadas sobre os sinais não podem
ser a consagração como aparece da instituição que nosso Senhor Jesus Cristo
deixou aos seus apóstolos, dirigindo suas palavras aos seus discípulos
presentes, aos quais ordenou tomar e comer.
VIII. O santo sacramento da ceia não é alimento para o corpo
como para as almas (porque nós não imaginamos nada de carnal, como
declaramos no artigo quinto) recebendo-o por fé, a qual não é carnal.
IX. Cremos que o batismo é sacramento de penitência, e como uma
entrada na igreja de Deus, para sermos incorporados em Jesus Cristo.
Representa-nos a remissão de nossos pecados passados e futuros, a qual é
adquirida plenamente, só pela morte de nosso Senhor Jesus. De mais, a
mortificação de nossa carne aí nos é representada, e a lavagem, representada
pela água lançada sobre a criança, é sinal e selo do sangue de nosso Senhor
Jesus, que é a verdadeira purificação de nossas almas. A sua instituição nos
é ensinada na Palavra de Deus, a qual os santos apóstolos observaram, usando
de água em nome do Pai, do Filho e do Santo Espírito. Quanto aos exorcismos,
abjurações de Satanás, crisma, saliva e sal, nós os registramos como
tradições dos homens, contentando-nos só com a forma e instituição deixada
por nosso Senhor Jesus.
X. Quanto ao livre arbítrio, cremos que, se o primeiro homem,
criado à imagem de Deus, teve liberdade e vontade, tanto para bem como para
mal, só ele conheceu o que era livre arbítrio, estando em sua integridade.
Ora, ele nem apenas guardou este dom de Deus, assim como dele foi privado
por seu pecado, e todos os que descendem dele, de sorte que nenhum da
semente de Adão tem uma centelha do bem. Por esta causa, diz São Paulo, o
homem natural não entende as coisas que são de Deus. E Oséias clama aos
filho de Israel: "Tua perdição é de ti, ó Israel." Ora isto entendemos do
homem que não é regenerado pelo Santo Espírito. Quanto ao homem cristão,
batizado no sangue de Jesus Cristo, o qual caminha em novidade de vida,
nosso Senhor Jesus Cristo restitui nele o livre arbítrio, e reforma a
vontade para todas as boas obras, não todavia em perfeição, porque a
execução de boa vontade não está em seu poder, mas vem de Deus, como
amplamente este santo apóstolo declara, no sétimo capítulo aos Romanos,
dizendo: "Tenho o querer, mas em mim não acho o realizar." O homem
predestinado para a vida eterna, embora peque por fragilidade humana,
todavia não pode cair em impenitência. A este propósito, S. João diz que ele
não peca, porque a eleição permanece nele.
XI. Cremos que pertence só à Palavra de Deus perdoar os pecados,
da qual, como diz santo Ambrósio, o homem é apenas o ministro; portanto, se
ele condena ou absolve, não é ele, mas a Palavra de Deus que ele anuncia.
Santo Agostinho, neste lugar diz que não é pelo mérito dos homens que os
pecados são perdoados, mas pela virtude do Santo Espírito. Porque o Senhor
dissera aos seus apóstolos: "recebei o Santo Espírito;" depois acrescenta:
"Se perdoardes a alguém os seus pecados," etc. Cipriano diz que o servo não
pode perdoar a ofensa contra o Senhor.
XII. Quanto à imposição das mãos, essa serviu em seu tempo, e
não há necessidade de conservá-la agora, porque pela imposição das mãos não
se pode dar o Santo Espírito, porquanto isto só a Deus pertence. No tocante
à ordem eclesiástica, cremos no que S. Paulo dela escreveu na primeira
epístola a Timóteo, e em outros lugares.
