mercredi 29 mai 2024

Manual de Teologia Bíblica e Sistemática, uma leitura de Jorge Pinheiro



TEOLOGIA BÍBLICA E SISTEMÁTICA

Uma leitura de Jorge Pinheiro

 

Dezessete de dezembro de 1961. Niterói. Um incêndio destrói o Gran Circus Norte-Americano. Quinhentos mortos, a maioria crianças. Um pouco antes do Natal, seis dias depois do incêndio, um homem de 44 anos, acorda e é exortado a abandonar o mundo e a pregar aos moradores da cidade. O homem pega um de seus caminhões e vai para o lugar do incêndio, planta um jardim e uma horta sobre as cinzas do circo. Ali fica morando por quatro anos. E leva às pessoas o sentido das palavras agradecido e gentileza. Transforma-se num consolador, a confortar os familiares das vítimas da tragédia. Passa a ser chamado José agradecido. Profeta Gentileza. Depois desses quatro anos, deixa o paraíso Gentileza, e começa uma jornada como pregador andarilho. A partir de 1970 percorre toda Niterói, ruas, praças, as barcas da travessia entre Rio e Niterói, ônibus e trens, pregando o amor, o respeito ao próximo e à natureza. Morre aos 79 anos, no dia 29 de maio de 1996


Aos que o chamavam de louco, ele respondia:

– “Sou maluco para te amar e louco para te salvar“.

Ao profeta Gentileza, que conheci e ouvi, dedico esse livro. 


 

 

 

 

 

CONVITE À PRAXE

 

 

“Gentileza gera / Gentileza amorrr / meus filhos vamos / todos colaborar com / o nosso querido presi- / dente para que Deus / e Jessuss colabore com / todos para 1 Brasil”. Profeta Gentileza

 


Nesta pós-modernidade verde e amarela, comunidades fazem de forma natural um retorno às origens da nacionalidade brasileira, quando nossos brasis ocupavam este vasto terrítório sem a presença de invasores. Como os clãs de origem, as comunidades urbanas surgem a partir da união de integrantes em torno de elementos comuns. É possível se chegar as comunas neopentecostais, pentecostais e históricas do protestantismo brasileiro. Podemos, então, apontar os perfis e identificar as particularidades dessas comunidades,  peculiares em seus desenvolvimentos. 

 

Tais particularidades provêm dos perfis. Aqui desejamos direcionar esta compreensão sociológica: as comunas evangélicas, todas elas, em maior ou menor medida, têm como parâmetro textos fundantes, as Escrituras Sagradas judaico-cristãs. Exatamente por isso, para compreender o comunitarismo evangélico, urbano e globalizado, é necessário conhecer a teologia que professa, tanto bíblica quanto sistemática.

 

A relação entre comunidade e protestantismo brasileiro manifesta-se na forma de um paradoxo, no sentido de um modo de pensar que está à margem das opiniões aceitas e mesmo em oposição a elas. O paradoxo inicial do protestantismo reside no fato de ser ele uma obra da comunidade na forma de um saber racional que tem a intenção de explicar a realidade e, por extensão, a própria comunidade da qual procede. Essa universalidade da intenção protestante deve ser designada como sendo o predicado da interrogação religiosa que se dirige à essência ou ao ser das coisas. Ela determina o caráter paradoxal da relação entre comunidade e protestantismo na medida em que é origem, instância fundadora da comunidade. Há aqui um entrecruzamento de causalidades históricas, mas é importante assinalar como outras produções -- arte, literatura e política -- apresentam essa originalidade de terem nascido ostentando os traços do que serão as suas essências como intenção de conhecimento. Nesse sentido, o estudo da teologia pode ser considerado não só um caminho para se penetrar no espírito da comunidade, mas introdução ao estudo dos temas do pensamento evangélico brsileiro em geral. 

 

É necessário ter presente a relação dialética que existe entre o dinamismo das comunidades e a produção protestante que segmentos diferentes do evangelicalismo construíram na história recente do Brasil. A sobrevivência dessas praxes mostra que o evangelicalismo é um nó direito que assegura a continuidade da tradição protestante no Brasil. 

 

O protestantismo está inscrito no destino das comunidades evangélicas brasileiras, faz parte do seu espírito. Por isso, é necessário perguntar qual a razão que conduz esse destino. Ora, o protestantismo oferece motivos para essa interrogação, pois o evangelicalismo brasileiro coloca em questão a razão sobre a qual o protestantismo alicerçou suas bases históricas. Hoje, as comunidades evangélicas brasileiras caminham na contra-corrente do racionalismo moderno e da legitimação social de seus usos. Procuram um retorno às comunidades de origem, buscam o sentido solidário dos primeiros cristãos e, por isso, se apresentam, por um lado, marcadas pelo paradoxo do racionalismo moderno e, por outro, pela esperança escatológica do Reino.

 

Dessa maneira, um dos objetivos deste Manual é fornecer um primeiro contato com as leituras bíblicas e sistemáticas que referenciam o pensamento das comunidades evangélicas do Brasil urbano e pós-moderno.

   

Ao conhecer as razões que levaram à criação da conduta e dos valores identitários dos cristãos protestantes, passa a ser possível entender as singularidades da linguagem do mundo evangélico brasileiro e as expressões desses códigos de comportamento próprios dessas comunidades.

 

O comunitarismo cristão pressupõe um retorno aos hábitos que fundaram a igreja antiga e, posteriormente, o movimento protestante. Essa volta busca reconstruir as características intrínsecas aos tempos heróicos da saga cristã, mas é, também, uma resposta à modernidade individualista e secularizada. A recuperação dos valores fundantes tornou-se evidente a partir do final do século XX e caracterizou-se pela formação de comunidades sociais autônomas nas grandes cidades. Esse retorno às origens leva naturalmente à busca das compreensões e fontes do cristianismo solidário, em clara oposição à racionalidade moderna. Desta forma, a expressão paulina “temos a mente do Cristo” traduz no comunitarismo cristão a redescoberta da importância da pessoa, imago Dei, e é tambem modo de defesa contra a estrutura racionalista que não supriu as necessidades existenciais do humano.

 

O que nos remete ao segundo objetivo do Manual, fornecer aos herdeiros da Reforma protestante, quer magisterial, quer radical, um aparato mínimo, bíblico e sistemático, que balize sua fé histórica. Pois, o estudo de temas bíblicos e sistemáticos como Ontologia, Cristologia e Pneumatologia, entre outros, é essencial porque não se pode pensar um líder evangélico que não seja solicitado a refletir sobre tais questões. Isso significa que os estudiosos da teologia têm, ou deveriam ter, uma compreensão da ação da teoria protestante sobre o pensar das pessoas e da própria realidade brasileira. A pesquisa dos temas teológicos apresentados neste Manual oferece, assim, condições teóricas para a superação da consciência ingênua e possibilita o desenvolvimento de uma consciência crítica, que permite compreender a riqueza dos fenômenos vividos pelos fiéis e pela comunidade, criando as condições para a construção de um conhecimento a respeito da experiência de fé da Igreja evangélica brasileira.

 

Lembrando o cântico de Maria: Agiu com a força do seu braço, dispersou os que, no coração, alimentavam pensamentos soberbos. Derrubou os poderosos do trono e exaltou os humildes. Encheu de bens os famintos e despediu vazios os ricos. Amparou a Israel, seu servo, lembrado de sua misericórdia, conforme prometera a nosso pais, em favor de Abraão e de sua descendência, para sempre”.

 

Uma boa leitura. Do amigo, Jorge Pinheiro.

 

 

 


 

 

 

 

Capítulo Um

COMO POSSO FAZER TEOLOGIA?

 

 

A pergunta acima nos remete a outra: o que é teologia sistemática? Antes de tudo, podemos dizer que traduziu através dos séculos a tentativa de organizar de forma ordenada as doutrinas da igreja cristã. Ou seja, entender o que faz do cristianismo uma fé diferente das outras religiões. Essas doutrinas, expressões da fé cristã, foram entendidas como afirmações das Escrituras sagradas, reveladas pelo Eterno a profetas e  apóstolos. Essa busca de formatar um sistema coerente do que as Escrituras sagradas dizem da fé cristã, apesar de ser uma busca antiga, só foi, de fato, realizada pela primeira vez no século VIII, quando João Damasceno escreveu a sua Exposição da Fé Ortodoxa, onde apresentou os textos clássicos dos pais orientais.

 

A igreja latina fez algo pelo estilo, quando, no século XII, Pedro Lombardo coletou citações dos pais no livro Sentenças. Esse texto – Sentenças de Pedro Lombardo -- tornou-se então a base dos estudos sistemáticos na igreja medieval até Tomás de Aquino publicar a sua Suma Teológica. Com a Reforma protestante, no século XVI, surgiu com Felipe Melanchton (Loci Communes) e João Calvino (As Institutas da Religião Cristã) um repensar da teologia cristã, que ficaria conhecida como ortodoxia protestante. Essa ortodoxia marcou a história e a produção da teologia sistemática nos séculos seguintes, que só foram rompidas e questionadas – essa história e produção – no século XIX, quando se afirmou que a teologia está baseada em algumas doutrinas fundamentais.

 

Surgiu então uma nova interpretação, ou seja, uma nova hermenêutica da fé cristã, que teve como fundador o pastor Friedrich Schleiermacher. Este teólogo luterano, nos anos de 1820, dirá que o centro da fé é a presença universal do Cristo, às vezes explícita, às vezes oculta, na humanidade. Tal presença dá a fé cristã uma consciência de total dependência. E, por isso, todas as nossas doutrinas deveriam ser entendidas como traduções desse sentimento de dependência. E foi assim, nessas construções através dos séculos, que chegamos aos temas principais da teologia sistemática: Escrituras sagradas; revelação; Trindade – Pai, Filho, Espírito --, o que desemboca na Cristologia e Pneumatologia; anjos e demônios; criação, ser humano; alienação e do pecado; salvação; igreja; e as últimas coisas. Logicamente, o ser humano nos leva à antropologia bíblica; e as últimas coisas, à escatologia e apocalíptica. 

 

Esse é o caminho que pretendemos seguir nesse Manual de Teologia Sistemática, porém, entendemos que sem uma teologia que parta das Escrituras sagradas como Palavra do Eterno, que procure caminhar colada às formulações bíblicas, dentro da herança protestante ortodoxa, corremos o risco de fazer uma teologia sistemática excessivamente filosófica. E essa não é nossa intenção. Por isso, vamos aqui apresentar três métodos de interpretação presentes na tradição protestante contemporânea, o método histórico-gramatical, o método histórico-crítico, e o método latino-americano da missão integral.

 

O método histórico-gramatical trabalha com quatro princípios: contextual, gramatical-literário, histórico e teológico. Reconhece a progressiva revelação do Eterno aos seres humanos, e vê os textos do Antigo e Novo testamentos como fundantes da teologia protestante ortodoxa.

 

O método histórico crítico nasceu a partir da concepção dialética de Hegel, passando pelos teólogos do século XIX, em especial Schleiermacher, tendo hoje fortes afinidades com a sociologia histórico-cultural. A pesquisa bíblica é aqui entendida como ato de reconstruir, direta e intencionalmente, a história do texto, que é vista como revelação, mas também humana e, por isso, histórica ao traduzir a experiência de fé de comunidades do Antigo e do Novo testamentos. Podemos sintetezar o método em cinco abordagens críticas: a redacional, que procura pesquisar o trabalho que os autores bíblicos,  como redatores e editores, fizeram com os materiais que tinham à disposição. A narrativa, que estuda a ênfase que os leitores na comunidade de fé dão a uma narrativa em particular. Procura, assim, determinar o significado do texto, de acordo com a reação que a pessoa de fé, dentro da comunidade, tem quando lê. A canônica, que examina como os textos considerados inspirados foram utilizados pelas comunidades cristãs. A literária, que analisa os recursos literários utilizados pelos autores do Antigo e do Novo testamentos. A da forma, que consiste no estudo da história bíblica, mediante a análise das formas estruturais originais presentes em determinado texto. 

 

No método histórico-crítico a interpretação é entendida como mediação no seio da prática comunitária. A prática comunitária pode ser olhada, então, como ponto de partida e ponto de chegada da pesquisa bíblica. Daí decorre um método de interpretação que parte da prática comunitária onde o teólogo, feito profeta, se encontra inserido em realidades onde é desafiado a julgar e transformar, condição que deve levar a uma relação da compreensão do texto bíblico com o encaminhamento da solução dos problemas colocados pela vida na comunidade. A ssim, a partir do método histórico-crítico cabe ao teólogo utilizar a revelação para viabilizar transformações na vida de pessoas e comunidades.

 

O método da Missão Integral partiu da hermenêutica histórico-crítica, mas teve uma preocupação fundante: compreender, julgar e transformar a realidade latino-americana. Ao se debruçar sobre os problemas da América Latina, como injustiça social e miséria, promoveu uma reflexão teológica contextual. Estrategicamente, propõe uma ação missionária que parta do ser humano real, latino-americano. Para isso, dialoga com as ciências humanas, entendidas como instrumento de análise e compreensão da vida latino-americana, e também com teologia da libertação. Embora faça a crítica do capitalismo neoliberal, assim como da teoria desenvolvimentista, e defenda a construção de sociedades solidárias, tem uma preocupação marcada: a preservação do evangelho bíblico. Nos últimos anos, tornou-se uma referência acadêmica nos seminários e faculdades de teologia brasileiros, por trazer a relidade latino-americana para as reflexões sobre a teologia bíblica e sistmática. Dessa maneira, o método da Missão integral tem marcado presença nos estudos da Bíblia, na reflexão missiológica e, por extensão, na própria educação teológica. 

 

Ao invés de opor um método ao outro, creio que os três se correlacionam e possibilitam novas reflexões nos estudos da Bíblia, mas também responder aos desafios da vida real de nossas comunidades. E, dessa forma, o imbricamento entre teologia sistemática e teologia bíblica permite ao leitor um olhar dialético, porque se a teologia sistemática está relacionada à filosofia e faz um caminho dedutivo, indo do geral ao particular; a teologia bíblica é indutiva, caminha do particular em direção ao geral. Ao analisarmos uma doutrina teremos sempre uma universalidade de leitura, mas também uma especificidade de leitura, o que nos possibilita pensar a teologia como balizamento para o viver diário.  

 

Dentro da herança cristã temos várias teologias bíblicas e mesmo sistemáticas, que traduziram maneiras confessionais de entender a fé cristã. Aqui, tomaremos como ponto de partida a teologia da ortodoxia protestante, que parte dos pais reformadores, sem esquecer as leituras apresentadas pelos reformadores radicais do século XVI e, depois, no século XX, pelos teólogos dialéticos. 

 

E voltamos à pergunta do título do capítulo: como podemos fazer teologia? Quais princípios metodológicos nortearão nossa pesquisa teológica? Essas duas perguntas, que podem parecer difíceis, a partir do que vimos, podem ser respondidas assim:

 

Tomaremos como princípio arquitetônico, fundante da teologia que vamos fazer, a doutrina da revelação, ou seja, as Escrituras sagradas como base e eixo da fé cristã. E tomaremos como princípio hermenêutico, os métodos acima descritos, entendendo, porém que as hermenêuticas são produtos da razão, que se expressam enquanto universalidade do senso comum; enquanto ordenação e sistematização do pensamento; e enquanto analise dos fenômenos da realidade que nos cerca.

 

Essas opções metodológicas nortearão nossas pesquisas teológicas, embora estejamos conscientes de que no correr da história da teologia foram construídas diferentes compreensões do fato teológico. E por que? Porque dependemos sempre do que colocamos como base da estruturação geral da revelação. Por exemplo, será a aliança, a justiça ou amor? E porque entendemos que partimos sempre de uma ou de múltiplas visões filosóficas que podem ser utilizadas como instrumentos de interpretação da essencialização da vida . É por isso que se diz: a ideologia define a hermenêutica. Aqui reside a dificuldade -- toda teologia é transitória, pois reflete um momento de compreensão da substância católica e da essencialização da vida . 

 

Neste Manual de Teologia Bíblica e Sistemática utilizaremos o Cristo lido a partir dos Evangelhos como referencial hermenêutico para pensar o Deus da fé cristã, tendo consciência de que assim fazendo não teremos todas as respostas, mas aquelas centrais para a vida. E recorreremos ao Cristo também para compreender o ser humanoE faremos assim, porque Cristo está no centro da fé cristã. Ele é divino e humano, ele revela o Eterno e o ser humano. E se Cristo é esta palavra sobre o Eterno, que fala às pessoas, é a comunicação de um Deus que se fez humano porque ama a humanidade.

 

 


 

 

 

 

 

Capítulo Dois

A SUBSTÂNCIA CATÓLICA

 

 

Uma vez por ano, os artesãos de uma tribo da Indonésia constroem um barco de madeira em miniatura e o levam à beira do rio. O líder religioso da tribo amarra uma galinha num lado do barquinho e coloca uma lanterna acesa no outro lado. Depois, cada membro da tribo passa perto do barquinho e coloca um objeto invisível entre a galinha e a lanterna. Quando se pergunta às pessoas o que deixaram no barquinho, elas respondem: meu pecado. O líder, então, deixa o barquinho ser levado pela correnteza do rio, enquanto as pessoas gritam: Estamos salvos!

 

Os teólogos do passado exprimiram numa linguagem metafísica dois elementos no conceito Deus: (1) como o ser mais real de todos, ou seja, Deus como substância absoluta, (2) e Deus como personalidade ético-espiritual, ou seja, como a forma mais perfeita.

 

Na consciência católica, ou seja, na revelaçao universal, é o primeiro elemento que domina, e na consciência protestante, que repousa sobre o evento crístico, é o segundo elemento. Para o católico, a graça é uma comunicação da substância divina; para o protestante, a graça é a comunhão ética com a personalidade divina. A explicação dessa diferença parte do fato de que o catolicismo produziu uma religião de massa e uma mística suprapessoal que não se opõe à religião de massa, ao contrário, é decorrência dela. Já o protestantismo foi beneficiado pela emergência de personalidades e comunidades, elementos que não se excluem.  

 

A história das religiões mostra, segundo Tillich, que o elemento fundamental da religião é a aspiração não-racional presente nas formas, que vibra interiormente sob o efeito da irradiação do que não pode ser capturado através da lógica e da lei ética. Mais tarde, no correr da vida, vai desenvolver este conceito, chegando à conclusão de que esta substância universal de Deus é uma dimensão intrínseca à fé humana e ao cristianismo, que pode ser, então, compreendida em três elementos: 

 

· A intuição da presença do sagrado

· comunidades do amor, que reúnem pessoas antes separadas umas das outras

· a presença essencial à vida, manifesta em tradição e dos símbolos. 

 

Embora a igreja protestante tenha nascido de um protesto crítico contra a absolutização desses elementos da substância católica na instituição Igreja Católica Romana, tal substância universal pode ser entendida como princípio do cristianismo, que deve também se fazer presente no protestantismo. 

 

O princípio protestante é subconjunto e centralidade da substância católica, enquanto relação entre a manifestação da essência na existência e a afirmação do significado do evento crístico. Fazendo uma releitura contemporânea de Tillich, ao afirmamos que o princípio protestante é subconjunto da substância católica, estamos dizendo que a substância católica apresenta-se sob as dimensões não-históricas e históricas como identidade subjacente. Ou seja, quando nos referimos à história e à cultura é a substância que, para além de toda a situação, nos fornece os símbolos de uma situação última, a unidade universal do reino de Deus. Dentro dessa unidade universal do reino de Deus encontra-se o princípio protestante enquanto evento fundante do cristianismo, que tem uma relação de centralidade com a substância católica. É o princípio protestante que retira da figura humana de Jesus tudo que nela poderia ser materializado como idolatria, por sua facticidade histórica. É por meio do símbolo da cruz que desaparecem as particularidades e o finito do evento Jesus, dando lugar ao significado presente do Cristo. 

 

O paradoxo do aparecimento do Cristo na existência sem a deformação da existência é uma interpretação radical do símbolo da cruz que, segundo Dourley, salva o significado da crucifixão da idolatria de se permanecer na adoração de um objeto histórico e por isso limitado, finito, enclausurado num tempo e espaço passados. O princípio protestante, lido sob tal perspectiva, apresenta, a cruz como presente e fim, como revelação e escathon que remetem ao kairós.

 

Mas, o protestantismo caiu numa armadilha ao abandonar a unidade universal da substância, que mantém e possibilita o resgate do sentido de Deus nas profundezas do humano. Devido a esse deísmo bíblico, em sua aridez do “deo dixit”, da palavra que se resume na ética do texto, as profundezas da interioridade humana foram esquecidas e perderam seu vigor teológico. Por isso, Tillich propõs a manutenção da relevância do kerigma cristão, tão a gosto de Barth, em aliança com o reconhecimento da presença do sagrado expresso na cultura e nas dobraduras da secularidade. 

 

É a partir daí que Tillich lança ao conceito de comunidade espiritual, como definição de um processo de essencialização, de salvação, já que para ele o significado da vida, existencial e pessoal consiste na recuperação do ser essencial em Deus. Ou como diz, “a comunidade espiritual é latente antes do encontro com a revelação central, e é manifesta depois desse encontro”. E nesse processo de essencialização, Cristo é o elemento final que possibilita o kairós, pelo qual a história humana sempre esperou. A partir daí entende que há um processo de essencialização das pessoas e das comunidades, que vivem processos de essencialização sob o poder crístico, enquanto membros de uma igreja latente.

 

E mais, considera que esta igreja latente está teologicamente ligada à igreja manifesta e por isso é levada a Cristo, cuja fé, amor e cruz estabelecem o fenômeno da conversão, enquanto mudança de sentido de uma participação latente para uma participação manifesta na comunidade espiritual. Dessa maneira, é a fé e o amor de Cristo que levam à autocrítica radical capaz de estabelecer distinção entre o essencial e as formas através das quais o essencial se manifesta. A afirmação de que a igreja latente se complementa na igreja manifesta justifica a missão cristã. Ou como Tillich afirmou: “a comunidade espiritual está relacionada tanto com a cultura e a moralidade quanto com a religião, e a presença espititual torna necessária uma mudança radical na atitude para com o que é incondicional”. Convém lembrar, porém, que Tillich combateu toda expressão de arrogância na relação entre igreja manifesta e igreja latente, ao reconhecer a presença da espiritualidade nas religiões e na cultura. Por isso, sugere que a missão combine ofensiva e mediação. Ofensiva no sentido barthiano e mediação no sentido de correlacionar o kerigma com a questão cultural.

 

Assim, o conceito de substância católica é valioso para a compreensão da missão no protestantismo. A missão cristã, partindo desta leitura admite que a realidade manifesta no cairos de Cristo está em ação na cultura. Dessa maneira, a missão consiste em procurar identificar as maneiras por meio das quais o essencial, manifesto no evento Cristo, se faz presente na cultura. Tal procura possibilita a apropriação da experiência cristã ao considerá-la enquanto manifestações do essencial, além de sinalizar caminhos nos quais a autocompreensão cristã pode ampliar contatos com culturas e povos.

 

Sanders considera que o amor de Deus pelos seres humanos nunca ficou suspenso esperando que missionários levem o Evangelho àqueles que não conhecem o evento crístico, embora deseje que todos ouçam acerca das coisas que seu Filho tem feito. Assim, afirma, “o Espírito age ativamente quando, onde e como ele quer, trazendo pessoas para um relacionamento com Deus, antes mesmo que o Evangelho as alcance”.

 

E Lewis diz, quem se entrega em fé Àquele que está por trás de toda verdade e bondade será salvo, mesmo que nada saiba sobre o evento crístico. “Há, pessoas em outras religiões que estão sendo guiadas pela influência secreta de Deus para se concentrarem naqueles pontos de sua religião que estão de acordo com o cristianismo e que assim pertencem a Cristo sem o saber. 

 

E afirma também: “Eu acho que toda oração que é feita sinceramente, mesmo a um falso deus (...) é aceita pelo Deus verdadeiro e que Cristo salva muitos que não acham que o conhecem.

 

E nas Crônicas de Nárnia conta a história de um homem chamado Emeth, verdade em hebraico, que fora criado num país onde o principal deus chamava-se Tash. Emeth lutou contra o país de Nárnia, cujo Deus era Aslan, uma figura crística. Através de uma série de circunstâncias, nosso herói Emeth tem uma visão do deus Tash e percebe que Tash é o maligno. Impelido pela visão, ele vagueia pelos bosques. Lá Aslan o encontra, e acontece o seguinte diálogo: 

 

-- Ai de mim, Senhor! Não sou filho teu, mas, sim, um servo de Tash.

-- Criança, todo o serviço que tens prestado a Tash, eu o considero como serviço prestado a mim... por sermos o oposto um do outro é que tomo para mim os serviços que tens prestado a ele. Pois eu e ele somos tão diferentes, que nenhum serviço que seja vil pode ser prestado a mim e nada que não seja vil pode ser feito para ele. Portanto se qualquer pessoa jurar em nome de Tash, e guardar o juramento por amor a sua palavra, na verdade jurou em meu nome, mesmo sem saber, e eu é que o recompensarei. E, se um ser humano cometer alguma crueldade em meu nome, então, embora tenha pronunciado o nome de Aslan, é a Tash que está servindo e é Tash quem aceita suas obras...

 

E constrangido, Emeth acrescenta:

-- Mesmo assim tenho aspirado por Tash todos os dias da minha vida.

-- Amado, não fora o teu anseio por mim, não terias aspirado tão intensamente, nem por tanto tempo. Pois todos encontram o que realmente procuram.

 

Para Lewis, Deus salva pessoas e comunidades de acordo com o princípio da fé descrito por Paulo em Romanos (2.7): “Deus dará a vida eterna às pessoas que perseveram em fazer o bem e buscam a glória, a honra e a vida imortal”.

 

O protestantismo em missão têm vivido na prática a substância católica. Essa leitura apresenta as bases para uma esperança maior no modo específico no qual o desejo de Deus de essencializar todos os seres humanos pode ser realizado. O ponto de vista defendido é que Deus ama todos os seres humanos e deseja que sejam salvos. Todos são essencializados em razão do evento crístico, quer sejam conscientes ou não desse evento que projeta o kairós. A substância católica apresenta a igreja latente como comunidade que caminha, pela obra expiatória que desconhecem, em direção à essencialização. Ou seja, Deus aceita todos os que exercem fé nele, sem levar em consideração até que ponto vai o conhecimento dessas pessoas.

 

Tillich enriqueceu o conceito de substância católica ao vê-lo em processo de correlação com o princípio protestante, e que mesmo nas diferentes confissões protestantes encontramos defensores da substância católica como fundamental para a vida teológica. É o caso de A. H. Strong, que trabalha o processo de essencialização, embora não utilize a mesma terminologia. Tais considerações, nos permitem dizer que, provavelmente, o conceito substância católica represente a abordagem mais próxima de um consenso entre os pensadores cristãos na atualidade.

 

Na teologia, a substância católica remete à antropologia, baseada na compreensão de que a humanidade é imago Dei e se encontra em choque com a alienação do tempo presente. Mas a memória humana persiste como impulso na direção da recuperação daquele mau-encontro exposto por La Boétie. Esta dialética traduz e explicita a presença da espiritualidade do espírito humano.

 

A humanidade é universalmente espiritual, e a partir da tensão entre universal e particular localiza o particular no contexto do universal. Em vez de considerar o universal como conceito puro e pleno, traz o particular para dentro do contexto dessa humanidade universalmente espiritual. Tal ênfase exige que o teólogo aprecie as manifestações do essencial nas culturas. Mas nem por isso o compromisso com a fé cristã é diminuído. Ao contrário, a fé é aprofundada por meio do reconhecimento das variações daquilo que os cristãos percebem no evento Cristo, tanto nas religiosidades como nas dobraduras da secularidade.

 

Assim, a radicalidade do princípio protestante pode ser aplicada às materializações da substância católica na direção da essencialização do humano, denunciando as expressões idolátricas que ameaçam a comunidade humana.

 

Dessa maneira, consideramos que substância católica é a comunicação do Eterno e da sua vontade para o ser humano, e inclui tanto o ato, como o conteúdo resultante. A substância católica é universal, mas também particular. 

 

Substância católica é a automanifestação do Eterno a todos os seres humanos, em todos os lugares e em todas as épocas por meio de Sua criação. Os meios da substância católica, ou universal, incluem a natureza (Salmo 19.1-6; Romanos 1.18-21), a providência (Mateus 5.45; Atos 17.24-28; Romanos 8.28), a preservação do universo (Colossenses 1.17) e a personalidade humana: consciência moral (Gênesis 1.26; Romanos 1.32-2.16) e razão (Romanos 1.20-22.25).

 

A substância católica e natureza

 

“A ira de Deus se revela do céu contra toda impiedade e perversão dos homens que detêm a verdade pela injustiça; porquanto o que de Deus se pode conhecer é manifesto entre eles, porque Deus lhes manifestou.  Porque os atributos invisíveis de Deus, assim o seu eterno poder, como também a sua própria divindade, claramente se reconhecem, desde o princípio do mundo, sendo percebidos por meio das coisas que foram criadas. Tais homens são, por isso, indesculpáveis; porquanto, tendo conhecimento de Deus, não o glorificaram como Deus, nem lhe deram graças; antes, se tornaram nulos em seus próprios raciocínios, obscurecendo-lhes o coração insensato”. Romanos 1.18-21.

 

“Os céus proclamam a glória de Deus, e o firmamento anuncia as obras das suas mãos.  Um dia discursa a outro dia, e uma noite revela conhecimento a outra noite.  Não há linguagem, nem há palavras, e deles não se ouve nenhum som;  no entanto, por toda a terra se faz ouvir a sua voz, e as suas palavras, até aos confins do mundo. Aí, pôs uma tenda para o sol, o qual, como noivo que sai dos seus aposentos, se regozija como herói, a percorrer o seu caminho. Principia numa extremidade dos céus, e até à outra vai o seu percurso; e nada refoge ao seu calor”. Salmo 19.1-6.

 

A substância católica e providência

 

“Sabemos que todas as coisas cooperam para o bem daqueles que amam a Deus, daqueles que são chamados segundo o seu propósito”. Romanos 8.28.

 

A substância católica remete à revelação particular, que é a automanifestação do Eterno para determinadas pessoas, em tempos e lugares definidos, a fim de que tais pessoas entrassem num relacionamento redentor com ele, testemunhassem e registrassem a história do Eterno na vida delas e na vida das comunidades delas. A Palavra registrada nas Escrituras e o Cristo encarnado são os dois momentos da revelação especial do Eterno ao ser humano.

 

O Eterno fala

 

“Tendo eu voltado para Jerusalém, enquanto orava no templo, sobreveio-me um êxtase, e vi aquele que falava comigo: Apressa-te e sai logo de Jerusalém, porque não receberão o teu testemunho a meu respeito. Eu disse: Senhor, eles bem sabem que eu encerrava em prisão e, nas sinagogas, açoitava os que criam em ti. Quando se derramava o sangue de Estevão, tua testemunha, eu também estava presente, consentia nisso e até guardei as vestes dos que o matavam. Mas ele me disse: Vai, porque eu te enviarei para longe, aos gentios”. Atos dos Apóstolos 22.17-21.

 

Cristo e a substância católica

 

“E o Verbo se fez carne e habitou entre nós, cheio de graça e de verdade, e vimos a sua glória, glória como do unigênito do Pai”. João 1.14.

 

O evento crístico oferece o norte para a comunidade de fé, no que se refere ao ensino proposicional e à prática cristã. Tal evento, que absorvemos como conteúdo cultural, histórico e social e se torna universal sob a ação do Espírito.

 

 “Toda a Escritura é inspirada por Deus e útil para o ensino, para a repreensão, para a correção, para a educação na justiça”. II Timóteo 3.16.

 

Quando Paulo disse que a Escritura é divinamente inspirada empregou a expressão grega teopneustos, composta das palavras Deus e sopro, respiração. A ideia que a expressão teopneustos quer transmitir é a de “soprado por Deus”. Mas, foram poucas as vezes em que textos foram ditados aos escritores. Na maioria dos casos, o Eterno trabalhou nas mentes e isso não aconteceu como processo mecânico – as personalidades e os temperamentos estão presentes nos textos. Na verdade, nas escrituras judaico-cristâs as palavras são dos escritores, mas também, e sobretudo, do Eterno. Vejamos um exemplo: a carta de Paulo aos Romanos é uma carta de Paulo mas, num sentido maior, é uma carta do Eterno aos romanos. 

 

A presença divina das Escrituras não anula ou exclui a realidade da autoria humana com as particularidades daí resultantes. As Escrituras são a palavra do Eterno ao ser humano, mas também uma composição humana. Não podemos ignorar o fator humano nas Escrituras, que está aparente nos textos. Ninguém pode engrandecer o divino, atropelando a ação do escritor que o Eterno escolheu para testemunhar e registrar a sua história. Divino e humano devem ser reconhecidos, para que possamos entender como a revelação foi realmente traduzida para às necessidades humanas, enquanto instrumento da graça divina. Quanto à sua fonte e quanto à sua autoridade, a palavra não é do humano, nem dependeu do humano. Mas foi escrita por meio de pessoas, para que pelo humano e através do humano como agente ativo, inteligente e voluntário, recebêssemos a comunicação do Eterno. Ou seja, pessoas chamadas por Deus escreveram quando foram tocadas pelo Espírito (2Pedro 1.21). Pessoas falaram, escreveram, mas a direção foi do Eterno.

 

Por isso, dizemos que a inspiração é a ação divina que guia os autores humanos das Escrituras, utilizando suas personalidades, estilos e culturas, a fim de que testemunhassem e registrassem as histórias do Eterno junto a seu povo. A inspiração é plena e verbal. O texto é cem por cento divino e cem por cento humano, no sentido de que Deus não possessionou os escritores, mas guiou, utilizando os conhecimentos, a partir da cultura e história de cada um deles. Porém, quando falamos de revelação e inspiração falamos da produção dos manuscritos, não das traduções posteriores.

 

É palavra do Eterno

 

“Porque a palavra de Deus é viva, e eficaz, e mais cortante do que qualquer espada de dois gumes, e penetra até a ponto de dividir alma e espírito, juntas e medulas, e é apta para discernir os pensamentos e propósitos do coração”. Hebreus 4.12

 

É fiel e transformadora

 

“Se formos infiéis, ele permanece fiel, pois de maneira nenhuma pode negar-se a si mesmo”. II Timóteo 2.13

 

“Toda a Escritura é inspirada por Deus e útil para o ensino, para a repreensão, para a correção, para a educação na justiça”. II Timóteo 3.16.

 

“Se ele chamou deuses àqueles a quem foi dirigida a palavra de Deus, e a Escritura não pode falhar”. João10.35

 

“... sabendo, primeiramente, isto: que nenhuma profecia da Escritura provém de particular elucidação;  porque nunca jamais qualquer profecia foi dada por vontade humana; entretanto, homens santos falaram da parte de Deus, movidos pelo Espírito Santo”. 2Pedro 1.20-21.

 

“... para que, mediante duas coisas imutáveis, nas quais é impossível que Deus minta, forte alento tenhamos nós que já corremos para o refúgio, a fim de lançar mão da esperança proposta...” Hebreus 6.18.

 

“As tuas palavras são em tudo verdade desde o princípio, e cada um dos teus justos juízos dura para sempre”. Salmo 119.160.

 

“Disto também falamos, não em palavras ensinadas pela sabedoria humana, mas ensinadas pelo Espírito, conferindo coisas espirituais com espirituais”. I Coríntios 2.13

 

“... na esperança da vida eterna que o Deus que não pode mentir prometeu antes dos tempos eternos...” Tito 1.2

 

I. SUBSTÃNCIA CATÓLICA E CONHECIMENTO

 

O desafio maior para quem analisa significações é o próprio exercício da leitura. O desejo de conservar a linguagem pode levar a uma solução oposta àquela que se pretende. Considerar o simbólico como abstrato e irrelevante é, em última instância, separar signo e objeto. Quando um texto passa a ser apenas e somente um conjunto fechado costumamos dizer que compreendemos o referido texto. Mas ao fazer isso, na verdade, eliminamos a possibilidade de restaurar sua intenção original e de ultrapassar a letra para captar o sentido primeiro de seu autor. Logicamente, essa hermenêutica tem como ponto de partida, e exige como garantia, a compreensão do primeiro discurso.

 

Em novembro de 1942, o poeta e crítico Ezra Pound afirmava que “o mistério profundo da vida é descobrir porque os outros não compreendem aquilo que se escreve e diz. A coisa parece simples e clara ao escritor, mas outros o tomam em sentido diferente. E se gastam anos para saber porque e como”. Logicamente, como autor e crítico, Pound falava de hermenêutica em seu sentido laico, que não implica na inesgotabilidade do texto sagrado. Produto não inspirado, esse texto, fruto da inteligência e arte de um homem, pode ser percorrido por outro homem em sua totalidade, arrancando do discurso poético os elementos lógicos que lhe deram constituição, interpretando-o com tal maestria e clareza quanto poderia fazê-lo seu próprio autor. Mas mesmo assim, como alerta Pound, isso pode transformar-se em tarefa de anos.

