mercredi 8 février 2023

Souvenirs rouge carmin

Memórias vermelho carmim 

 Jorge Pinheiro

 

 

Já que (...) não posso infundir a fé no coração de ninguém, não posso, nem devo obrigar ou coagir ninguém a isso, pois Deus opera isso sozinho e vem habitar anteriormente no coração. Por isso, se deve deixar a palavra livre e não querer juntar nossa obra a ela: nós certamente temos o ius verbi, mas não a executionem. Cabe-nos pregar a palavra, mas as conseqüências pertencem unicamente ao agrado de Deus”. 

Lutero, reformador do século XVI. 

 

 

Introdução 

 

A memória é afetiva e seletiva. Na verdade, ela vai apresentando os fatos vividos a partir de um processo muito peculiar: dá primeiro as dores maiores, os momentos, onde vivemos situações-limite. Mas não pára aí. A memória sempre faz uma leitura épica, onde, por pior que tenha sido o momento, nos coloca como heróis. 

 

É por isso que os velhos são bons contadores de história e são olhados pelos netos como cavaleiros andantes de um tempo mítico. 

 

Mas nem por isso a memória deixa de ser história. Principalmente quando ela discorre sobre acontecimentos sociais amplamente conhecidos. E quando isso acontece, ambas se complementam e se enriquecem. A memória, ao apoiar-se nos fatos, deixa de ser o relato de algo particular, vive um processo indutivo, que lhe dá grandeza. E a história, inversamente, ao recorrer à memória traz emoção e vida ao fato documental. 

 

Mas nossas memórias não se entrecruzam apenas com fatos sociais, nossos pesadelos, assim como nossos sonhos, transportam nossas memórias a um mundo mágico, um mundo onde o imaginário, às vezes, é tão real quanto à história vivida. 

 

Nessas primeiras memórias apresento ao leitor, minha dor maior, meu primeiro exílio e a caminhada em direção ao paredón. Esses acontecimentos pertencem à história recente do Brasil e da América Latina. Muita gente viveu dores semelhantes e por isso fazem parte dessa história. Alguns estiveram ao meu lado e exerceram uma profunda influência em minha vida. Outros foram passantes.

 

Aqueles que já morreram e, por isso, mais do que nunca são personagens de nossa história latino-americana, aparecem aqui com seus nomes verdadeiros. Os que ainda estão vivos, construindo histórias, deixo que a memória os trate como imagens e por isso aparecem com pseudônimos.

 

Não há nesta atitude da memória nenhuma intenção de esconder a verdade, mas, ao contrário, o reconhecimento de que ainda não são histórias acabadas. Nesse sentido, a memória segue a tradição de muitas tribos indígenas brasileiras, onde os nomes mudam conforme o índio cresce. O nome definitivo não traduzirá a fugacidade do momento, mas será a marca de uma vida.

 

Quanto aos pesadelos, estão todos presentes. É o inconsciente revelando sua visão do mundo vivido pelo escritor. É difícil dizer qual é maior: o pesadelo ou a realidade da dor. Ambos são terríveis e por isso se complementam. E fica mais fácil entender um, no debruçar-se sobre o outro. É, inclusive, difícil dizer qual vem primeiro, já que o pesadelo pode ser sentido como futuro que se faz presente. E aqui ambos, pesadelo e dor, se fazem texto, esquizofrênico, estilhaçado, em pedaços, como a minha alma.

 

Ou como cantou Chico: 

 

“Oh, pedaço de mim, 

oh, metade adorada de mim,

leva os olhos meus, 

que a saudade é o pior castigo 

e eu não quero levar comigo 

a mortalha do amor”. 

 

E, assim, tudo chega através da memória, que afetivamente vai selecionando o que lhe parece mais verdadeiro, a fim de construir o mundo mítico de nosso heroísmo fugaz. 

 

 

11 de setembro de 1973 

 

Dez horas da manhã. Acordo. A noite foi longa e insone. Ficamos em treinamento até de madrugada. Tememos que o golpe possa ser deflagrado a qualquer momento. Allende se mostra indeciso. Deveria sublevar os cordões industriais e distribuir armas para os trabalhadores. Mas não quer romper a legalidade. Se o golpe vier agora não sabemos o que pode acontecer.