XIII. A separação entre o homem e a mulher legitimamente unidos
por casamento não se pode fazer senão por causa de adultério, como nosso
Senhor ensina (Mateus 19:5). E não somente se pode fazer a separação por
essa causa, mas também, bem examinada a causa perante o magistrado, a parte
não culpada, se não podendo conter-se, deve casar-se, como São Ambrósio diz
sobre o capítulo sete da Primeira Epístola aos Coríntios. O magistrado,
todavia, deve nisso proceder com madureza de conselho.
XIV. São Paulo, ensinando que o bispo deve ser marido de uma só
mulher, não diz que não lhe seja lícito tornar a casar, mas o santo apóstolo
condena a bigamia a que os homens daqueles tempos eram muito afeitos;
todavia, nisso deixamos o julgamento aos mais versados nas Santas
Escrituras, não se fundando a nossa fé sobre esse ponto.
XV. Não é lícito votar a Deus, senão o que ele aprova. Ora, é
assim que os votos monásticos só tendem à corrupção do verdadeiro serviço de
Deus. É também grande temeridade e presunção do homem fazer votos além da
medida de sua vocação, visto que a santa Escritura nos ensina que a
continência é um dom especial (Mateus 15 e 1 Coríntios 7). Portanto,
segue-se que os que se impõem esta necessidade, renunciando ao matrimônio
toda a sua vida, não podem ser desculpados de extrema temeridade e confiança
excessiva e insolente em si mesmos. E por este meio tentam a Deus, visto que
o dom da continência é em alguns apenas temporal, e o que o teve por algum
tempo não o terá pelo resto da vida. Por isso, pois, os monges, padres e
outros tais que se obrigam e prometem viver em castidade, tentam contra
Deus, por isso que não está neles o cumprir o que prometem. São Cipriano, no
capítulo onze, diz assim: "Se as virgens se dedicam de boa vontade a Cristo,
perseverem em castidade sem defeito; sendo assim fortes e constantes,
esperem o galardão preparado para a sua virgindade; se não querem ou não
podem perseverar nos votos, é melhor que se casem do que serem precipitadas
no fogo da lascívia por seus prazeres e delícias." Quanto à passagem do
apóstolo S. Paulo, é verdade que as viúvas tomadas para servir à igreja, se
submetiam a não mais casar, enquanto estivessem sujeitas ao dito cargo, não
que por isso se lhes reputasse ou atribuísse alguma santidade, mas porque
não podiam bem desempenhar os deveres, sendo casadas; e, querendo casar,
renunciassem à vocação para a qual Deus as tinha chamado, contudo que
cumprissem as promessas feitas na igreja, sem violar a promessa feita no
batismo, na qual está contido este ponto: "Que cada um deve servir a Deus na
vocação em que foi chamado." As viúvas, pois, não faziam voto de
continência, senão porque o casamento não convinha ao ofício para que se
apresentavam, e não tinha outra consideração que cumpri-lo. Não eram tão
constrangidas que não lhes fosse antes permitido casar que se abrasar e cair
em alguma infâmia ou desonestidade. Mas, para evitar tal inconveniência, o
apóstolo São Paulo, no capítulo citado, proíbe que sejam recebidas para
fazer tais votos sem que tenham a idade de sessenta anos, que é uma idade
normalmente fora da incontinência. Acrescenta que os eleitos só devem ter
sido casados uma vez, a fim de que por essa forma, tenham já uma aprovação
de continência.
XVI. Cremos que Jesus Cristo é o nosso único Mediador,
intercessor e advogado, pelo qual temos acesso ao Pai, e que, justificados
no seu sangue, seremos livres da morte, e por ele já reconciliados teremos
plena vitória contra a morte. Quanto aos santos mortos, dizemos que desejam
a nossa salvação e o cumprimento do Reino de Deus, e que o número dos
eleitos se complete; todavia, não nos devemos dirigir a eles como
intercessores para obterem alguma coisa, porque desobedeceríamos o
mandamento de Deus. Quanto a nós, ainda vivos, enquanto estamos unidos como
membros de um corpo, devemos orar uns pelos outros, como nos ensinam muitas
passagens das Santas Escrituras.