 

Interpretar o texto bíblico, decifrá-lo, arrancar dele significações é um desafio que não se resume a um homem ou a um curto período de anos. As Escrituras Sagradas, enquanto ação revelatória do Criador apresenta mais conteúdos do que é perceptível na leitura de toda uma geração. Aqui há uma dialeticidade que permanecerá no equilíbrio de seus contrários, sem solução ou síntese enquanto houver história, afinal a revelação do que é perfeito dá-se através de um instrumento imperfeito, a linguagem humana. Nossa necessidade histórica de interpretar nasce daí, dessa inadequação entre significante e significado; Ou como diz Mezan:

 

A tarefa do intérprete consiste, pois, na explicitação da mensagem divina, através do raciocínio bem dirigido. As conclusões a que se chega nada acrescentam ao significado do texto, pois já estavam contidas ali desde sempre; embora para ele sejam novas, uma vez que diferem do que está escrito, em si mesmas não o são, porque estavam gravadas no subsolo do texto que se interpretou. Contudo, sendo a Bíblia obra de um ser infinito, as interpretações jamais se esgotam. Cada novo corte no texto aprofunda o seu sentido, mas é sempre possível avançar mais. Elas se sucedem através do tempo, porém, por mais surpreendentes que pareçam, têm a garantia de se situarem no mesmo campo inicial”. 

 

No processo da substância católica  podemos distinguir vários elementos que se sobrepõem e se completam. Dentre eles, o mais fascinante é a questão do significado e do significante. A revelação dá-se através de um processo de adequação histórica. Entretanto esse conhecimento não demanda unicamente a apreensão de uma determinada realidade. Faz-se necessário que esta realidade seja apreendida de uma determinada maneira, consoante a uma construção de análise e síntese.

 

Como premissa fundamental temos que reconhecer uma justaposição entre conhecimento intuitivo e conhecimento discursivo. O conhecimento intuitivo faz-se a partir das condições para que ele se processe, imediatamente, frente a uma determinada realidade, ao passo que o discursivo requerer passar de algo conhecido, através de uma série de juízos, à apreensão do ainda não apreendido. Ao primeiro processo chamamos sintético e ao segundo analítico.

 

A substância católica não se dá simplesmente como processo de adequação da mente humana ao novo que lhe é apresentado. Impõe-se que o novo, inerente ao processo cognoscitivo, tenha um significado. Uma relação de significado em que o homem opera como ser significante e o novo como ser significado. Desta forma, a substância católica  não se processa entre realidades ahistóricas, mas em relação espacial e temporal, que exige, para que a interação homem/realidade se estabeleça, de que haja algo maior, alguma coisa além de ambos, não causal, mas essencial. No processo da revelação, o homem se encontra em processo de construção, já que não é pleno senhor do processo. É um ser colocado no tempo e no espaço, que estabelece relação com a realidade que o cerca dentro do processo cognoscitivo enquanto dimensão humana e histórica.

 

Outro pressuposto é a natureza genética da linguagem, que se encontra em constante devir. Dessa maneira, significado e significante estão intimamente ligados a linguagem, enquanto revelação e construção histórica e social. Compreendemos que, dependendo da utilização de determinado objeto ou realidade, o homem o conhece de determinada forma, e no processo pode construir conceitos diferentes a partir de um objeto ou realidade anteriores. Podemos inferir ao que isso conduz. A substância católica está ligada à vida do humano, já que será a própria experiência humana que agregará valor ao objeto ou realidade antes conhecidos e vividos. 

 

Dessa maneira, o velho vai gerar o novo, uma essência que transcende, uma universalidade, a partir da própria experiência de vida, que teologicamente podemos chamar de obediência ao mandamento do Eterno. Mas ainda não definimos a importância do significado e do ser significante dentro do processo da revelação.  Se a substância católica  é histórica, é importante notar que a própria revelação age sobre a vida humana, sobre a historicidade do homem. E mais do que isso, ao definir a historicidade humana muda o próprio meio onde o homem vive e atua. Dessa forma, a substância católica  cria processos de formação, escalas de valores, normas e condicionamentos. E é aí que reside toda a problemática da substância católica enquanto conhecimento: como o ser humano, a partir da revelação, pode conhecer ao Eterno, seu propósito e dar um sentido ao mundo que o cerca, assim como achar o seu papel dentro de todo esse complexo?

 

A verdade da substância católica  é o significado que uma determinada realidade tem para a comunidade e a pessoa. Há uma construção intuitiva, quando a experiência da revelação produz uma interação entre o homem e a divindade, sem que essa experiência necessariamente influa no processo discursivo de conhecimento. Mas mesmo neste caso o homem não abandona ou perde sua formação. Não deixa de ser aquilo que é: pessoa inserida em determinada comunidade. Mesmo quando esse processo dá-se em um nível superior, instantaneamente, sem elaboração discursiva, o homem está condicionado pela historicidade do ser cognoscente. E dentro dessa condicionante sempre se processa a interação homem/realidade. Aqui, sentimentos e afetividades, que geralmente passam despercebidos, são realçados. Isso porque nesse momento específico determinado realidade passa a ter significado, que mesmo não sendo inerente, exige que se lhe dê um. E nesse caso o conhecimento da revelação faz do humano ser significante.

 

A substância católica  dá ao mundo um significado imanente. O homem, enquanto pessoa e comunidade, através da revelação passa a estar dotado de significado, mas ao mesmo tempo este conhecimento, este significado dado, não se dá ahistoricamente, mas dentro das limitações de sua própria obediência. Podemos, então, concluir que a partir da substância católica o ser humano é o significante da construção da comunidade, pois através do conhecimento da revelação é ele quem historicamente pode modificar causas e efeitos, imprimindo ao processo nova direção. Como se processa a relação entre significado e significante, quer no caso isolado da interação entre homem e realidade, quer no caso de todo o processo da revelação? Vimos que dentro do conhecimento da substância católica o humano é um ser significante. Podemos, então, ver que a escala de valores do sistema ético, oferecido pela revelação à comunidade, é parte integrante do significado dado ao mundo pela própria revelação. Donde, dentro de uma interação significado/significante existem elementos dinâmicos de transformação.

 

O universo é o mundo do ser humano. Nesse sentido, aí ele constrói seu habitat. Desta forma, através do significado dado pelo homem à natureza, enquanto domínio e expansão, dentro de um significado de utilização que lhe empresta, atua sobre ela, produzindo cultura e transformação.

 

A revelação, enquanto relação entre significante e significado é dialética. Pois se é ela que faz da pessoa e da comunidade ser significante, permite ao homem e sua comunidade transferir ao mundo que o cerca, à cosmovisão que utiliza essa mesma significação. Ao fazer significante a realidade que o cerca, o homem dá origem a transformações, engendra causas, e passa à construção do futuro, já não como utopia, mas como realidade. Para viabilizar tais transformações é necessário que transfira, enquanto comunidade, novos significados aos processos históricos e sociais.

 

Através da relação estabelecida entre significado e significante encontraremos as causas de conotações. À circuncisão, por exemplo, a partir de determinado momento, daremos a conotação de aliança. A circuncisão é aliança, marca de um povo separado, mandamento de Iaveh, mas só será isso quando um ser (pessoa ou comunidade) que se torna seu significante lhe dê significado. 

 

II. SUBSTÃNCIA CATÓLICA E LINGUAGEM

 

A substância católica  não pode ser identificada apenas como expressão do Criador, nem somente com os estados que provoca nos sujeitos receptores. Cada estado de consciência subjetiva tem algo de individual e momentâneo que o torna inapreensível e incomunicável em seu conjunto, mas a revelação está destinada a servir de intermediário entre seu autor e a comunidade.

 

A linguagem enquanto representação da substância católica  no mundo sensível, sem nenhuma restrição, é acessível à percepção de todos. Mas, ainda assim, não podemos reduzir a revelação à linguagem, pois acontece que a revelação, deslocando-se no espaço e no tempo, muda de aspecto e reformata conteúdos: tais mudanças tornam-se palpáveis, por exemplo, quando comparamos os conteúdos originais de nefesh com os conteúdos transmitidos pela psiquê da cultura grega.

 

A linguagem traduz na maioria das vezes apenas o significante, ao qual na consciência da comunidade corresponde uma significação, dada pelo que têm de comum os estados subjetivos provocados pela linguagem nos membros da comunidade.

 

Além desse núcleo central, pertencente à consciência da comunidade há em todo ato de percepção da substância católica  elementos psíquicos subjetivos, que podem ser entendidos como fatores associativos de percepção emocional e estética. Tais elementos subjetivos podem, por sua vez, ser objetivados, mas somente na medida em que sua qualidade geral ou sua quantidade são determinadas pelo núcleo central, situado na consciência da comunidade. Por exemplo, o estado de nefesh, subjetivo, que acompanha em não importa qual pessoa a percepção de uma revelação específica – como a circuncisão da comunidade liderada por Abraão – é de um gênero inteiramente diverso daqueles estados que a circuncisão em si evoca. 

 

Quanto às diferenças qualitativas, é evidente que a quantidade de representações e emoções subjetivas é mais considerável numa revelação em construção do que naquela que já foi conscientizada coletivamente. O primeiro momento da construção da substância católica  deixa a cargo do ser humano imaginar quase toda a contextura do tema, enquanto que a revelação conscientizada pela comunidade suprime quase por completo a liberdade de suas associações subjetivas pela enunciação concisa.

 

É desta maneira que, indiretamente, através do núcleo pertencente à consciência da comunidade que os conteúdos subjetivos do estado psíquico do sujeito perceptor adquirem um caráter objetivamente semiológico, similar ao que têm as significações acessórias de uma palavra. Ao negarmos a relação existente entre a substância católica  com um estado psíquico subjetivo rejeitamos a realidade estética da revelação. Sem esses conteúdos emocional e estético a revelação pode no máximo atingir uma objetivação indireta na qualidade de significação acessória potencial.  Porém, não podemos dizer que esses conteúdos emocional e estético fazem necessariamente parte da percepção da revelação, mas, sem dúvida, no processo progressivo da substância católica  há épocas em que esses conteúdos tendem a reforçá-la, assim com há outras épocas em que perdem força ou mesmo, aparentemente, desaparecem.

 

É no contexto dos fenômenos sociais que a substância católica, enquanto fenômeno social distintivo, é capaz de caracterizar e representar época e história. Por isso, não podemos confundir história da revelação com história da cultura, pois a história humana acontece como subconjunto da história da substância católica. É verdade que a relação entre substância católica e contexto social muitas vezes nos parece mal amarrada. Quando dizemos que a revelação visa a transformação definitiva do contexto social, não afirmamos com isso que ela coincide necessariamente com ele, mas que como signo, tem sempre uma relação indireta com o contexto social, mesmo enquanto metáfora. Assim, a natureza semiológica da substância católica decorre que jamais uma revelação deve ser explorada como documento histórico ou sociológico sem a interpretação prévia de seu valor documentário ou da qualidade de sua relação com o contexto dados fenômenos sociais.

 

Dessa maneira, o estudo objetivo dos fenômenos da substância católica deve considerar cada revelação em particular como um signo composto de símbolo sensível; de uma significação ou percepção estética e emocional depositada na consciência da comunidade; e de uma relação com a realidade significada, relação esta que visa o contexto social. O segundo desses componentes contém a estrutura propriamente dita da substância católica.

 

Ao lado da função de signo autônomo, a substância católica tem ainda a função de signo comunicativo. Uma revelação dada – voltemos ao exemplo da circuncisão da comunidade dirigida por Abraão – não funciona somente como substância católica, mas também como fala que exprime um estado da nephesh, pensamento, emoção, etc. A substância católica tem portanto uma dupla função semiológica, autônoma e comunicativa. Por isso, vemos aparecer no movimento progressivo da substância católica a antinomia dialética da função de signo autônomo e de signo comunicativo. A história da aliança (Gn 15, Gn 17, etc.) oferece exemplos expressivos dessa verdade.

 

III. SUBSTÂNCIA CATÓLICA E REVELAÇÕES

 

O homem deve tomar a melhor e a mais incontestável das teorias humanas e usá-las como a jangada sobre a qual ele possa navegar, ainda que não sem risco, se é que ele não pode achar alguma palavra de Deus que possa conduzi-lo com mais certeza e segurança”. Platão, Phaedo, 85b. 

 

Lâmpada para os meus pés é a tua palavra e luz para os meus caminhos”. Sl 119.10. 

 

A Palavra é um leão. Deixe-a solta!” Martin Lutero.

 

Vamos relembrar alguns conceitos: a revelação é o ato de desvendar, descobrir. Na teologia, é a comunicação do Eterno e da sua mensagem para o humano, e inclui tanto o ato, como o conteúdo resultante. A substância católica é geral e particular. Substância universal é a automanifestação do Eterno aos humanos, em todos os lugares, por meio de Sua criação. Os meios da substância universal incluem a natureza (Sl 19.1-6; Rm 1.19-20), a providência (Mt 5.45; At 17.24-28; Rm 8.28), a preservação do universo (Cl 1.17), e personalidade humana: consciência moral (Gn 1.26; Rm 1.32-2.16) e a razão (Rm 1.20-22.25). Revelação particular e especial é a automanifestação do Eterno para certas pessoas, em tempos e lugares definidos, a fim de que tais pessoas entrem num relacionamento redentor com ele. A Palavra registrada nas Escrituras e o Logos são os dois momentos da revelação especial do Eterno ao ser humano.

 

É comum se pensar o conhecimento como algo meramente racional. Teologicamente, conhecimento é fé (Hb 11.1), assim aqueles que consideram o conhecimento como processo puramente racional, também vêem a fé como puramente racional. Excluem assim a vontade, o afeto, a personalidade, a ação humana, as obras e as experiências de sua compreensão de fé. Tal abordagem nos levam a fazer três perguntas, que elucidarão a relação entre revelação e conhecimento.

 

1. Qual é a natureza da fé?

2. A fé vem antes ou depois do arrependimento?

3. A fé vem antes ou depois da regeneração?

 

Respondendo ao primeiro questionamento, consideramos que a fé depende de uma opção da pessoa e que é um estado do coração. Vejamos porque: tomando por base alguns textos (Rm 10.9-10; 1Jo 5.1; Jo 5. 38-40, 42, 44; 2Ts 2.10; At 8. 37) podemos dizer que a fé (1) é um dever e, portanto, a vontade está incluída; (2) que é uma graça entregue pelo Espírito Santo (1Co 13), e sendo graça não está limitada ao intelecto; (3) que dá glória ao Eterno e não se dá glória ao Eterno só com a razão, já que envolve toda a personalidade humana; (4) expressa-se em termos de afeto (2Ts 2.10). Ora receber inclui afeto, implica assim em engajamento de afetividades (Rm 10.9-10); (5) a falta de fé está ligada a uma disposição moral (Jo 5; 8.33+; Hb 3; Ef 4.17). A incredulidade é um estado do coração, não é um erro enquanto abordagem meramente racional.

 

Em relação à segunda questão, se não houver arrependimento não há fé verdadeira. João, o batista, pregava o batismo do arrependimento. Ver também o chamado de Jesus em Mc 1.15; Lc 24; e a experiência da igreja primitiva em At 2.37-38; 3.19; 5.31; 20 e 26.18.

 

Quanto ao terceiro questionamento consideramos que sem regeneração não há fé. Os textos que nos levam a pensar assim são 1Co 2.10-16, 1Co 12.3; a experiência de Nicodemos (Jo 3) e Rm 8.7.

 

A compreensão da fé ou do conhecimento da revelação com opção do coração, arrependimento e regeneração elimina idéia de que podemos conhecer exclusivamente através de processos racionais. Por isso dizemos que o processo de conhecimento da revelação está ligado à obediência, que em última instância é disposição positiva do coração, enquanto totalidade da personalidade humana, arrependimento e regeneração de vida.

 


 

 

 

 

 

Capítulo três

O DEUS TRINO

 

 

Vamos começar esse capítulo com a cláusula joanina que encontramos na Primeira carta de João 5.7-8. Sabemos que alguns estudiosos afirmam ser esse pequeno texto um acréscimo feito à carta do apóstolo no século XII, no Quarto Concílio de Latrão. Mas o certo é que está presente em nossas bíblias, e diz, dependendo da tradução, que “há três que dão testemunho [no céu: o Pai, a Palavra e o Espírito Santo; e estes três são um. E três são os que testificam na terra]: O Espírito, a água e o sangue, e os três são unânimes num só propósito". E nas bíblias que descartam a cláusula joanina a redação segue este padrão “são três os que dão testemunho: o Espírito, a água e o sangue, e os três estão de acordo entre si”.

 

Por ser uma referência explícita à Trindade é rejeitado pelas correntes cristãs que não aceitam este dogma e, por isso, não está incluído em suas versões da Bíblia. Mas, a própria Igreja Católica, apesar de aceitar o dogma da Trindade, não reconhece o "Parêntese Joanino" como autêntico, e não o inclui em sua Bíblia canônica.

 

Veja o que diz a Bíblia de Jerusalém, tradução católica, em uma de suas notas:

 

"O texto dos vv. 7-8 está na Vulgata de um inciso (aqui abaixo está entre parênteses) ausente nos antigos mss. (manuscritos) gregos, nas antigas versões e nos melhores mms. da Vulg[ata], e que parece ser uma glosa marginal introduzida posteriormente no texto: 'Porque há três que testemunham (no Céu: o Pai, o Verbo e o Espírito Santo, e esses três são um só; e há três que testemunham na terra): o Espírito, a água e o sangue, e esses três são um só'."

 

Em alguns manuscritos antigos constam o "Parêntese Joanino" e em outros não. As controvérsias vem de longe e, historicamente, envolvem diferentes correntes dentro do cristianismo. As que rejeitam a Trindade, consideram Jesus um ser divino, mas numa escala abaixo do Pai. Para algumas correntes, o "Parêntese Joanino" teria sido acrescentado como resposta às heresias que surgiram a partir do segundo século, e serviu para firmar a figura de Jesus como "semelhante ao Pai", ao afirmar a Trindade como Pai, Filho e Espírito. Para muitos, tal parêntese não pertencia à carta do apóstolo João e por ser acréscimo, não seria inspirado texto inspirado, logo não era escritura sagrada.

 

A corrente contrária argumenta que o "Parêntese Joanino" é autêntico, tendo sido escrito por João, e que foi ao longo do tempo excluído em alguns manuscritos e codex em função das conveniências doutrinárias de algumas correntes, nos primórdios do cristianismo. Tendo sido escrita por João, é de inspiração divina, logo pertencente ao Livro Sagrado.

 

De todas as maneiras, o Novo Testamento nos apresenta em diferentes textos a fórmula trinitária, como a apóstolo Paulo em IICoríntios 13.13, quando diz: “a graça do Senhor Jesus Cristo, o amor de Deus e a comunhão do Espírito Santos estejam com todos vocês”. Essa oração litúrgica trinitária (cf. Mt 28.19) aparece em outras passagens das epístolas paulinas, em diferentes contextos, e aqui citaremos algumas: Rm 1.4ss; 1Co 2.10-16, 2Co 1.21ss; Gl 4.6; Fl 2.1; Ef 4.4-6; IITs 2.13; e Tt 3.5ss.  Mas estão presentes também em Atos 20.28; Hebreus 9.14, 1Pedro 3.18; Judas 20-21;  e Apocalipse 22.1. 

 

Além das formulações ternárias, é importante ver a força do pensamento trinitário de Paulo, quando diz, por exemplo, em 2Tessalonicenses 2.13-17:

 

“Irmãos, sempre devemos dar graças a Deus por vocês, a quem o Senhor ama. Pois Deus os escolheu como os primeiros a serem salvos pelo poder do Espírito Santo e pela fé que vocês têm na verdade, a fim de tornar vocês o seu povo dedicado a ele. Foi para isso que Deus os chamou, por meio do evangelho que anunciamos, a fim de que vocês tomem parte na glória do nosso Senhor Jesus Cristo. Portanto, irmãos, fiquem firmes e guardem aquelas verdades que ensinamos a vocês tanto nas nossas mensagens como na nossa carta. Que o próprio Jesus Cristo, o nosso Senhor, e Deus, o nosso Pai, que nos ama e que na sua bondade nos dá uma coragem que não acaba e uma esperança firme, encham o coração de vocês de ânimo e os tornem fortes para fazerem e dizerem tudo o que é bom!”

 

A partir da leitura trinitária das Escrituras Sagradas, em especial do Novo Testamento, os fiéis dos primeiros séculos adoraram a Santa Trindade de Deus presente nos textos apostólicos. Mas, com o passar do tempo, dúvidas surgiram e afirmaram apenas a unicidade de Deus. Entre aqueles que defendiam tal posição estava o arianismo. Fez-se necessário então voltar a discutir e formular posições sobre a trindade de Deus.

 

Duas declarações de fé, propostas nos séculos quarto e quinto da era cristã, têm norteado a compreensão da Trindade. Logicamente, para a teologia evangélica esses credos não podem ser vistos como dogmas, mas como elementos fundamentais para a discussão, por serem as primeiras formalizações teóricas da Trindade. Vejamos o que dizem esses credos:

 

Cremos em um Deu Pai todo poderoso, criador de todas as coisas visíveis e invisíveis. E em um Senhor Jesus Cristo, o Filho de Deus, gerado como o Unigênito do Pai, isto é, da substância do Pai, Deus em Deus, luz de luz. Deus verdadeiro de Deus verdadeiro, gerado, não feito, consubstancial com o Pai, mediante o qual todas as coisas foram feitas, tanto as que estão nos céus, como as que estão na terra, que para nós humanos e para nossa salvação desceu e se fez carne, se fez homem, e sofreu, e ressuscitou ao terceiro dia, e virá para julgar os vivos e os mortos. E no Espírito Santo. Aos que dizem, pois, que houve [um tempo] quando o Filho de Deus não existia e que antes de ser concebido não existia, e que foi feito das coisas que não são ou que foi formado de outra substância ou essência, ou que é uma criatura, ou que é mutável ou variável, a estes a igreja católica [universal] anatematiza”. 

 

Fiéis aos santos pais, todos nós, perfeitamente unânimes, ensinamos que se deve confessar um só e mesmo Filho, nosso Senhor Jesus Cristo, perfeito quanto à divindade, e perfeito quanto à humanidade, verdadeiramente Deus e verdadeiramente homem, constando de alma racional e de corpo: consubstancial [homoosious] segundo a divindade, e consubstancial [homoousios] a nós segundo a humanidade, ‘em todas as coisas semelhante a nós, excetuando o pecado’, gerado segundo a divindade antes dos séculos pelo Pai e, segundo a humanidade, por nós e para nossa salvação, gerado da virgem Maria, mãe de Deus [theotókos]. Um só e mesmo Cristo, Filho, Senhor, Unigênito, que se deve confessar, em duas naturezas, inconfundíveis e imutáveis, conseparáveis e indivisíveis. A distinção de naturezas de modo algum é anulada pela união, mas, pelo contrário, as propriedades de cada natureza permanecem intactas, concorrendo para formar um só pessoa [prosopon] e subsistência [hypostasis]: não dividido ou separado em duas pessoas [prosopa]. Mas um só e mesmo Filho Unigênito, Deus Verbo, Jesus Cristo Senhor, conforme os profetas outrora a seu respeito testemunharam, e o mesmo Jesus Cristo nos ensinou e o credo dos padres nos transmitiu”.

 

I. A NATUREZA DO DEUS TRINO

 

A natureza de Deus pode ser considerada de dois modos: (1) como ela é em si mesma, como a vida de Deus; (2) e aquela que é revelada. Quando analisamos a partir do segundo modo, ou seja, da natureza do Deus trino revelada, temos a Sabedoria divina não criada, que pode ser definida como a mente divina que pensa a si mesma.

 

Nesse sentido, a Sabedoria, a Sofia do Deus trino não é uma simples idéia, mas algo real, embora não seja uma pessoa. Esta Sabedoria eterna revela a plenitude do Deus trino, mas revela também a beleza e a felicidade das três pessoas da Trindade, que nós chamamos de “glória de Deus”, que é diferente daquela glória que damos a Ele, porque a “glória de Deus” efetiva é aquela que Ele tem em si mesmo.

 

O SENHOR me possuiu no princípio de seus caminhos e antes de suas obras mais antigas.  Desde a eternidade, fui ungida; desde o princípio, antes do começo da terra. Antes de haver abismos, fui gerada; e antes ainda de haver fontes carregadas de águas. Antes que os montes fossem firmados, antes dos outeiros, eu fui gerada. Ainda ele não tinha feito a terra, nem os campos, nem sequer o princípio do pó do mundo. Quando ele preparava os céus, aí estava eu; quando compassava ao redor a face do abismo; quando firmava as nuvens de cima, quando fortificava as fontes do abismo; quando punha ao mar o seu termo, para que as águas não trespassassem o seu mando; quando compunha os fundamentos da terra, então, eu estava com ele e era seu aluno; e era cada dia as suas delícias, folgando perante ele em todo o tempo, folgando no seu mundo habitável e achando as minhas delícias com os filhos dos homens”. Provérbios 8.22-32.

 

Essa Sabedoria eterna -- que é apresentada em Provérbios 8.22-32 como real, embora não seja uma pessoa, não é hipostática, tem o verbo hebraico qanah como origem, que significa possuir, dirigir e é diferente de barah, criar. A Sabedoria pertence indistintamente às três pessoas da Trindade, porém é revelação do Cristo e do Espírito. É revelação do Cristo enquanto universalidade das idéias divinas, e é revelação do Espírito enquanto glória de Deus.

 

Dessa maneira, as relações dentro da Trindade não são relações de origem ou causalidade, mas relações mútuas de revelação: o Pai se revela, o Filho e o Espírito revelam o Pai. Esta qualidade – a Sabedoria eterna – é a essência Deus trino.

 

A geração do Filho e a expiração do Espírito não devem ser compreendidas com o conceito de procedência, já que este conceito leva à conclusão da desigualdade e a um caráter de subordinação entre as três Pessoas. O conceito correto é o da auto-revelação através da Sabedoria. Nesse sentido, as relações dentro da Trindade não são subsistentes, mas predicamentais.

 

E porque a Sabedoria está nas três Pessoas, em sua hipóstase (pessoa) imediata, a Sabedoria é o Cristo, o Verbo de Deus, e o Verbo de Deus é Sabedoria. Mas a está no Espírito Santo que é a hipóstase do amor. 

 

O amor de Deus, o amor do Pai pelo Filho e o amor do Filho pelo Pai, não é uma simples qualidade ou uma relação: ele possui uma vida pessoal, uma vida hipostática. O amor de Deus é o Espírito Santo, que procede do Pai ao Filho e que repousa nele. O Filho só existe para o Pai no Espírito Santo que repousa nele. Igualmente, o Pai manifesta o seu amor ao Filho através do Espírito Santo, que é a unidade de vida do Pai e do Filho. Esse é o lugar do Espírito Santo no âmbito da Santíssima Trindade 

 

A Sabedoria do Deus trino revela a glória do Pai, do Filho e do Espírito (Rm ll.33-36; Ef 1.11,12; Cl 1:16). Ela é qualidade de Deus, quer na criação (Sl.19:1-7; Sl.104), como na redenção (Ico 2.7; Ef 3.10).

 

A doutrina cristã da Trindade designa um só Deus em três pessoas. Embora não apareça nas Escrituras o termo Trindade, a maioria quase absoluta da igreja cristã considera uma designação correta para o único Deus que se revelou nas Escrituras como Pai, Filho e Espírito Santo. Tal designação significa que dentro de uma única essência, a Sabedoria, da Divindade temos que distinguir três Pessoas que não são três deuses, nem três partes, nem três modos de Deus se revelar, mas coiguais e coeternamente Deus.

 

Assim, podemos falar de:

 

a) Unidade do Ser: Há no Ser divino apenas uma essência, predicado das três Pessoas, a Sabedoria. Deus é um nesta sua natureza constitucional. Não há separação entre qualidades. Ele é tudo que Ele é e em tudo que Ele faz (Dt 6.4; Is. 43.40; Tg 2.19; 1Tm 2.5). A unidade da divindade é ensinada nas palavras de Jesus: Eu e o Pai somos um. (Jo.10:30). Jesus está falando da unidade da essência e não de unidade de propósito. (Jo.17:11,21-23, IJo.5:7). 

 

b) Pessoalidade na Trindade: Há três Pessoas no Ser divino: o Pai, o Filho e o Espírito Santo. (Mc.10:9;12:29; ICo.8:5,6; ITm.2:5; Tg.2:19; Jo.17:3; Gl.3:20; Ef.4:6). 

 

c) Diversidade na Trindade, ou seja, diversidade hipostática no Ser divino. Algumas passagens mostram uma Pessoa se referindo à outra (Gn.19:24; Os.1:7; Zc.3:1,2; IITm.1:18; Sl.110:1; Hb.1:9). 

 

O Deus trino é o Eterno Eu Sou (Ex 3.14). O Deus trino é absolutamente independente de tudo fora de Si mesmo para a continuidade e perpetuidade do seu Ser. O Deus trino é a razão de sua própria existência (Jo.5:26; At.17:24-28; ITm.6:15,16).

 

II. A TEOLOGIA DOS PAIS ORIENTAIS

 

A teologia dos Pais orientais é uma teologia trinitária por excelência, elaboradora das definições da unidade e diversidade das Pessoas na Trindade. O termo homoousios permitiu exprimir o mistério da Trindade. As relações entre as Pessoas da Trindade não são de oposição, nem de separação, mas de diversidade, de reciprocidade, de revelação recíproca e de comunhão no Pai. 

 

Os atributos, que são predicados e qualidades, se referem à natureza comum das três Pessoas sem diferenciações. Sendo a unicidade evocada na sua relação com à fonte que é o Pai. A inascibilidade do Pai, a geração do Filho e a processão do Espírito são as relações que melhor permitem distinguí-las.

 

As relações de origem não são o único fundamento das hipóstases, que as constituiria e as esgotaria do seu conteúdo. A teologia dos pais orientais reserva um caráter sempre ternário das relações, suprimindo qualquer possibilidade de as reduzir à dualidade, à formação de díades no seio da Trindade.

 

Na Trindade encontram-se reunidos e circunscritos o uno e o múltiplo, no entanto, os Pais não procuravam justificar pela razão o número três. A própria ciência matemática não justifica o um absoluto, sendo assim a unidade composta de Deus, não pode ser explicada através de pensamentos ditos “lógicos”, se a própria ciência não reconhece o um absoluto.

 

A teologia dos Pais orientais encara em primeiro lugar o subordinado e aí penetra depois para encontrar a natureza. Este método facilita a nossa compreensão, pois parte das três pessoas, como Jesus o fez na “Grande Comissão”, chega-se a partir daá à unidade de Deus. Para os pais orientais partir da monarquia do Pai é tanto um perigo como partir da natureza una que se transforma em princípio da unidade na Trindade. O princípio de unidade não é a natureza, mas as relações de origem que o Pai estabeleceu em relação a Ele mesmo, como a única fonte de qualquer relação.

 

Confessar a unidade trinitária é reconhecer o Pai como a única fonte das hipóstases que simultaneamente recebem dele a mesma e única natureza. A hipóstase é a maneira pessoal de se apropriar da mesma natureza, sendo que cada uma delas na sua realidade única ultrapassa as simples relações de origem eterna. A única fonte hipostática é o Pai. E a geração do Filho e a processão do Espírito é isto: a auto-revelação do Pai, através do Espírito, no Filho; e a auto-revelação do Pai, através do Cristo, no Espírito. 

 

O Pai é a fonte da verdade, o Filho é o princípio da revelação da verdade do Pai, o Espírito Santo é o princípio da sua manifestação dinâmica e vivificante, ele é a vida da verdade. E através da humanidade glorificada do Cristo temos a expressão do amor da Trindade infinita, a participação na vida divina e a visão da glória DO Deus trino.

 

III. A TRINDADE NOS DOIS TESTAMENTOS

 

A principal contribuição do Antigo Testamento para a doutrina da Trindade é enfatizar a unidade de Deus. Deus é singular e único, conforme Dt 6.4 -- “O Senhor nosso deus é o único Senhor”]. Deus exige a exclusão de todos os falsos deuses, descartando qualquer possibilidade de triteísmo (Dt 5.7-11).

 

Chegai-vos a mim e ouvi isto: Não falei em segredo desde o princípio; desde o tempo em que aquilo se fez, eu estava ali; e, agora, o Senhor Iavé me enviou o seu Espírito”. Isaías 48.16. Também no Antigo Testamento encontramos textos trinitários.

 

No Novo Testamento a evidência trinitariana é esmagadora. Deus continua sendo pregado como Deus único (Gl 3.20), Jesus porém proclama sua própria divindade (Jo 8.58) e aceita a adoração de seus discípulos (Mt 16.16; Jo 20.28). É equiparado a Deus (Jo 1.1), e associado a Deus nas cartas de Paulo (1Co 1.3, etc.). Mas o Consolador, o Espírito de Deus é incluído no mesmo relacionamento (2Co 13.14).

 

O apóstolo Pedro destaca a eleição pelo Pai, a santificação através do Espírito e a aspersão do sangue de Jesus Cristo (1Pe 1.2) em relação à salvação dos crentes. No batismo de Jesus, as três Pessoas são mencionadas (Mt 3.16-17). Os discípulos são chamados a batizar em nome das três Pessoas (Mt 28.19) e a benção de Paulo, completa, inclui o amor de Deus, a graça do Filho e a comunhão do Espírito Santo (2Co 13.14). 

 

IV. O TESTEMUNHO DOS PRIMEIROS CRISTÃOS

 

As citações seguintes testemunham o que os primeiros cristãos pensavam sobre a existência de um Deus em Três Pessoas.

 

"E mais, meus irmãos: se o Senhor [Jesus] suportou sofrer por nós, embora fosse o Senhor do mundo inteiro, a quem Deus disse desde a criação do mundo: 'façamos o homem à nossa imagem e semelhança', como pode ele suportar sofrer pela mão dos homens?" (Autor desconhecido, ano 74, Carta de Barnabé 5,5).

 

"Por isso vos peço que estejais dispostos a fazer todas as coisas na concórdia de Deus, sob a presidência do bispo, que ocupa o lugar de Deus, dos presbíteros, que representam o colégio dos apóstolos, e dos diáconos, que são muito caros para mim, aos quais foi confiado o serviço de Jesus Cristo, que antes dos séculos estava junto do Pai e por fim se manifestou. [...] Correi todos juntos como ao único templo de Deus, ao redor do único altar, em torno do único Jesus Cristo, que saiu do único Pai e que era único em si e para ele voltou. [...] Existe um só Deus, que se manifestou por meio de Jesus Cristo seu Filho, que é o seu Verbo saído do silêncio, e que em todas as coisas se tornou agradável àquele que o tinha enviado" (Inácio de Antioquia, ano 110, Carta aos Magnésios 6,1; 7,2; 8,2).

 

"Amigos, foi do mesmo modo que a Palavra de Deus se expressou pela boca de Moisés ao indicar-nos que o Deus que se manifestou a nós falou a mesma coisa na criação do homem, dizendo estas palavras: 'Façamos o homem à nossa imagem e semelhança'. [...] Citar-vos-ei agora outras palavras do mesmo Moisés. Através delas, sem nenhuma discussão possível, temos de reconhecer que Deus conversou com alguém que era numericamente distinto e igualmente racional. [...] Mas esse gerado, emitido realmente pelo Pai, estava com ele antes de todas as criaturas e com ele o Pai conversa, como nos manifestou a palavra por meio de Salomão. (Justino Mártir, ano 155, Diálogo com o Judeu Trifão 62,1-2.4).

 

"Por isso e por todas as outras coisas, eu te louvo, te bendigo, te glorifico, pelo eterno e celestial sacerdote Jesus Cristo, teu Filho amado, pelo qual seja dada glória a ti, com Ele e o Espírito, agora e pelos séculos futuros. Amém. (Policarpo de Esmirna, ano 155, Martírio de Policarpo 14,3).

 

"[O Pai] enviou o Verbo como graça, para que se manifestasse ao mundo. [...] Desde o princípio, ele apareceu como novo e era antigo, e agora sempre se torna novo nos corações dos fiéis. Ele é desde sempre, e hoje é reconhecido como Filho" (Quadrato, ano 160, Carta a Diogneto 11,3-4).

 

"Portanto, não foram os anjos que nos plasmaram - os anjos não poderiam fazer uma imagem de Deus - nem outro qualquer que não fosse o Deus verdadeiro, nem uma Potência que estivesse afastada do Pai de todas as coisas. Nem Deus precisava deles para fazer o que em si mesmo já tinha decretado fazer, como se ele não tivesse suas próprias mãos! Desde sempre, de fato, ele tem junto de si o Verbo e a Sabedoria, o Filho e o Espírito. É por meio deles e neles que fez todas as coisas, soberanamente e com toda a liberdade, e é a eles que se dirige quando diz: 'Façamos o homem à nossa imagem e semelhança'" (Ireneu de Lião, ano 189, Contra as Heresias IV,20,1).