 

Muita gente da Unidade Popular confia na fidelidade das forças armadas ao governo. Mas parece que essa não é a experiência histórica...

 

Peguei a rádio Corporación. É Allende. Ele está falando.

 

-- Certamente, esta é a última oportunidade em que posso dirigir-me a vocês. A Força Aérea bombardeou as antenas da rádio Magalhães. Minhas palavras não contêm amargura, mas decepção. Que elas sejam um castigo moral para aqueles que traíram seu juramento. Soldados do Chile, comandantes-em-chefe titulares, o almirante Merino, que se autodesignou comandante da Marinha, mais o senhor Mendonza, general rasteiro que até ontem manifestava sua fidelidade e lealdade ao governo, e que também se autodenominou diretor geral de Carabineiros...

 

-- Diante desses fatos, só me resta dizer aos trabalhadores: não vou renunciar!

 

-- Em meio ao trânsito histórico, pagarei com minha vida a lealdade ao povo.

 

-- Dirijo-me ao homem do Chile, ao operário, ao camponês, ao intelectual, e aqueles que serão perseguidos, porque no nosso país o fascismo já esteve muitas horas presente: nos atentados terroristas, voando pontes, cortando vias férreas, destruindo oleodutos e gasodutos, ante o silêncio daqueles que tinham a obrigação de cuidar. Estavam comprometidos. A história os julgará. Certamente, a rádio Magalhães será calada e o metal tranqüilo de minha voz já não chegará até vocês. Não importa. Continuarão a ouvi-la...

 

-- Sempre estarei junto a vocês. A lembrança que terão de mim será a de que fui um homem digno, fiel à pátria. O povo deve defender-se, mas não se sacrificar. O povo não deve deixar-se arrasar, nem acribillar, mas também não pode ser humilhado. Trabalhadores de minha pátria, tenho fé no Chile e em seu destino. Outros homens superarão este momento cinza e amargo quando a traição pretender se impor. Fiquem sabendo que, muito mais cedo do que imaginam, de novo se abrirão as grandes avenidas por passará onde o homem livre, para construir uma sociedade melhor.

 

-- Viva Chile! Viva el pueblo! Vivan los trabajadores!

 

-- Estas são minhas últimas palavras e tenho a certeza de que meu sacrifício não será em vão. Tenho a certeza de que, pelo menos, será uma lição moral que castigará a felonia, a covardia e a traição.

 

Ele parou de falar, mas porque não chamou o povo a sair às ruas, a lutar. O que está acontecendo... Por que esse derrotismo?

 

Giro o dial. Uma voz metálica ameaça. Estarrecido ouço o general Augusto Pinochet ordenar a rendição incondicional do companheiro Allende, caso contrário a Força Aérea bombardeará o palácio La Moneda.

 

Corro até a janela e olho para o palácio. Imponente, de arquitetura espanhola, como será que ele tem coragem... Bombardear... Não, isso é impossível. Giro o dial de novo e pego o rádio-amador aqui ao lado, o da sede do partido socialista... Em meio a zumbidos, procuro uma melhor definição de onda.

 

Será que um golpe contra Allende pode ser bem-sucedido? É impossível prever. E o povo, e as fábricas, e os cordões industriais? Não irão às ruas, não vão resistir?

 

Peguei um diálogo... 

 

O Palácio de La Moneda está cercado por tropas do Exército. A polícia de Allende recebe uma proposta de rendição, transmitida por seus adidos militares.

 

O presidente rechaça a renúncia, diz que prefere morrer. Ninguém sabe ao certo o que está acontecendo. Allende suicidou-se, foi fuzilado?

 

-- Creio que a história do suicídio é falsa. Acabei de falar com o adido naval... Eu o encarreguei de convencer o chefe dos carabineiros a render suas tropas, do contrário vão ser bombardeadas, afirma o vice-almirante Patrício Carvajal ao general Pinochet.