XVII. Quanto aos mortos, São Paulo, na Primeira Epístola aos
Tessalonicenses, no capítulo quatro, nos proíbe entristecer-nos por eles,
porque isto convém aos pagãos, que não têm esperança alguma de ressuscitar.
O apóstolo não manda e nem ensina orar por eles, o que não teria esquecido
se fosse conveniente. S. Agostinho, sobre o Salmo 48, diz que os espíritos
dos mortos recebem conforme o que tiverem feito durante a vida; que se nada
fizeram, estando vivos, nada recebem, estando mortos. Esta é a resposta que
damos aos artigos por vós enviados, segundo a medida e porção da fé, que
Deus nos deu, suplicando que lhe praza fazer que em nós não seja morta,
antes produza frutos dignos de seus filhos, e assim, fazendo-nos crescer e
perseverar nela, lhe rendamos graças e louvores para sempre.
Assim seja.
Jean du Bourdel, Matthieu Verneuil,
Pierre Bourdon, André la Fon.
RESUMO
Nesta pesquisa – Jorge Pinheiro, “Jean de Léry, meu irmão. Notas
antropofágicas sobre a questão huguenote-tupinambá” – procuramos analisar os
encontros e desencontros do pensamento reformado calvinista com a cultura
tupi-guarani nas ilhas de Laje e Sirigipe, na baía de Guanabara, costa do
Rio de Janeiro, entre os anos de 1555 e 1560, a partir do texto de Jean de
Léry, L'Histoire d'un Voyage faict en la terre du Brésil, singular e
fundamental para a compreensão daquele momento histórico. Deve-se ressaltar
que o livro de Léry, desde sua primeira edição em 1578 (La Rochelle, pour
Antoine Chuppin. M.D.LXXVIII), com reedições em francês e latim em 1585,
1586, 1592, na "Collection des Grands Voyages" de Théodore de Bry, em 1594,
1599, 1600, continua a ser sucesso editorial.
O objetivo da pesquisa foi, a partir da teologia da cultura, de
uma hermenêutica da complexidade e da correlação entre ideologia e utopia,
constrututora da imaginação social, presentes na realidade social, estudar
como Léry viu e vivenciou seu calvinismo no contato com os tupinambás. Esse
relacionamento curto, fraturado por questões internas, que já tinham
aflorado numa controvérsia eucarística sobre a presença real ou não do corpo
e do sangue de Jesus no pão e vinho servidos na Ceia, trouxe para as aldeias
tupinambás o calvinismo em construção.
Diante de relações tão complexas, sentimo-nos convidados a ir
além da religião dita verdadeira e do encontro com o bom selvagem. Assim,
nos debruçamos sobre tais encontros e desencontros do pensamento calvinista
com a cultura tupi-guarani, levando em conta, numa leitura a partir da
teologia da cultura e da hermenêutica da complexidade, que o protestantismo
não era uma realidade estanque, e que razões continentais e religiosas
aceleraram o processo de deterioração do projeto colonial francês no litoral
fluminense: crescia na França a oposição entre católicos e protestantes.
Dessa maneira, as desavenças entre Nicolau Durand de Villegagnon
e os huguenotes foram apenas uma pálida antevisão do que estava por vir em
todo o mundo francês. Tal situação acabou por desintegrar o projeto colonial
francês na região e impossibilitou o desenvolvimento do diálogo aberto entre
huguenotes e tupinambás.
Desse confronto de civilizações uma questão permanece: como ler
L'Histoire d'un Voyage faict en la terre du Brésil? Temos uma leitura
norteadora, única, ou estamos diante de uma obra aberta?
Acreditamos que L'Histoire d'un Voyage faict en la terre du
Brésil, lida a partir teologia da cultura, de uma hermenêutica da
complexidade e da correlação entre ideologia e utopia, permite analisar a
questão tupi-guarani e seus encontros/desencontros com os huguenotes,
deixando de lado perspectivas eurocêntricas, para trilhar caminhos
multiculturais.