 

"Anatematizamos todos aqueles que seguem o erro de Sabélio, os quais dizem que o Pai e o Filho são a mesma Pessoa" (Concílio de Roma, ano 382, Tomo do Papa Dâmaso, cânon 2).

 

Outras Fontes

Hermas: (ano 80) O Pastor 12.

Tertuliano: (ano 216) Contra Praxéas 2,3-4; 9,1.

Hipólito de Roma: (ano 228) Refutação de Todas as Heresias 9,7.

Novaciano: (ano 235) Tratado sobre a Trindade 26.

Papa Dionísio: (ano 262) Cartas ao Bispo Dionísio de Alexandria 1,1.

Gregório Taumaturgo: (ano 262) Confissão de Fé 8; 14.

Metódio: (ano 305) Prece ao Salmo 5.

Atanásio: (ano 359) Cartas a Serapião 1,28; (ano 360) Discurso contra os Arianos 3,4.

Fulgêncio de Ruspe: (ano 513) A Trindade 4,1.


 

 

 

 

 

Capítulo quatro

O DEUS PAI

 

 

A partir de uma teologia bíblica é indiscutível que o Pai é Deus. Jo 6.27; Ef 4.6. O nome hebraico Abba, que literalmente significa papai, aparece no Antigo Testamento (Dt 32.6; 2Sm 7.14; 1Cr 17.13; 22.10; 28.6; Sl 68.5; 89.26; Is 63.16; 64.8; Jr 3.4,19; 31.19; Ml 1.6; 2.10). 

 

Mas Ele também recebe o título de Pai do Cristo (Mt 3.17; 11.27; Mc 14.36), o Pai de Israel (Ex 4.22,23; Dt 32.6), o Pai dos crentes (Rm 8.14-17; Gl 3.20; Ef 4.6), o Pai dos anjos (Jó 1.6; 38.7). E, porque é o Pai da glória (Ef 1.17), o Pai das luzes (Tg 1.17) e o Pai de todos (Ef 4.6), o título Pai indica que a Primeira Pessoa da Trindade é a fonte da procedência de todas as coisas.

 

Segundo Anselmo, pai da Igreja, todas as pessoas têm a idéia de um Ser perfeito. Esta consciência mostra que Ele é de fato: “E disse Deus a Moisés: EU SOU O QUE SOU. Disse mais: Assim dirás aos filhos de Israel: EU SOU me enviou a vós” (Ex.3.14). Essa compreensão de Anselmo recebe o nome de argumento ontológico e é dedutiva (a priori), e não indutiva (a posteriori).

 

A Bíblia deixa claro que o Pai é desde a eternidade e eternamente. Veja nos dois textos seguintes como esta é uma verdade bíblica: Gn 1.1 e Hb 11.3, 6. 

 

I. OS TÍTULOS DO PAI

 

Os nomes que o Pai recebe também mostram isso, porque nomes no Antigo Testamento, assim como no Novo Testamento traduzem uma qualidade, uma definição de alguém ou de um lugar (Sl 8.1,9; Jz 13,18; Ex 20,7). Os principais nomes do Pai são Elohim, o poderoso, literalmente os poderosos, que aparece cerca de 2.500 vezes no AT. Em Gênesis 1.1-2.3 é usado 35 vezes. Elohim descreve o Pai como criador, sustentador do mundo e do universo. É o termo mais comum no AT para falar do Pai, e normalmente nós traduzimos por Deus. Outro nome que designa o Deus Pai é Iavé, YHWH, conhecido como o tetragrama, raiz da expressão “Eu Sou o Que Eu Sou”. Na maioria dos casos, traduzimos por Senhor. Iavé aparece 5.321 vezes no AT, e Iah, sozinho, aparece 50 vezes. No Novo Testamento aparece como Kyrios, SENHOR. 

 

Adonai, que e outro nome do Deus Pai, vem de Adon, meu Senhor, meu Mestre (Ex 21.1-6; Js 5.15; Is 6.8-11; Sl 110.1). Freqüentemente é usado com Iaveh, o Senhor Deus, conforme Is 61.1. 

 

O Pai recebe ainda outros nomes, que podemos entender como títulos, são: El, o poderoso Deus, Deus. É uma palavra presente em várias línguas semíticas e no AT aparece junto a outros títulos de Deus. Temos ainda Baali, meu Senhor, meu Marido (Os 2.16), o Juiz de toda a terra (Gn 18.25), o meu Pastor (Gn 48.15; 49.24), e a Pedra, a Rocha de Israel (Gn 49.24). Os títulos Santo e Santíssimo (Is 1.4; 6.3; 43.3; 57.15), também aparecem no NT (1Tm 2.8, Ap. 16.5; At 2.27; 1Jo 2.20. O Rei (Ex 15.18; Dt 33.5; Sl 5.2; 44.4, e 1Tm 2.8; Ap 15.3; 19.16). 

 

Temos ainda, o Ancião de Dias (Dn 7.9), Abba, Pai (Rm 8.9; Gl 4.6), Mestre, Senhor (Lc 2.29; At 4.14), Soberano Senhor, cf. Tt 2.9, Todo-poderoso (Ap 1.8; 4.8; 11.17; 16.7). E os títulos compostos: El Elyon, o Altíssimo (Gn 14.18, Dt 32.8; Is 22.14), El Ro’i, o Poderoso que se vê (Gn 16.13), El Shadai, O Deus todo-poderoso (Gn 17.1-20), El Olam, o Eterno Deus (Gn 21.33; Is 40.28), El Betel, o Deus de Betel (Gn 31.13; 35.7), El Elohe Israel, o Deus de Israel (Gn 33.20), Iavé Jireh, o Senhor que provê (Gn 22.14), Iavé Nissi, o Senhor é minha bandeira (Ex 17.15), Iavé Shalom, o Senhor é paz (Jz 6.24), Iavé Tsabaot, o Senhor dos Exércitos (1Sm 1.3), Iavé Macadeshem, o Senhor vos santifica (Ex 31.13), Iavé Raah, o Senhor é meu Pastor (Sl 23.1) e Iavé Elohim Israel (Jz 5.3; Is 17.6).

 

Atividades do Pai que as Escrituras contam

 

O Pai é o autor do decreto e da eleição (Sl 2.7-9; Ef 1.3-11; cf. Is 64.8), é o criador de todos, através do Verbo e do Espírito Santo (Ef 3.14s; Hb 12.9), é o Paternoster ou paterfamilias, ou seja, quem estabelece a família de Deus, administrando tanto a herança como a disciplina aos seus filhos (Gl 4.4-7; Hb 12.9). É ele Aquele que ama o mundo (Jo 3.16) e a Ele tudo retornará (1Co 15.24-28).

 

II. OS SETE ESPÍRITOS DE DEUS

 

Deus Pai é Espírito (Jo.4:24) infinito e eterno, imutável em seu Ser, sábio, poderoso, santo, justo, bom e verdadeiro. Nele todas as coisas tem sua origem, sustentação e fim (Jo.4:24; Ne.9:6; Ap.l:8; Is.48:12; Ap.1:17). Na Bíblia, a expressão Deus é Luz (IJo.1:5) traduz sua natureza, enquanto a expressão Deus é amor (IJo.4:7) expressa o Seu caráter. (ITm.6:16) 

 

E olhei, e eis que estava no meio do trono e dos quatro animais viventes e entre os anciãos um Cordeiro, como havendo sido morto, e tinha sete pontas e sete olhos, que são os sete Espíritos de Deus enviados a toda a terra”. (Ap 5.6)

 

Os atributos, predicados, qualidades da natureza do Deus trino são chamados no livro do Apocalipse de os sete chifres, os sete espíritos e os sete olhos de Deus. Podemos assim nomear os sete espíritos de Deus.

 

1. Eternidade. Ele é o Eterno Eu Sou (Ex.3:14, Sl.90:2; 102:12,24-27; Sl.93:2; Ap.1:8; Dt.33:27; Hb.1:12). É absolutamente independente de tudo fora de Si mesmo para a continuidade e perpetuidade de Seu Ser. É a razão de sua própria existência (Jo.5:26; At.17:24-28; ITm.6:15,16). É infinito e está isento de toda e qualquer limitação (Jó.11:7-10; Mt.5:48). A infinitude contrasta com o nosso mundo finito, espaço-temporal. Eternidade. A eternidade de Deus não é apenas duração prolongada, mas transcendência diante das limitações espaço-temporais (IIPe 3.8, Is 57.15). A eternidade de Deus em relação ao espaço-tempo é chamada de imensidão (Jó.36:5,26; Jó.37:22,23; Jr.22:18; Sl.145:3). A imensidão de Deus transcende o espaço-tempo (Sl.139:7-12; Jr.23:23,24), e está fora do espaço-tempo (IRs.8:27; Is.57:15). 

 

2. Onipresença. Se a imensidão se refere à transcendência do espaço-tempo, a onipresença traduz a imanência no espaço-tempo. Deus se faz imanente nas criaturas e na criação. A imanência não é panteísmo, que diz que Deus é tudo, ou deísmo, que diz que Deus está presente no mundo apenas com seu poder e age sobre o mundo à distância. Deus ocupa o espaço-tempo, não está ausente de sua criação, nem está mais presente num espaço ou num tempo mais do que em outros espaços e tempos (Sl.139:11,12). Deus não habita o universo como habita no céu, nos seres humanos, nos piedosos, na igreja e em Cristo (Is.66.1; At.17.27-28; conforme Ef.1.23; Cl.2.9-10). 

 

3. Imutabilidade. Deus não está sujeito às circunstâncias do espaço-tempo, por isso Ele não muda (Tg.1:17; Sl.102:26,27; Hb.1:12 e 13:8). Ele é Ele mesmo (Ex.3:14), é imutável como a rocha (Dt.32:4), mas atenção, imutabilidade não é imobilidade. Ele é um Deus de ação (Is.43:13). Imutabilidade significa que nele não há razão para arrependimento, embora alguns versículos falam dele como se arrependendo (Ex.32:14, IISm.24:16, Jr.18:8; Jl.2:13). Trata-se de um antropomorfismo, como encontramos outros na Escrituras (Nm.23:19; Rm.11:29; ISm.15:29; Sl.110:4). Imutabilidade significa que Ele é perfeito e seu caráter não muda (Ml.3:6). Ele é imutável em suas promessas (IRs.8:56; IICo.1:20); em sua misericórdia (Sl.103:17; Is.54:10); em sua justiça (Ez.8:18); e em seu amor (Gn.18:25,26). E o que Ele planejou é e será (Is.46:9,10; Sl.33:11; Hb.6:17). 

 

4. Onisciência. O conhecimento de Deus é arquetípico. Deus conhece o universo como ele existe antes de sua existência como realidade finita no espaço-tempo. Este conhecimento não vem de fora, como o nosso, que exige observação e processo de raciocínio (Rm.11:33,34; Jó.37:16), é inato, imediato e simultâneo (Is.40:28). É um conhecimento completo (Sl.147:5), mas também necessário, porque não procede de uma ação da vontade divina. Um exemplo é o mal, porque não é da vontade de Deus que o mal lhe seja conhecido (Hc.1:13), mas o conhece, não por experiência, mas por ato intelectivo (IICo 5.21). E aqui surge uma pergunta: como Deus pode conhecer previamente as ações livres dos seres humanos? Porque Deus é Aquele que o conhecimento livre de todas as coisas reais, do espaço-tempo por inteiro, daquelas do passado, do presente e do futuro. É importante entender que Ele é eterno e está fora do espaço-tempo, que é finito e acontece dentro de limites, por isso Ele tem visionis, conhecimento de vista e presciência de tudo que é contingente (ISm.23.12; IIRs.13.19; Jr.38.17-20; Ez.3.6 e Mt.11;21). Nesse ponto, é importante explicar que Deus não originou o mal, mas criou a possibilidade do mal (Is 45.7), probabilidade que nasce das ações livres do ser humano. A liberdade humana está condicionada à vontade de Deus (Jo.2:24,25), aos limites do espaço-tempo e às escolhas intelectuais e de caráter. Dessa maneira, a liberdade humana tem esse limites e se realiza através de escolhas e ações. Ou seja, o mal é sempre um fazer. A presciência de Deus é mais do que saber o que vai acontecer, e seu uso nas Escrituras é entendido como escolha efetiva (Nm.16:5; Jz.9:6; Am.3:2; Rm.8:29; IPe.1:2; Gl.4:9). Essa escolha efetiva está correlacionada aos desígnios de Deus, que também chamamos de "decreto sua vontade" (Ef.1:11), mas leva em conta a realidade espaço-temporal (Mt 4.6-7) e as escolhas intelectuais e de caráter de cada pessoa. 

 

5. Onipotência. O poder de Deus pode ser compreendido de duas maneiras: poder absoluto e poder ordenado. O poder absoluto é exercido sem a intervenção de causas secundárias (Gn 1.1-3), e o poder ordenado é exercido através operação de causas secundárias (IRs 19.111-12). O poder ordenado é parte do poder absoluto. Deus tem poder fazer o que desejar, por isso tem poder para fazer o que deseja. Mas Deus, também, pode realizar coisas que Ele não desejaria realizar (Gn.18:14; Jr.32:27; Zc.8:6; Mt.3:9; Mt.26:53). E, mais ainda, há coisas que Deus não pode realizar. Ele não pode ir contra sua natureza e seu caráter, assim, não pode mentir, pecar ou negar-se a Si mesmo (Nm.23:19; ISm.15:29; IITm.2:13; Hb.6:18; Tg.1:13,17; Hb.1:13; Tt.1:3; Jó.11:7). Deus faz aquilo que quer fazer (Sl.115:3; Sl.135:6). A onipotência de Deus se expressa título hebraico El-Shaddai, Todo-Poderoso (Gn.17:1; Ex.6:3; Jó.37:23) e abrange todas as coisas (ICr.29:12), traduz domínio sobre a natureza (Sl.107:25-29; Na.1:5,6; Sl.33:6-9; Is.40:26; Mt.8:27; Jr.32:17; Rm.1:20), domínio sobre a experiência humana (Sl.91:1; Dn.4:19-37; Ex.7:1-5; Tg.4:12-15; Pv.21:1; Jó.9:12; Mt.19:26; Lc.1:37), domínio sobre as regiões celestiais (Dn.4:35; Hb.1:13,14; Jó.1:12; Jó 2:6). Na criação, na providência e na redenção, manifestou (Rm.4:17; Is.44:24; ICr.29:11,12; Rm.1:16; ICo.1:24). 

 

6. Soberania. Deus possui autoridade sobre as coisas criadas (Gn.14:19; Ne.9:6; Ex.18:11; Dt.10:14,17; ICr.29:11; IICr.20:6; Jr.27:5; At.17:24-26; Jd.4; Sl.22:28; 47:2,3,8; 50:10-12; 95:3-5; 135:5; 145:11-13; Ap.19:6). Sua soberania é perfeita e Ele fica feliz consigo mesmo como Supremo Bem e deseja que suas criaturas o adorem por amor do Seu nome (Is.48:9,11,14; Ez.20:9,14,22,44; Ez.36:21-23). Sua soberania correlaciona-se à sua vontade, por isso podemos falar em soberania do preceito, quando estabelece leis morais para reger a vida dos seres pessoais. A soberania do preceito pode ser desobedecida (At.13:22; IJo.2:17; Dt.8:20). E podemos falar também em soberania do decreto, quando Deus projeta o que virá acontecer, quer causativamente, quer por intermédio da livre ação de suas criaturas (At.2:23; Is.46:9-11), esta não pode ser desobedecida. A soberania do decreto e a soberania do preceito se correlacionam no propósito de realizar algo. Podemos ainda falar de soberania da boa vontade, quando Deus se deleita em fazer algo (Gn 1.31; Sl.115:3; Is.44:28; Is.55:11) e soberania da vontade cumprida, quando Deus se alegra em ver sua vontade ser realizada por Suas criaturas (Is.65:12). A soberania da boa vontade e a soberania vontade cumprida relacionam-se ao prazer de ver algo realizado. Mas há ainda a vontade secreta de Deus (Sl.115:3; Dn.4:17,25,32,35; Rm.9:18,19; Rm.11:33,34; Ef.1:5,9,11), que é a vontade não revelada de Deus. A diferença entre vontade oculta e vontade revelada (Mt.7:21; Mt.12:50; Jo.4:34; Jo.7:17; Rm.12:2) está presente em Dt 29:29. A vontade revelada está perto de nós (Dt.30:14; Rm.10:8). 

 

7. Liberdade. Deus age livremente. Essa liberdade de Deus está correlacionada com Ele próprio, através de sua vontade necessária, já que age de acordo com Sua natureza, que é perfeita e santa. Em relação às suas criaturas, Ele é livre, porque escolhe o que vai criar, as circunstâncias, lugares e tempos de suas criaturas (Jó.ll:10; Jó.23:13,14; Jó.33:13. Pv.16:4; Pv.21:1; Is.10:15; Is.29:16; Is.45:9; Mt.20:15; Ap.4:11;Rm.9:15-22; ICo.12:11). 

 

A crença em Deus no Brasil

 

E como estamos a fazer uma teologia bíblica e sistemática focando nossos olhos também na religiosidade brasil, nos remetemos ao Novo Mapa das Religiões, coordenado por Marcelo Côrtes Neri, no item Classes Econômicas e os Grandes Grupos Religiosos, onde 

 

os dados mostram a classe E como a menos religiosa de todas (7,72% não possuem religião). A taxa de ateísmo é menor nas classes intermediárias, atingindo o seu menor nível na classe C, onde 5,73% da população não possui religião, e sobe para 6,91% na AB. Na faixa mais alta, os sem religião se denominam agnósticos.

 

Analisando a economia das religiões a partir da adesão às diferentes seitas: o catolicismo se faz mais presente nos níveis extremos do espectro de renda (72,76% e 69,07% nas classes E e AB, respectivamente), enquanto que as seitas evangélicas pentecostais atingem os níveis intermediários inferiores da distribuição de renda, sendo 15,34%, na classe D, ou 2,4 vezes mais do que na AB (6,29%). os evangélicos tradicionais estão mais concentrados na faixa AB (8,35%) C (8,72%), e tendem a diminuir à medida que andamos desta classe em direção aos níveis mais baixos de renda, atingindo 4,69% da classe E. 

 

Finalmente, a taxa de adesão a outras religiões cai monotonicamente de 9,25% na classe AB para 2,24% na E. Seitas espíritas ou espiritualistas chegam a 5,52% da população na classe AB, sendo o segundo grupo neste segmento atras dos católicos. Estes dados, tomados a valor de face, indicam que pertencer a uma religião alternativa corresponde a consumir um serviço de luxo”.

 

 

 

 


 

 

 

 

Capítulo cinco

O CRISTO

 

 

Jesus, o Cristo, é uma identidade construída. Cristo significa Ungido, Messias. E logos, palavra. Portanto, Cristologia é a palavra sobre Cristo, pensamento ou fala sobre Cristo. Cristo exprime uma identidade e sem reconhecer essa identidade, essa pessoa, o Filho de Deus, mediante a fé, não há Cristologia, apenas um estudo sobre a historicidade de Jesus de Nazaré. Através da fé, o Espírito Santo torna a pessoa do Cristo contemporânea, isto é, pessoal e relacional.

 

Fator histórico. Helenos e cristãos. O cristianismo deixou de ser judeu e palestino já no final do primeiro século e se tornou helênico. Em um sentido amplo, helenismo refere-se à influência que a cultura grega (helênica, de Hellas, Grécia) passou a ter no Império Próximo (Mediterrâneo Oriental: Síria, Egito, Palestina, chegando até a Pérsia e Mesopotâmia) após a morte de Alexandre (323 a.C.) e em conseqüência de suas conquistas. 

 

Ao estudar os últimos oitocentos anos da história da filosofia grega, vemos que ela vai da morte de Aristóteles (322 a.C.) até o fechamento das escolas pagãs de filosofia no Império do Oriente pelo imperador Justiniano (525 d.C.). O helenismo foi marcado na filosofia pelo desenvolvimento das escolas vinculadas a determinadas tradições, destacando-se a Academia de Platão, a escola aristotélica, as escolas epicurista e estóica, o ceticismo e o pitagorismo. Já na época do apóstolo Paulo havia uma tendência ao ecletismo e filósofos sofreram influências de diferentes escolas. A partir do primeiro século cristão, o principal centro da cultura helênica era Alexandria, no Egito. E foi da correlação entre a Revelação e o uso da Filosofia grega, como ferramenta hermenêutica, que nasceu a Teologia.

 

Nesse primeiro momento de expansão do Cristianismo no mundo helênico, a doutrina do Cristo foi um escândalo para os judeus, já que a deidade de Jesus era vista como heresia, e também porque os judeus esperavam um messias político e não um messias de amor. E era considerado um perigo pelos Romanos, uma ameaça a ideologia de culto à César, e nesse sentido uma ameaça política. 

 

A busca pela expansão da fé cristã foi naquela época, e é ainda hoje, um fato naturalm porque o Cristianismo tem um caráter missionário quanto ao querigma, ou seja, quanto à pregação. Dessa maneira, a pregação foi destemida: “é honra morrer por Cristo”; os cristãos arriscavam a vida e quando presos ou mortos eram considerados heróis por sua lealdade a Cristo. Desconsideravam a autoridade de César, caso se opusesse aos ensinos do Cristo. De 96 d.C. (Dominiciano) a 180 d.C. (Marco Aurélio), a prudência política dos romanos evitou, por razões humanitárias, processos sem bases reais e condenações à morte. Mas Tertuliano, advogado e defensor da fé cristã, apologista, diante das perseguições disse que “o sangue é semente”, ou seja, as prisões e martírios só faziam o Cristianismo crescer. Após 235 d.C., com a morte de Alexandre Severo houve uma perseguição acirrada e milhares de conversões. Por volta do ano 300 a.C., um terço da população do império já era cristã.

 

Dessa maneira, podemos dizer que a vida no mundo ocidental se dividiu em antes e depois dele, e que hoje nas festas cristãs, em especial Natal e Páscoa, cerca de dois bilhões de pessoas celebram Jesus, o Messias, um judeu que morreu de condenação ignominiosa sob ordens das autoridades romanas na Palestina. E, assim, dias, semanas, meses, anos passaram a ser contados a partir de seu nascimento, cuja data no entanto não se sabe ao certo.

 

Nenhuma vida foi tão pesquisada. Filho de Deus, rompeu o terceiro milênio cercado da fé, mas também de questões levantadas por cristãos e não-cristãos. Como teria nascido? Como viveu? Quem foi ele? Bilhões de pessoas seguem extasiadas esse personagem inacabado, obra aberta a desafiar místicos, teólogos e cientistas. Mas não há explicação capaz de oferecer a versão definitiva, irrefutável, sobre o filho de Maria.

 

E no correr dos séculos foi transformado no símbolo de um dilema: ou os povos assimilam a convivência respeitosa num mundo marcado por diferenças -- daí os diálogos interreligiosos que procuram produzir convivência entre católicos, judeus e protestantes -- ou aprofundam os contrastes, raiz da proliferação do fundamentalismo. O mais estranho é que, na encruzilhada da civilização, cristãos e não-cristãos voltam ao começo de tudo.

 

Não restam dúvidas sobre sua passagem pelo planeta: Jesus viveu nesta Terra. Muitos estudiosos consideraram que em relação a tal fato existem mais fontes confiáveis do que em relação a Sócrates, cuja existência foi basicamente testemunhada por um único discípulo, Platão. Mas não é possível discorrer com a mesma segurança sobre a data de nascimento e a de morte de Jesus.

 

Um recenseamento promovido na Palestina por Herodes, interessado em regularizar a cobrança de impostos, forneceu evidências de que ele teria nascido cerca de seis anos antes do chamado ano zero. Teria morrido às vésperas da Páscoa judaica, numa sexta-feira. Conferindo calendários antigos, verifica-se que duas sextas-feiras coincidiram com a celebração naquele período: nos anos 30 e 33 da Era Cristã.

 

Juntamente com a crença na Trindade, a teologia da encarnação ocupa uma posição central nos ensinamentos da igreja. Jesus é mais que um homem santo ou um mestre de moralidade. Ele é o Filho de Deus que se tornou Filho do Homem. A teologia da encarnação é uma expressão da experiência do Cristo na igreja. Nele, a divindade está unida à humanidade, sem a destruição de nenhuma dessas realidades. Jesus Cristo é verdadeiramente Deus, que tem em comum a mesma realidade igualmente com o Pai e o Espírito. Ele é verdadeiramente homem que compartilha com todos nós o que é humano. E como único Deus-homem, Jesus Cristo colocou a humanidade em comunhão com Deus.

 

Pela manifestação da Trindade, pelo ensinamento do significado da autêntica vida humana, e pela vitória sobre os poderes do pecado e da morte (I Co 15, Cl 1.19-20) através da ressurreição, Cristo é a expressão suprema do amor de Deus o Pai, por seu povo, tornado presente em cada época e em cada lugar pelo Espírito Santo através da vida da igreja. Os pais da igreja resumiram o ministério do Cristo nesta clara afirmação: "Deus tornou-se o que nós somos de tal maneira que nós podemos nos tornar o que Ele é."

 

É um risco separar Jesus e Cristo, ou ver a ação salvífica num e em outro não, ou teologicamente afirmar que há uma ação salvífica no Cristo em sua divindade, separada da humanidade do Cristo encarnado. É fundamental levar em conta, teologicamente, os dois aspectos complementares da cristologia. Ao dado da união das duas naturezas de Jesus, o Cristo, temos que compreender a questão da distinção, que nos alerta para o fato de que não há confusão entre essas duas naturezas.

 

O monofisismo se apresenta entre nós, quando iniciamos uma caminhada em direção à predileção por uma das naturezas do Cristo, no caso, a tendência de absorção da natureza humana na divina. Mas há um monofisismo invertido, que é um outro risco, atualmente menos comum, que é o da absorção da natureza divina na humana, ocasionando uma redução da divindade da pessoa do Verbo. 

 

A ação humana de Jesus é a ação do Cristo encarnado, mas há uma ação divina que permanece sempre distinta da humana. Há uma ação contínua do Logos antes e depois da encarnação, mas sem que isto signifique a negação do evento cristológico como concentração insuperável da auto-revelação divina. Isto porque a economia do Cristo encarnado constitui a revelação de uma economia mais ampla, a do Cristo eterno de Deus. 


A revelação de nosso Jesus, o Cristo, oferece à humanidade tudo o que é necessário para a salvação, não necessitando ser completada por qualquer outra ação ou processo, que não seja o arrependimento e a obediência. O evento Jesus, sem deixar de ser revelação universal da vontade de Deus, permanece particular em razão de sua historicidade. Significa que tal evento não diminui a potência salvífica de Deus, pois a ação universal do Cristo e do Espírito Santo não se circunscreve à humanidade de Jesus. Por isso não se pode reduzir Jesus a uma figura salvífica entre outras. A revelação operada em Jesus Cristo é definitiva e insuperável. 


Seria um erro absurdo entender a ação do Espírito Santo deslocada da economia salvífica universal do Cristo encarnado. Na historicidade da igreja, é fundamental insistir na conjunção da cristologia com a pneumatologia, a fim de preservar a centralidade do evento Cristo. Irineu, pai da igreja, utiliza uma metáfora para nos explicar essa conjunção – que logicamente como qualquer metáfora tem suas limitações. Ele fala das duas mãos de Deus que operam juntas economia da salvação: a mão do Cristo e a mão do Espírito Santo. Mãos que atuam unidas, mas são distintas e complementares. A presença do Espírito na obra do Cristo encarnado não põe um fim na atuação do Espírito Santo depois do evento-Cristo. O Espírito Santo estava presente e operante antes da glorificação do Cristo e continua presente hoje. 


A revelação universal do Cristo não pode nos levar a considerar as religiões do mundo como caminhos complementares ao do corpo do Cristo. Quando muito a universalidade da revelação presente nessas religiões assumem um papel de preparação evangélica para a compreender no evento Cristo, não podendo ser consideradas caminhos de salvação. Ao longo da história cristã foram comuns injustiças e a perseguições aos grupos, denominações e religiões que discordavam do cristianismo hegemônico naquele momento. Ações essas que violentam a imago Dei, o livre-arbítrio e a compreensão da ação salvífica do Cristo.

 

Grupos, denominações e mesmo religiões não-cristãs não se resumem à mera representação de uma busca humana de Deus, mas traduzem a revelação universal de Deus, através da qual Ele tem se automanifestado à humanidade. São parte do processo de envolvimento pessoal de Deus com a humanidade, que atravessa a história, tendo como centro salvífico o evento Cristo. 

 

Jesus, o Cristo, é aquele que revela o Pai. Quando Deus dá-se a conhecer, de forma direta e especial, o faz através de seu Filho, em carne e osso. E é justamente essa verdade revelada em Cristo, que deve dirigir toda a nossa compreensão do ser humano e da igreja do Cristo.

 

Jesus Cristo é Deus e homem, consubstancialmente perfeito e pleno. Nesse sentido, entendemos que o Cristo encarnado possibilita uma compreensão do que é a humanidade, traduzindo numa linguagem cheia de vida os conteúdos fundamentais daquilo que está dito em Gênesis sobre o homem, antes do pecado.

 

O Cristo revelado é a dimensão mais profunda do humano, a dimensão que traduz aquilo que o cristão é: filho adotado do amor e da graça de Deus, criado para o louvor, honra e glória do Deus eterno.

 

O corpo do Cristo sobre a terra é uma nova vida com Cristo e em Cristo, dirigida pelo Espírito Santo. A luz da ressurreição do Cristo reina sobre a igreja (I Co 15.3-8) e a alegria da ressurreição, do triunfo sobre a morte, compenetra-se nela. O Senhor ressuscitado vive conosco e nossa vida é uma vida misteriosa em Cristo. Os cristãos levam este nome precisamente porque são do Cristo, vivem em Cristo e Cristo vive neles. A encarnação não é unicamente uma idéia ou uma teologia; é antes de tudo um fato que se produziu uma vez no tempo, mas que possui a força da eternidade. E esta encarnação perpetua, sem confusão, as duas naturezas: a natureza divina e a natureza humana.

 

A igreja é o corpo místico do Cristo, enquanto unidade de vida com Ele. Expressa-se a mesma idéia quando se dá à igreja o nome de esposa do Cristo ou esposa do Verbo. A igreja, enquanto corpo do Cristo não é Cristo-Deus-homem, pois ela não é mais que sua humanidade; mas é a vida em Cristo e com Cristo, a vida do Cristo em nós: "Não sou mais eu quem vive, é Cristo que vive em mim" (Gl 2,20). 

 

A igreja, em sua qualidade de corpo do Cristo, que vive da vida do Cristo, é por Ele mesmo o domínio, onde está presente e onde opera o Espírito Santo. Eis aqui, porque se pode definir a igreja como uma vida bendita no Espírito Santo. A igreja é obra da encarnação do Verbo, ela é encarnação: na igreja Deus se assimila à natureza humana e através da igreja o corpo se assimila à natureza divina. É a santificação, que os pais chamavam deificação (Zeosis) da natureza humana, conseqüência da união de duas naturezas em Cristo. Assim, a igreja é o corpo do Cristo: enquanto igreja participamos da vida divina da Trindade. Ela é a vida em Cristo, é o corpo do Cristo, que permanece unida à Trindade.

 

I. JESUS NUM MUNDO DE EXCLUSÃO

 

A primeira parte da missão de Jesus (4.14–9.50) é toda situada na Galiléia (cf. 23.5; At 10.37). Ao contrário de Mateus (15.21; 16.13) e Marcos (7.24-31; 8.27), Lucas abre a comissão de Jesus com a cena da pregação na sinagoga de Nazaré (4.16-30), que descortina toda a seqüência do evangelho: o anúncio da salvação fundamentado nas promessas do Antigo Testamento e inspirado pelo Espírito Santo, a salvação dos pagãos, a rejeição de seus compatriotas e a tentativa de assassinato. No texto, Lucas descreve duas questões centrais: em primeiro lugar o programa de Jesus e, em segundo lugar, o destinatário da mensagem. Os versículos 18 e 19 apresentam o programa e os versículos 23-27 seu público, os gentios.

 

Jesus foi ungido, escolhido por Deus, e sob a ação do Espírito Santo – ação esta que caracteriza o verdadeiro profeta – tem como missão proclamar e libertar. Seu programa é formado por quatro pontos: anunciar a boa nova aos pobres,   proclamar a libertação aos cativos, dar vista aos cegos, por em liberdade os oprimidos. O programa destaca duas idéias a de anunciar, proclamar, e a de libertar, salvar.

 

A idéia de proclamar está presente no Antigo Testamento, já que a missão profética era, sobretudo, proclamatória. De Samuel a Jeremias – incluídos nesse período de ouro homens como Samuel, Natã, Gade, Azarias, Elias, Eliseu, Joel, Miquéias, Micaías, Isaías e Jeremias -- esses anunciadores da vontade de Deus falaram aos reis e ao povo. Advertiam, repreendiam, encorajavam. Falavam de julgamentos e de promessas espetaculares. Traduziam grandeza de caráter e força moral. E assim também foi o último período da profecia hebraica, de Ezequiel a Malaquias. No período helênico, graças às reuniões nas casas de oração, sinagogas, a proclamação se generalizou. As Escrituras eram lidas e interpretadas. João, o batista, foi um anunciador da chegada do reino. E Jesus, ali na sinagoga de Nazaré, colocou em seu programa a tarefa da proclamação.

 

O conceito de libertação no Antigo Testamento parte da idéia de livramento e de segurança. A pessoa de um libertador no AT traduz sempre a imagem do libertador como alguém que arrebata um povo da destruição (Jz 18.28).  E no Novo Testamento, o libertador era aquele que soltava os israelitas da escravidão (At 7.35), ou que arrancaria a nação da impiedade (Rm 11.26). Para todo o judeu, na época de Jesus, o ato mais característico de libertação ocorreu sob a liderança de Moisés, quando Deus salvou seu povo da escravidão aos egípcios e o libertou no deserto do Sinai (Ex 12.31—14. 31). É fundamental entender que a libertação da escravidão egípcia definiu para os judeus do período helênico o paradigma da libertação como um ato de Deus que não visava apenas o alívio de uma situação desastrosa. Mas, e aí está a chave do conceito de aliança, para que livres possam servi-lo. Essa idéia fundamenta o conceito de aliança e da espiritualidade judaica até o primeiro século.

 

O texto usado por Jesus é a leitura de Isaías 61.1-2. Ao ler o texto e dizer que ele próprio é o cumprimento da profecia, Jesus cria uma nova hermenêutica, que será amplamente utilizada por todos os escritores do Novo Testamento. Ele é o intérprete inspirado, ungido, no cumprimento do que foi anunciado e que está presente nesse cairos para o desenlace dos últimos tempos – proclamar o ano aceitável do Senhor. Partindo dessa hermenêutica, os escritores do NT, e Lucas entre eles, lerão o Antigo Testamento à luz do evento Jesus. 

 

Uma característica marcante que se destaca na personalidade de Jesus é a sua liberdade. Liberdade policrômica e polifônica, que abrange os mais diversos registros de expressão e, talvez, seja a chave para explicar o fascínio exercido por ele sobre os que o rodeavam. Liberdade de iniciativa e de movimentos, como desenvoltura e franqueza para falar, com clareza quando toma alguma posição, instrui ou critica. Demonstra grande liberdade em face das classes dominantes (Lc 13:31-33, João 7:1-10, João 10:18). Liberdade para ensinar (Mc 1:22).

 

Liberdade para escolher seus discípulos entre pessoas mal vistas. A liberdade de Jesus vai abrindo  caminho entre os conflitos sociais, sem renunciar um só momento ao sentido do outro, à preocupação pela pessoa de carne e osso dentro de cada situação concreta. Liberdade que visa suscitar condições humanas adequadas a uma vida pessoal criativa e libertadora dos grilhões que a prendem ao passado e lhe tolhem o futuro. A radicalidade da liberdade de Jesus consiste na plenitude de sua inserção no mundo do pobre. A liberdade de Jesus constitui-se  assim no fato pessoal fundamental ligado à pregação do Reino. Antes de ser tema de sua pregação, a liberdade e a libertação encontram expressão concreta na própria pessoa, no seu dinamismo criador, na sua originalidade irredutível. Jesus se mostra profundamente livre e, por isso, tanto a sua palavra como seus atos suscitam liberdade ali onde se fazem presentes. Neste sentido, sua prática  fundadora de liberdade. Jesus liberta para o Reino.