 

-- De acordo. Acaba de me chamar o subsecretário da Marinha, e concorda que a exigência é rendição incondicional. Esse cara é traiçoeiro. Se quiser se render, que vá ao ministério da Defesa para se entregar aos comandantes.

 

Allende está acuado no palácio. Por telefone fala com o Ministério da Defesa. Só aceita dialogar no palácio presidencial.

 

-- O presidente da República só recebe em La Moneda, diz uma voz por telefone.

 

-- Esse cavalheiro está tentando ganhar tempo. Nós estamos nos mostrando débeis. Não aceito nenhum encontro. Encontro significa diálogo. A rendição é incondicional. É bem claro o que digo: rendição incondicional. Se quiser, ele que venha e se entregue. Se não, vamos bombardear o palácio o quanto antes.

 

Pinochet está irado. Seus pares concordam com ele.

 

-- De acordo... Em dez minutos, vamos bombardear La Moneda, declara o vice-almirante Patrício Carvajal.

 

Hawker Hunters, aviões de caça da Força Aérea chilena, surgem como pequenos pontos no horizonte. Vão crescendo e tomando forma como maldições que se materializam. E os mísseis, um, dois, três... Perco a conta, vão acertando o alvo. O centro da cidade é estremecido por um ruído rouco, que parece sair do próprio oco da terra. Um misto de terremoto e irrupção vulcânica, imagens tão dolorosas na vida desse povo que tanto se orgulha de sua democracia.

 

Paredes internas do palácio desabam. 

 

-- Pegue o ministério do Allende e vamos mandar todo mundo para fora do país. Já... De avião..., diz Carvajal.

 

-- Tem razão, se forem julgados ganham tempo..., concorda Pinochet.

 

-- Minha opinião é que esses senhores devem ser presos e mandados para qualquer lugar. No caminho, vão sendo eliminados...

 

O general Gustavo Leigh, comandante da Força Aérea, descarta qualquer possibilidade de julgamento. Para ele, comunista bom é comunista morto.

 

Os operadores de rádio, jovens cadetes, que estão transmitindo e sendo retransmitidos por todo o país por radioamadores, exclamam estarrecidos:

 

-- Esse sujeito é um facho.

 

Os assessores de Allende estão abandonando o palácio, a pedido do próprio presidente. Agitam uma bandeira branca. Pinochet quer saber se Allende integra o grupo.

 

-- E Allende? Saiu ou não saiu?

 

-- Não saiu, diz que o ministro Flores está incumbido de pedir condições decorosas para a sua rendição.

 

-- Não há nenhuma condição decorosa. Esse imbecil, o que ele está pensando? A única coisa que desejo é respeitar sua vida e já fazemos muito.

 

Pinochet aparentemente ainda trabalha com a idéia inicial de enviar Salvador Allende e seu círculo mais próximo para o exílio, num avião. Mas, a pressão de Leigh vai ganhando espaço entre os militares. Por volta do meio-dia, Pinochet concorda que seria preferível que o presidente morresse.

 

-- Mantemos a oferta de tirá-lo do país, mas o avião cai quando estiver voando.

 

-- De acordo... 

 

Sinistras gargalhadas ressoam na pequena sala de meu apartamento no Hotel London. Quantos estarão ouvindo a orquestração desse assassinato?

 

Após a saída dos assessores, o presidente Allende, dentro de La Moneda, é fuzilado por um grupo de militares. Informado, o Ministério da Defesa retransmite a notícia aos futuros dirigentes do país, entre eles Pinochet. Mas não contam a verdade.

 

-- Leigh e Pinochet, Carvajal. Há uma informação de dentro do La Moneda. Pela possibilidade de interferência, vou transmitir em inglês. They say Allende comitted suicide and is dead now. Digam-me se me entendem.

 

-- Entendido.

 

-- Entendido.

 

-- Em relação ao avião para a família, a medida não tem mais urgência.

 

-- Que joguem o corpo de Allende num caixão e o embarquem junto com a família. Que o enterro seja feito em outra parte, em Cuba. Até para morrer esse cara nos causou problemas.