ABSTRACT
In this research – Jorge Pinheiro, "Jean de Lery, my brother.
Notes on the question anthropophagic Huguenot-Tupinambá" – we tried to
analyze the similarities and differences of thought with the reformed
Calvinist and Tupi-Guarani culture on the islands of Laje and Sirigipe in
Guanabara Bay, Rio de Janeiro coast, between the years 1555 and 1560, from
the text of Jean de Lery, L'Histoire d'un Voyage faict en la Terre du
Brésil, unique and fundamental to the understanding of that historical
moment. It should be emphasized that the book of Lery, since its first
edition in 1578 (La Rochelle, Antoine Chuppin, MDLXXVIII), with reprints in
French and Latin in 1585, 1586, 1592, in "Collection des Grands Voyages" by
Théodore Bry, 1594, 1599, 1600), is until now a publishing success.
The aim of the research, from the theology of culture and hermeneutics of
complexity, is to study how Lery saw and experienced the Calvinism in their
contact with Tupinambas. This short relationship, fractured by internal
issues, which had already surfaced an Eucharistic controversy about the
presence of Jesus´s body and blood on the bread and wine served at Lord´s
Supper, brought a Calvinism under construction to the tupinambas villages.
Faced with such complex relationships, we felt compelled to go beyond
religion and the true encounter with the noble savage. We focus on the
similarities and differences between the Calvinist thought and the
Tupi/Guarani culture, taking into account a reading from the theology of
culture and hermeneutics of complexity, that Protestantism was not a reality
without changes. The continental and religions reasons accelerated the
deterioration of the French colonial project on the coast of Rio de Janeiro:
the opposition between Catholics and Protestants was growing in France.
Thus, the disagreements between Nicholas Durand de Villegagnon and the
Huguenots were only a pale foretaste of what was to come across the French
world. This situation disintegrated the French colonial project in the
region and prevented the development of an open dialogue between Huguenots
and Tupinambas.
In this clash of civilizations, a question remains: how to read L'Histoire
d'un Voyage faict en la Terre du Brésil? We have a guiding reading, unique,
or are we looking at a project open?
We believe that L'Histoire d'un Voyage faict en la Terre du Brésil, read
from the theology of culture and of a hermeneutics of complexity, allows us
to analyze the issue Tupi-Guarani and their encounters/clashes with the
Huguenots – and we leave aside the Eurocentric perspective, in order to
tread a multicultural road.
PARAÍSO
PROTESTANTE, O: JEAN DE LÉRY, NOTAS ANTROPOFÁGICAS SOBRE A QUESTÃO
HUGUENOTE-TUPINAMBÁ
ISBN 978-85-66480-12-2, 186 p.
Neste
livro de Jorge Pinheiro somos convidados a conhecer Jean de Léry, personagem
no qual encontramos um ponto de convergência de todos esses diferentes
aspectos do vórtice: a Renascença, o Mercantilismo, o avanço
tecnocientífico, os choques culturais e civilizatórios, a Reforma, o
Calvinismo, e toda a dúvida e insegurança de um tempo de crises.
O historiador e teólogo Jorge Pinheiro se propõe a seguir
o mesmo caminho de Stephen Greenblatt, pensando a crise civilizatória
moderna que hoje vivenciamos a partir da crise civilizatória de quinhentos
anos atrás. O seu Poggio Bracciolini é Jean de Léry, autor do livro Viagem à
Terra do Brasil, que representa, assim como o humanista da Renascença
representou em seu próprio, o paradigma da serendipidade sintética típica
dos confusos períodos de desconstrução e reconstrução metatéorica:
navegante, conquistador, missionário, sobrevivente, naturalista, teólogo,
renascentista, calvinista abstruso e anfibológico, filho de seu próprio
tempo, assim como Jorge Pinheiro é filho de seu tempo.
Ricardo
Quadros Gouvêa
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