 

II. MAS, QUAL É A MISSÃO?


Em meio a todas as questões que se levantam, uma pergunta surge: O que quis e veio trazer afinal Jesus, o Cristo, com a sua pregação? De uma forma breve a melhor resposta é: ser em sua própria pessoa a resposta de Deus à condição humana. Mas para entender Jesus como resposta à condição humana, precisamos compreender quais são as questões que demandam esta resposta. De uma forma geral podemos dizer que elas nascem de um princípio-esperança gerador de constantes utopias de superação da alienação, que faz parte do humano, seja qual for a cultura ou civilização. É neste contexto, que de certa forma está presente em toda história humana, que surge um homem de Nazaré anunciando a resposta de Deus: o romper da nova ordem está próximo e será trazido por Deus (cf. Mc 1:14, Mt 3:17, Lc 4:18s).


Jesus não começou pregando a si mesmo, mas o reino de Deus, que é indiscutivelmente o centro de sua mensagem. Mas o que era reino de Deus para os ouvintes de Jesus? A realização da esperança de superação de todas as alienações humanas, da destruição de todo mal, seja físico, seja moral -- da dor, da divisão, do ódio, do pecado e da morte. Isto aconteceria não numa outra vida, no céu, ou pós-morte. Esta utopia, anseio de todos os povos, é o objeto da pregação de Jesus. A sua promessa é que não será mais utopia, mas realidade a ser introduzida por Deus (Lc 4:18-19, 21).

 

Jesus torna-se libertador porque prega e inaugura o reino de Deus. Reino este, que é a transformação global e estrutural da realidade estabelecida do homem e do cosmos, purificados de todos os seus males. Não é ser um outro mundo, mas transformar o mundo em novo. Ele apresenta o Reino como graça, acima de todos os esquemas anteriores de possíveis virtudes e merecimentos. 


Os zelotas procuravam alianças para realizar a sua revolta militar; os sacerdotes obtinham a ajuda dos grandes poderes do mundo para manter a ordem sacra estabelecida; os fariseus insistiam na pureza da lei que pode conservar os fiéis impolutos dentro deste mundo corrupto; e os apocalípticos queriam congregar os restantes escolhidos para o tempo de julgamento que estava próximo. Jesus escolhe como destinatários do seu reino os últimos do mundo. É o cumprimento de uma das grandes utopias do Antigo Testamento, expressas no ano sabático ou do jubileu, que jamais foram realizadas como ideais sociais de forma definitiva. Os milagres de Jesus vêm mostrar que o Reino já esta presente e fermentando no velho mundo. Jesus anuncia o ano de graça do Senhor que não conhecerá ocaso.


A libertação promovida por este Reino abarca tudo: humano, sociedade, mundo, a totalidade da realidade deve ser transformada por Deus, a partir do próprio ser humano. A pregação do Reino se realiza em dois tempos: no presente e no futuro. Por isto Jesus entusiasma as massas. Ele tem consciência de que com ele já se iniciou o fim deste velho mundo. Jesus vai entender o messianismo e as categorias apocalípticas como os meios mais adequados para comunicar sua mensagem libertadora. Com essa linguagem ele participa dos desejos fundamentais do coração humano, de libertação e de uma nova ordem. A sua moral tem sentido messiânico e se exprime na forma de ruptura. Suplantando os princípios do seu povo, ele acolhe à mesa e na amizade os perdidos, expulsos da aliança.

 

Apesar destes elementos, a pregação de Jesus destaca-se das expectativas messiânicas do povo. Ele não alimenta o nacionalismo judeu; não diz nenhuma palavra de rebelião contra os romanos, nem faz qualquer alusão à restauração do rei davídico. Neste ponto, decepciona a todos. O que mais se ressalta no Jesus, o Cristo, é a autoridade com que anuncia o reino e o torna presente por sinais e gestos inauditos. Em Jesus, irrompe o tempo da libertação. Uma vez entendendo qual era a sua missão, é preciso saber qual a sua estratégia. Já que Reino de Deus significa uma revolução total, global e estrutural da velha ordem, Jesus faz duas exigências fundamentais: exige conversão da pessoa e postula uma reestruturação do mundo da pessoa.

 

O Reino atinge primeiro as pessoas. Delas se exige conversão, no sentido de mudar o modo de pensar e agir no sentido de Deus, portanto revolucionar-se interiormente. É um novo modo de existir diante de Deus e diante da novidade anunciada por Jesus. Implica sempre numa ruptura (Lc 12:51-52). É um não à ordem vigente (Lc 13:3,5). Ruptura até mesmo de uma religião que gerava uma consciência oprimida. Afinal, na religião judaica, ao tempo no NT, tudo estava prescrito e determinado, tanto nas relações com Deus como entre os homens. A Lei era  amanifestação da vontade de Deus. Com isso a consciência sente-se oprimida por um fardo insuportável de prescrições legais (Mt 23:4). 


Jesus levanta um protesto contra a escravização do homem em nome da lei (Mc 
2:27). A pregação ética de Jesus pode ser resumida em uma frase: não é a lei que salva, mas o amor. Em outras palavras ele desteologiza a concepção da lei. A vontade de Deus não se encontra só nas prescrições legais e nos livros santos, mas se manifesta principalmente nos sinais dos tempos (Lc12:54-57). Deve ficar claro que, se Jesus liberta o homem das leis, não o entrega a libertinagem ou a irresponsabilidade. Antes pelo contrário, cria laços e ligações ainda mais fortes que os da lei. Liberdade sim, frente a lei. Contudo só para o bem e não para a libertinagem. Desta forma, ele deseja libertar o homem das convenções e dos preconceitos sociais. No Reino de Deus deve haver liberdade e igualdade fraterna. Nesta concepção, justiça supera o conceito clássico de dar a cada um o que é seu. Jesus vem anunciar uma igualdade fundamental. Ele confronta toda a subordinação desumanizadora a um sistema, seja social ou religioso.


Um outro aspecto deste processo de libertação passa pelo mundo das pessoas como, por exemplo, a libertação do legalismo, das convenções sem fundamento, do autoritarismo e das forças e potentados que subjugam o ser humano. Estas forças eram representadas particularmente pelos escribas e fariseus, que viviam espalhados por todo Israel, comandavam as sinagogas, possuíam enorme influência sobre o povo e para cada caso tinham uma solução que arrancavam pelos cabelos das tradições religiosas do passado e dos comentários da lei mosaica. Quanto a eles, Jesus declara que dizem e nada fazem. Atam pesadas cargas de preceitos e leis e põem-nas nos ombros dos outros.


Jesus prega que para entrar no Reino não basta fazer o que a lei ordena. A presente ordem das coisas não pode salvar o homem de sua alienação fundamental. Ela é uma desordem. Urge uma mudança de vida e uma reviravolta nos fundamentos da velha situação. Por isso os marginalizados da ordem vigente estão mais próximos do Reino de Deus que os outros. Jesus vai além das fronteiras da lei, para o local onde habitam aqueles a quem o povo e os letrados consideram pecadores. Ele veio de forma provocativa. 

 

Podia ter vindo de maneira mais interna, silenciosa, oculta. Podia ter se mostrado como um homem espiritual, prudente. Preferiu, no entanto, comportar-se escandalosamente: sentou à mesa com os pecadores, oficiais de seu povo (publicanos e prostitutas), convidando-os assim para o banquete novo de seu Reino. Ele rompe as convenções sociais da época, não se atém às convenções religiosas e não respeita as divisões de classes. Ele realiza sua ação no reverso da história.

 

Para pensar e discutir:

 

O livro mais polêmico da teologia batista antiga, que apresenta uma visão da substância católica entendida em um de seus aspectos, o do universalismo, é o de Hosea Ballou (1771-1852), Tratado sobre a Expiação, escrito em 1805. Ballou considerou que o sacrifício do Cristo ao invés de ser uma posição jurídica ou vicária tem base moral. Cristo sofreu pela humanidade, mas não em seu lugar. Com base neste argumento, afirmou a salvação universal de todos os seres humanos, porque a morte leva a alma não regenerada ao arrependimento.

 

III. A CRUZ DO CRISTO

 

A vida de um cristão como pessoa é compreendida no contexto da comunidade de crentes. Cada pessoa é chamada a viver e a avançar em crescimento espiritual e moral na abundância da graça. A doutrina da encarnação, na tradição cristã, ocupa uma posição central. Jesus é mais que um homem santo ou um mestre de moralidade. Ele é Deus encarnado. A doutrina da encarnação é uma expressão da experiência do Cristo enquanto ser humano. Nele a divindade está unida à humanidade, sem a destruição de nenhuma dessas realidades. Jesus Cristo é verdadeiramente Deus, que tem em comum a mesma realidade com o Pai e o Espírito. Ele é verdadeiramente ser humano que compartilha com todos nós daquilo que é humano. Como único Deus-ser humano, Jesus Cristo recolocou a humanidade em comunhão com Deus.

 

Pela manifestação divina, pelo ensinamento do significado da autêntica vida humana e pela vitória sobre os poderes do pecado e da morte através da ressurreição, Cristo é a expressão suprema do amor de Deus, o Pai, por seu povo, tornado presente em cada época e em cada lugar pelo Espírito Santo através da vida da igreja. 

 

A essencialização da vida, ou seja, a salvação, é momento e processo que tem início com o arrependimento e um ato de fé, a metanóia, que produz uma profunda e radical mudança de vida. Esse processo tem sua continuidade até a morte. A vontade de Deus manifesta em Jesus e na Palavra são os critérios norteadores dessa nova vida em Cristo. O objetivo da piedade cristã é a união com Deus e nossa participação na graça divina. O esforço para viver em Deus exige uma escalada constante, longe das ambigüidades de uma condição humana alienada, em direção à glória do reino de Deus. Esta possibilidade é dada a todos em Jesus Cristo. 

 

As verdades da revelação salvífica de Deus em Jesus Cristo são transmitidas às novas gerações pela comunidade de fé, viva e contextualizada, mas sob a direção do Espírito Santo. As Escrituras são o fundamento e o testemunho escrito da revelação de Deus, regra de fé e prática. E a vida dos cristãos através dos séculos é a experiência da igreja fiel sob a permanente condução do Espírito Santo. A este processo, que une coração e razão, revelação e vida cristã, chamamos teologia.

 

Diante dessas questões que pontuam a fé que professamos, a cristologia. se coloca como centro da doutrina cristã, intimamente ligada à soteriologia. E são essas duas que analisaremos neste texto.

 

O Cristo e o Evangelho da Graça

 

São boas notícias, cf. 1Ts 3.6. A mensagem do evangelho é a boa notícia de que o reino de Deus é chegado: Mc 1.14-15, Mt 4.23, Lc 4. 18; 7.22. Mas é também crescimento espiritual: Fp 2.12; I Pe 1. 5, 9. 

 

É interessante lembrar que Orígenes, prenunciando uma teologia dialética da unicidade e universalidade da revelação, falou de um evangelium aeternum (De principiis IV, 1), através do qual Deus revela verdades aos seres humanos de todas as épocas, com a finalidade de integrar a revelação contida no evangelho histórico.

 

Qual é a relação do evangelho com a graça? 

 

A graça, o amor incondicional de Deus oferecido gratuitamente, através da fé daquele que ouve a mensagem do evangelho, salva para a vida eterna. 1Co 15.1-5; Ef 1. 13; Rm 1.16; 15. 18-21; Gl 1.8-9; Mt 28.19.

 

Tomás de Aquino afirmou que a preparação do ser humano para a graça tem o livre-arbítrio como movimento e Deus como móvel. “Ela pode ser considerada sob dois aspectos: no primeiro, depende do livre-arbítrio e não implica a necessidade de obter a graça, porque o dom da graça excede qualquer preparação da virtude humana; no segundo aspecto, tem Deus como móbil e implica a necessidade de obter a graça, que é determinada por Deus, embora não se trate de uma necessidade proveniente da coação, mas da infabilidade, porquanto a intenção de Deus não pode deixar de ter efeito”. (Summa Theologiae, ed. Caramello, Torino, 1950, III, q. 112-113).

 

Luís de Molina, partindo de Tomás de Aquino, considerou dois tipos de graça: a suficiente, dada a todos os seres humanos como condição necessária à salvação; e a eficaz, que infalível segue a boa vontade humana. (Liberi arbitri cum gratiae donis, divina praescientia, providentia, praedestinatione et reprobatione concordia). 

 

O que é a salvação?

 

Sotérion e soteria é o ato de saldar do poder e dos efeitos do pecado. O sentido geral, tanto no Antigo Testamento como no Novo, é o de livrar das opressões, materiais e espirituais: Ex 14.13, 15.2; Is. 46.13, 52.10-11; Os 1.7; Jó 30.15; Mt 14.30, Jo 12.27, Mt 9. 22, Lc 8.36, At 4.9; Rm 11.26-27.

 

Os tempos da soteriologia

 

Quando falamos em essencialização da vida falamos nos tempos da salvação na vida humana em particular e na vida da humanidade como universalidade. A essencialização tem (1) um tempo pretérito, 2Tm 1.8-9, que fala de perdão jurídico, Rm 5.9, Ef 1.7; (2) um tempo presente, Tg 1.21, 1Pe 1.9, que fala de liberdade, Lc 9.23+, Rm 5.10, Gl 5. 16, 25; e (3) um tempo futuro, Rm 13.11, que fala da glorificação, Fp 3.20-21, Gl 1.4, 1Pe 1.5, 3.20-21.

 

A cruz e suas realizações

 

Redenção. 

 

Alforria, ato de comprar a liberdade. Daí, temos expressões como comprador, remidor, resgate. Rt 3-4, Os 3.1-5, Is 43.3,10-14, 44.6.

 

No Novo Testamento temos seis expressões gregas que traduzem a idéia de alforria e redenção: lutron, que podemos traduzir por “pagamento para livrar”: Mt 20.28, Mc 10.45; lutróo, comprar/libertar, Lc 24.21, Tt 2.14, I Pe 1.18-19; apolútrosis, alforria através de pagamento de um resgate, Rm 3.24, Ef 1.7, Hb 9.15. No nível escatológico, Rm 8.23, Ef. 4.30; agorazo, comprar, I Co 6.19-20, Ap 5.9; ekagorazo, comprar para libertar, Gl 3.13,Ef 5.16, Cl  4.5; peripoiéo, redimir, adquirir, At. 20.28.

 

Quando estávamos sob a escravidão do pecado e a Satanás – Jo 8.34, II co 4.3-4 --, Cristo pagou nossa alforria. II Pe 2.1. Ele nos tirou do pelourinho, Gl 3.13 (cf. Os 3.1-5), e nos deu plena liberdade, Mt 20.28. 

 

Dentro da teologia reformada, a idéia de redenção nos leva a outros conceitos que enriquecem a soteriologia. Vejamos algumas delas:

 

Propiciação

 

O conceito propiciação (hilastérion, hilasterion) do verbo grego hilascomai (hilaskomai) traduz a idéia de satisfazer através do sangue. E não significa apenas expiar, no sentido de anular, mas dar uma satisfação plena. Nesse sentido, o conceito propiciação está intimamente ligado ao de justiça de Deus.

 

Propiciação está ligada à idéia de justiça porque Deus é o absoluto moral do universo. Por isso, Ele manifesta sua orgé e seu tumós, que traduzimos por ira, contra o pecado. 

 

Segundo Lutero, “a ira é o justo juízo de Deus contra a injustiça”. Isto porque, com o pecado, Deus é o grande injustiçado, pois o pecado diz que Deus não é Deus, que Deus não é amor, que Deus não é justo. Diante dessa acusação injusta do pecador contra Deus, Deus deve ser desculpabilizado. Esse é o sentido da ira e da necessidade da propiciação. 

 

No Antigo Testamento, essa ira de Deus contra o pecado é mencionada 585 vezes e está presente no Novo Testamento, cf. Jo 3.36, Rm 1.18+, 9.22, Ef 5.6, II Ts 1.7-9, Hb 10.27, 12.29.

 

Justificação

 

O conceito justificação que aparece no Novo Testamento como dikaióo, justificar, tratar como justo, dikaios, justo, honrado, reto, e dikaiosine, justiça, honestidade, integridade traduz a idéia ato de declarar alguém justo. Rm 3.19-26, II Co 5.21, At 13.39, Rm 5.9, 8.30-31, Ef 1.4, Tt 3.7, Jd 24. Ou seja, não fala de uma atitude de neutralidade de Deus para conosco, mas de uma condição que nos é imputada, enquanto dom jurídico de Deus que é apropriado pela fé. At 13.39, Rm 5.1, Gl 2.16-17, 3.11-14, Rm 3.21-16.

 

Teologicamente, o conceito de justificação dá lugar a duas alternativas: a demonstração de uma necessidade, ou seja, de que o ser humano não pode ser diferente daquilo que lê é, pecador; e o esclarecimento da possibilidade: o ser humano, em Cristo, pode ter nova determinação, diferente daquela do estado de necessidade.

 

Somos justificados pela morte do Cristo na cruz, Rm 5.9, e por sua justiça, estamos em Cristo, somos membros do seu Corpo e Deus habita em nós, I Co 6.15-19.

 

Reconciliação

 

Katallasso e apokatallasso traduzem a idéia de fazer as pazes ou trocar a inimizade pela amizade, cf. Rm 5.10-11, II Co 5.18-21, Ef 1.10, 2.16, Cl 1.20-22., que nós comumente traduzimos por reconciliação.

 

Este conceito traduz dois aspectos. Ao morrer, propiciando a ira de Deus, Cristo nos coloca numa situação em que podemos fazer as pazes com Deus, ou como afirma Paulo, “Deus reconciliou consigo o mundo através do Cristo”, II Co 5.19. O segundo aspecto dessa reconciliação é que somente pela fé a paz pode ser completada. A graça e os benefícios da cruz do Cristo só se concretizam através da fé. O segundo aspecto da reconciliação é o relacionamento pessoal entre Deus e o ser humano que crê nele. Essa verdade aparece na parábola do filho pródigo e é o clamor que encontramos em Paulo, II Co 5. 19-20.

 

5. Substituição

 

Este conceito não é aceito por muitos teólogos, porque aparece no Novo Testamento sempre através da preposição negativa anti, em grego, ”no lugar de”, cf. Mt 20.28, Mc 10.45, I Tm 2.6, e como substitutiva huper, “pelo benefício de” ou “no lugar de”, cf. II Co 5.15, 21, I Pe 2.21-24, Rm 5.6-8.

 

A idéia da substituição é mais abrangente do que dizer que Cristo morreu no lugar dos pecadores. Para os defensores da substituição, (1) o castigo é removido porque Cristo morreu no nosso lugar, (2) a justiça do Cristo nos é imputada, (3) porque Jesus Cristo é Deus e ser humano, sua morte na cruz tem um valor infinito para todos que crêem. Assim, conforme acreditavam os pais da Igreja, é a substituição que possibilita, no escaton, a nossa deificação. 

 

Quando utilizamos o conceito escaton estamos nos referindo à teoria cristã do destino, onde os propósitos últimos de Deus para humanidade (morte, ressurreição, juízo final) e para mundo (a criação de novos céus e nova terra) são apresentados enquanto teologia dos últimos acontecimentos ou escatologia.

 

É interessante ver ainda que a substituição implica em disposição testamentária, quer dizer representação por Cristo. Mas, traduz também a idéia de troca de um corpo por outro corpo. Tem também uma leitura fideicomissária, onde Cristo, herdeiro e legatário, recebe a herança e o legado, para transmitir, por sua morte, àqueles que substituiu 

 

6. Perdão dos pecados antes da Cruz

 

Os pecados dos seres humanos que sentiram a dor e tiveram consciência de sua miserabilidade, ou seja, arrependidos, foram perdoados através da cruz, porque o sistema de sacrifícios no mundo antigo (que é anterior a Israel) era um símbolo do sacrifício vicário do Filho de Deus. Rm 3.25, Hb 9.15, 10.1-14.

7. O fim da lei mosaica

 

Em Romanos 10.14 lemos que “o fim da lei é Cristo, para justiça de todo aquele que crê”. Quando relacionamos este versículo com outros (Rm 3.19-20, 27-28, 4.14-16, 8.2-4, II Co 3.6-11,Gl 5.1-25, Ef. 2.8-10, Fp 3.9, Cl 2.14), vemos que o propósito da lei era (1) revelar o caráter de Deus, (2) orientar o povo nas áreas sócio-culturais e morais, (3) levar a pessoa à santidade e (4) condenar o pecador, levando-o ao arrependimento e à dependência através da fé na graça de Deus.

 

Mas o que a lei não pode fazer é justificar o pecador (At 13.39, Rm 3.19-20). Fora da cruz não há salvação. A lei mostra a necessidade de justificação, mas não tem a solução (Rm 8.2-4, Gl 3.22).

 

Por isso, em Cristo, há uma nova lei (Gl 6.2): “a lei do Espírito da vida em Cristo” (Rm 8.2, 13.8-10, II Co 3.17, I Jo 3.22-24) ou “a lei do amor” (Gl 5.6, 13-18). Essa lei é interna, vem do Espírito.

 

É importante notar que o espírito da lei antiga, ou seja, sua moralidade, é paralela à nova. Nove dos dez mandamentos aparecem no Novo Testamento, mas como expressão da vida controlada pelo Espírito.

 

A lei do sábado, que não se repete no Novo Testamento, não existe mais, cf. Cl 2.16, 20-23, Rm 14.5-6, Gl 4.10, I Tm 4.3-4. Fica, portanto, o conceito moral do descanso. Mas, há uma polêmica que permanece: podemos dizer, a partir do Novo Testamento, que o dia do Senhor, assim chamado por causa da ressurreição, é o sábado cristão? 

 

Diante de questões como essa, prefiro dizer que a nova lei do Espírito, embora seja a lei da liberdade cristã, exige de fato mais do crente, pois o Espírito age em cada pessoa dando convicção e direção. E aqui temos que entender a beleza da liberdade cristã: em alguns ele proíbe costumes como o café, vinho, rock, televisão (para citar poucos exemplos), em outros não. Devemos entender a proibição como uma forma de testemunho. Nesses casos, desobedecer é pecar.   

 

8. Adoção como filhos

 

Esse é um conceito eminentemente paulino, e tem por base uma leitura hermenêutica da família romana. Para Paulo não somos apenas filhinhos (recém-nascidos, crianças) de Deus, mas através da cruz podemos chegar a herdeiros maduros, plenos, filhos provados e dignos, cf. Rm 8.14-17, Gl 3.23-26, 4.1-7.

 

Não podemos nos esquecer que tal perfilhamento implica em reconhecimento legal, do filho ilegítimo, por Deus, o que implica em termo de nascimento, por declaração vicária e testamentária.

 

9. A obra do Espírito

 

A pergunta que move o entendimento desta questão é: como pode o Espírito que é santo operar nas vidas dos pecadores? A resposta é: a cruz possibilitou a ação graciosa, e não meramente jurídica, do Espírito Santo na vida humana.

 

É a cruz que cria a base para a obra do Espírito na supressão do pecado no mundo (Rm 8.2-6): para o convencimento do pecado e da verdade em Cristo (Jo 16.8-11), para a regeneração – o novo nascimento e a vida eterna (Tt 3.5, Jo 3.1-7), para o batismo do Espírito (I Co 12.13, Rm 6.1-11), para o selo do Espírito (Ef 1.13+, 4.30) e para a habitação do Espírito (I Co 6.19).

   

10. A base da santificação

 

O Espírito Santo atua em cada um de nós, a partir da cruz e da nossa fé, separando-nos do pecado e aperfeiçoando-nos a cada dia à imagem do Cristo. Podemos dizer que a santificação cobre três aspectos: (1) é posicional, enquanto estado do ser crente, cf. I Co 1.2, 6.11, Hb 10.10,14; (2) é experiencial, enquanto luta diária e permanente do fiel, cf. I Pe 1.15-16, I Ts 4.3; e (3) é futura, enquanto completude no escaton, cf. I Jo 3.1-2, Ef. 5.26-27, Jd 24-25, I Co 15.12.

 

Mas Cristo e sua redenção é um desafio presente para a igreja brasileira. Vejamos um pouco das questões que enfrentamos hoje no Brasil, tanto como fiéis, quanto como estudiosos do protestantismo brasileiro.

 

Cristianismo, que cristianismo?

 

O velho protestantismo está cada vez mais distanciado dos novos movimentos de lastro cristão. Não se pode mais ignorar as significativas diferenças que há entre eles, sob pena de cometer equívocos nos resultados das pesquisas. O pesquisador atual não pode furtar-se ao, às vezes, penoso labor  de precisar classificações e conceitos. É preciso que distinga bem, ao estudar qualquer novo movimento religioso, o limite exato em que o velho protestantismo deixa de estar presente. Quando seus princípios básicos de liberdade – a justificação pela fé, a sola scriptura, o livre exame e o sacerdócio universal dos crentes – não estiverem presentes ou se apresentarem obscurecidos por outras práticas religiosas, não há mais protestantismo”. Antonio Gouvêa Mendonça.

 

A academia em suas análises sobre o fenômeno evangélico brasileiro na alta-modernidade urbana criou três lugares comuns: mercado, trânsito religioso e fundamentalismo. Na verdade, essa leitura reducionista da realidade traduz um defeito que nasce de suas bases teóricas de análise, fundamentadas sobre os trois petits cochons da sociologia: Marx, Durkheim e Weber. É a partir dessa trindade que nossos estudiosos se debruçam sobre o fenômeno religioso. Esses três pensadores das ciências sociais, por mais importantes, tinham em comum um ponto de partida no mínimo questionável: a idéia de que a religião é sempre conseqüência, resultante de fenômenos ou situações sociais e nunca fenômeno fundante, embora relacional com contexto cultural de época, situação e geografia.

 

Quando o fenômeno evangélico explodiu no Brasil, a partir dos anos 1950, a sociologia brasileira encontrava-se desarmada para analisar e entender o que estava a acontecer. Isto porque suas bases situavam-se nos século dezoito e dezenove. É verdade que grandes processos de revolução religiosa já tinham acontecido no mundo moderno, a começar pela Reforma na Europa, com seus desdobramentos continentais nos Estados Unidos. Isso só para falar do movimento protestante no Ocidente. Mas conhecemos as dificuldades de Marx para entender o fenômeno religioso como fundante e criador de contextos e novas relações dentro de determinada sociedade. Durkheim embora caminhe no sentido de entender estruturalmente o fenômeno religioso, construindo conceitos e parâmetros a partir das religiões antigas, ditas primitivas, e não monoteístas, formata leituras que até hoje são recitadas como compreensões definitivas sobre o fenômeno religioso, as estruturas dessas instituições e a relação entre líderes e fiéis. Depois que Marx entrou em declínio com o fim do pensamento soviético, fato marcado nas universidades européias, Weber foi tirado do ostracismo e passou a ser reverenciado, assim como todo o historicismo alemão. Ora, se partimos daqueles que influenciaram o historicismo de Weber, em especial Ritschl e Troeltsch, vemos que eles consideravam o fenômeno religioso que estudavam típico ao Ocidente e, mais ainda, europeu. Dessa maneira, Weber entendeu o calvinismo como base para a expansão do capitalismo nos Estados Unidos, principalmente. 

 

O que poderia fazer a sociologia brasileira diante da explosão do fenômeno evangélico no Brasil a partir dos anos 1950? Ora, voltar aos pais da sociologia. E assim foi. E assim é. E a explosão do fenômeno evangélico passou a ser vista como efeito de causas como a migração, a urbanização e a ruptura com a estrutura agrária e patriarcal. Mas, com a débâcle do marxismo, nos anos 1980, e o boom neoliberal que varreu o mundo, a sociologia trouxe o neoliberalismo travestido de espírito crítico para dentro da casa e passou a ver o fenômeno evangélico no Brasil como um subproduto do mercado capitalista. Donde, as idéias de mercado e seus componentes se transformaram em conceitos da sociologia e instrumentos de análise para o fenômeno religioso. Vendo dessa maneira o fenômeno evangélico, a sociologia reduziu o fenômeno, jogou fora todas as experiências anteriores que ajudaram a construir o Ocidente protestante e criou outro conceito, o de trânsito religioso. E tudo que passou a acontecer no Brasil virou trânsito religioso. Mas e antes em outras regiões do planeta? Foi o trânsito religioso que mudou a cara da Alemanha, dos países nórdicos ou mesmo da Inglaterra e Estados Unidos? Porque lá podemos utilizar o conceito de conversão trabalhado por Weber e por que não aqui? Sabemos, claro que sabemos, que as condições são diferentes. Mas, em relação ao fenômeno evangélico brasileiro duas componentes dificultam a análise: o preconceito diante de algo que impacta e desnorteia o mundo acadêmico e a limitação de suas bases teóricas. 

 

Definidos assim os limites necessários, afirmamos a importância de Marx, Durkheim e Weber para a sociologia e para todos aqueles que se dedicam ao estudo da religião. Mas aqui queremos utilizar como referencial um trabalho de Paul Tillich só agora traduzido para o português: Teologia da Cultura. Desejamos, dessa maneira, a partir da teologia da cultura e de teóricos como Bauman, Mendonça, Robertson e Santos analisar a relação entre evangelicalismo, urbanização e a busca por fundamentos, e construir uma leitura própria dos caminhos transitados pelo evangelicalismo urbano brasileiro, em suas diferentes formas.

 

Caminhos da espiritualidade

 

Uma das questões que nos perguntamos quanto relacionamos cidade e religião é se, de fato, o evangelicalismo outorga sentido às massas urbanas. Na verdade, podemos dizer que o ser humano é um ser potencialmente espiritual, e que essa espiritualidade pode se expressar de várias formas, mas que a religião no mundo urbano, nos grandes centros brasileiros, ocupa um espaço privilegiado enquanto tradução dessa espiritualidade, isso é verdade. Ora, a espiritualidade é a dimensão da profundidade do espírito humano e no mundo urbano brasileiro essa busca, por vários fatores, é incrementada e direcionada ao evangelicalismo. Basta ver que no Brasil urbano a igreja evangélica cresceu 267% nos últimos dez anos (Ronaldo Lidório, Rede Sepal). Assim, se a população brasileira urbana é religiosa, essa religiosidade é catalisada pelo permanente processo de evangelização protestante dos últimos 150 anos.

 

Que a espiritualidade traduzida nas religiões das cidades da alta modernidade está presente em todas as ações do espírito humano, na ética, na estética, no conhecimento, isso é fato registrado pelas ciências da religião e pela teologia. Por isso, quando na cidade alguém conscientemente rejeita a religião, ou seja, se diz agnóstico ou ateu em nome de uma ética, de uma estética, ou por causa da busca de conhecimento, está a rejeitar a religião em nome da religião. Isto porque ela é o fundamento, a profundidade e a substância da vida espiritual do ser humano.


De forma geral, numa leitura antropológica cristã, podemos dizer que espiritualidade é aquela relação da pessoa com a transcendência. Nesse sentido, a espiritualidade é a totalidade da vida. A religião, por sua vez, traduz a dimensão dessa espiritualidade. Por exemplo, quando multidões assistiram ao filme A paixão de Cristo, de Mel Gibson, e foram despertadas, cada qual à sua maneira, para a miserabilidade humana, temos aí uma expressão da espiritualidade. As experiências humanas com o que é sagrado envolvem escolha, disciplina e prática e levam o ser humano às experiências religiosas, porque a religião traduz o que é sagrado para a vida da pessoa. Dessa forma, a espiritualidade sempre será traduzida em religiosidade, mas na globalidade de forma mais contundente enquanto fenômeno urbano.

 
Em relação à realidade brasileira percebemos no cristianismo mais diversidade confessional do que religiosa. Oitenta e nove por cento dos brasileiros confessam ser cristãos, e esta espiritualidade está presente no desejo de justiça social e solidariedade. Diante dessa espiritualidade cristã invisível, podemos dizer que quase todos os brasileiros são cristãos em alguma medida. Tomemos como exemplo a igreja católica, que não pode ser analisada como uma, pois abriga diferentes manifestações de religiosidade. Além dessa pluralidade católica, há centenas de igrejas protestantes/evangélicas que incluem as históricas de migração e missão, as pentecostais históricas e as neopentecostais.

 

Em razão disso podemos dizer que enquanto fenômeno urbano o evangelicalismo é fator de agregação e desagregação. Podemos, até explicitar essa dualidade com um exemplo recente. Durante os anos da ditadura militar no Brasil, algumas igrejas e denominações apoiaram o governo militar, a repressão, e tivemos até casos de torturadores protestantes e evangélicos, membros de igrejas importantes. O evangelicalismo é desagregador quando se liga à corrupção, ao clientelismo e às benesses. Mas agrega quando defende a vida humana. Com isso, constatamos que o evangelicalismo pode ser uma coisa ou outra ou mesmo, dialeticamente, ambas.


Essas são marcas da história protestante/evangélica recente. Mas, é claro que seria um erro uniformizar a atuação dos protestantes e evangélicos no período dos governos militares, até mesmo porque muitos crentes também foram torturados. O certo é que pessoas, em nome da agregação, do fanatismo e de conceitos bíblicos mal interpretados, foram cúmplices de torturas e mortes. 

 

A busca por fundamentos

 

A Reforma desde os seus primeiros momentos buscou fundações. Conhecemos os princípios basilares apresentados por Lutero: a justificação pela fé, a sola scriptura, o livre exame e o sacerdócio universal dos crentes. A partir desses conceitos de liberdade, que depois foram acrescidos, surgiu um conjunto de princípios em cima do qual se levantou a teologia reformada. Tal construção foi vista como base que legitimou e autorizou a expansão de uma das maiores revoluções religiosas da história humana. E, assim, surgiu a teologia reformada como fundamento de todos os protestantismos e também dos evangelicalismos, com seus diferentes matizes e leituras.


No Brasil, a sociologia viu o movimento evangélico como fundamentalista, passou a ver apenas seu lado integrista. É certo que o movimento evangélico é fundamentalista, e Mendonça explica o que isso significa: 

 

Seu apego à letra da Bíblia, ao mesmo tempo em que a interpreta dogmaticamente, tem engessado o protestantismo no cipoal da ortodoxia mais fria que pode existir. O fundamentalismo, além de violar o sagrado princípio da Reforma, que é livre exame – por ter-se especializado em publicar Bíblias com notas e referências, verdadeiros tratados teológicos --, voltou a submeter o protestantismo a um simples sistema de crenças ao qual o fiel se submete intelectualmente. A extrema racionalidade fundamentalista, com sua filosofia da história – história linear construída em etapas ou dispensações em que a última encerra com a segunda vinda do Cristo para iniciar o milênio --, levou o protestantismo ao desinteresse total pelo mundo. O pior nesse sistema é que o esperado milênio deverá vir com a derrocada do mundo a fim de cumprir todas as profecias bíblicas. É, assim, a mais estranha filosofia: quanto pior, melhor”.


Na verdade, a utilização da expressão fundamentalista para o evangelicalismo brasileiro ou setores dele não está errada, mas se torna reducionista ao prender-se aos aspectos negativos do termo -- conservação, integrismo, retroação – e deixa de ver aspectos relacionais positivos que a busca por fundação implica. E é isso que pretendemos analisar neste artigo.

 

O Brasil desde 1940 vem numa acelerada marcha de urbanização. Em 1940, 30% da população do país, 40 milhões de pessoas viviam em cidades. Em 2006, 56,3 milhões de brasileiros viviam nas nove maiores regiões metropolitanas do país. Segundo dados do IBGE (2007), hoje 83% da população moram em cidades, 140 milhões de habitantes. Portanto, 8 em cada 10 brasileiros vivem em núcleos urbanos.


Parte da população urbana concentra-se no Sudeste do país, em especial em grandes áreas metropolitanas como São Paulo, 17 milhões na Grande São Paulo, e Rio de Janeiro, mais de 10 milhões na Grande Rio.


Além do aumento da população urbana ocorre no país uma urbanização do território: há crescimento da população urbana, do número de cidades, e os núcleos urbanos passam a se espalhar por todos os estados e regiões do país. Surge, então, uma rede urbana ampla, interligada e complexa. Expande-se, assim, o modo de vida urbano, apoiando-se nos sistemas de transportes, telecomunicações e informações.


O processo de modernização do país, na segunda metade do século vinte, gerou duas megalópoles, São Paulo e Rio de Janeiro, que foram constituídas coração cultural e econômico do país, concentrando recursos e articulando em seu entorno uma constelação de aglomerações urbanas e cidades médias.


Por outro lado, ocorreu nos últimos anos uma tendência à desconcentração de atividades - sobretudo industriais -, com o deslocamento de unidades produtivas do núcleo central de metrópoles como São Paulo para outras cidades e aglomerações urbanas de diferentes portes e localizadas em diferentes estados e regiões. E a redução no ritmo de crescimento populacional de São Paulo e do Rio de Janeiro é fato marcante, embora não signifique a redução do poder e influência nacional e internacional de ambas.


Crescem também outras aglomerações urbanas metropolitanas e não-metropolitanas e também o número de cidades médias por todo o país. Temos, então, uma situação em que permanece o peso acentuado das metrópoles, ao mesmo tempo em que há a desconcentração ou repartição de atividades entre as metrópoles e outros núcleos. 