 

São as últimas palavras de Pinochet. O zumbido aumenta, uma tristeza invade meu corpo. E eu começo a chorar. Convulsivamente. 

 

Nunca tinha visto nada igual. O céu ficou preto de fumaça e uma garoa fina começou a chorar sobre Santiago. Uma fuzilaria tomou conta de toda a cidade.

 

Não consigo sair do hotel. Chovia bala. Ao lado do hotel há uma sede do Partido Socialista. De lá de dentro matraqueia uma metralhadora e tiros esparsos de fuzil. A sede socialista esta cercada por militares entrincheirados.

 

Um helicóptero do Exército aparece, voa baixo, pára em frente ao prédio e abre fogo de metralhadora contra os resistentes. Fazem isso várias vezes. A impressão é que as balas vão arrebentar as paredes do hotel. É impossível por o pé na rua.

 

Quando chega a tarde recebo um telefonema da Base Aérea de Cerrillos. Anabella fala comigo chorando:

 

-- Estou presa, você precisa vir me soltar.

 

Passa pela minha cabeça que se eu não for soltá-la nunca mais vou vê-la. Mas eu tenho que ir para Indumet, tenho que juntar-me ao companheiros do comando León Trotsky, com os companheiros do MIR. Tenho que salvar Anabella. Ela vai ser fuzilada... 

 

No dia seguinte, a primeira coisa que faço, numa atitude totalmente tresloucada, é, esgueirando-me o melhor que posso, dirigir-me ao Quartel General do Exército. Chego lá e peço para falar com a assessoria de imprensa, como resposta recebo ordem de prisão:

 

-- Você é brasileiro? Está preso.

 

Não têm onde me por: me deixam no corredor, e aí fico de pé, de cara para a parede, desde o início da manhã até à tardinha, vigiado por um soldado. É o segundo dia do golpe, está uma confusão danada, e lá pela tarde o Quartel General começa a ser bombardeado por obuses. Os estilhaços caem dentro do corredor. Soldados correm para todos os lados. Trocam o soldado que me vigia e eu aproveito a confusão e dou uma ordem:

 

-- Leve-me imediatamente ao quinto andar, à assessoria de imprensa.

 

O soldado reclama, diz que não pode, mas diante de minha intransigência acaba concordando. Quando chego ao quinto andar, peço ao assessor de imprensa que providencie um jipe militar, porque tenho que ir à Base Aérea de Cerrillos liberar minha companheira que está presa, por engano.

 

-- Nós não podemos fazer isto, estamos sendo atacados, é impossível te dar um jipe. Volta aqui amanhã, talvez seja possível...

 

Concordo com ele e o soldado, ainda confuso, me deixa sair do quartel. Chegar ao hotel não será fácil. Há trincheiras ao longo da avenida e nas esquinas das ruas. Até um ponto do trajeto, trincheiras dos militares, e daí em diante trincheiras da resistência. Então eu levanto minha carteira de jornalista, e grito:

 

-- Sou jornalista.

 

Corro e pulo na trincheira. Converso um pouco, explico que tenho que seguir em frente e ouço:

 

-- Se você for em frente vai morrer, vão atirar em você.

 

Quando estou quase chegando à outra trincheira, volto a gritar:

 

-- Sou jornalista...

 

E assim à noite, por puro milagre, chego inteiro, são e salvo, ao hotel.

 

-- Hoje tenho que ir direto à Base Aérea de Cerrillos.

 

Ela que fica num bairro distante do centro da cidade. E eu passo o dia todo tentando encontrar algum transporte, mas não há condução. Há o toque de recolher, que proíbe às pessoas de transitarem pelas ruas. Tudo está parado. Às quase cinco da tarde passa um táxi, o único táxi que eu vira nesses dois dias. Quando o táxi chega próximo, lanço-me à frente dele e começo a gritar para que pare. Ele para. O taxista me diz que esta indo para casa, que fica longe, na cidade de Valparaíso. Então, ousadamente, dou-lhe voz de prisão:

 

-- Leve-me à Base Aérea de Cerrillos ou está preso.