 

E o movimento protestante/evangélico soube montar a cavalo no processo de urbanização brasileiro. A procura protestante/evangélica por fundamentos é uma mostra de que o movimento não traduz um movimento espontâneo, mas procura construir raízes que lhe dêem estabilidade e permanência. As antigas construções institucionais e religiosas brasileiras, primeiramente calcadas no catolicismo rural e depois no protestantismo de migração e de missão, estão presentes nessa procura evangélica por fundamentos e são um fenômeno urbano. E por ser a alta modernidade líquida e fluída, sem definições precisas e sólidas, o movimento protestante/evangélico urbano necessita um permanente olhar a frente. As necessidades estruturais da sociedade brasileira e o descontentamento nem sempre definido e claro das populações urbanas fornecem elementos para a compreensão da busca de fundamentos por parte dos novos movimentos evangélicos presentes no espaço urbano brasileiro.

 

Ao acrescentarmos a variável urbanização à alta modernidade, entendemos que a procura por fundamentos é também produto da globalidade e que, embora possa assumir formas antiglobais, sua tendência é partilhar as características da globalidade. Ou seja, a alta modernidade surge como desequilíbrio e traz insegurança para as massas. E o movimento protestante/evangélico, calcado em fundamentos, apresenta-se como opção de sentido de vida e esperança para essas mesmas massas. Por isso, não podemos dizer que o fenômeno protestante/evangélico urbano brasileiro seja mero produto da correlação entre urbanização e alta modernidade. 

 

Os estudos publicados pelo IBGE mostram que, em 1970, a população protestante/evangélico tinha 4,8 milhões de fiéis. Em 1980, passou a marca dos 7,9 milhões. Em 1991, avançou a barreira dos 13,7 milhões. Em 2000, acima de todas as previsões estatísticas, ultrapassou os 26 milhões de adeptos. Durante a década de 90, a velocidade de crescimento da igreja protestante/evangélica foi quatro vezes maior que a da população brasileira. Atualmente, o movimento como um todo tem 20% da população, ou seja, 35 milhões de adeptos. 

 

Devemos reconhecer, porém, que a multiculturalidade brasileira tem suas correlações com a globalidade, e que não há cidades de refúgio na temporalidade globalizada. As culturas brasileiras estão integradas na ordem de um conjunto maior que é a própria brasilidade na alta modernidade, integrada cultural e economicamente à globalidade da produção e do consumo capitalistas. Dentro desse panorama, o protestantismo evangélico, em seus diferentes matizes, leva a uma viagem da tradição em direção à alta modernidade. 

 

Uma das características do fenômeno religioso urbano, e aí se enquadra o movimento protestante/evangélico em seus diversos matizes, é a procura por fundamentos. Tal tendência pode ser ilustrada nas propostas de volta às tradições históricas da Reforma, o que aparentemente entra em choque com a globalidade. Mas essa volta às tradições históricas faz parte da própria globalidade. É o lado misterioso dela. Há uma procura pelas tradições históricas do protestantismo brasileiro, o que implica em ressignificar o estudo e a interpretação da Bíblia, o louvor e a adoração nas igrejas e até mesmo os currículos de faculdades de teologia. A caminhada em direção às tradições históricas, à nacionalização do culto e à compreensão da teologia parte dessa luta da alta modernidade pela busca da autonomia e da expressão local, mas traduz também o desejo, e aí entra a globalidade, de que a igreja local contribua para a espiritualidade  mundial. 

 

O estímulo da alta modernidade às expressões das religiosidades locais implica numa combinação sincrética de práticas ditas locais com adaptação às práticas alheias às circunstâncias locais. Assim, expressões do fenômeno protestante/evangélico urbano são ressignificadas. São produções sintetizadas e sincretizadas de diferentes tradições cristãs e, até mesmo, não-cristãs. São formas particulares de adaptação à urbanização e uma resposta aos efeitos da tribalização da alta modernidade.

 

A maioria do movimento protestante/evangélico contemporâneo aparentemente parte das necessidades religiosas dos diferentes estratos urbanos. Mas é, também, multinacional e mantém alianças com instituições forâneas. Nos últimos vinte anos desenvolveu uma solidariedade entre estratos urbanos, marcados pelos contatos e pela crescente participação com os Estados Unidos da América. Esses setores do movimento protestante são conduzidos como opinião mundial, e capitalizam a preocupação geral com uma identidade protestante genérica e dela se alimentam. Mas tal fenômeno não é negativo, se entendermos que estimula, ao participar da globalidade, o reconhecimento de que o evangelicalismo local só é possível numa base cada vez mais global. Ou seja, para os protestantismos e evangelicalismos urbanos pensar globalmente é cada vez mais necessário a fim de tornar a própria noção de protestantismo urbano viável. O evangelicalismo urbano está globalmente institucionalizado, embora apresente complicações dispersas.

 

A urbanização produz variedade e a diversidade é, em muitos sentidos, um aspecto básico da globalidade. Mas, e esta é uma complicação, a diversidade pressupõe na globalização a preservação de enclaves da particularidade em meio à crescente homogeneidade e uniformidade. Ou seja, dentro do conjunto movimento protestante/evangélico vamos encontrar singularidades que rompem as uniformidades e também as não-uniformidades. Podemos sintetizar essa idéia dizendo que a urbanização envolve a simultaneidade da globalidade e da localidade.

 

Globalidade e localidade

 

É por isso que, quando falamos em evangelicalismo urbano, apontamos para a comunicação interdenominacional. Esta questão está correlacionada com o processo urbano de compressão do espaço e do tempo. Ela é uma reação positiva ao aumento da compressão do espaço e do tempo urbanos. Outro aspecto importante é que a comunicação interdenominacional é em si mesma uma manifestação da urbanização. A comunicação interdenominacional se faz em todos os níveis, está presente nas salas de aula, na presença marcada da mídia, e já chegou às igrejas e aos cultos. Mas na mídia traduz a utopia da diferença e funciona como o espaço aberto dos símbolos. Nesse sentido, não apresenta a diferença autêntica, mas faz uma descrição simbólica, adequando evangelicalismo e religiosidades não-cristãs às características contemporâneas da urbanização das religiões. 

 

Os protestantismos e evangelicalismos urbanos tendem estão à procura de fundamentos autênticos, numa busca por bases sólidas, mas não por um centro. Mas tal busca por fundamentos nem sempre é bem resolvida por causa das inter-relações sociaisOu seja, os evangelicalismos, assim como outras religiosidades urbanas na alta modernidade apresentam um forte grau de inautenticidade. Está claro que o evangelicalismo não é, por natureza, inautêntico em relação aos seus objetivos, mas muitas vezes chega próximo ao delírio na inautenticidade da experiência que oferece às pessoas. Por isso, o evangelicalismo globalizado, ou aquele de expressão local, solitário, é um espaço e tempo de produção da diferença, mas também de contínua produção da globalidade. Tal situação remete à urbanização global e à tendência de acomodação e de homogeneização do evangelicalismo. 

 

A produção e consolidação da diferença e variedade é um ingrediente essencial à urbanização, que está envolvida na múltipla variedade do evangelicalismo. Ao mesmo tempo, as micro-expressões protestantes e evangélicas ocorrem no contexto das práticas protestantes globais. Assim, os evangelicalismos têm que se acomodar à materialidade do mundo urbano com suas contingências e à multiculturalidade, inclusive para dar sentido às necessidades de seus fiéis.

 

É importante nessa análise reconhecer os esforços do evangelicalismo em correlacionar o mundo global com o local. Isto porque o evangelicalismo em sua diversidade tem que responder às questões de suas micro-expressões dentro do contexto do interesse local, particular, mas também global. Assim, a questão do evangelicalismo urbano emergiu com força significativa na vida brasileira nos últimos quarenta anos do século vinte. E à medida que os protestantismos da urbanização cresceram, outra estrutura começou a ser construída, aquela do evangelicalismo como casulo para o crente que não quer se expor. E aí voltamos à força crescente da comunicação interdenominacional e da mídia, mais especificamente a televisão. É o caso do crente que quer ter acesso ao movimento protestante e evangélico, mas quer permanecer no casulo. Acessa as localidades protestantes globais. E como a televisão tem presença persuasiva, mas impossibilita o relacionamento vivencial entre local e global, em última instância se vive no evangelicalismo via televisão o triunfo da globalidade abstrata sobre a localidade experimentada. Nesse sentido, os evangelicalismos da mídia televisiva subestimam a localidade do espaço protestante. Menosprezam as urbanidades reais, cheias de conflitos e tensões, e falam a linguagem do protestantismo genérico.

 

A abordagem da urbanização do evangelicalismo brasileiro parte das generalizações empíricas referentes à crescente compressão do protestantismo em um campo global único, bem como de idéias conceituais sobre os modos pelos quais os protestantismos deveriam ser mapeados em termos sociológicos. As duas hipóteses desta elaboração estão relacionadas. Nos início dos quarenta anos de revolução protestante urbana no Brasil, a questão da busca de sentido era central. No final da década de 1970 teve início o ressurgimento dessa busca de sentido e o debate na academia tendia a vê-lo como fenômeno político-religioso, expressão da identidade social. Hoje, no entanto, vemos a busca por fundamentos, analiticamente, enquanto problema de particularidade do cenário global. Ou seja, nos vemos obrigados a analisar a construção global do fenômeno e como se deu essa busca por fundamentos e sentido no evangelicalismo urbano. 

 

Quando analisamos a primeira hipótese, focamos a compressão espaço temporal, que percebe a necessidade das cidades em expressarem suas identidades através de propósitos internos e externos. Olhando dessa perspectiva, a busca evangélica por fundamentos é uma reação e não uma criação da globalidade. Mas, a partir da segunda hipótese, vemos que a expectativa de identidade é construída dentro do processo geral de globalidade.

 

Quando falamos de urbanização brasileira na alta modernidade estamos nos referindo aos caminhos específicos que as cidades tomaram nos últimos anos na construção de suas singularidades. Mas também que no processo geral da globalidade, as cidades brasileiras, por razões geográficas e por suas diferentes expressões de multibrasilidade, tenderam a um processo de diferenciação. Estes dois aspectos, no que se refere ao evangelicalismo urbano estimularam os fundamentalismos propriamente ditos, conforme conceitualização de Robertson, gerando dois tipos de leituras e vivências: a totalizante e a antitotalizante.

 

Os evangelicalismos que se situam no campo do fundamentalismo totalizante apresentam um empenho estratégico de ligar sua urbanidade à globalidade, sob a suposição de que suas teologias e doutrinas e mesmo suas expressões eclesiológicas possam ser mais bem resolvidas no reconhecimento de ser enclave de um contexto maior. Mas consideram que seus desafios só podem ser resolvidos ao nível urbano. Essa leitura se expressa principalmente naquelas entidades e mesmo agrupamentos de tradições e heranças históricas, chegadas com os protestantismos de imigração e missão, que pensam seus desafios de forma estritamente analítica e constroem uma visão de mundo que acaba por excluir a cidade. De todas as maneiras, devemos entender que quando realçamos a globalidade tendemos a nos perguntar: mas podem as urbanidades não ser partes da globalidade? Ora, tal questionamento surge quando se pensa apenas a relação globalidade/ urbanidade em termos de grande/pequeno, forte/fraco, civilizado/nativo. A noção de globalidade refere-se à universalidade em sua plenitude, mas não é a única dimensão da expressão evangélica. 

 

Já os evangelicalismos que se situam no campo do fundamentalismo antitotalizante, ao enfrentaram a questão globalidade/urbanidade não colocam a globalidade no centro da discussão. Ao contrário, dão importância ao fato de que as cidades brasileiras na alta modernidade se transformaram e continuam a se transformar em espaços de conquista. Por isso se voltam para as culturas regionais. Só que também as expressões urbanas, locais e regionais também se tornam cada vez mais globais. De certa maneira, o fundamentalismo antitotalizante nega a globalidade em seu sentido primeiro, como processo autônomo, e por sensibilizar que a principal dinâmica da globalidade envolve um processo de urbanização, privilegia o espaço urbano com suas possibilidades e desafios. 

 

Ora, o fundamentalismo evangélico brasileiro é urbano, o que facilita a emergência de movimentos que buscam o significado imediato das cidades e procuram ressignificações globais para as questões enfrentadas por seus membros. A globalidade das cidades leva à busca global por soluções localizadas. Tal busca leva aos cultos contextualizados às necessidades dos estratos sociais marginalizados e à proposta de reconstrução da vida. Tal compreensão, nesse tipo de fundamentalismo, repousa sobre a procura da pessoa urbana por respostas atávicas à globalidade. Essas respostas atávicas expressam atitudes antitotalizantes. 

 

Para o fundamentalismo antitotalizante o centro da teologia e da prática não é apenas a procura por fundamentos, mas a correlação entre a busca por fundamentos e a comunidade, onde as crenças caminham pari passo com a saudade de algo que ficou para trás. Dessa maneira, o fundamentalismo antitotalizante trabalha com um sentimento de perda, de nostalgia. Mas, quando a procura por fundamentos é organizada em bases extra-urbanas a idéia de volta aos fundamentos reais fica problematizada. 

 

E aqui uma questão deve ser levantada: a possibilidade de a pessoa urbana globalizada ser livre sob tais condições. A multiplicação das narrativas evangélicas coloca em discussão a teoria da escolha racional e abre espaço para outra idéia, a da seleção racional de espiritualidades e valores.

 

Caso olhemos apenas do ponto de vista da alta modernidade, os evangelicalismos urbanos brasileiros sugerem a existência de um campo global fluido e desordenado. Nessa perspectiva, escolha racional traduziria modos padronizados em que as preferências seriam exercidas em situações cada vez mais complexas de escolha. Tal leitura privilegia a heterogeneidade e a variedade. Mas se olharmos a partir da seleção racional de espiritualidades e valores, supomos homogeneidade global e humana. A primeira leitura destaca a cidade, a segunda a globalidade. Mas como vimos no correr do estudo há uma convergência dos fenômenos.

 

A procura por fundamentos foi uma marca do protestantismo, mas na urbanidade brasileira aprofundou-se o conservadorismo fundamentalista, quer totalizante ou antitotalizante. Mas é preciso entender que tais fundamentalismos viabilizaram o movimento evangélico. Hoje a busca por fundamentos tem que encarar a realidade da comunicação interdenominacional, a fala inteligível entre protestantismos diferentes. Mas tanto em interesse, como em aparência, a comunicação interdenominacional, por mais confusa que possa parecer, aponta para conexões imprevisíveis e crescentes. Os protestantismos vivem numa urbanidade que é um espectro de diferenças entrecruzadas. Esta é a urbanidade onde os protestantismos funcionam, onde o aqui e agora não está mais isolado, nem está definido. Por isso, a questão da busca por fundamentos preocupa. E essa procura associa, de forma estranha, mas compreensível, a defesa tanto de fundamentos totalizantes como antitotalizantes.

 

Assim, para entendermos o papel do evangelicalismo na urbanidade brasileira é necessário compreender que Deus é o Deus da cidade. Isso significa, em primeiro lugar, que Ele é o Deus que atua na cidade com vistas a um objetivo. Com o cristianismo e sua mensagem, o círculo trágico da sucessão dos deuses do politeísmo, com poderes ilimitados e injustos sobre os povos, foi superado. Em Cristo se salva o universo. Vivemos a plenitude da história e a história alcançará, no reino universal de Deus, o reinado da justiça e da paz. Esta é a mensagem cristã para as cidades.

 

Ou nas palavras de Tillich: 

 

Existe uma zona média entre o princípio absoluto do amor e as situações concretas sempre em mutação. Esses princípios são a democracia, a dignidade de todos os seres humanos, a igualdade perante a lei etc. Não são imutáveis como o princípio absoluto, mas mediadores entre o princípio supremo e a situação na qual vivemos. Esta idéia impede a identificação da mensagem cristã com determinados programas políticos. Permite, entretanto, que o cristianismo não se afaste dos problemas reais da existência humana histórica. Os teólogos americanos criaram, assim, nova maneira de pensar a ética social cristã, tornando a mensagem da igreja relevante não apenas para a relação do indivíduo com Deus, mas também de Deus com o mundo”. 

 

Essa questão da democracia me remete a alguns anos atrás, quando fui convidado para falar num convento de freiras de uma ordem italiana em João Pessoa. Apresentei um seminário sobre o protestantismo brasileiro e suas diferentes correntes. Foi um dia muito agradável, espiritualmente gratificante, ao lado de minhas irmãs católicas.

 

Mas uma coisa me chamou a atenção. Duas noviças fizeram questão de relatar suas experiências pessoais. As duas vinham de famílias evangélicas, uma da Assembléia de Deus e outra da Igreja Batista.

 

Depois de contarem suas histórias e das dificuldades que enfrentaram em suas casas ao informar que entrariam para um convento, elas me perguntaram:

 

-- O que podemos fazer para melhorar nossos relacionamentos com nossas famílias?

 

Conto esta história para entrar num assunto que ainda é pouco analisado pela mídia: a intensa mobilidade religiosa que nosso País tem vivido nas últimas décadas. Milhões de pessoas tem deixado suas religiões de origem, migrando para outras. E isso acontece em todos os sentidos: são evangélicos que se tornam católicos. São católicos que se tornam evangélicos. Mas tal mobilidade acontece também entre judeus e até mesmo entre muçulmanos, embora nesses dois casos os números sejam bem menos expressivos.

 

Este fato, a mobilidade religiosa, tem levado milhares de pessoas a uma nova realidade, a da formação de casais com religiões diferentes. É o que hoje chamamos de democracia religiosa no casamento. E ao contrário do que era de se esperar, que isso dividisse ou levasse ao divórcio, a realidade tem mostrado que o Brasil está construindo uma sólida democracia religiosa a partir dos lares que internamente professam crenças diferentes.

 

Uma teologia integral deve analisar a sociedade brasileira atual sem perder a perspectiva da multibrasilidade que cada vez mais se mostra democrática e aberta para diferentes crenças. Aliás, esta é, sem dúvida, uma coisa que nós brasileiros podemos ensinar ao mundo: a tolerância e o amor diante do diferente. 

 

A partir daí podemos falar do papel do protestantismo no futuro próximo. Em primeiro lugar, é de se esperar, por sua base ética expressa no Sermão do Monte, que o protestantismo e o evangelicalismo expressem publicamente seu papel político: a defesa da democracia, da dignidade de todos os brasileiros, da igualdade perante a lei, enfim a defesa da justiça. As pessoas compreendem a necessidade de justiça e a política, com base no poder, cumpre uma função legítima quando serve às reivindicações da justiça. Às vezes, o protestantismo se perde, cai na espiritualidade negativa, ao negar a diferença, e se torna instrumento de segregação e exclusão.

 
Sem dúvida, esta é uma questão da alta modernidade: a relação do protestantismo e as cidades. Na verdade, o respeito pela diferença protestante é um bem que pode salvaguardar o país, embora o caminho para a salvação tenha inimigos dentro e fora do protestantismo. Em outras palavras, diante da necessidade de defesa da democracia, da dignidade de todos os brasileiros, da igualdade perante a lei, a comunicação interdenominacional franca é indispensável. 

 

Qual seria, então, a alternativa para se buscar a paz e as ações transformadoras em nosso país? Talvez devêssemos partir daquilo que a Reforma nos transmitiu: a consciência dos direitos da pessoa. Neste sentido, a questão é a viabilidade de uma comunicação interdenominacional que possibilite ações transformadoras para a conquista e manutenção dos direitos da pessoa. E isso só será possível quando teólogos, pastores e leigos de diferentes protestantismos não impedirem a construção de princípios comuns de defesa da vida humana.

 

Mas será que os protestantismos, no Brasil urbano, estão preparados para lidar com este quadro de comunicação interdenominacional? Bem, não é possível falar de comunicação interdenominacional sem falar de poder. Por isso, fica uma questão: amor e poder são compatíveis? Os protestantes e evangélicos, como qualquer outra ordem institucional, têm uma existência objetiva que remete à prática do serviço ao próximo, por isso, não podemos deixar que protestantes e evangélicos se tornem totalitários, ou seja, não reconheçam os limites de seu poder. E esse limite é o amor. Dessa forma, numa sociedade democrática, urbana e plural, os protestantes e evangélicos podem, a partir de seus limites, conviver e seguir o caminho da justiça.


Voltemos então a Tillich:

 

Onde estão as pessoas para as quais queremos comunicar o evangelho de tal maneira que possam fazer uma decisão genuína? Podemos dar uma resposta geral, imediatamente. Todos os que participam na existência humana. É uma resposta universal. Mas não é simples. Pensemos um pouco nas implicações da participação na existência humana”.

 

E continua:

 

A primeira coisa que devemos fazer é comunicar o evangelho como mensagem aos que entendem sua própria situação. O que podemos fazer, e com êxito, é demonstrar a estrutura da ansiedade, dos conflitos e da culpa. Essas estruturas, que realmente refletem o que somos, estão em nós, e se estamos certos, também estão presentes nos demais seres humanos. Quando mostramos a eles essas estruturas, é como se tivéssemos um espelho no qual se contemplariam. Se tal procedimento terá êxito, ninguém sabe. Trata-se do risco que devemos tomar. É o mesmo risco que os missionários sempre tomaram. Não pode ser substituído por evidências. Mas não podemos usar evidências para mostrar a natureza humana como ela é. Só o podemos fazer em termos de risco. Assim, tornamo-nos humildes; podemos saber como somos (embora se trate do mais difícil dos conhecimentos), mas nunca saberemos como seremos. E não podemos medir o que seremos a partir do que somos agora. Surge, então, a pergunta: qual evangelho comunicaremos? Há este consolo. Ninguém está obrigado a falar para todas as pessoas em todos os lugares e épocas. Comunicação envolve participação. Quando não há participação, não há comunicação. Estamos diante de uma condição limítrofe porque nossa participação é inevitavelmente precária”.

 

Por isso, a apologética cristã só tem sentido na participação, na comunicação e no testemunho. Quando falamos de testemunho estamos resgatando Barth, que entendia vida cristã como plenitude do Espírito. Aí está a chave da questão: sem plenitude do Espírito não há participação, comunicação, testemunho e a apologética que sair daí não terá amor. Antes, será uma arma de guerra: conduzirá à segregação, à exclusão e à morte. Quando analisamos o protestantismo brasileiro, que busca fundamentos para a reconstrução de identidade e intervenção social, devemos ter claro que comunicação e participação interdenominacionais podem ser ferramentas eficazes no projeto protestante de levar a mensagem cristã a todas as pessoas deste país. 

 

 


 

 

 

 

Capítulo seis

O ESPÍRITO SANTO

 

 

Vamos pensar a doutrina do Espírito Santo a partir de uma leitura bem brasileira. Olhem que interessante: o projeto português de expansão e, posteriormente, de colonização das terras brasileiras nasceu sob o símbolo do Espírito Santo. Os portugueses acreditavam que um novo mundo estava a ser formado, um mundo que seria dirigido pela terceira Pessoa da Trindade. E que esse mundo, onde não haveria fome, nem presos, teria uma criança como rei.

 

O culto do Espírito Santo em Portugal desenvolveu-se a partir do reinado de D. Dinis (1261-1325), e teria nascido pela fé de sua esposa, Isabel de Aragão, a Rainha Santa, por volta de 1323. Ela teria instituído a primeira festa do “Império do Espírito Santo”, que elegia um imperador ou de uma imperatriz do Espírito Santo entre as crianças pobres.

 

Duzentos anos depois, dois padres jesuítas, um deles espanhol e o outro português,  viajando para a Índia em 1561 na nau “Nossa Senhora da Graça”, participaram das festas do Pentecostes realizadas em 25 de Maio, depois de passadas as ilhas de Martim Vaz. E coroaram “imperador do Espírito Santo”, conforme conta o jesuíta português:

 

 “Aos 25 de Maio, que foi dia do Pentecostes, se fez muito solene festa, porque havia Imperador elegido e estava a nau toda de festa, embandeirada e toldada de goderins muito frescos, e com um dossel de tafetá azul onde o imperador tinha a cadeira. Houve ao sábado vésperas de canto de órgão, às quais foi coroado imperador, e ao domingo missa também cantada e pregação do Padre Gonçalo Rodrigues em louvor do Espírito Santo que muito contentou e satisfez toda a gente. Deu-se mesa a toda a gente da nau, que toda estava vestida de festa como em Corte de Sua Majestade”. 

 

Sabemos que não foi assim, sem fome, sem presos e com uma criança como imperador do Espírito Santo que a colonização se fez. Mas o imaginário cristão de uma terra de fartura, liberdade e justiça, sem dúvida, esteve nos fundamentos do ideal português. 

 

E a partir daí começou a surgir os principais elementos de uma pneumatologia brasileira, onde as leituras e compreensões do Espírito Santo, de sua ação no universo, nas comunidades e sobre a vida das pessoas, repousaram sobre essa esperança levantada pelos cristãos do século quatorze em Portugal. E aos poucos o culto ao Espírito Santo, símbolo dos ideais de liberdade e fraternidade da doutrina cristã, assumiu caráter de fé do povo brasileiro. 

 

E assim deveria ser, pois, segundo o padre Antonio Vieira, no livro de Isaías há um sinal divino dado às “costas e ilhas distantes e a povos longínquos” (Isaías 49.1; 66.19). Por isso Vieira dizia: 

 

“Digo primeiramente que o texto de Isaías se entende do Brasil, porque o Brasil é a terra que direitamente está além e da outra banda da Etiópia, como diz o profeta: quae est trans flumina Aethiopae [Isaías 18.1], ou como verte e comenta Vátabloterra quae est sita ultra Aethiopiam, quae (Aethiopia) scatet fluminibus [. ..] E assim é na geografia destas terras, que em respeito de Jerusalém, considerado o círculo que faz o globo terrestre, o Brasil fica imediatamente detrás da Etiópia”. 

 

Esta seria, então, a terra onde seria construído o “Quinto Império”, profetizado por Daniel, e que em breve haveria de se instalar no mundo. Esses elementos culturais e religiosos que permeiam a multiculturalidade brasileira apontavam para uma teologia do Espírito, enquanto presença de Deus no universo, na comunidade e na experiência humana. Tal visão foi utilizada pelo padre Antonio Vieira quando fez uma hermenêutica do percurso histórico de Portugal à luz dessa revelação providencialista. Colocou a história de Portugal em paralelo com a história do povo de Israel, que a Bíblia apresenta como povo eleito. Então, é o Espírito que/quem convence as comunidades e pessoas de seus alvos, da incondicionalidade da justiça e do juízo que paira sobre a existência. Nesse sentido, as comunidades e cada ser humano são chamados à liberdade pela obra redentora do Cristo. Donde, “a tese da constituição sagrada e da conservação imune da singularidade e liberdade do reino de Portugal, interliga-se e justifica-se com outra tese, segundo a qual este reino estaria designado para ser um instrumento especial de uma missão, também ela sagrada, em relação a outros povos. Missão essa que é iluminadora e fundamentadora de uma visão sacralizante da história de Portugal - a missão teofânica de levar o conhecimento do Cristo aos povos ignorantes da sua doutrina”. 

 

Não queremos aqui definir se nossos irmãos portugueses estavam certos ou equivocados na compreensão dessa missão teofânica, mas reafirmar que nas comunidades e pessoas essencializadas pela fé, o Espírito é centro do querer humano, que produz um novo fazer. Então, o Espírito se torna também intercessor, advoga em lugar do humano, a partir da justiça imputada pelo Cristo, o justo. O Espírito é, então, intérprete, atração que vem da incondicionalidade e nos faz cair para cima, mantendo-nos fiéis e produzindo na vida humana o amor que arrebata.

 

Assim, através do catolicismo popular brasileiro, o culto ao Espírito Santo, espraiou-se pelo país. As celebrações mais alegres, sempre de forte expressão comunitária, aconteciam cinqüenta dias após a Páscoa, lembrando o dia de Pentecostes, quando o Espírito desceu sobre os apóstolos de Jesus na forma de línguas como de fogo. 

 

Na Europa, as festas ao Espírito eram realizadas na época das primeiras colheitas, traduzindo a esperança da chegada de uma nova era para o mundo, com liberdade, prosperidade e abundância. Aqui, as festas podem ser encontradas em praticamente todas as regiões do país, apresentando diferentes características, mas guardando em comum a imagem da pomba branca, a coroa, e a distribuição de comida.

 

E foi assim que o Deus trino que se revelou ao brasileiro pobre, como voz de presença, poder e autoridade divina. É o Espírito do Eterno, o Espírito do Cristo, o Espírito Santo, que merece festa e adoração. 

 

Tal compreensão apresentou às brasilidades a fé como produto comunitário, quando, todos juntos, recebemos o sopro do Espírito, que fala as verdades da vida que devemos compreender. Ou seja, o Espírito dissemina a vontade do Deus tri/uno entre as pessoas. Dá aos fiéis poder e autoridade para o serviço no cotidiano do reino de Deus, prepara para a ação proclamatória do Verbo e nos coloca sob missão livre e dinâmica, em obediência criativa ao Verbo de Deus. Esse é o direcionamento da mais antiga teologia popular do Espírito no Brasil. 

 

O tempo passou e os primeiros missionários da Reforma protestante pisaram em terras brasileiras. Acreditaram que estavam chegando num país sem cristianismo, que desconhecia a mensagem da salvação. Ou seja, na prática descartavam o Espírito como fenômeno universal na experiência brasileira e se esqueciam que ele é o Espírito da transcendência, que traduz a vivacidade da vida. E, logicamente, é Deus pessoal, criativo, participativo, presente para as pessoas e nas pessoas. Não entenderam que todos os modos de vida, mesmo aqueles presos às tradições, podem receber o vento que é soprado a nós e por nós. 

 

O certo é que chegaram nessas terras e por não compreender a multiculturalidade brasileira, declararam esta terra vazia de espiritualidade. E ao começar do zero, longe das raízes das brasilidades, definiram a salvação como fenômeno individual, solitário na pessoa convertida, sem festa e expressão nas comunidades.

 

E assim, ao lado da teologia do Espírito do catolicismo popular, alegre e comunitário, foi sendo construída outra, cheia de consciência e plena de sentido teológico, mas sem coração, vida e emoção brasileiras.

 

Aprendemos, então, que o Espírito é Pessoa da trindade de Deus. É Pessoa que dá vida nova (Is 63.11-14) e consola os que sofrem (Jo 14.16; 16.7). O Espírito adota (Rm 8.16) e enche de amor (2Tm 1.7). Transmite conhecimento, sabedoria e justiça (Is 11.2-5). Derrama arrependimento e graça (Zc 12.10; 13.1), dá poder e torna as pessoas prudentes (2Tm 1.7). Ele vive em nós (Jo 14.17; 16.13; 1Jo 4.6): pertencemos a Ele (Ef 1.13). 

 

“Mas foi a nós que Deus, por meio do Espírito, revelou o seu segredo. O Espírito Santo examina tudo, até mesmo os planos mais profundos e escondidos de Deus. Quanto ao ser humano, somente o espírito que está nele é que conhece tudo a respeito dele. E, quanto a Deus, somente o seu próprio Espírito conhece tudo a respeito dele. Não foi o espírito deste universo que nós recebemos, mas o Espírito mandado por Deus, para que possamos entender tudo o que Deus nos tem dado. Portanto, quando falamos, nós usamos palavras ensinadas pelo Espírito de Deus e não palavras ensinadas pela sabedoria humana. Assim explicamos as verdades espirituais aos que são espirituais. Mas quem não tem o Espírito de Deus não pode receber os dons que vêm do Espírito e, de fato, nem mesmo pode entendê-los. Essas verdades são loucuras para essa pessoa porque o sentido delas só pode ser entendido de modo espiritual”. 1Coríntios 2.10-14.

 

Mas como viver isso em nossas comunidades de fé? Qual é a importância desse Espírito, teologicamente correto, mas afastado do dia a dia de nossas vidas? Será que vida no Espírito não significa experiência religiosa?

 

Será que Tertuliano não tinha razão quando disse que toda pessoa deveria prestar satisfação a Deus na mesma questão em que o ofendeu? Tertuliano estava preocupado com o efeito prático da realidade de Deus na vida das pessoas. E creio que tinha razão. Tanto que mais tarde, também os reformados entenderam que a obra do Espírito Santo não é garantia de que a ofensa tenha sido superada, mas que imputação da justiça do Cristo, através do Espírito, é prometida aos que expressam arrependimento. Dessa maneira, através do Espírito somos levados à batalha do arrependimento, experiência viva na vida da pessoa. 

 

E vemos essa ação e voz do Espírito na vida dos profetas, que se tornavam porta-vozes de Deus, quando o Espírito descia sobre eles. Isaías profetizou sobre a vinda do Cristo e disse que o Espírito do Senhor estaria sobre Jesus (Is 61.1). Ezequiel revelou que o Espírito o levou a lugares distantes, numa visão dada pelo próprio Espírito de Deus (Ez 11). 

 

E mesmo pessoas que não tinham o título de profeta, proferiram mensagens por meio do Espírito Santo. O rei Davi pronunciou seu último testemunho poético antes de morrer e disse: "O Espírito do Senhor fala por meio de mim, e a sua mensagem está nos meus lábios" (2Sm 23.2). José interpretou os sonhos de Faraó, e o próprio rei exclamou que o Espírito de Deus estava sobre o filho de Jacó (Gn 41.38,39).

 

Depois que Samuel ungiu a Saul rei de Israel, o Espírito do Senhor desceu sobre ele e profetizou. Deus o transformou numa pessoa diferente, de maneira que os israelitas perguntaram: “Será que Saul também virou profeta?”. (1Sm 10.5-13). Essa pergunta foi repetida quando o Espírito do Senhor desceu novamente sobre Saul, quando perseguia Davi. O rei tirou sua túnica e profetizou (1Sm 19.23,24). 

 

No acampamento de Israel, durante o Êxodo, Deus multiplicou o Espírito que estava sobre Moisés e o colocou sobre setenta anciãos: eles então profetizaram, bem como Eldade e Medade. Quando ouviu sobre isso, Moisés disse que seu desejo era que o Senhor colocasse o seu Espírito sobre todo o povo, para que todos profetizassem (Nm 11.25-29). 

 

Moisés é o protótipo do Messias, pois foi considerado profeta e revelou o Espírito do Senhor. Ele predisse o advento do Cristo, quando falou ao povo que Deus levantaria um profeta como ele próprio, do meio deles (Dt 18.15,18). Além disso, ele repetidamente introduziu a revelação do Senhor com as palavras "disse o Senhor a Moisés" (Nm 8.1,5, 23).

 

São essas experiências do Antigo Testamento que levaram Tertuliano a falar de prestar satisfação a Deus. Não há vida humana sem experiência. Vive-se na experiência da vida. E essa é uma realidade palpável nas brasilidades. Por que então negar a experiência religiosa no Espírito? Por que esta tentativa de pasteurizar o Espírito? Porque a vida brasileira, para aquele que chega de fora, de um país de primeiro mundo, é feia, suja, pobre? E, como o limpo e puro Espírito de Deus vai se manifestar numa pessoa analfabeta, que não tem onde cair morta? Perguntinhas, sem dúvida, desagradáveis, mas que estão escondidas em nossos corações protestantes.


Sem dúvida, o Espírito é Santo, mas uma pneumatologia brasileira deve tornar-se uma reflexão hermenêutica sobre a afirmação da justificação pela graça, através da fé. Essa expressão “através da fé” não é somente posicional, mas existencial. É, nesse sentido, que falamos do Cristo na vida da comunidade: de tal maneira que a justificação se transforma em vida aberta.

 

Nas línguas utilizadas no Antigo e no Novo Testamento (hebraico e grego), os termos usados para o Espírito Santo enfatizam sua santidade, embora no AT, o adjetivo santo antes do substantivo espírito aparece poucas vezes (Sl 51.11; Is 63.10,11). No Novo Testamento a palavra santo antes do substantivo Espírito está presente na maioria dos livros, especialmente no livro de Atos. Isso não significa que a ênfase ao Espírito seja menor no Antigo do que no Novo Testamento. As expressões mais freqüentes no Antigo Testamento são “o Espírito de Deus” ou “o Espírito do Senhor”. 

 

Mas, é importante entender que a idéia da santidade do Espírito está intimamente ligada à sua eternidade. E, a partir daí, santo é este Espírito que não pode ser violado, cuja ação sobre nós e para nós é benéfica, segura e eficaz.

 

Ora, o Espírito é criador, mas o que significa isso? Bem, poderíamos falar da criação do cosmo: "Por meio da sua palavra, o SENHOR fez os céus; pela sua ordem, ele criou o sol, a lua e as estrelas". (Salmo 33.6). E, "Tu lhes deste o teu bom Espírito para lhes ensinar o que deviam fazer" (Neemias 9.20).

 

Lembrar que a primeira vez que a palavra espírito aparece na Bíblia é no relato da criação, em Gênesis, onde o Espírito de Deus pairava sobre as águas como poder criador que traz ordem ao caos (Gn 1.2). E que o salmista faz eco a esse conceito, quando disse: "Por meio da sua palavra, o SENHOR fez os céus; pela sua ordem, ele criou o sol, a lua e as estrelas". (Sl 33.6). 

 

Ou ainda, que por meio do sopro de Deus, Hadam tornou-se uma alma vivente (Gn 2.7). Jó afirma que o Espírito do Senhor o criou e que recebeu vida por meio do sopro do Todo-poderoso (Jó 27.3; 32.8; 33.4; 34.14,15). Sabemos, também, que quando Deus retira seu sopro dos seres humanos e dos animais, eles morrem e retornam ao pó (Sl 104.29; Ec 3.19,20; 12.7). 

 

Mas não podemos nos esquecer, que a Pneumatologia deve funcionar como uma Cristologia eclesial, pois a vida é espírito e porque também a comunidade tem espírito. A comunidade de fé, assim como as pessoas, são as criações por excelência deste Espírito criador. E como a comunidade de fé é formada por discípulos do Cristo, seu Espírito está aí presente, criando gente nova e expandindo o reino. Ora isso aconteceu no Pentecostes, na história da jovem igreja cristã e continua a acontecer hoje.

 

As comunidades cristãs brasileiras, todas elas, são comunidade de Jesus e é isso que define a Igreja. Quando as comunidades cristãs brasileiras se defrontam com desafios que as fazem pensar sobre o propósito e caráter da Igreja cristã, elas devem refletir sobre suas realidades históricas e culturais a partir do fato e da identidade do Jesus glorificado. Só nesse sentido, podemos entender na prática, de forma viva e comunitária, o permanente ato criador do Espírito enquanto Cristologia da Igreja.

 

É verdade, o Espírito é Pessoa. Mas aqui também somos chamados a dar carne e osso à nossa Pneumatologia. Se partirmos da ênfase sobre o monoteísmo, dada pelos escritores do Antigo Testamento, vamos encontrar uma distinção entre Deus e o Espírito do Senhor. Mas essa distinção, em nenhum momento define o Espírito como emanação de Deus. Tome-se, por exemplo, as referências em Gênesis 1.1-2. Deus criou o céu e a terra, mas o Espírito do Senhor pairava sobre as águas. Ou quando Deus disse que seu Espírito não contenderia para sempre com o ser humano (Gn 6.3). 

 

Isso significa que os escritores bíblicos viam ações e personalidades divinas distintas. Entendiam que o Espírito era Deus, o qual exercia funções que os escritores bíblicos expressaram em termos humanos. Isso fica claro em algumas passagens. Os levitas oraram: "Tu lhes deste o teu bom Espírito para lhes ensinar o que deviam fazer" (Ne 9.20). Davi perguntou: "Aonde posso ir a fim de escapar do teu Espírito?" (Sl 139.7) e Isaías escreveu que o povo entristeceu o seu Espírito Santo e Deus (o Pai) tornou-se inimigo deles (Is 63.10-12; veja também 48.16).

 

Mas a pessoalidade do Espírito pode melhor ser compreendida na comunidade de fé, pois cada comunidade de fé possui um só Espírito. E todas as comunidades de fé têm Deus. Inversamente, o espírito de uma comunidade é ou o Espírito de Deus ou um dinamismo ameaçador, quem sabe demoníaco. Assim todas as comunidades se confrontam com a transcendência, e o Espírito aparecerá ou como a defesa da comunidade contra o espírito que ameaça, ou como a própria desorientação. As comunidades de fé reivindicam seu estabelecimento como cumprimento da pessoalidade do Espírito prometido. Assim a identidade de Deus e do Espírito é clara para as comunidades de fé. E essa pessoalidade do Espírito se dá como Trindade. No chão das comunidades de fé, na carne e osso da Igreja, o Espírito procede do Pai e do Cristo; o Cristo foi gerado pelo Pai e pelo Espírito; e o Pai é fruto do amor de Jesus e do Espírito. Assim, podemos dizer que na Igreja, de forma existencial para cada um de nós, o Espírito é Pessoa. 

 

E a pessoalidade do Espírito nos leva à questão da espiritualidade. Quando dizemos espiritualidade queremos dizer uma vida no Espírito, um intenso convívio com o Espírito: esse é o sentido cristão da palavra. Dessa maneira, a idéia de uma vida forte, a idéia da vitalidade de uma vida criativa a partir de Deus nos leva à espiritualidade, ou seja, a uma vida espiritualizada por Deus. 

 

Por isso, podemos dizer: as pessoas procuram a Deus porque o Espírito as atrai para si. Estas são as primeiras experiências do Espírito no ser humano. E o Espírito as atrai como um imã atrai as limalhas de ferro. O íntimo e suave atrativo do Espírito é experimentado pela pessoa em sua fome de viver e em sua busca de felicidade, que nada no universo pode satisfazer ou saciar.

 

A espiritualidade da vida se opõe à mística da morte. Quanto mais sensíveis as pessoas se tornam para a felicidade da vida, mais sentem a dor pelos fracassos da vida. Vida no Espírito é vida contra a morte. Não é vida contra o corpo, mas a favor de sua libertação e sua glorificação. Dizer sim à vida significa dizer não à fome e suas devastações. Dizer sim à vida significa dizer não à miséria e suas humilhações. Não existe uma afirmação verdadeira da vida sem luta contra tudo que nega a vida.

 

A recepção universal de tal espiritualidade foi anunciada séculos antes do derramamento do Espírito no dia de Pentecostes (At 2.17-21). Deus falou por meio do profeta Joel: "E depois derramarei o meu Espírito sobre toda a carne, e os vossos filhos e as vossas filhas profetizarão, os vossos velhos terão sonhos, os vossos jovens terão visões. Até sobre os servos e sobre as servas naqueles dias derramarei o meu Espírito" (Jl 2.28,29). Joel não estava sozinho na predição da espiritualização futura do planeta.

 

Isaías também fez uma ilustração do Senhor derramando correntes de água sobre terras secas e seu Espírito sobre os descendentes de Jacó (Is 44.3). Por meio de Ezequiel, Deus disse aos judeus do exílio que o Senhor os tomaria de todas as nações e os reconduziria à sua própria terra. Colocaria seu Espírito sobre eles e os motivaria a obedecer à sua Lei (Ez 36.24-28; 39.29). Deus revelou que o Messias, quando viesse, seria cheio do Espírito (Is 11.2), que também seria derramado sobre o povo da aliança (Is 32.15; 59.21; Ez 37.14). E esse Espírito permaneceria com os filhos de Deus (Ag 2.5).

 

O Espírito é a fonte de vida (Jo 6.63) e ela é comparada às fontes de águas correntes que, espiritualmente falando, fluem do interior da pessoa (Jo 7.38,39). O discurso de despedida de Jesus, proferido no cenáculo, enfatizou a chegada do Espírito. Ensinou que Ele seria dado pelo Pai e permaneceria para sempre com os fiéis. 

 

Seria outro Consolador, uma Pessoa que personificaria a verdade (Jo 14.16,17). O Consolador sairia do Pai, seria enviado pelo Filho e testificaria sobre Jesus (Jo 15.26). O Consolador também convenceria o universo de seus erros, da justiça e do juízo (Jo 16.7-11). O Espírito guiaria as pessoas em toda a verdade, proporcionaria a revelação futura e glorificaria a Jesus Cristo (Jo 16.13-15). 

 

E, antecipando o Pentecostes, Jesus soprou o Espírito sobre os discípulos, para auxiliá-los na tarefa que receberam de pregar o Evangelho (Jo 20.22). As referências ao Espírito na primeira carta de João não diferem muito de seu evangelho. O Espírito dado às pessoas cria uma consciência de que o Pai vive em nós através do Filho (1Jo 3.24; 4.13). E como somos capazes de reconhecer o Espírito de Deus? Nós O conhecemos pelo reconhecimento de que Jesus Cristo veio de Deus em forma humana: ouvimos a Deus (1Jo 4.2, 6).

 

Podemos dizer, sobre a espiritualidade, que onde há comunidade, há vida e comunicação. E que a comunicação é, ela própria, Espírito ou então resistência ao Espírito. Da mesma maneira, inversamente, ou o Espírito é comunicação, ou então subverte a comunicação. A comunicação é a realidade da relação de uns com os outros e com o futuro. É pela comunicação que temos um mundo e nos encontremos nele. Assim, a missão das comunidades de fé é permanente comunicação no Espírito. 

 

É interessante ver que o Espírito esteve presente no ministério de Jesus desde o início. Ou como diz Mateus, "o céu se abriu, e Jesus viu o Espírito de Deus descer como uma pomba e pousar sobre ele". (3.16). É, o batismo de Jesus foi um evento trinitário: o Pai revelou o Filho, de quem se agrada, e o Espírito Santo desceu sobre ele na forma de uma pomba (Mt 3.16,17; Mc 1.10; Lc 3.22). E tal presença chegou a cada um de nós. O Novo Testamento enfatiza o derramamento do Espírito, seus dons, sua obra, inspiração, comunhão e habitação nos corações dos cristãos. 

 

A fórmula batismal trinitária, mostrada na conclusão do evangelho de Mateus, enfatiza essa mesma idéia (Mt 28.19). Nas cartas, Paulo e Pedro ensinaram o princípio trinitariano, tanto no início como na conclusão de suas cartas (2Co 13.13; Ef 1.2-11; 1Pe 1.1-3). 

 

Além dos relatos do nascimento, batismo e tentação de Jesus, há poucas alusões ao Espírito nos evangelhos de Mateus e Marcos. Comparativamente, o de Lucas está repleto de passagens que falam sobre o Espírito. Mateus e Lucas relatam a concepção de Jesus como obra do Espírito Santo (Mt 1.18, 20; Lc 1.35). João Batista disse ao povo que ele batizaria com água, mas Jesus os batizaria com o Espírito Santo (Mt 3.11; Mc 1.8; Lc 3.16). Antes do Cristo iniciar seu ministério, o Espírito o levou ao deserto para ser tentado pelo diabo (Mt 4.1; Mc 1.12; Lc 4.1).

 

O ministério de Jesus é paradigmático da vida cristã. Entramos para a comunidade de fé pelo Espírito e pelo batismo. Assim, em cada vida, Espírito e batismo são eventos históricos, que marcam e demarcam a caminhada cristã, que é a liberdade em Cristo. O que as pessoas vão fazer com essa liberdade construirá a história de suas vidas e de suas comunidades de fé. E é assim que o Espírito se faz presente, como liberdade do Cristo que vive em comunidades historicamente efetivas.

 

Mas além de ser a liberdade, o Espírito é defensor. Aquele que convence os errados de suas culpas, defende os acusados e julga com misericórdia. A vida humana pode ser negada e, por isso, para ser realmente vivida tem de ser afirmada. Vida negada e recusada é morte. Vida aceita e afirmada é felicidade. É o Espírito da verdade quem convence o universo de seu pecado, que corrige o universo injusto e que transforma as pessoas, de escravos e vítimas do erro em servos alforriados pela graça de Deus.

 

Com efeito, se olharmos a prodigiosa atividade do Espírito em Atos dos Apóstolos, será fácil entender o Espírito Defensor dos fiéis e da comunidade neotestamentária, que se por um lado produzia unidade, por outro trabalhava a diferença e diversidade das pessoas.

 

Nesse sentido, a autoridade defensora do Espírito interveio nos momentos difíceis quando a vida de pessoas estava sob risco, quando a perseguição crescia ou quando se fazia necessário proclamar o Verbo da vida. Foi esse Espírito defensor que revelou às igrejas apostólicas o mistério da encarnação do Filho de Deus, em conformidade com o ensino dos profetas e do evangelho.

 

Mas, quando se fez necessário morrer pela proclamação do Verbo da vida, o Espírito Defensor se fez Consolador preenchendo a fraqueza humana de coragem e fidelidade.

 

É este Espírito Defensor que possibilita o encontro das diferentes experiências de vida, assim como a comunhão da diversidade que Ele próprio cria e administra em cada um de nós. E é Ele quem nos encoraja à esperança. O Espírito da unidade e da diversidade não cessa de atuar entre os cristãos, mesmo quando distantes e aparentemente separados.

 

Se ele defende, também possui. Ou como disse Paulo: “Certamente vocês sabem que são o templo de Deus e que o Espírito Santo vive em vocês”. 1Coríntios 3.16. Possui quem: nós! Por isso, falar sobre o Espírito Santo é falar sobre nós, pois só Ele pode mostrar quem de fato somos. Assim, o que somos é compreendido quando o Espírito atua em nossas vidas.

 
A criação, a providência e a salvação são obras de Deus. Mas, existe também uma obra subjetiva de Deus, que é a aplicação de sua salvação na vida das pessoas. E é aqui que entra o Espírito, pois esta obra é feita de dentro para fora no ser humano.

 

“Mas foi a nós que Deus, por meio do Espírito, revelou o seu segredo. O Espírito Santo examina tudo, até mesmo os planos mais profundos e escondidos de Deus. Quanto ao ser humano, somente o espírito que está nele é que conhece tudo a respeito dele. E, quanto a Deus, somente o seu Espírito conhece tudo a respeito dele”. 1Co 2.10-11.

 

Num exercício teológico, podemos dizer que o Pai, para nós, aparece nas obras da criação e da providência, o Filho aparece na obra de redenção da humanidade e o Espírito aplica essa obra redentora às pessoas, tornando real a salvação. Na realidade, o Espírito é a Pessoa da Trindade que se torna pessoal para aquele que crê. O Espírito é a pessoa específica da Trindade por meio de quem a Trindade atua em nós.

 

Embora tal compreensão da ação do Espírito seja importante, ela é um pouco difícil, pois nas Escrituras temos menos revelações explícitas acerca do Espírito do que encontramos sobre o Pai e o Filho. Mas, teologicamente, podemos ampliar a compreensão do Espírito ao dizer que Ele sopra sobre e através das vidas. Ele é a liberdade da historia universal e particular das brasilidades, a espontaneidade da realidade, a beleza da criação cósmica e criador da vida nova das comunidades de fé.

 

E quando falamos que Ele é a espontaneidade da realidade, estamos dizendo que o Espírito é paradoxal. Exemplo disso foi o derramamento do Espírito no dia de Pentecostes, que se apresentou como gênese e escathon. Foi o fim da aliança anterior e o surgimento de uma nova. É o fim de uma era e o início de uma nova. O que era escrito nas pedras da lei agora seria, pelo Espírito, escrito nos corações. As comunidades de fé deixavam de estar restritas a uma raça.

 

No Pentecostes, ao citar o profeta Joel, Pedro deixa claro: o escathon começou. A compreensão de que o Pentecostes marca o tempo do fim traz para nós duas lições: a primeira, é que somos chamados à vigilância, pois o fim se abrevia. A segunda, é que devemos fazer a crítica daqueles que pensam poder apresentar os tempos e as épocas que Deus reservou para si. 

 

É interessante observar que Lucas (Atos 1.4) diz que os discípulos deveriam esperar o tempo da promessa em Jerusalém. Depois (Atos 2.2) fala que de repente o Espírito se fez presente. Eles esperavam, mas não sabiam quando. Eles tinham certeza, mas não sabiam a hora. O Espírito é a espontaneidade da realidade. Ele vem quando e da forma que não esperamos. Quem anda com o Espírito aprende a estar preparado para surpresas. É certo que Ele não falha nas promessas, mas não faz como e quando esperamos.


Quando o Espírito vem ninguém se controla. Mas ele controla a todos. Aquela hora do Pentecostes ninguém escolheu. Mas ninguém estava sem controle. O Espírito controlava a todos. Era conforme o Espírito queria. Ser cheio do Espírito não é ser avião sem piloto. Ser cheio do Espírito é ser conduzido por sua soberania. Eis o paradoxo de Espírito.

 

“Mas quem não tem o Espírito de Deus não pode receber os dons que vêm do Espírito e, de fato, nem mesmo pode entendê-los. Essas verdades são loucura para essa pessoa porque o sentido delas só pode ser entendido de modo espiritual”. 1Coríntios 2.14.

 

O Espírito é cósmico, ou seja, é missionário. Vejam as palavras de Lucas: “Essas notícias chegaram à igreja de Jerusalém, que resolveu mandar Barnabé para Antioquia. (...) Barnabé era um homem bom, cheio do Espírito Santo e de fé. E muitos se converteram ao Senhor”. Atos 11.22 e 24.

 

Atos dos Apóstolos é um livro sobre a prática de missões sob o comando do Espírito Santo. Por isso, o livro de Atos é único em seu estilo no Novo Testamento, porque revela o Espírito como missionário. E se o Espírito é missionário, o que lemos em Atos é a conseqüência natural da história de uma comunidade que é formada como igreja missionária. A relação Espírito/ comunidade é a chave do sucesso em Atos. 

 

Lucas deixa claro que o Espírito é quem comanda a igreja em sua missão. O Espírito é Deus soberano. Ele conduziu em triunfo a jovem comunidade cristã em sua missão de comunicar. E o mesmo Espírito quer hoje conduzir nossas comunidades na tarefa missionária. Afinal, é o Espírito quem vocaciona, capacita e dirige os chamados para a missão.

 

“Naquele tempo alguns profetas foram de Jerusalém para Antioquia. Um deles, chamado Ágabo, levantou-se e, pelo poder do Espírito Santo, anunciou: Haverá uma grande falta de alimentos no universo inteiro. Isso aconteceu quando Cláudio era o Imperador romano”. Atos 11.27-28.

 

Mas qual a relação entre Espírito cósmico e missão? Seguindo Irineu, podemos dizer que Deus pela Palavra deu existência ao universo, mas foi pelo Espírito que Ele transforma o existente em cosmo, todo ordenado, com sentido, com ordem de adequação e adaptação.

 

E se retornarmos a Hegel, esse Espírito cósmico é a consciência do universo, Espírito vivo. Ou seja, assim como o Espírito deu sentido ao universo, Ele tem como propósito dar sentido à vida humana, por isso é Ele quem vai adiante: abre as portas e prepara o caminho para o sucesso da comunicação. E o mesmo Espírito, além de preparar as regiões, e o Brasil é um exemplo disso, é quem transforma este mesmo base para a expansão da comunicação. A visão da expansão da comunicação é uma dádiva do Espírito para as comunidades de fé do Senhor Jesus. Praticar esta visão, como o fez as comunidades de Atos, é entender o propósito para o qual a própria comunidade de Jesus existe.


Comunicar é semear. Por isso, Jesus disse: “Eu pedirei ao Pai, e ele lhes dará outro Auxiliador, o Espírito da verdade, para ficar com vocês para sempre. O universo não pode receber esse Espírito porque não o pode ver, nem conhecer. Mas vocês o conhecem porque ele está com vocês e viverá em vocês”. João 14.16-17.

 

Para a comunidade de fé, a unidade só é válida na variedade: nunca na uniformidade. A aceitação das pessoas com suas diferenças e particularidades, e aqui devemos falar de afrobrasileiros, brasilíndios e neobrasileiros, é uma condição indispensável para a saúde da comunidade cristã. Por isso, há diversidade de dons, mas um mesmo é o Espírito (1Co 12.4). Assim, o amor unifica as diferentes expressões do frutificar no Espírito e a liberdade no Espírito possibilita a expressão dos diferentes dons.

 

Os dons do Espírito são evidências na comunidade porque a Palavra do Senhor é a mesma ontem e hoje, pois "passarão os céus e a terra, mas, as minhas palavras não haverão de passar" Mateus 24.35. Sabemos que "o Espírito Santo opera todas essa coisas, repartindo particularmente a cada um como quer" (1Co 12.11) e que a "manifestação do Espírito é dada a cada um para o que for útil" (1Co. 12.7). 

 

Os dons do Espírito são os meios através dos quais os membros do corpo do Cristo, a comunidade de fé, somos capacitados, habilitados e equipados para podermos realizar com autoridade e poder, a obra de Deus.


Em 1Co 12.1, o apóstolo Paulo diz: "a respeito dos dons espirituais, não quero, irmãos, que sejais ignorantes". E assim somos exortados a viver os dons do Espírito, sem os quais a comunidade, ao invés de ser um organismo vivo, cheio de graça e de unção, passaria a ser uma organização social ou apenas religiosa.


Sim, todos os dons permanecem em sua integridade ou, como diz Paulo em Co 12.4 "ora, há diversidade de dons, mas o Espírito é o mesmo". Isto é, aquele Espírito que deu e repartiu, é o mesmo que dá e reparte hoje, a cada um, como quer, para a edificação do corpo do Cristo que é a Igreja do Senhor.


Às vezes, porém, fazemos confusão entre os dons do Espírito e o fruto do Espírito, que se expressa através de características indispensáveis à vida cristã. O cristão tem que frutificar e manifestar as características do fruto do Espírito: amor, gozo, paz, longanimidade, benignidade, bondade, fé, mansidão e temperança. Gl 5.22. Esse fruto do Espírito molda o caráter da pessoa no padrão do caráter do Cristo, enquanto os dons são capacitações especiais que o Espírito concede aos fiéis, para com poder, graça e unção, realizar a obra do Senhor.


A Palavra de Deus ensina: "segui o amor e buscai com zelo os dons espirituais" (1Co. 14.1), mas, também, a reavivar o dom de Deus que está em nós (2Tm 1.6).  E por que isso? Porque os dons são palavras de conhecimento, de sabedoria e discernimento, unção para curar, para realizar milagres, e fé. É, ainda, capacitação para falar em línguas, para interpretá-las e para profetizar.

 

A Pneumatologia lida a partir da multiculturalidade brasileira apresentará a obra de Deus como realidade comunitária. E esse talvez seja o sentido maior, recuperado pelos irmãos carismáticos e pentecostais no Brasil, principalmente quando nos exortam de que os dons não morreram, mas foram sufocados por nossos preconceitos reformados. Ao clamar assim mostram que o Espírito é para nós, condição de toda palavra significativa sobre Deus.

 

E em meio de tantas divergências e separações, de inimizades e choques, prevalece a sabedoria do Espírito. Pois, como disse Jesus: “Porém, quando o Espírito da verdade vier, ele ensinará toda a verdade a vocês. O Espírito não falará por si mesmo, mas dirá tudo o que ouviu e anunciará a vocês as coisas que estão para acontecer. Ele vai ficar sabendo o que tenho para dizer, e dirá a vocês, e assim ele trará glória para mim”. João 16.13-14.

 

Os dons espirituais são necessários à vida e ao ministério dos que exercem a liderança na comunidade de fé. São a sabedoria, o conhecimento e o discernimento. Falar com sabedoria, ter conhecimento e discernir a origem de idéias, propostas e ações possibilitam ao fiel comunicar, liderar com humildade e harmonia, e saber escolher o que é melhor para a comunidade. 

 

Em Atos 4.13 lemos que os líderes judeus ficaram admirados com a coragem de Pedro e de João, pois sabiam que eram homens simples e sem instrução. Admiraram-se de que?  Com as palavras sábias apresentadas através da inspiração do Espírito.


Ninguém é detentor de todos os dons do Espírito, mas cada um recebe o dom, da forma como o Espírito quer. O Espírito é quem reparte. A exortação da Palavra é que busquemos os dons e o façamos com equilíbrio, zelo, sem impedir que o Espírito possa fluir. Em 1Co 12.7 lemos: "a cada um, porém, é dada a manifestação do Espírito para o proveito comum", isto é, para a alegria da comunidade. 

 

Ah! Como o Espírito é inspirador! Ou, retornemos a Paulo: “Quem fala em línguas estranhas fala a Deus e não às pessoas, pois ninguém o entende. Pelo poder do Espírito Santo ele diz verdades secretas. Porém quem anuncia a mensagem de Deus fala para as pessoas, ajudando-as e dando-lhes coragem e consolo. Quem fala em línguas estranhas ajuda somente a si mesmo, mas quem anuncia a mensagem de Deus ajuda a igreja toda”. 1Coríntios 14.2-4.

 

Quem fala com Deus sem usar as palavras em português, ou no seu idioma pátrio, edifica-se a si mesmo (1Co 14.2-4,14). Ora, segundo o apóstolo, as línguas podem ser humanas (At 2.4-6), ou desconhecidas aqui na terra (1Co 13.1). Os cristãos de Corinto deram muita importância do dom de línguas, em razão disso Paulo argumenta que: 

 

a) a profecia, por que é comunicação, é mais importante para a comunidade porque exorta, edifica e consola: dela todos se beneficiam. Os fiéis não devem pensar apenas na sua edificação.

 

b) para que os benefícios se estendam ao maior número de pessoas na comunidade, aquele que fala em línguas, deve pedir ao Espírito para receber o dom de interpretação (1Co 14.13). Em nenhum momento Paulo desprezou o dom da variedade de línguas. Ao contrário, agradeceu a Deus porque falava em línguas e disse que gostaria que todos também falassem, mas que houvesse mais comunicação do Evangelho. 

 

O que significa isso? Através das Escrituras hebraicas, vemos que o Espírito do Senhor impacta o ser humano, que esse Espírito é experimentado como uma força transcendente que se põe em movimento, para criar ou derrubar, pessoas e comunidades. Se na tradição narrativa de Israel, o Espírito era poder de Deus que atuava sobre e através das lideranças carismáticas de Israel, hoje, em nossas comunidades de fé, o falar em línguas é processo da misericórdia de Deus para pobres e excluídos, que não têm voz na sociedade, cujas línguas estão socialmente mudas. Então, é um desprender-se sob o Espírito que possibilita expressarem o que sentem e experimentam. É uma nova expressão para a experiência da fé, e é expressão pessoal e comunitária.

 

Nesse sentido, o Espírito é amplidão. “A terra era um vazio, sem nenhum ser vivente, e estava coberta por um mar profundo. A escuridão cobria o mar, e o Espírito de Deus se movia por cima da água”. Gênesis 1.2. É o acontecer da presença atuante de Deus, que penetra até o mais íntimo da existência humana. Ele atua como força de vida no ser humano e transforma aqueles que se encontram sob o senhorio do Cristo.

 

O Espírito cria espaço, põe em movimento, leva da estreiteza para a amplidão. Cria o horizonte e nas nossas vidas amplia o horizonte. Na experiência com o Espírito, Deus não é sentido somente como Pessoa da Trindade, mas também como aquele espaço e tempo de liberdade onde o ser humano pode se desenvolver.

 

“Aí eu me ajoelhei aos pés do anjo para adorá-lo, mas ele me disse: Não faça isso! Pois eu sou servo de Deus, assim como são você e os seus irmãos que continuam fiéis à verdade revelada por Jesus. Adore a Deus! Pois a verdade revelada por Jesus é a mensagem que o Espírito entrega aos profetas”. Apocalipse 19.10.

 

Esta é a experiência do Espírito. Um dos nomes de Deus, segundo a religião judaica, é Macom: amplidão. Quando o Espírito é experimentado como essa amplidão aberta à vida, quando os seres humanos vivem no Espírito, Deus é experimentado como um novo tempo de vida.


E, então, o Espírito se torna liberdade em nossas vidas. “Aqui a palavra Senhor quer dizer o Espírito. E onde o Espírito do Senhor está presente, aí existe liberdade”. 2Co 3.17. Vamos repetir: onde está o Espírito há liberdade. Com essa experiência do Espírito, Paulo falou sobre a liberdade cristã. Mas para falar da liberdade no Espírito é necessário começar pela fé.

 

A fé é geralmente entendida como uma concordância formal com a doutrina da igreja ou como uma participação na fé da igreja. Mas a fé que liberta é mais do que isso, é uma fé que nos envolve pessoalmente. A fé que me faz livre é a fé com a qual eu concordo, porque eu a compreendo, não porque seja forçado por hábito ou tradição. A fé pessoal é o início de uma liberdade que renova inteiramente a vida e vence o universo (Jo 16.33).

 

Essa fé é uma experiência que não abandona aqueles que a experimentaram realmente: a liberdade do medo para a confiança, o reviver para uma esperança viva, o amor incondicional à vida.

 

Para a fé cristã, a liberdade não consiste nem na compreensão de uma necessidade histórica, nem na autonomia sobre si próprio e sobre a propriedade, mas sim no ser tocado pela energia de vida do Espírito.

 

Fé significa ser criativo com Deus e no seu Espírito. Crer leva a uma vida criativa e vivificante pelo amor. Crer, por isso, significa ultrapassar os limites da realidade determinada por nosso passado de escravidão, exclusão social e dor e buscar as possibilidades da vida que não se realizaram.  E é essa fé que livra da força do mal, da lei das obras e do poder da morte e leva a uma comunhão com Deus e direta com as pessoas e a comunidade. Essa é a base e o fundamento da liberdade no Espírito. 

 

“O Espírito e a Noiva dizem: Venha! Aquele que ouve isso diga também: Venha! Aquele que tem sede venha. E quem quiser receba de graça da água da vida”. Apocalipse 22.17.  

 

As palavras hebraica e grega para espírito revelam um significado duplo: espírito e vento. Por exemplo, "o Espírito de Deus pairava sobre a face das águas" (Gn 1.2), e "Deus fez passar um vento sobre a terra, e as águas abaixaram" (Gn 8.1). Jesus disse a Nicodemos: "O que é nascido do Espírito, é espírito... o vento sopra onde quer” (Jo 3.6-8). 

 

Outro significado do termo espírito nos dois idiomas é sopro, respiração, tanto divina como humana (Jó 4.9; 12.10; 2Ts 2.8; Ap 11.11). Nas Bíblias em português, a expressão espírito é escrita com letra maiúscula para referir-se ao Espírito de Deus ou com letra minúscula para indicar o espírito humano. Como os manuscritos antigos não usavam letras maiúsculas, os tradutores e editores, às vezes, têm dificuldade para determinar se o escritor bíblico tinha em mente o espírito de Deus ou o humano. Como exemplo veja as variações de tradução em Atos 19.21. 

 

A imagem da água, que denota limpeza e purificação (Ez 36.25-26; Ef 5.26-27; Hb 10.22), as imagens do óleo e do azeite, que denotam unção (Mt 25.1-13; Ap 3.18) e a imagem do fogo, que denota luz e o consumir da justiça divina (Mt 3.11; At 2.3; Sl 78,14) são também símbolos do Espírito.

 

“De repente, veio do céu um barulho que parecia o de um vento soprando muito forte e esse barulho encheu toda a casa onde estavam sentados. Então todos viram umas coisas parecidas com chamas, e cada pessoa foi tocada por uma dessas línguas. Todos ficaram cheios do Espírito Santo e começaram a falar em outras línguas, de acordo com o poder que o Espírito dava a cada pessoa”. Atos 2.2-4.

 

Na nossa história, a idéia de poder sempre esteve ligada à violência, à escravidão e ao abandono de milhões de pessoas excluídas à sua própria sorte. Ter poder no Brasil é possuir riquezas ou ser um político que tudo pode. Mas, nas Escrituras, o Espírito é água que refrigera, limpa e purifica, por isso simboliza o poder de um novo nascimento.

 

O Espírito também é azeite. Nessa simbologia, é um poder que conforta, já que o azeite era utilizado como medicina. Os reis eram ungidos com o azeite perfumado. O perfume da unção usado em Israel tinha uma fórmula, na qual entravam a mirra, a canela, as madeiras aromáticas, a cássia e o azeite de oliva. 

 

Já o fogo sempre esteve ligado à imagem de Deus e sua justiça. No Pentecostes, centelhas de fogo pousaram sobre a cabeça de cada um dos apóstolos e no Apocalipse um lago de fogo está reservado para a morte, para o universo dos mortos e para aqueles que não tiverem seus nomes escritos no Livro da Vida (Apocalipse 20.14-15). A água, o óleo e o fogo são sinais da presença e da justiça de Deus e nos ajudam a compreender o papel do Espírito em nossas vidas, nas comunidades e no universo. “Ele os batizará com o Espírito Santo e com fogo”. Lucas 3.16.

 

Dando sequência às reflexões sobe a igreja brasileira a partir da teologoia bíblica e sistemática, gostaria de analisar possíveis caminhos para a espiritualidade de nossas comunidades. 

 

Uma espiritualidade à flor da pele

 

Desejo abordar a questão das espiritualidades da igreja protestante/ evangélica a partir da correlação entre a teologia sistemática e a fenomenologia da religião. Quanto falamos em fenomenologia da religião falamos de como captar o lado único da experiência religiosa. E utilizamos como método científico a observação, explicando as simbologias e as crenças. Assim, a fenomenologia procura compreender a espiritualidade a partir do ponto de vista do fiel, bem como o valor dessa espiritualidade na vida do mesmo. Por estas razões evita os juízos de valores e os conceitos de época.

 

Quando olhamos para a espiritualidade da igreja protestante/ evangélica podemos ver dois tipos de espiritualidades: a exotérica e esotérica. A espiritualidade exotérica é aquela que pertence ao lado de fora, racionalista e literalista. Assim, esta espiritualidade apresenta estruturas de crenças que procuram explicar os mistérios do mundo através de leituras racionalistas da revelação, ao invés de utilizar testemunhal ou experiência direta. Apresenta, também, na maioria das vezes, uma interpretação fundamentalista da fé, das doutrinas e da dogmática. 

 

Já a espiritualidade esotérica traduz a idéia de uma espiritualidade íntima, que se situa no interior, naquilo que vem de dentro. O fato de a espiritualidade esotérica, que também podemos chamar de mística, apresentar-se como oculta não surge do fato de ser secreta, mas porque traduz uma experiência direta ou percepção pessoal. Esta espiritualidade não acredita em dogmas por obediência, mas faz a viagem das experiências pessoais. Sua base é a experiência direta e esta experiência pode ser validada por outras pessoas desde que executem o mesmo experimento. E o maior experimento da espiritualidade mística é o êxtase.

 

Para explicar esta espiritualidade vamos recorrer à matemática. Não há prova de que menos um elevado ao quadrado é igual a um, ou seja, (-1)= 1. Não há prova empírica para tal afirmação. Mas consideramos o enunciado acima verdadeiro por lógica interna. Não há menos um (-1) no mundo exterior, só na mente. Mas isso não significa que tal afirmação não seja verdadeira, já que é validada por matemáticos, ou seja, por aqueles que sabem como funciona o experimento lógico-matemático. Para a espiritualidade esotérica o processo é parecido: a experiência do êxtase é conhecimento interno, que pode ser validado por outros fiéis, aqueles que conhecem a lógica interna da experiência do êxtase. 

 

Dessa maneira, o oculto da espiritualidade esotérica reside no fato de que se não há o experimento, não há condições de conhecer. Ou seja, essa espiritualidade está oculta para aqueles que não realizam o experimento. De certa forma, podemos dizer também que as espiritualidades esotéricas das igrejas evangélicas apresentam uma unidade no que diz respeito ao Espírito e à natureza da sua identidade. Superficialmente, as estruturas das igrejas de espiritualidade esotérica variam, mas na essência são semelhantes, e refletem de certa forma a unanimidade do Espírito acerca das leis fenomenologicamente reveladas.

 

Já as espiritualidades exotéricas não apresentam esta unidade estrutural, isto porque repousam sobre peculiaridades culturais e de época que transformadas em construções racionalistas, hermenêuticas, doutrinas e dogmáticas, as levam ao choque. É verdade que os textos antigos e suas simbologias podem ser interpretados como alegorias ou metáforas para as questões transcendentais. Mas, como estamos fazendo fenomenologia, devemos dizer que os fiéis da espiritualidade exotéricas não vêem as simbologias dos textos como alegorias, mas revelação que deve ser lida e entendida literalmente. 

 

A espiritualidade esotérica, que vem de dentro, no entanto, dá significado para os textos e seus símbolos a partir da experiência interior, do êxtase, e não de um sistema exterior de crença. 

 

No correr do século XX, no Brasil, na igreja protestante/ evangélica essas duas espiritualidades se confrontaram. Cada uma delas apresentava argumentos contra a outra. Fracionamentos aconteceram e essas espiritualidades se afastaram. Mas é o caso de perguntar: elas são antagônicas ou correlatas? Na verdade, a espiritualidade exotérica, por privilegiar o texto, as doutrinas e os dogmas, situa-se no passado, enquanto a espiritualidade esotérica por situar-se dentro, na experiência da pessoalidade, situa-se no presente, apesar de fazer na maioria das vezes uma leitura estática e privatizada desse presente.

 

Por isso, a correlação dessas espiritualidades nos leva aos três desafios vividos hoje pela igreja evangélica brasileira.

 

Vou sintetizar o que quero dizer e depois a gente desenvolve essas idéias. Diria que em relação ao passado devemos ser conservadores; em relação ao presente devemos ser criticamente contextuais, contemporâneos e conterrâneos; e em relação ao futuro, revolucionários.

 

Esses desafios de vida evangélica para a igreja brasileira nascem da própria experiência profética. Os profetas clássicos do Antigo Testamento eram ao mesmo tempo revolucionários voltados para o passado e conservadores impulsionados pela paixão do futuro. Nada faziam sem invocar a tradição. No entanto, suas mensagens apontavam para os tempos futuros. Os profetas sabiam servir-se do passado para a crítica do presente. Todos tinham uma coisa em comum: uma atitude realista. E ao contrário dos profetas falsos interessavam-se pelo concreto do presente: eram contextuais, contemporâneos e conterrâneos. Não viviam envoltos em véus de ilusões e, por isso, condenavam o palavreado inútil e a eloqüência abstrata. Mas, a pregação do futuro não constituía o essencial de seus ministérios, eram antes fruto e resultado do conhecimento do mundo, de suas contradições e possibilidades. 