 

Ele olha para mim, estupefato, e pergunta:

 

-- O senhor é da embaixada brasileira?

 

Sei que o governo brasileiro está apoiando o golpe militar, por isso não hesito:

 

-- Sou.

 

Então ele me leva até a base aérea. Quando chegamos, a base aérea está sendo bombardeada com morteiros. O táxi passa pelo portão principal, ouvimos os morteiros zumbindo sobre nossas cabeças e explodindo lá na frente. Rapidamente, os militares da Aeronáutica nos cercam. Cai uma garoa forte.

 

Ordenam que eu desça do carro. Fico no meio de um gramado, nas guaritas há soldados armados com fuzis e metralhadoras. Dão uma segunda ordem:

 

-- Tira a roupa, toda a roupa.

 

Debaixo da garoa fina, tiro a roupa e mergulho numa imagem ancestral: a do judeu nu, massacrado, prestes a ser fuzilado.

 

Um oficial sai de uma das guaritas e pede o meu passaporte. Explico que vim buscar minha companheira. Debaixo da chuva fina, ele abre o passaporte, que é falsificado, olha-o rapidamente e me devolve. Manda chamar Anabella. Ela vem chorando, em prantos. Caminhamos para o táxi, mas o motorista, que também chora de raiva, por ter sido enganado, nega-se a nos levar de volta. Dirijo-me ao oficial e digo:

 

-- Este homem não quer nos levar de volta.

 

O oficial responde:

 

-- Tem que levar, vocês não podem ficar aqui.

 

E como entramos, assim saímos da base aérea, debaixo de explosões e do matraquear de metralhadoras.

 

Quando chegamos ao hotel, Anabella conta que na manhã do dia 11 de setembro, a fábrica onde trabalhava resistiu ao golpe até acabar toda a munição. Então, os militares da Aeronáutica, que tinham cercado a fábrica, invadiram as instalações, prenderam todos, encostaram os dirigentes na parede da rua e os fuzilaram na frente dos companheiros. Ela por ser loura e brasileira foi poupada. Afinal, não sabiam de quem se tratava. Foi levada para a Base Aérea e presa. No breve interrogatório, disse que era mulher de um jornalista brasileiro, correspondente da agência Dispatch News Service, de Washington. Teve, então, o direito de dar um telefone, aquele que eu atendi no hotel.

 

No hotel o ambiente está alvoroçado. A televisão apresenta uma lista de pessoas procuradas, exortando à população a denunciar todos os estrangeiros. Os militares deram dois dias para todos os estrangeiros se entregarem. Eu, logicamente, não vou me entregar.

 

Anabella e eu sabemos que podemos ser denunciados, mas não temos escolha. Vamos passar esta noite rasgando e jogando pela janela nossos textos e manuais de guerrilha urbana.

 

Acordo sobressaltado. Estão esmurrando a porta. Vou abrir. Levo uma coronhada na cara. É tudo muito rápido. Abro os olhos, em meio ao sangue que escorre pelo meu rosto, e levo outra coronhada. A cada coronhada eu desmaio e quando volto a mim sou golpeado de novo. Levam tudo o que podem levar, roupas, máquina de escrever, livros. Presos, somos obrigados a caminhar pelas ruas, com as mãos na nuca, numa estranha procissão. Depois nos jogam num ônibus, deitados. Começam então a maltratar Anabella. Chutando-na e pisoteam. Eu grito:

 

-- Não façam isso, ela está grávida.

 

É mentira, mas eles param.

 

Não sabemos para onde estão nos levando. Uma hora depois, com o ônibus cheio de presos, somos obrigados a descer diante de um quartel: é o regimento Tacna. Vemos muita gente machucada, uns segurando seus braços, quebrados, outros se arrastando, todos sujos de sangue, assim como eu. Minha cabeça dói terrivelmente. Sinto o rosto inchado e quente. Minha camisa está empapada de sangue, já meio endurecido. A sensação é muito desagradável. Parece que estou vivendo um pesadelo. O sentido de realidade se perde no meio desse cenário de morte.

 

Nos largam numa espécie de cozinha. Eu caio no chão e apesar de muito machucado tenho uma sensação de alívio. O chão de ladrilho é frio e transmite uma sensação agradável ao meu corpo. Estou vivo. Isso é o que importa.

 

Eu e Anabella estamos quietos. Quebro o silêncio e arrisco uma frase de humor:

 

-- Não se preocupe. Eles não têm nada contra você. Na semana que vem você já estará em Copacabana, no maior bronze.

 

Sei que vou morrer. Vão me meter uma bala na cabeça e vão me jogar numa vala qualquer. Estou calmo. Minha intimidade com Deus está anda precária, por isso não oro, nem peço nada. Mas gostaria que Anabella não fosse morta, gostaria muito que ela pudesse voltar para o Rio de Janeiro, ali para o Posto 4, para curtir a praia que ela tanto gosta.

 

O que pensa um homem antes de morrer? Sempre tive essa curiosidade. E agora estou tendo a oportunidade de matá-la. Não penso em nada. É como se o meu cérebro estivesse vazio e os pensamentos passassem como se fossem nuvens rápidas antes da tempestade. Nem mesmo posso dizer que estou plenamente consciente.

 

Mais do que pensar, eu sinto. Sinto os ladrilhos frios no meu rosto inchado. E isso é agradável. Sinto o meu corpo imóvel, pesado, como se estivesse pressionando o chão. Tão pesado que parece que vai entrar chão adentro. E isso também é agradável. 

 

Talvez essas sejam as sensações de um feto. Ele não pensa, sente. E o tempo já não existe. Estou aqui faz minutos ou horas? Não sei... 

 

Chega um coronel e nos informa:

 

-- Vocês vão ser fuzilados no início da tarde.

 

O tempo é um redemoinho e eu estou mergulhando nele. Num momento estamos cansados, machucados, tontos, noutro, somos agarrados, levantados, levados. Nos colocam no início de uma fila, umas oito pessoas caminhando para o paredón.

 

De repente, um tenente me chama. Eu estava na fila, caminhando, e ele me chama. Saio da fila, faço um sinal para Anabella me acompanhar. E o oficial me pergunta:

 

-- Você foi preso com muito material subversivo, é verdade?

 

Digo que é verdade, que sou jornalista, e que tudo foi comprado. Ele diz que também tem muitos daqueles livros em casa. Sinto uma empatia profunda com aquele jovem. Estou diante de um oficial de esquerda. Apenas nos olhamos. Olhares cúmplices de companheiros que viram seus sonhos queimarem nas chamas do La Moneda.

 

Enquanto isso, os três ouvimos atrás de nós os tiros que abatem os outros companheiros.

 

Somos então mandados para interrogatório. Combino rapidamente com Anabella que apenas eu falarei para não entrarmos em contradição. Explico aos militares que estou estudando na Universidade do Chile, que amo esse país e que nunca me passou pela cabeça sair do Chile. É um interrogatório leve. Vêem que sou correspondente estrangeiro, e me entregam um salvo-conduto para que tenha livre trânsito.

 

Estamos apenas com a roupa do corpo. Não temos nada. Mas a vida é o bem maior, mesmo quando temos apenas a roupa do corpo. Andarillhamos pelo centro de Santiago, até que descobrimos um hotel perto da Plaza de Armas. O hotel está cheio de conhecidos, velhos companheiros, exilados brasileiros. Dudu, filho do Zé Maria, é um deles. Será que esse é o melhor lugar para um brasileiro se esconder?

 

Do hotel telefono para Nova Iorque, para um grande amigo meu, Peter, que pertence ao Socialist Workers Party. Não consigo falar com ele, peço então a uma amiga que trabalha no consulado brasileiro em Nova Iorque para entrar em contato com Peter. Explico a situação e peço para me mandarem duas passagens de avião Santiago/Buenos Aires e dinheiro via ordem de pagamento. Ficamos no hotel. Dois dias depois, o dinheiro chega. Compramos roupas. Quando os aeroportos abrirem chegarão também as passagens.