 

Se partirmos dessa compreensão, podemos dizer que nosso compromisso com o passado é a manutenção de nossas heranças, da qual a Palavra de Deus é a principal delas. Guardamos, estudamos, refletimos sobre o que diz e transmitimos àqueles que não conhecem o rico passado que nos deu origem. Não negamos nossas origens, sabemos de onde viemos e devemos ser maduros para entender o que fizemos de certo e de errado na história. Ao compreender assim o passado, dizemos que no correr dos séculos existiram homens e mulheres que interpretaram a situação espiritual de suas épocas. Eis aqui o ponto de intersecção entre a manutenção do passado e o tempo presente: a inquietude e o descontentamento em relação aos acontecimentos sociais e religiosos concretos. 

 

Nesse sentido, deveria existir busca semelhante de respostas àquelas dos antigos profetas e a ação consciente dos líderes evangélicos e da igreja. Como os profetas deveríamos concretamente representar nossas comunidades, nossa terra brasileira, nosso mundo. Mas, ao lado das organicidades contextual, contemporânea e conterrânea, precisamos exercer autonomia em relação às pressões sociais, já que é dessa postura que nasce a força crítica e a compreensão de que diante da realidade há alternativas diferentes daquelas expressas pelo presente.

 

E se compreendemos que não basta o exame da situação espiritual do presente, como totalidade e permanência para fazermos diferença e transformarmos o mundo, é necessário entender as exigências lançadas adiante e, nesse sentido, ir além do próprio presente. 

 

Ora, se presente não pode ser apreendido apenas a partir do passado e de sua conservação, porque se procuramos a transformação do mundo, se estamos envolvidos com a construção do Reino de Deus, esse fazer não pode repousar exclusivamente na experiência da conservação. Porém, ser contextual, contemporâneo e conterrâneo não significa negar a existência de alternativas diferentes daquelas expressas pelo presente. Quando analisamos a ação dos profetas em relação ao presente, vamos constatar que eles não testemunhavam em benefício do presente. Eles diziam não ao presente. Mas esse não era um não abstrato, era um não concreto, que partia da militância contextual, contemporânea e conterrânea deles. Isto porque só através dessa condenação concreta e real do presente podemos, de fato, denunciar os símbolos das forças demoníacas no presente, que no caso do Brasil são as exclusões sociais, raciais, de gênero e outras.

 

E é a partir dessa compreensão do que significa estar envolvido com o presente para ir além dele, que podemos falar do futuro, não de um futuro vazio, mas de um futuro construído a partir de novos conteúdos. 

 

Esse futuro deve ser momento concluído, texto, tempo e lugar onde a própria eternidade se faz agora e aqui. Repare, o futuro construído pela manutenção do passado, pela crítica contextual, contemporânea e conterrânea do presente não é um futuro qualquer, mas momento novo e pleno: é um futuro onde se completa aquilo que é significativo. 

 

Esses desafios nos levam à compreensão da praxe cristã, que podemos chamar de princípio protestante. Este princípio central do protestantismo é a doutrina da justificação pela graça apenas, significando que nenhuma pessoa ou comunidade humana pode reivindicar para si a dignidade divina em conseqüência de conquistas morais, de poder sacramental, de sua santidade ou de sua doutrina. Conseqüentemente, a liberdade profética precisa sempre criticar, condenar e transformar o status quo ou os sistemas morais, políticos e sociais que se consideram sagrados. Cada evangélico, e aqui prefiro usar a expressão protestante, tem que decidir por si próprio se determinada conjuntura, doutrina ou sistema social é verdadeiro ou falso, se os líderes existentes em seu meio são verdadeiros ou falsos e se o poder estabelecido é divino ou demoníaco. Para os protestantes tal decisão será sempre pessoal.

 

Esses são os desafios protestantes, entendidos como expressão crítica e livre, para a igreja brasileira e seus líderes. Nesse sentido, é bom lembrar que onde se proclama o poder do Cristo e onde se denuncia as situações-limite que ameaçam o sentido da vida, aí está o Espírito em seu sentido bíblico e teológico mais profundo e abrangente. 

 


 

 

 

 

 

 

Capítulo sete

OS  ANJOS E DEMÔNIOS

 

 

Duas imagens fundantes marcam a idéia do bem e do mal nas escrituras judaico-cristãs: anjo e demônio. Ao trabalhar a questão da virtualidade nos textos escriturísticos utilizamos um conceito que já é usado na crítica literária, a idéia de imagologia. A partir dessa hermenêutica, nos textos escriturísticos a identidade de anjo e demonio não pode ser encarada como uma forma de ser apriorística e plena, mas virtualidade dinâmica e relacional, onde se cruzam questões de identidade cultural e social, o que revela uma dimensão estrangeira. Na medida em que há constante construção de identidade, anjo e demônio supõem sempre uma comparação explícita ou implícita, que se integra naquilo que será a imagologia do texto, ou seja, das representações do bem e do mal nas duas expressões.

 

Essa questão, virtualidade e imagem nos textos escriturísticos cria no estudioso acosutmado às leituras literalistas, ansiedade e apreensão. Mas a virtualidade imagológica, se olharmos ao redor, faz parte de nossas vidas. Na verdade, o que a apresentação lógica e ordenada das imagens faz é prover uma interface mais íntima entre a coisa humana e a coisa relativa e, assim, as representações se transformam em experiência real. No entanto, o fundamental é analisar a representação que se coloca por trás da imagem e dentro da estrutura. Pode-se dizer que tudo aquilo que a virtudalidade faz é uma simulação, mas para definir simulação é necessário ir mais fundo. Assim, a virtualidade da imagem, que poderia ser um paradigma, se apresenta como metáfora. É um conceito provocante, porque  a virtualidade da imagem que o texto nos oferece termina sendo real. Promete a realidade virtual, que deixa de ser metáfora, e se transforma em criação fantástica, terrível, verdadeira. Nesse sentido, a imagem deixa de ser metáfora e se faz metafísica. Assim, a virtualidade das imagens anjo e demônio, tão presentes na escatologia, cria a partir das estruturas lógicas e ordendas dessas imagens uma perspectiva que é a verdade do texto. É a partir dessa compreensão que mergulhamos na doutrina cristã de anjos e demônios.

 

O anjo é um mensageiro, esse é o significado da palavra ággelos, em grego, e de malakh, em hebraico, Os textos escriturísticos não definem a época de seu surgimento, por isso, dentro da tradição, se trabalha com duas hipóteses, que aparecido juntamente com a criação dos céus (Gn 1.1), ou que tenham sido criados após a criação dos céus e antes da criação da terra, pois um texto de Jó (38.4-7,) diz que os filhos de Deus se alegraram quando o Eterno lançou os fundamentos da terra. Assim, não seriam eternos, o que se constata a partir de Neemias (9.6), salmos (148.2,5) e a carta de Paulo aos colossenses (1.16). E os textos dão a entender que eles são muitos, embora não fale de número definido (Dn 7.10; Mt 26.53; Hb 12.22).

 
Seriam diferentes dos humanos e não estariam limitados às condições naturais. Teriam a capacidade de aparecer e desaparecer e movimentar-se com rapidez sem usar meios de locomoção. E, embora a tradição os defina como espíritos, muitas vezes nos textos assumem a forma humana (Gn 19.13). 


E por serem entendidos como espíritos e, por isso, sem corpo físico, onde Paulo (Ef 6.12) diz que "a nossa luta não é contra a carne nem sangue, e sim contra os principados e potestades, contra os dominadores deste mundo tenebroso, contra as forças espirituais do mal, nas regiões celestes". Veja outras referências imagológicas: Sl 104.4; Hb 1.7,14; At 19.12; Lc 7.21; 8.2; 11.26; Mt 8.16; 12.45. Não têm carne nem ossos e são invisíveis (Cl 1.16 ). 


Aparentemente, já que esta não é uma posição unânime, o relacionamento afetivo sexual não faria parte da vida dos anjos (Mt 22.30; Lc 20.34-36), e são, com exceção de Lilith, apresentados como do sexo masculino. Mas outros consideram que não têm sexo e se apoiam em texto neotestamentário de Lucas (20.34-35). 


Por serem muitos, alguns textos falam de que se organizam militarmentem no caso como regimentos do exército romano. Assim, no Getsêmani, Jesus disse se ele pedisse a Deus, este "mandaria mais de doze legiões de anjos"? (Mt 26.53). 


A tradição cristã diz que são inteligentes (2Sm 14.20; Mt 24.36, Ef 3.10; 1Pe 1.12; 2Pe 2.11) e superiores aos humanos em conhecimento (Mt 24.36). E os textos fala de anjos leais (Mt 25.31; Mc 8.38; Lc 9.26; At 10.22; Ap 14.10) e anjos rebelados (Jo 8.44; 1 Jo 3.8-10). Os anjos leais não estariam sujeitos a morte (Lc 20.35-36) e estariam prontos para obedecer a Deus (Sl 103.20; Cl 1.16; Ef. 1.21; 3.10; Hb 1.14). Já os anjos rebelados estariam empenhados em destruir o trabalho de Deus (Lc 11.21; 2Ts 2.9; 1Pe 5.8).

 

A força dos anjos é lida e compreendida a partir da libertação dos apóstolos da prisão (At 5.19; 12.7) e no rolar da pedra que fechava o túmulo de Jesus (Mt 28.2). Faz parte da virtualidade angelical a idéia de que tiveram uma boa condição original (Jo 8.44; 2Pe 2.4; Jd 6), que seriam eleitos (1Tm 5.21) e por isso chamados santos anjos ou anjos de luz (2Co 11.14). Estariam sempre diante de Deus (Lc 9.26) e sua atividade principal seria a adoração a Deus (Ne 9.6; Fp 2.9-11; Hb 1.6; Jó 38.7; Is 6.3; Sl 103.20; 148.2 Ap 5.11). 


Em relação ao mundo, são enviados para dar apoio aos fiéis (Hb 1.14), ficam contentes quando alguém deixa de ser ímpio (Lc 15.10), e dão proteção aos crentes (Sl 34.7; 91.11 ) e protegem as crianças (Mt 18.10). Acompanham, também, a adoração da comunidade de fé (1Tm 5.21), e encaminham a alma dos crentes ao seio de Abraão (Lc 16.22,23). 


Além do nome anjo, recebem nomenclatura especial: querubins, responsáveis pela guarda da entrada do paraíso (Gn 3.24), que atuam no propiciatório (Ex 25.18,20; Sl 80.1; 99.1; Is 37.16; Hb 9.5), que são carruagem que Deus usa quando desce à terra (2Sm 22.11; Sl 18.10). A imagologia angelical referente aos querubins os apresenta, também, com seis asas, mais de uma face e formas de animais (Ez 1, Ap 4). Lembram os karibu assírios, que corrrespondem aos querubins representados na Arca da Aliança (Ex 25. 18ss). Já os serafins, mencionados somente em Is 6.2,6, seriam uma classe de anjos próxima dos querubins. E os arcanjos, cuja referência genérica ocorre duas vezes (1Ts 4.16; Jd 9), aparece depois como Miguel. Seria um arcanjo que omandando anjos (Ap 12.7) e príncipe do povo de Israel (Dn 10.13,21; 12.1). Ele está na presença de Deus (Lc 1.19) e a ele são confiadas mensagens do reino de Deus (Dn 8.16; 9.21). 


Principados, potestades, tronos e domínios não são nomenclatura de anjos, mas posições (Ef 3.10; Cl 2.10), assim como tronos (Cl 1.16), domínios (Ef 1.21; Cl 1.16) e poderes (Ef 1.21, 1Pe 3.22). Estas referências indicam todas as espécies de anjos (Ef 1.21), mas se referem principalmente aos rebelados (Rm 8.38; Ef 6.12; Cl 2.15). 

 

O brilhante arrebata os sentidos

 

Em hebraico heilel ben-shachar, e em grego, na Septuaginta, heosphoros. Lúcifer é a estrela da alva, que brilha de manhã, que a gente nâo entende porque está ali se o dia já vem nascendo. Não brilha mais que o sol e, por isso, vai desaparecer quando a luz de verdade, forte, alumiar. Mas se engana quem pensa que essa luz meio vesga, que entra olhos a dentro, não veio para alucinar. É o brilhante que está ao lado para confundir. É o diá, diacho, diale, dialho, dianho, adversário que ilumina a alma às avessas.

 

Estavas no Éden, jardim de Deus; de todas as pedras preciosas te cobrias: o sárdio, o topázio, o diamante, o berilo, o ônix, o jaspe, a safira, o carbúnculo e a esmeralda; de ouro se te fizeram os engastes e os ornamentos; no dia em que foste criado, foram eles preparados”. (Ez 28.13).

 

É o caluniador das vidas, o que revira o que devia estar de pé, que faz errar o alvo, que puxa o breque, catatonia, hipotonia, jogo interminável com as mãos diante dos olhos, treme-treme que lança os corpos ao chão. 


É o lúcifer das escrituras, aquele que caiu e que mesmo de dia parecia tão cintilante. É o que leva a luz torta, que brilha piscando, a convidar para programas adormecidos na alma. Mas se ele leva a luz, porque se faz presente no lusco-fusco do antes do alvorecer?

 

Perfeito eras nos teus caminhos, desde o dia em que foste criado até que se achou iniqüidade em ti”. (Ez 28.15).

 

E porque hipnotiza com luz mortiça, a língua tropeça, cheia de ruídos bizarros, de ranger os dentes, de ruído de matraca, e deságua em grito agudo. O eu é substituído pelo tu, pelo ele, e o sim emudece. A língua não comunica, dilacera.


E assim as vidas são cortadas da terra. E a imprecação cai sobre as cabeças. Como ele caiu, faz os humanos descerem, como foi cortado por terra, abate as nações! E como pensou subirei ao céu, acima das estrelas exaltarei meu trono e no monte da congregação me assentarei, aos lados do norte, assim constrói torres de Babel nos corações. E como disse marinharei sobre as alturas das nuvens e serei semelhante ao Altíssimo, convence os humanos a pugnar o mesmo conflito. Aí está o risco, os humanos são levados ao sheol, ao mais profundo abismo. 

 

E por cortar da terra, heilel ben-shachar invade os corpos com rituais para caminhar, deitar, levantar. É o delírio, quem sabe o que é mentira, o que é verdade? O que é pesadelo, o que é realidade? A luz de lúcifer alucina. O sono desperta, a boca vomita, as fezes escapam, o equilíbrio balança e o mundo desaba. O que arrebata os sentidos está ao lado, chegou piscando. O brilhante, por saber que será será precipitado no sheol, a sepultura comum, quer companhia. Ele é o deus das coisas que fogem, o deus deste mundo. E está ao lado.

 

Quando a extrema angústia aniquila e retalha, a incapacidade de tolerar fumega, a clivagem e a onipotência fazem parte da ordem do dia, tome ciência, ele pousou a mão sobre o seu ombro e está a cochichar no seu ouvido idéias de delírio. É o princípio do fim, você vai fazer o caminho do sheol

 

Diante das fronteiras da loucura, existe uma zona intermediária, um claro-escuro onde a realidade parece preservada, mas a natureza das relações estabelecidas por lúcifer, a vivência fantasmática quer arrastar a lucidez. Por isso, lutar contra o brilhante da alva significa romper frieza, indiferença e isolamentos, agressividade, cólera e errância. 

 

O senhor das luzes, o sol do meio-dia, apaga a radiação que não deve brilhar: “Eu, o Senhor, te chamei em justiça, tomar-te-ei pela mão, e te guardarei, e te farei mediador da aliança com o povo e luz para os gentios;  7 para abrires os olhos aos cegos, para tirares da prisão o cativo e do cárcere, os que jazem em trevas.  8 Eu sou o Senhor, este é o meu nome; a minha glória, pois, não a darei a outrem, nem a minha honra, às imagens de escultura”. (Is 42.6-8).   

 

E assim, segundo a imagologia do mal, os anjos rebelados estão nos ares (Jo 12.31; 14.30; 2 Co 4.4; Ap 12.4,7-9) e exercem poder sobre a humanidade (2Co 4.3,4; Ef 2.2; 6.11,12), mas este poder está destruído (1Pe 1.12) e eles serão lançados no inferno (Mt 25.41). 


Alguns estudiosos consideram que Ezequiel 28.15 se refere a Satanás. Se for assim, ele é mostrado como tendo sido criado perfeito. Diversas passagens mostram alguns dos anjos como maus (Sl 78.49; Mt 25.41; Ap 9.11; Ap 12.7-9). Isto se deve ao fato de terem deixado seu próprio principado e habitação (Jd 6), e pecado (2 Pe 2.4). 


A queda dos anjos se deu devido a sua revolta contra Deus. Grande esplendor e poder parecem ser apontadas como possíveis causas. Em Ezequiel 28.11-19, o rei de Tiro parece simbolizar Satanás e diz-se que ele caiu devido a essas coisas. Ambição e desejo de ser mais que Deus parecem ser a outra causa. O rei da Babilônia é acusado de ter essa ambição, ele também parece simbolizar Satanás (Is 14.13-14). 


Os anjos caídos perderam a sua santidade e se tornaram corruptos em natureza e conduta (Mt 10.1; Ef 6. 11-12; Ap 12.9). Alguns foram lançados no inferno e estão acorrentados até o dia do julgamento (2 Pe 2.4). Outros permanecem em liberdade e trabalham em definida oposição à obra dos anjos bons (Ap 12.7-9; Dn 10.12,13,20,21; Jd 9). Pode também ter havido um efeito sobre a criação original. A terra foi amaldiçoada pelo pecado de Hadam (Gn 3.17-19) e a criação está gemendo por causa da queda (Rm 8.19-22). Não é improvável, portanto, que o pecado dos anjos tenha tido algo a ver com a ruína da criação original no capítulo primeiro de Gênesis. Eles serão, no futuro, atirados para a terra (Ap 12.8-9), e após seu julgamento (1 Co 6.3), no lago de fogo e enxofre (Mt 25.41; 2 Pe 2.4; Jd 6). 


As Escrituras não descrevem a origem dos demônios. Essa questão parece ser parte do mistério que rodeia a origem do mal. Porém, as Escrituras dão claro testemunho da sua existência real e de sua posição (Mt 12.26-28). Nos Evangelhos aparecem os espíritos maus desprovidos de corpos, que entram nas pessoas, das quais se diz que têm demônios. Os efeitos desta possessão se evidenciam por loucura, epilepsia e outras enfermidades, associadas principalmente com o sistema nervoso central (Mt 9.33; 12.22; Mc 5.4,5). O indivíduo sob a influência de um demônio não é senhor de si mesmo; o espírito fala através de seus lábios ou emudece à sua vontade; leva-o aonde quer e geralmente o usa como instrumento, revestindo-o às vezes de uma força sobrenatural. 


Ainda que alguns falem em diabos, como se houvesse muitos de sua espécie, tal expressão é incorreta. Há muitos demônios, mas existe um único diabo. Diabo é a transliteração do vocábulo grego diabolos, que significa acusador e é aplicado nas Escrituras exclusivamente a Satanás. Demônio é a transliteração de diamon ou diamonion


Os demônios são seres inteligentes (Mt 8.29,31; 1Tm 4.1-3; 1Jo 4.1 e Tg 2.19), possuem características de ações pessoais o que demonstra que possuem personalidade (Mc 1.24; Mc 5.6,7; Mc 8.16; Lc 8.18-31). São seres espirituais (Lc 9.38,39,42; Hb 1.13,14; Hb 2.16; Mt 8.16; Lc 10.17,20). São reputados idênticos aos espíritos imundos, no Novo Testamento. São seres numerosos (Mc 5.9) de tal modo que tornam Satanás praticamente ubíquo por meio desses seus representantes. São seres vis e perversos, baixos em conduta (Lc 9.39; Mc 1.27; 1Tm 4.1; Mt 4.3). São servis e obsequiosos (Mt 12.24-27). São seres de baixa ordem moral, degenerados em sua condição, ignóbeis em suas ações, e sujeitos a Satanás (veja Doutrina das ùltimas coisas, O Apocalipse passo a passo, Lições do capítulo 12). Os demônios podem apossar-se dos corpos dos seres humanos e dos irracionais (Mc 5.8, 11-13). Afligem aos humanos mental e fisicamente (Mt 12.22; Mc 5.4,5). Produzem impureza moral (Mc 5.2; Ef 2.2); 


Um demônio muito polêmico

 

Os gatos selvagens encontram-se lá com as hienas e os bodes fazem de Edom o lugar de encontro. E Lilith vai instalar-se lá e encontrar o lugar do seu repouso”. Isaías 34:14 

 

Lilith é um súcubo, um demônio sexual feminino, que de acordo com interpretações rabinícas da criação, em Gênesis, seria a primeira mulher de Hadam. Na época não era um demônio, mas companheira de Hadam que acreditava ter sido formada com a mesma matéria-prima do homem. Por isso, Lilith rebelou-se contra a autoridade masculina e se recusou a ficar por baixo durante as relações sexuais com seu companheiro. 

 

Ela confrontava Hadam: ‘‘Por que devo deitar-me embaixo de ti? Por que devo abrir-me sob teu corpo? Por que ser dominada por ti? Eu também fui feita de pó e por isso sou tua igual.’’ 

 

Quando reclamou de sua condição a Deus, ele disse que essa era uma decisão dele, o que levou Lilith a abandonar o Éden por livre e espontânea vontade. Três anjos foram enviados para convencê-la a voltar, mas ela recusou. Juntou-se aos anjos caídos e passou a ser companheira de Samael, o anjo que mais tarde tentaria Eva. 

 

Depois que Hadam foi expulso do paraíso, Lilith escolheu como objetivo destruir os humanos, filhos de Hadam e Hawah. E passou a perseguir os adúlteros, os recém-casados e as crianças recém-nascidas.

 

Durante a Idade Média, na tradição judaica, Lilith foi transformada no modelo do demônio temido, dando origem a mitos de que seria vampira, que podia ter cem filhos por dia, súcubos, demônios femininos, e íncubos, demônios masculinos, que se alimentam da energia desprendida no ato sexual e também do sangue menstrual. Ela, suas filhas e filhos poderiam manipular os sonhos, seriam responsáveis pelo erotismo noturno e pelas poluções noturnas. Os súcubos, afirmavam, tinham tal força que podiam cortar um pênis com uma contração vaginal. E caso um homem fosse possuído por um desses demônios-fêmea não sobreviveria. Por isso, as mulheres costumavam acordar seus maridos, caso sorrissem durante o sono, pois poderiam estar sendo seduzidos por Lilith. E relatos católicos medievais dizem que muitos homens morreram assim.

 

Demônio polêmico, sem dúvida, que ainda povoa os sonhos de muita gente, que à maneira medieval clama os nomes dos três anjos, Sanvi, Sansavi e Samangelaf, que foram atrás de Lillith quando ela deixou o paraíso, por acreditar que Lilith ainda tem medo deles. 

 

Para nós que fomos lavados pelo sangue de Jesus, permanece a promessa de que “aquele que habita sob a proteção do Altíssimo e mora à sombra do Onipotente, pode exclamar: ´Ó Senhor, tu és o meu refúgio, o meu castelo, o meu Deus, em quem confio!´ Na verdade, ele há-de livrar-te de armadilhas ocultas e proteger-te contra venenos mortais. Ele te cobrirá com as suas asas e ficarás seguro sob os seus cuidados; com o seu poder te protegerá e defenderá! Não tenhas medo dos perigos da noite”. Sl 91.1-5.

 

Principados e potestades

 

Tenho ouvido empresários e políticos falarem com temor da situação mundial e dos caminhos da vida nacional. Há insegurança e temor no ar e eu gostaria de ajudá-los a pensar os momentos que vivemos.

 

Anos atrás, quando estava em Toulouse, na França, terminamos o Colóquio Internacional da Associação Paul Tillich em Língua Francesa com um culto. O ponto alto foi o sermão que originariamente foi pregado por Paul Tillich em Nova York, em 1955. O sermão Principados e Potestades foi publicado em The New Being por Charles Scribner's Sons em 1955. O texto também poder ser lido em francês em L´Etre nouveau, tradução de J. M. Saint, edições Planète, 1969, páginas 81 a 91. 

 

Por tocar num tema de profunda atualidade, vamos agora caminhar com Paul Tillich num dos textos mais lindos de todas as Sagradas Escrituras:

 

Porque eu estou seguro de que nem morte, nem vida, nem anjos, nem principados, nem coisas do presente, nem coisas do porvir, nem poderes, nem altura, nem profundidade, nem qualquer outra coisa em toda a criação poderá nos separar do amor de Deus em Cristo Jesus nosso Senhor”.  Romanos 8:38-39.  

 

Estas palavras, afirma Tillich, estão entre as mais poderosas já escritas. Podem ser compreendidas nas situações mais desesperadoras. Em minha própria experiência, diz ele, se mostraram mais poderosas que a explosão das bombas, que o choro ao lado dos túmulos, que o gemido dos feridos e o grito dos moribundos. São mais fortes que a autocrítica dos desesperados e prevalecem sobre o sussurro da ansiedade na profundidade de nosso ser. Mas o que fazem delas palavras tão poderosas?  

 

Não é o significado literal delas, em muitos aspectos estranhos para nós. Os anjos e os principados, a altura e a profundidade, e até mesmo a vida e a morte representam as estrelas e as constelações das crenças antigas, que se acreditava determinar o destino dos seres humanos e da história. Os seres humanos estavam sob o poder delas. Eram guiados pelo medo e lutavam corajosamente, às vezes saiam vitoriosos, mas freqüentemente eram derrotados. Esta era a condição daqueles seres humanos aos quais Paulo se dirigia. Várias vezes em suas cartas ele resumiu o significado do cristianismo ao declarar que Cristo conquistou estes poderes que governam o mundo, mas em nenhuma parte ele afirma isto de maneira tão triunfal, como na bela e poderosa Carta aos Romanos.

 

Para que estas palavras tenham poder sobre nossas vidas, continua o teólogo, elas têm que dizer algo de verdade sobre o que sentimos, apesar de que já não compartilhamos a fé antiga nas estrelas e nas constelações. As palavras de Paulo nomeiam os poderes que têm escravizado todos nós e também todos os seres humanos em todos os períodos de história. E mostram que estes poderes não têm força contra nós, porque foram conquistados e podemos participar da vitória sobre eles. 

 

Quem, nos anos recentes, e no correr do século vinte, pergunta Tillich, não sentiu as forças irresistíveis que determinam nosso destino histórico e pessoal? Tais forças dirigem nações e indivíduos em conflitos insolúveis, internos e externos, em arrogância e loucura, em revolta e desespero, em desumanidade e autodestruição. Cada um de nós é envolvido nestes conflitos, dirigido por estas forças num maior ou menor grau. A vida pessoal de cada de nós está de algum modo determinado por elas. Nenhuma segurança esta garantida: nem casa, trabalho, amigo, familiar, nem no campo ou em qualquer lugar do mundo se está seguro. Nenhum projeto tem cumprimento certo, todas as esperanças estão ameaçadas. Esta não é uma novidade na história humana. Mas o que é novo é que durante os anos de segurança relativa nos esquecemos que este é o verdadeiro estado das coisas. Agora vemos, novamente, em todos lugares tal realidade, porque estamos vivendo em seu meio à presença dessas forças irresistíveis.  

 

O que significa isso?

 

Dirigido pelas forças de destino, fazemos a pergunta que a espécie humana sempre se fez: que verdades e que mentiras estão atrás de tudo isso, qual é o seu significado, como podemos suportar tudo isto?  

 

Tillich explica que antes de os cristãos falarem de Providência divina, os antigos já buscavam as origens das forças motrizes da vida e da história. No cristianismo, as palavras de Jesus sobre os pássaros e os lírios do campo, e a ordem dele para não estarmos ansiosos pelo amanhã, fortaleceu a fé na Providência. E assim a Providência tornou-se convicção comum entre os cristãos. E lhes deu coragem diante do perigo, consolação na tristeza, esperança entre ruínas. Mas, uma vez mais, a fé perdeu profundidade. Tornou-se tema de estudo, privatizado, distante do caráter vitorioso que apresenta nas palavras de Paulo.

  

Quando os soldados alemães entraram na Primeira Guerra Mundial, conta Tillich, que foi capelão do exército alemão na época, a maioria compartilhava a crença popular no “bom Deus”, que dirige tudo para seu melhor resultado. Mas tudo caminhou para o pior, tanto para as nações como para o mundo.

 

Nas trincheiras, continua o teólogo, a crença popular na Providência pessoal foi quebrada gradualmente e no quinto ano de guerra nada restou. Durante e depois da Segunda Guerra Mundial foi possível ver algo parecido nos Estados Unidos. A crença em uma Providência histórica também foi demolida com as tensões políticas e medos. A crença, compartilhada por grandes grupos nos Estados Unidos de que na história caminharia para o melhor, desapareceu. Hoje nada restou dessa crença. 

 

A crença na providência histórica pessoal e histórica geral não tem profundidade ou fundamento real. Ela é produto de nossas ilusões. Não é fruto da fé. A fé na Providência não é a parte mais bem compreendida da fé cristã. Um velho pastor do interior, conta Tillich, uma vez me disse: as pessoas acreditam firmemente na Providência divina, mas os conteúdos mais profundos da fé cristã, como pecado e salvação, Cristo e a Igreja são estranhos a elas. Se isto é assim, então o significado da Providência também deve ser estranho a elas e a fé delas facilmente se quebra diante das tempestades de nosso século. Fé na Providência é fé. É a coragem para dizer sim à própria vida e a vida, apesar das forças do destino, da insegurança da existência diária, das catástrofes, e da perda de significado.  

 

É de tal coragem que Paulo fala no texto de Romanos. Mas primeiro ele fala dos poderes que tentam fazer esta coragem impossível. O que fazem estes poderes? Eles nos separam do amor de Deus. Esta oração é surpreendente. Mostram os perigos da dor e da morte que ameaçam nossa vida diariamente. Paulo conhece cada um deles. Ele os enumera, como “tribulação ou angústia ou perseguição ou escassez ou nudez ou perigo ou espada”. Mas ele se sente vitorioso sobre cada um deles. 

 

Os poderes do mundo

 

E então enumera novamente os poderes que ameaçam nos separar do amor de Deus. Há algo misterioso sobre estes poderes. Eles não têm nomes maléficos como os que Paulo previamente listou. A maioria deles tem nomes gloriosos: "anjos", "principados", "vida" e "altura". Por que então estão entre os mais ameaçadores? Porque sempre estão presentes em todos os momentos de nossas vidas e porque eles têm duas caras.

 

São os poderes que regem o mundo e regem para o bem e para o mal. Eles nos seduzem pelo bem, nos envolvem e nos destroem pelo mal que contêm. Esta é a razão porque são mais perigosos do aquilo que é obviamente mau. Esta é a razão porque o triunfo sobre eles é o último teste que prova em nossas vidas que Jesus é o Cristo, aquele que traz um novo estado de coisas. 

 

Consideremos sua natureza, recomenda Tillich, não como se fossem estranhos a nós, mas como as forças motrizes de nosso próprio ser. "Anjos e principados" são os nomes de alguns deles. Essas duas palavras apontam à mesma realidade, uma realidade que tem pouco em comum com aqueles querubins agradáveis, presentes nos quadros populares de anjos. Apontam às realidades que são simultaneamente gloriosas e terríveis; realidades plenas de beleza e de destrutibilidade. O que são estas realidades?

 

Nós não temos que olhar para longe para descobrir. Elas estão em cada um de nós, em nossas próprias famílias, em nossa própria nação, em nosso mundo. Por quais sinais as reconhecemos? Por uma mistura de fascinação irresistível e ansiedade inconquistável. 

 

O nome de um destes poderes, com sua face angelical, é amor. A poesia de todos os idiomas abunda no elogio deste principado que rege a vida de todos os homens. Sua face angelical aparece em quadros e estátuas, sua beleza angelical soa por música, sua fascinação está expressa nas figuras de deuses e deusas pagãs. E, ao mesmo tempo, todas as obras de arte e todos os mitos estão cheios da presença trágica e mortal do anjo do amor. Fascinação e medo, alegria e culpa, criação e destruição estão unidas em nossas vidas. E a alegria e a angústia do amor tendem a separar-nos do amor de Deus. Nos atrai para longe de Deus, nos lança na escuridão do desespero dentro do qual não podemos ver Deus.  

 

Outro principado, angelical e demoníaco, é o poder. Tem a beleza severa e viril que vemos nos quadros que representam os arcanjos. O poder é um grande anjo, bom e mau, da mesma maneira que o amor é um principado poderoso. O poder é construtor e destruidor de cidades e nações. É força criativa do empreendimento humano, da comunidade humana, da realização humana. É responsável pela conquista da natureza, a organização de Estados, a execução da justiça. Seu aliado poderoso é outra figura angelical, boa e má, o conhecimento. Somos dependentes dela. 

 

A história mundial é o domínio no qual o reinado do anjo de poder é manifesto em toda sua glória e tragédia. Nossos contemporâneos sabem disso, afirma Tillich. Todas as manhãs nos trazem notícias sobre esta realidade de nosso mundo. E todos somos tomados pela fascinação angelical de seu poder criador e pelo terror demoníaco de sua destrutibilidade em nossas vidas pessoais como também nas vidas de nossas nações. E quando o poder se associa com o conhecimento, seu fascínio e terror aumentam infinitamente. Ambos nos separam do amor de Deus, nos dirige à adoração do poder e do conhecimento, nos leva ao cinismo e desespero.  

 

Nem altura, nem profundidade

 

Paulo menciona dois outros pares de realidades que podem nos separar do amor de Deus: "altura e profundidade", e "coisas presentes e coisas porvir". Todo mundo entende o significado delas. Mas é difícil mergulhar na riqueza deste significado. Altura e profundidade são os pontos extremos nos movimentos das estrelas. São os pontos de maior e menor influência delas para o bem e para o mal, segundo os antigos.

 

Altura e profundidade são os momentos nos quais um processo de vida alcança sua realização, em vitalidade, sucesso e poder, mas também alcança sua realização mais fraca, talvez seu fim. Altura e profundidade são os momentos de vitória e derrota, de cumprimento e vacuidade, de elevação e depressão, de fascinação e ansiedade. Ambos os momentos, altura e profundidade tentam nos separar do amor de Deus, por sua luz, por sua escuridão, ambos criação do Deus invisível. 

 

"Coisas presentes" é ponto de partida para entender o impacto que o presente produz em nós. Aponta para o poder sedutor do presente, para nossa recusa de olhar para trás ou para frente quando somos agarrados pelo abraço do prazer agudo ou pela dor aguda do momento presente. E "coisas porvir" traduz a tensão ante a expectativa do novo, a alegria do inesperado, a coragem do risco. Mas também significa o que é incalculável, contingente, significa a ansiedade sobre o estranho e desconhecido.  

 

Quase no final de seu sermão, Tillich alerta: devemos terminar esta listagem com o par mais ameaçador, com o qual Paulo começa seu texto: "morte e vida". Estes dois estão associados. A morte está presente em toda vida. Ela trabalha em nosso corpo e alma a partir do momento da concepção até o momento de nossa dissolução. Está presente no começo de nossas vidas assim como no fim delas. No momento de nosso nascimento começamos a morrer e continuamos assim diariamente, ao longo de nossas vidas. Crescimento é morte, porque debilita as condições da vida até mesmo quando a vida se faz crescente. Mas não crescer é morte imediata. 

 

Todos estamos entre a fascinação da vida e a angústia da morte e, às vezes, entre a angústia da vida e a fascinação de morte. Morte e vida são os poderes maiores, que procuram nos separar do amor de Deus.  

 

Consideramos os poderes que regem o mundo e sobre os quais a fé na Providência deve triunfar. O que é esta fé? Não é certamente a crença de que tudo acabará bem. Não é a crença de que tudo segue um plano preconcebido, cujo planificador chamamos Deus, Natureza ou Destino. A vida não é uma máquina bem construída por seu construtor, que funciona de acordo com as forças e leis de seu próprio mecanismo.

 

A vida, pessoal e histórica, é um processo criativo e destrutivo no qual liberdade e destino, possibilidade e necessidade, responsabilidade e tragédia estão misturadas entre si, sempre, e em todos os momentos. Estas tensões, ambigüidades e conflitos fazem com que a vida seja o que é. Elas criam a fascinação e o horror da vida. Elas nos dirigem à pergunta sobre uma coragem que pode aceitar a vida sem ser vencida por ela. E esta é a pergunta sobre a Providência.  

 

Maior que a vida

 

Abandonemos a palavra Providência com todas suas falsas conotações e vejamos o que realmente significa. Significa a coragem para aceitar a vida através do poder daquilo que é maior que vida. Paulo chama isto de “o amor de Deus”. Este amor, certamente, está acima da figura angelical-demoníaca do amor de que falamos. Este amor é o poder último da união, a vitória última sobre a separação. 