 

 

O autor e sua obra 

Antenor da Conceição

 

Jorge é jornalista, é teólogo e cientista da religião. Cursou Jornalismo na PUC do Rio de Janeiro, mas só terminou o curso na Faculdade de Ciências Sociais da Universidade do Chile. Nos anos 1990 fez sua graduação em Teologia na Faculdade Teológica Batista de São Paulo. É Doutor e é Mestre em Ciências da Religião pela Faculdade de Filosofia e Ciências da Religião da Universidade Metodista de São Paulo. 

 

Desde a época de secundarista, no Rio de Janeiro, gosta de política. Foi exilado entre 1971 e 1974 no Chile e Argentina e, posteriormente, em 1977, na Espanha e Portugal. Em dezembro de 1979 foi anistiado. Nos anos 1990, passou a focar a questão social a partir da teologia da vida, o que, ele acredita, aumentou e não diminuiu seu compromisso com os deserdados da terra. 

 

Palavras e palavras 

 

Quanto aos anjos e demônios, tão presentes na novela, Jorge lembra que na mística judaica, são palavras, palavras de Deus, palavras humanas que constroem e destroçam. É uma leitura antiga da magia das palavras, que vem possivelmente dos sumérios. E proferida a palavra, ela abre as asas, tornando-se mensageira, que se desloca entre os deuses e os humanos. As palavras podem, assim, voar para lugares e épocas que as pessoas não podem chegar e, nesse sentido, são intermediárias do bem ou do mal, ligando o mundo humano a outros mundos. 

 

Os sumérios acreditavam que cada pessoa tinha uma palavra, companhia inseparável na vida. Quando os semitas conquistaram a Suméria, cerca de dois mil anos antes de Cristo, entraram em contato com essas angelologia e demonologia matriciais. 

 

Para a mística judaica, existem palavras que cantam e dançam ao redor do trono de Deus: chayot ha kadesh, ophanim, erelim, hashmallim, elohim, bene elohim, cherubim, ishim, metatron, raziel, tzaphkiel, tzadkiel, khamael, raphael, haniel, gabriel, sandalphon. Essas devem ser proferidas com muito cuidado pelos humanos, pois Deus as separou para si. 

 

Sobre os demônios, quero citar o profeta Isaías (34.14), quando fala da terra de Edom e a apresenta como amaldiçoada e deserta: “As feras do deserto e as hienas morarão ali: demônios chamarão uns aos outros, e ali Lilith (súcubo noturno) encontrará um lugar para descansar”. 

 

Ora, se as palavras são anjos e demônios, que vagam pelos desertos, que voam, constroem e destroçam, fica o conselho do homem de Nazaré: “Seja, porém, a tua palavra: sim, sim, não, não. O que passar disso é de procedência maligna”. E é por isso que eu digo devemos cortar as asas das palavras mal ditas. 

 

Liberdade e justiça 

 

Jorge é um utópico. Acredita que como cristão deve se posicionar a partir de uma ética da responsabilidade social, o que implica em entender o paradoxo da multicultura relacional brasileira, de que vivemos num país onde impera a moral autoritária do senhor, da casa grande e da senzala, e a moral libertária da contracultura, a moral do “não existe pecado do lado de baixo do Equador, vamos fazer um pecado rasgado, suado, a todo vapor”. 

 

Por isso, costuma dizer que qualquer atuação no campo social implica em compreender esta realidade. Mas, consciente de que as sociedades devem se organizar através de relações democráticas, afirma que a igreja na América Latina tem como desafio embasar seu compromisso no imperativo protestante: liberdade, conhecimento e justiça. 

 

Fala de um processo que crescerá conforme cresça a consciência de que os cristãos têm a tarefa de transformar o Brasil num país onde todos possam acessar condições dignas de vida e justiça social. E, logicamente, todo o continente. 

 

Assim, Jorge lembra a seus leitores e leitoras certas palavras ditas num morro distante: “Felizes os que têm misericórdia, porque Deus também terá misericórdia deles”. E eu assino embaixo: soli Deo, gloria! 

 



 

 

 

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