 

Estar unido a este poder nos permite dominar a vida e estar perfeitamente inseridos nela. Este amor nos permite reinar sobre esses principados de duas faces, sua fascinação e sua angústia, sua glória e seu terror. Nos dá a certeza que nenhum momento nos impede de alcançar o cumprimento para o qual toda vida se dirige. É a coragem para aceitar a vida no poder em que está enraizada e onde é sobrepujada.  

 

Se você pergunta como isto é possível, voltamos ao poema de Paulo e achamos duas respostas. Ele conclui a listagem dos poderes governantes com as palavras: "nem qualquer outra coisa em toda a criação". Os poderes deste mundo são criaturas como nós somos. Eles são não mais que nós, eles estão limitados. Nós estamos unidos ao que não é criatura e que nenhuma criatura pode destruir. 

 

É por isso que sabemos que os poderes deste mundo não podem destruir o sentido de nossas vidas, mesmo que possam destruir nossas vidas. E isto nos dá a certeza que nenhuma criatura pode destruir o significado da vida universal, na natureza e também história, da qual somos parte, mesmo que o universo inteiro seja destruído amanhã. Nenhuma criatura pode nos separar desta coragem última. Nenhuma? Talvez uma: nós próprios. A coragem para manter a unidade com Deus, contra os poderes e principados, inclusive vida e morte, pode estar firme, mas é quebrada quando a culpa nos separa do amor de Deus. 

 

Então não podemos enfrentar a morte, porque a picada da morte é o pecado. Não podemos enfrentar a vida porque a culpa conduz a vida a uma autodestruição trágica. Não podemos enfrentar o amor porque o amor é corrompido pela cupidez. Não podemos enfrentar o poder porque é corrompido pela crueldade. 

 

Fugimos para o passado porque estamos poluídos pela culpa, fugimos para o futuro porque ele carrega os frutos das culpas passadas, e não podemos descansar no presente porque ele nos condena e nos expulsa. Não podemos estar de pé porque diante da altura temos medo de cair. E não podemos estar de pé porque diante da profundidade nos sentimos responsáveis por nossa queda. Os soberanos deste mundo não obtêm o que uma consciência culpada obtém: o debilitamento de nossa coragem para aceitar vida. 

 

Então, conclui Tillich, a mensagem final de Paul é: nem mesmo sua consciência culpada pode separá-lo do amor de Deus. Amor de Deus significa que Deus aceita aquele que sabe que é inaceitável. Este é o sentido das últimas palavras de Paulo: “em Cristo Jesus nosso Senhor". 

 

Cristo é o vencedor sobre os soberanos do mundo porque Ele é vitorioso em nossos corações. Sua imagem nos dá a certeza de que nossos corações, o julgamento que fazemos de nós próprios e nosso desespero não podem nos separar do amor de Deus, a unidade última, a fonte e o fundamento da coragem que nos permite aceitar a vida.  

 

 



 

 

 

 

 

Capítulo oito

A CONSTRUÇÃO DO MUNDO

 

 

“GENTILEZA GERA GENTILEZA / AMORRR BELEZA PERFEICÃO E / BONDADE E RIQUESA A NATUREZA E / DEUS NOSSO PAI CRIADORR NÃO VENDE / TERRAS NOS DA ALIMENTACÃO DE GRACA / O QUE VENDE ELEVA TODOS PARA O ABISMO / CAPITALISMO ASACINO I POR JESUS AMORRR”.

Profeta Gentileza

 

 

Gênesis Um nos apresenta o primeito ato revelador de Deus -- a construção do mundo. Lembra o roteiro de um filme. Só que nenhum humano viu, nenhum profeta presenciou. E chegou a Moisés através dos relatos dos patricarcas, dos antepassados. Nesse roteiro temos indicações, mais do que reproduções detalhadas, já que estamos falando de eventos extraordinários e gigantescos.

 

Através do roteiro da construção do mundo, Deus nos deu uma visão panorâmica, mas resumida e, às vezes, figurada, a fim de que seus filhos e filhas no correr dos milênios pudessem compreender as lições aí apresentadas. Assim, ao dizer "Deus criou os céus e a terra" o roteiro oferece o resumo de algo sem dúvida complexo. Mas, por que um resumo com ênfases ao invés de um registro detalhado? Porque há um sentido prático no texto: revelar verdades que devem ser ensinadas, não importa quem são os ouvintes, povo simples ou estudantes de teologia.

 

Aos olhos de Hitler e de seus correligionários, conforme descreve Raphaël Draï, existia um perigoso pensamento judaico, caracterizado por sua essência maléfica, inspiradora da física de Einstein, da literatura de Kafka, da música de Schoenberg e da psicanálise de Freud. [La Pensée Juive et L’Interrogation Divine, Exégèse et Épistémologie, Paris, Presses Universitaires de France, 1966, p.1].

 

Deixando de lado os delírios hitlerianos, podemos dizer que há um criativo pensamento judaico, que através dos séculos soube combinar Torah e conhecimento, ética e epistemologia. Nosso propósito é, numa primeira aproximação, mostrar que os estudos judaicos dos conteúdos de Gênesis Um produziram uma epistemologia que interliga o conceito espaço/tempo em Gênesis Um com a teoria da relatividade. Essa dialética tem especial importância para a teologia da construção do mundo, já que a partir dela podemos entender melhor a literalidade poética de Gênesis Um.

 

No começar Deus criando o fogoágua e a terra./ E a terra era lodo torvo e a treva sobre o rosto do abismo/ E o sopro-Deus revoa sobre o rosto da água”. [Augusto de Campos, Bere’shith, A Cena da Origem, São Paulo, Perspectiva, 1988, p. 45].

 

O desafio maior para quem analisa significações é o próprio exercício da leitura. O desejo de conservar a linguagem pode levar a uma solução oposta àquela se pretende. Considerar o simbólico como abstrato e irrelevante é, em última instância, separar signo e objeto. Assim quando um texto passa a ser apenas e somente um conjunto fechado costumamos dizer que compreendemos o referido texto. Mas ao fazer isso, na verdade, eliminamos a possibilidade de restaurar sua intenção original e de ultrapassar a literalidade para captar o sentido primeiro de seu autor. Logicamente, esse midrash tem como ponto de partida, e exige como garantia, a compreensão do primeiro discurso.

 

Em novembro de 1942, o poeta e crítico Ezra Pound afirmava que “o mistério profundo da vida é descobrir porque os outros não compreendem aquilo que se escreve e diz. A coisa parece simples e clara ao escritor, mas outros o tomam em sentido diferente. E se gastam anos para saber porque e como” [Ezra Pound, Lettere 1907-1958, Milão, Feltrinelli Editore, 1980, p. 7]. 

 

Logicamente, como autor e crítico, Pound falava de hermenêutica em seu sentido laico. Ou seja, quando um texto pode ser percorrido em sua literalidade e a partir daí é possível arrancar do discurso poético os elementos lógicos que lhe deram constituição. Mas mesmo assim, como alerta Pound, isso pode transformar-se em tarefa de anos.

 

Interpretar um texto revelado, quando há um processo constante de interação dele com suas interpretações, arrancar dele significações é um desafio que não se resume à vida de uma pessoa ou a um curto período de anos. É nosso pressuposto que Gênesis Um enquanto palavra/ordem de Deus apresenta mais receptáculos do que é perceptível na leitura de toda uma geração. Aqui há uma dialeticidade que permanece no equilíbrio de seus contrários, sem síntese definitiva: a revelação, essa interação do texto com suas interpretações, dá-se através da linguagem humana. Nossa necessidade histórica de interpretar nasce daí, dessa inadequação entre significante e significado. 

 

A tarefa do intérprete consiste, pois, na explicitação da mensagem divina, através do raciocínio bem dirigido. As conclusões a que se chega nada acrescentam ao significado do texto, pois já estavam contidas ali desde sempre; embora para ele sejam novas, uma vez que diferem do que está escrito, em si mesmas não o são, porque estavam gravadas no subsolo do texto que se interpretou. Contudo, sendo a Bíblia obra de um ser infinito, as interpretações jamais se esgotam. Cada novo corte no texto aprofunda o seu sentido, mas é sempre possível avançar mais. Elas se sucedem através do tempo, porém, por mais surpreendentes que pareçam, têm a garantia de se situarem no mesmo campo inicial”. [Renato Mezan, Freud: A Trama dos Conceitos, São Paulo, Perspectiva, 1982, p. 342]. 

 

Por isso, parto do pressuposto de que a Judische kopf nos últimos mil e novecentos anos apresentou uma hermenêutica bastante criativa de Gênesis Um. Esse midrash não ficou restrito aos círculos rabínicos, mas fez parte da tradição e da cultura do judaísmo através dos séculos. Escritores, artistas e cientistas judeus utilizaram esses conhecimentos em seus campos de trabalho. Einstein conhecia essas fontes, em parte desconhecidas para o mundo cristão, mas ricas e cheias de significados para todo intelectual judeu. Por isso, esta releitura da teoria do caos tem como roteiro a cosmogonia judaica e as idéias centrais da teoria da relatividade. 

 

Albert Einstein era judeu. Foi um sionista militante durante toda sua vida, a ponto de em 1952 lhe ser oferecida a presidência de Israel. Não aceitou. Estava casado com a física. “As equações são mais importantes para mim porque a política é feita para o presente, ao passo que uma equação é algo para toda a eternidade”. [Stephen W. Hawking, Uma Breve História do Tempo, Rio de Janeiro, Rocco, 1988, pp. 240-241].

 

I. O TZIMTZUM

 

O judaísmo mostrou uma coerência em relação à hermenêutica de Gênesis Um. O retrair-se de Deus para permitir que surgisse o vazio, o nada, e nele o universo, é desenvolvido na teoria da contração, em hebraico tzimtzum. Essa teoria formalizada pelo Rebe Luria (1534-1572) é uma das concepções mais surpreendentes do pensamento judaico. Isaac Luria, um dos maiores expoentes da tradição mística do judaísmo, nasceu no Cairo, mas desenvolveu seu ministério em Safed, na Palestina.

 

A expressão tzimtzum significa originariamente concentração, mas acabou sendo entendida como retirada. Segundo Scholem, Luria partiu de textos do Midrash, onde encontramos que Deus concentrou sua Shekiná, sua presença no Santo dos Santos, Assim todo seu poder retraiu-se num único ponto. Foi daí que surgiu a expressão tzimtzum. [Exod Raba ao Êx 25.10, Lev. Raba ao Lv 23.24; Pessikta de Rab Kahana, Ed. Buber 20a; Midrasch Schir Ha-Schidim, Ed. Griinhut, 1899, f. 15b, apud Gershom Scholem, A Mística Judaica, São Paulo, Perspectiva, 1972, p. 263].

 

Infelizmente, as duas idéias, concentração e retirada, que deveriam ser entendidas como complementares, já que Deus se retira e então concentra a sua luz sobre este ponto, dividiu os estudiosos em dois grandes grupos: os que defendem o tzimtzum como base para a doutrina da creatio ex nihilo e também para aqueles que defendem a doutrina da emanação (em hebraico atsilu) ou processio Dei ad extra.

 

O próprio Luria tornou-se o principal expositor do processio Dei ad extra, que tem por base não um processo no tempo, mas uma estrutura da realidade, enquanto emanação, criação, formação e ação. Assim, para Luria e seus discípulos, níveis inferiores de realidade emanaram de níveis superiores que, por sua vez, tiveram origem em D´us. Dentro dessa concepção há um midrash, a teoria do vaso quebrado, que trabalha com a hipótese de que o mundo foi feito de remanescentes de mundos anteriores, que Deus havia destruído. Uma conhecida lenda rabínica explica esse processo como o desprender de uma chama de carvão da roupa de D´us.

 

No princípio (Gênesis 1.1), a vontade do Rei começou a gravar signos na esfera superior. Do recesso mais oculto, uma negra chama brotou do mistério do ein sof, o Infinito, como um novelinho de massa informe, como que inserido no aro dessa esfera, nem branca nem preta, nem vermelha nem verde, de nenhuma cor. Somente depois de distender-se como um fio, produziu ela cores para luzir em si. Do âmago da chama, jorrou uma fonte da qual brotaram cores e se espalharam sobre tudo embaixo, oculto na ocultação mais misteriosa do ein sof. Mal rompeu ela, inteiramente irreconhecível, seu círculo de éter, sob o impacto da irrupção, um ponto oculto, superno fulgiu da irrupção final. Aquém desse ponto está excluído todo conhecimento e por isso ele é chamado reschit, princípio, a primeira palavra do Todo”. [O Princípio, Sefer ha-Zohar (Livro do Esplendor), apud J. Guinsburg, Do Estudo e da Oração, São Paulo, Perspectiva, 1968, p. 605].

 

Em sua riqueza teológica, podemos classificar a doutrina da emanação como um evolucionismo teísta, que define o mundo material enquanto desdobramento de Deus em diferentes níveis. E porque o mundo existe dentro de D´us, o processio Dei ad extra leva à pergunta pelo que existe de divino nos fenômenos do cotidiano.

 

Se entendermos, porém, a teoria do tzimtzum, como a relação dialética de dois movimentos, o da retirada e o da concentração ficará mais fácil aproveitar os estudos de Luria. O tzimtzum explica o recuo de Deus para permitir que surgisse o vazio, o nada, e nele o universo. Como Deus é infinito, sem o tzimtzum não haveria o nada no qual pudesse produzir a estrutura espaço/tempo de uma criação separada. 

 

É interessante notar, que se por um lado a dialética da autocontração e concentração divinas deu origem ao mundo material, o choque entre o movimento restritivo e o transbordante amor de Deus criou também a possibilidade do mal. Nesse sentido, a cosmogonia judaica vê o surgimento do universo em primeiro lugar como consciente autolimitação e na seqüência como revelação e julgamento. E como julgamento é a imposição de limites, julgamento faz parte da revelação, que se expressa pela primeira vez como construção do mundo de D´us. Em outras palavras: se o mal é uma probabilidade que surge da dialética amor/ retração, o julgamento passa a ser inerente a tudo na construção do mundo, já que todas as coisas estão determinadas por seus limites.

 

A tradição do debate sobre a creatio ex nihilo é antiga no pensamento judaico. Na verdade, podemos dizer que começa a ser realizada no segundo século. Por isso, não é de estranhar que encontremos reflexões profundas sobre Gênesis Um nos séculos posteriores. Assim, em um dos textos mais representativos do pensamento caraíta, movimento medieval de retorno à letra da Escritura, considerado por muitos um protestantismo judeu de coloração pietista, a “Explanação dos Mandamentos”, de Aha Nissi ben Noah de Bassorá, que ensinou em Jerusalém na segunda metade do século IX, lemos:

 

No primeiro dia, Deus criou sete coisas: o céu, a terra, as trevas, a luz, a água, o abismo e o vento (Gn 1.1-12). Primeiro criou tohu e bohu (a solidão e o caos), dos quais surgiu a terra (Gn 1.1-2). Criou as trevas: ‘Ele formou a luz e criou as trevas’ (Isaías 45.6). Criou o vento, conforme a palavra: ‘e criou o vento’. Criou a água, pois com a criação da terra havia água. Criou o abismo, para que a água tivesse uma profundidade e uma submersão. Criou a luz (Gn 1.3). Para a criação do mundo foram necessárias quatro coisas: a ordem, o trabalho, a determinação e a proclamação” [Nissi ben Noach, Explanação dos Mandamentosapud J. Guinsburg, op. cit., p.309]. 

 

Nesse texto aparentemente tão simples, encontramos uma idéia fundamental: tohu (sem forma) e bohu (vazio) fazem parte da construção do mundo e para que haja criação é necessário ordem.

 

Outro pensador judeu, que fez oposição ao pensamento caraíta, foi Saadia Gaon (892-942). Influenciado pela efervescente teologia do Islã e pelo pensamento helenístico clássico, Gaon combateu a presença heterodoxa, de tendência maniqueísta, os remanescentes de Filo e a crítica gnóstica. Seu texto sobre a doutrina da creatio ex nihilo é de uma profunda beleza, apesar de apresentar imperfeições normais ao conhecimento da época, como, por exemplo, sua visão geocêntrica. Mas, de forma brilhante enfrenta opositores bem parecidos aos que encontramos hoje em dia.

 

 Aqueles que acreditam na eternidade do mundo procuram provar a existência de algo que não tem começo nem fim. Por certo, nunca depararam com uma coisa que percebessem, pelos sentidos, sem ser começo nem fim, mas procuram estabelecer sua teoria por meio de postulados da razão. Semelhantemente, os dualistas empenham-se em provar a coexistência de dois princípios separados e opostos, cuja mistura fez que o mundo viesse a ser. Sem dúvida, nunca testemunharam dois princípios separados e opostos, nem o pretenso processo da mistura, mas tentaram suscitar argumentos derivados da razão pura em favor de sua teoria. De maneira similar aqueles que acreditam numa matéria eterna consideram-na como um hilo, isto é, algo em que não há originalmente qualidade de quente ou frio, de úmido ou seco, mas que se transforma por uma determinada força e assim produz aquelas quatro qualidades. Indubitavelmente, seus sentidos nunca perceberam uma coisa carente de todas essas quatro quantidades, nem jamais perceberam um processo de transformação e a geração das quatro qualidades como é sugerido. (...) Assim sendo, é claro que todos concordam em admitir alguma opinião concernente à origem do mundo que não tem base na percepção sensorial”. [Saadia Gaon, Criação Ex-Nihilo apud J. Guinsburg, idem, op. cit., p. 316].

 

Para sua defesa da criação ex-nihilo, Gaon trabalhou com quatro argumentos, três dos quais muito bem expostos: de finitude do universo, estrutura e acidentalidade. 

 

Continuou a afirmar que nosso Senhor, louvado e enaltecido seja, informou-nos que todas as coisas foram criadas no tempo, e que Ele as criou do nada (...). Ele nos comprovou essa verdade por meio de sinais e milagres, e nós a aceitamos. Examino ainda mais nesta matéria com o intuito de saber se ela podia ser comprovada por especulação como foi comprovada por profecia. Achei que era este o caso por certo número de razões, da quais, devido à brevidade, selecionei as quatro seguintes: 1. A primeira prova baseia-se no caráter finito do universo (...). 2. A segunda prova é derivada da união de partes e da composição de segmentos. Vi que os corpos consistem de partes combinadas e de segmentos ajustados entre si (...). 3. A terceira prova baseia-se na natureza dos acidentes. Verifiquei que nenhum dos corpos são desprovidos de acidentes que os afetem direta ou indiretamente. Animais, por exemplo, são gerados, crescem até que alcançam sua maturidade, então, definham e se decompõem. Então eu disse a mim mesmo: Será que a terra como um todo é livre destes acidentes? (...) 4. A quarta prova baseia-se na natureza do tempo. Sei que o tempo é triplo: passado, presente, futuro. Embora o presente seja menor do que qualquer instante, tomo o instante como se toma um ponto e digo: Se um homem tentasse em seu pensamento ascender deste ponto no tempo ao ponto mais elevado, ser-lhe-ia impossível fazê-lo, porquanto o tempo é agora admitido como infinito e é impossível ao pensamento penetrar no ponto mais remoto daquilo que é infinito.” [Saadia Gaon, Quatro Argumentos para a Criação, idem, op. cit., pp. 317-320].

 

De todos os pensadores judeus medievais, talvez o mais conhecido fora dos meios judaicos, seja o talmudista francês Shlomo bar Itzhak, o rabi Rashi de Troyes (1040-1105). Exegeta, Rashi apresentou uma tradução para o versículo um de Gênesis que leva em conta estrutura e acidentalidade: “No princípio, ao criar Deus os céus e a terra, a terra era vã...” E segundo seu midrash, o texto não está preocupado em mostrar a ordem do surgimento do universo, mas em afirmar o ato criador de D´us. Rashi mostrou-se preocupado com o sentido literal, mas definiu claramente sua hermenêutica: 

 

Todo texto se divide em muitos significados, mas, afinal nenhum texto está destituído de seu sentido literal” [Herman Hailperin, Rashi and the Christian Scholars, Pittsburgh, University of Pittsburgh Press, 1963].

 

Tanto para os rabinos expositores da criação ex nihilo como para os defensores do processio Dei ad extra a intenção primeira de Gênesis-Um é apresentar Deus como criador, que utiliza tohu e bohu (sem forma e vazio, o caos) como matéria-prima para a formação do universo. E é a partir dessa relação entre surgimento do universo e revelação, que os estudiosos judeus entenderão a redenção, já que o estágio final do mundo revelado significa uma volta ao começo, uma nova criação.

 

A Redenção deveria ser conseguida não por um movimento tempestuoso na tentativa de apressar crises e catástrofes históricas, mas antes pela remarcação do caminho que conduz aos primórdios da Criação e da Revelação, ao ponto em que o processo do mundo (a história do universo e de D´us) principiou-se a desenvolver-se dentro de um sistema de leis. Aquele que conhecia a senda pela qual viera podia ter esperanças eventualmente de poder retornar sobre seus passos”. [Gershom Scholem, A Mística Judaica, São Paulo, Perspectiva, 1972, p. 248].

 

Assim, mais do que qualquer intencionalidade em apresentar a cronologia do surgimento do universo, Gênesis Um apresenta uma ordem enquanto dialética da estrutura e acidentalidade. Esse processo é interpretado por Scholem como “o primeiro ato, o ato do tzimtzum, no qual Deus determina e (...) limita a Si mesmo, é um ato de julgamento que revela as raízes dessa qualidade em tudo o que existe. Essas raízes do julgamento divino subsistem em mistura caótica com o resíduo da luz divina que remanesceu, após a retirada ou retraimento original, dentro do espaço primário da criação de Deus. Então um segundo raio de luz emanado da essência do Ein-Sof traz ordem ao caos e põe o processo cósmico em movimento, ao separar os elementos ocultos e moldá-los em nova forma” [Iossef ibn Tabul in Gershom Scholem, Kiriat Sefer, vol. XIX, pp. 197-199].

 

E dois escritos antigos nos mostram que a hipótese da creatio ex nihilo tem base num texto do profeta Isaías, “assim diz Adonai, teu redentor, aquele que te modelou desde o ventre materno. Eu, Adonai, é que fiz tudo, e sozinho estendi os céus e firmei a terra. Com efeito, quem estava comigo?” (Is 44.24), como num apócrifo intertestamentário: “Eu te suplico, meu filho, contempla o céu e a terra e observa tudo o que neles existe. Reconhece que não foi de coisas existentes que Deus os fez, e que também o gênero humano surgiu da mesma forma”. 2Macabeus 7.28. 

 

A primeira vista, a cosmogonia judaica define a centralidade de Gênesis-Um no ato criativo de Deus apenas enquanto espacialidade. Seria uma busca do lugar, da centralidade espacial. O que leva alguns especialistas a afirmarem que não há nenhum elemento espaço-temporal em Gênesis. Mas, isso não é verdade. Em 1740, Anton Lazzaro Moro, cristão novo, geólogo e exegeta italiano, desenvolveu uma sofisticada defesa da hipótese espaço-temporal em Gênesis Um. Dizia ele que tudo que está “envolto e fechado” precisa de um tempo para libertar-se e tornar-se evidente, e que D´us, ao criar a natureza, colocou-se como administrador das leis criadas. Daí concluiu: 

 

Quando a Escritura afirma que ‘Spiritus Dei ferebatur super aquas (...)’ indica uma função que traz consigo sucessão de tempo” [Anton Lazzaro Moro, De Crostacei e degli altri Corpi Marini che si Truovano su Monti, 1740, apud Paolo Rossi, A Ciência e a Filosofia dos Modernos, São Paulo, Editora Unesp, 1992, p. 345].

 

Desenvolvendo sua tese espaço-temporal, explicou que toda a criação sofreu duas produções diferentes, que precisam ser cuidadosamente separadas: “a primeira é a do nada pela mão imediata do criador; a outra provém do seio das segundas causas acionadas pelo administrador da natureza. A primeira produção é instantânea e é ato divino proporcionado pela onipotência e eternidade de D´us; a segunda [produção] implica que o ato divino seja adaptado às exigências da natureza que Deus estabeleceu em cada coisa” [idem, op. cit., p. 345]. A partir daí sua cosmogonia é surpreendente. Explica que foi Deus quem moveu circularmente “a celeste matéria de todo o planetário vórtice”, obrigando essa matéria que formaria o Sol a colocar-se no lugar que lhe era destinado. Constatando que seja qual for a velocidade que se queira atribuir ao movimento diário do Sol e de seu vórtice, “isso não aconteceu num só dia e em só vinte e quatro horas”. 

 

A formação do Sol, assim como a produção dos planetas, “comprova que aqueles seis dias não foram de medida igual aos dias modernos, mas que foram espaços de tempo de duração muito mais longa, ou seja, de uma duração proporcional à atividade das causas segundas e à exigência dos efeitos produzidos; espaços esses que foram chamados dias, conforme o costume freqüentemente usado nas Escrituras de exprimir com o nome de dias certos espaços de tempo longos e indeterminados”, afirmou Moro [idem, op. cit., p. 347]. É interessante ver como a física do século vinte, principalmente aquela que sofreu influências dessa mesma cosmogonia, traduziu para uma nova linguagem antigos conceitos.

 

É verdade, que desde Aristóteles a ciência avaliou equivocadamente o conceito tempo, considerando-o absoluto, sem relação imediata e causal com o espaço. Pensou um tempo sem ambigüidades, achando que se fosse medido corretamente, entre dois espaços ou eventos, o intervalo de mensuração seria sempre igual. Durante séculos, inclusive para Newton, o tempo foi independente do espaço. Mas, em 1905, Einstein tornou pública uma nova teoria de espaço, tempo e movimento, que ele chamou de relatividade especial. Comprovada em experiências de laboratório, essa teoria, aceita pela maioria dos físicos, levanta algumas hipóteses, como a equivalência da massa e da energia, a elasticidade do espaço e do tempo e a criação e destruição da matéria. Dez anos depois, na seqüência da teoria anterior, Einstein publicou a sua teoria da relatividade geral, com novas afirmações: a curvatura do espaço e do tempo, a possibilidade de que o universo seja finito, mas ilimitado e a possibilidade de o espaço e o tempo se esmagarem, deixando de existir.

 

 Estas considerações levou-nos a conceber teoricamente o universo real como um espaço curvo, de curvatura variável no espaço e no tempo, de acordo com a densidade de distribuição da matéria, susceptível porém, quando considerada em larga escala, de ser tomado como um espaço esférico. Esta concepção tem, pelo menos, a vantagem de ser logicamente irrepreensível, e de ser aquela que melhor se cinge ao ponto da teoria da relatividade geral”. [Albert Einstein, Considerações Cosmológicas sobre a Teoria da Relatividadein O Princípio da Relatividade,  H. A Lorentz, A. Einstein, H. Minkowski, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1958, pp. 239-240].

 

E ao criticar a teoria do tempo absoluto, Einstein mostrou que à medida que o deslocamento de um objeto se aproxima da velocidade da luz, sua massa aumenta mais rapidamente, de forma que gasta mais energia para aumentar sua velocidade. Por isso, muito possivelmente nunca possa atingir a velocidade da luz, pois deixaria de ter massa intrínseca. O importante dessa teoria é ter modificado a compreensão de tempo e de espaço. Antes, considerava-se que a velocidade da luz fosse a distância que ela percorre, dividida pelo tempo que leva para fazer isso. Agora, compreendemos que a velocidade pode ser a mesma, mas não a distância percorrida. A partir da teoria da relatividade, o conceito de simultaneidade, ou seja, da existência de um mesmo momento em dois lugares diferentes, deixou de ter qualquer significado em termos de universo.

 

II. O TEMPO NÃO-DETERMINADO 

 

Em linguagem da física da relatividade o tempo gasto é a velocidade da luz multiplicada pela distância que a luz percorreu. Temos então várias medidas de tempo, ou seja, medições diferentes entre dois eventos ou espaços. Gênesis nos apresenta este conceito de tempo com yom que aparece como tempo não determinado/quando em Gn 3.5; tempo não determinado/período em Gn 1.14, 16, 18; tempo não determinado/época em Gn 2.4. Deixamos de ter, então, dois conceitos separados e absolutos: o tempo e o espaço, para termos um, o espaço-tempo. Ora, um evento é algo que acontece num determinado ponto do espaço e logicamente num tempo também determinado. Só que não há separação entre essas duas unidades. Uma das premissas da teoria da relatividade, conforme expõe Stephen Hawking, é que o tempo corre mais lentamente perto de um corpo volumoso [Uma breve História do Tempo, Rio de Janeiro, Rocco, 1988, pp. 35-60]. Assim, na Terra, para tomarmos um exemplo próximo, o tempo é mais lento que em outros planetas ou luas de menor massa. Isto porque existe uma relação entre energia da luz e sua freqüência. Quanto maior a energia, maior a sua freqüência.

 

Dessa maneira, à medida que a luz percorre verticalmente o campo gravitacional da Terra perde energia e sua freqüência diminui. Em outras palavras, espaço e tempo são quantidades dinâmicas. Quando um corpo se move no universo afeta a curva do espaço-tempo e, por sua vez, a curva do espaço-tempo afeta a forma como os corpos se movem e as forças atuam. Só que, e esse conceito é importante para a relatividade geral, não há como falar de espaço-tempo fora dos limites do universo. Essa premissa é interessante, pois descarta a idéia de um universo imutável, que sempre existiu, para trabalhar com a possibilidade de um universo que teve início e é plástico.

 

Assim, para a teoria da relatividade o universo teve começo como singularidade, o possível Big Bang, e deverá ter um fim também singular, o possível Big Crunch. E como o espaço-tempo é finito, mas sem limites, o Big Crunch poderia levar a uma concentração de energia tal que muito possivelmente possibilitaria a formação de um novo universo. 

 

De forma semelhante, se o universo explodisse novamente, deveria haver outro estado de densidade infinita no futuro, o Big Crunch, que seria o fim do tempo. Mesmo que o universo como um todo não entrasse novamente em colapso, haveria singularidades em algumas regiões determinadas, que explodiriam para formar buracos negros. Essas singularidades seriam o fim do tempo para quem ali caísse. Na grande explosão e demais singularidades todas as leis são inoperantes. Então, Deus ainda teria tido completa liberdade para escolher o que aconteceu e como o universo começou”. [Stephen Hawking, idem, op. cit., p. 236].

 

Ora, como a expansão do universo implica em perda de temperatura, que é uma medida de energia, quando o universo dobra de tamanho, sua temperatura cai pela metade. Assim, quando Deus criou o universo, supõe-se que tinha tamanho zero e temperatura infinitamente quente. Mas à medida que se expande, a temperatura cai. Isso explica porque o universo é tão uniforme, e parece igual mesmo nos mais diferentes pontos do espaço. Uma das consequências, caso consideremos o fiat divino como o Big Bang, é que a partir da grande explosão não houve tempo de a luz se deslocar por ilimitadas distâncias. É por isso que Gênesis apresenta em primeiro lugar tohu e bohu, as trevas e o abismo, e só no versículo três o surgimento da luz.

 

É interessante ver que uma das possibilidades que alguns físicos baralham é a de que Deus escolheu a configuração inicial do universo por razões que não temos condições de compreenderConsideram que os acontecimentos da criação não se deram de forma arbitrária, mas refletem um ordem comum. Hawking opta por uma variável que chama limitação caótica ou escolha ao acaso. Dentro desse ponto de vista, o universo primordial surgiu como caos. Ora, a segunda lei da termodinâmica mostra que há essa tendência no universo, e que a ordem e o equilíbrio, ou seja, a vida, que é a forma mais organizada da matéria, surge como oposição a este caos.

 

Einstein uma vez formulou a pergunta: ‘Que nível de escolha Deus teria tido ao construir o universo?’ Se a proposta do não limite for correta, ele não teve qualquer liberdade para escolher as condições iniciais. Teria tido, ainda naturalmente, a liberdade de escolher as leis a que o universo obedece. Isto, entretanto, pode não ter sido um grau assim tão elevado de escolha. Pode ter sido apenas uma, ou um pequeno número de teorias completas unificadas, tal como a teoria do filamento heterótico, que são autoconsistentes e permitem a existência de estruturas tão complexas quanto os seres humanos, que podem investigar as leis do universo e fazer perguntas acerca da natureza de Deus”. [Stephen Hawking, idem, op. cit., p. 237].

 

E Prigogine e Stengers explicaram que “toda variação de entropia no interior de um sistema termodinâmico pode ser decomposta em dois tipos de contribuição: a entrada exterior de entropia, que mede as trocas com o meio e cujo sinal depende da natureza dessas trocas, e a produção de entropia, que mede os processos irreversíveis no interior do sistema. É essa produção de entropia que o segundo princípio define como positiva ou nula”. [Ilya Prigogine e Isabelle Stengers, Entre o Tempo e a Eternidade, São Paulo, Companhia das Letras, 1992, p. 53].

 

E a partir da termodinâmica, Hawking trabalha com as setas do tempo. “As leis científicas não distinguem entre as direções para frente e para trás do tempo. Entretanto, há pelo menos três setas de tempo que distinguem o passado do futuro, que são a seta termodinâmica, direção do tempo em que a desordem aumenta; a seta psicológica, direção do tempo na qual se recorda o passado e não o futuro; e a seta cosmológica, direção do tempo em que o universo se expande mais do que se contrai. Demonstrei que a seta psicológica é essencialmente a mesma que a termodinâmica, de modo que ambas sempre apontam para a mesma direção. A proposta do não limite para o universo prevê a existência de uma seta termodinâmica do tempo bem definida, porque o universo deve começar num estado plano e ordenado. E a razão por que se observa esta seta termodinâmica se adequar à cosmologia é que os seres inteligentes só podem existir na fase de expansão”. [Stephen Hawking, idem, op. cit., pp. 210, 211].

 

Coerente com sua visão de que Deus não joga dados com o universo, Einstein combateu às teses de acausalidade na mecânica quântica, defendidas pelas escolas de Copenhagem e Gottingen. 

 

Não posso suportar a idéia de que um elétron exposto a um raio de luz possa, por sua própria e livre iniciativa, escolher o momento e a direção segundo o qual deve saltar. Se isso for verdade, preferia ser sapateiro ou até empregado de uma casa de jogos em vez de ser físico”. Citado por Franco Selleri, Paradoxos e realidade, Ensaios sobre os Fundamentos da Microfísica, Lisboa, Fragmentos, 1990, p. 41. 

 

Em 1944, voltaria à carga: “Nem sequer o grande sucesso inicial da teoria dos quanta consegue convencer-me de que na base de tudo esteja o indeterminismo, embora saiba bem que os colegas mais jovens considerem esta atitude como um efeito de esclerose. Um dia saber-se-á qual destas duas atitudes instintivas terá sido a atitude correta”. [Einstein, idem, op. cit. p. 59].

 

Ao finalizar esta reflexão vamos colocar em relevo algumas constatações sobre a origem do universo a partir da mística judaica. 

 

A primeira é que a descrição do primeiro versículo de Gênesis-Um está fora do espaço-tempo. O surgimento do espaço-tempo teve início com o caos, que não deve ser entendido como negação ou pura ausência, mas como entropia. É universo espaço/temporal que repousa nos quatro conceitos enumerados por Noach: determinação, proclamação, trabalho e ordem.

 

Em segundo lugar, que o tempo de Gênesis Um não é o tempo que conhecemos e no qual nos movemos, mas é o tempo da ordem/organicidade, tempos não determinados, épocas. Ou seja, o surgimento do universo implicou na expansão do espaço-tempo, assim o espaço-tempo de Gênesis 1.3 é totalmente diferente do espaço-tempo de Gênesis 1.12. 

 

E, por fim, a expressão hebraica yom, presente nos textos de Gênesis Um, também não é a medida dos dias atuais, mas espaços de tempo de duração longa ou de duração proporcional à atividade das causas segundas e à exigência dos efeitos produzidos. Tivemos, então, um processo de expansão permanente, dentro dos limites das leis naturais e da liberdade de possibilidades. 

 

III. A COMUNHÃO E O MANDATO CULTURAL 

  

Como vimps, os relatos bíblicos descrevem a criação do céu e da terra, obra de Deus, através da indicação “e o Espírito de Deus se movia por cima da água” (Gn 1.2). Isto quer dizer que o Espírito divino é Pessoa criadora e presença de Deus, tendo sido a criação uma realidade formatada por Ele. E é o mesmo Espírito quem clama pela liberdade redentora da criação escravizada.  

 

Um dia o próprio Universo ficará livre do poder destruidor que o mantém escravo e tomará parte na gloriosa liberdade dos filhos de Deus. Pois sabemos que até agora o Universo todo geme e sofre como uma mulher que está em trabalho de parto” (Rm 8.21-22).

 
O Espírito é o poder atuante do Criador e a força de vida das criaturas. O Espírito é a fonte da vida. Por isso, tudo o que existe e vive manifesta a presença dele. Ele transforma a comunhão com o Pai e o Filho na comunhão da criação, na qual todas as criaturas, cada qual a seu modo, se comunicam com Deus. A existência, a vida e os relacionamentos estão firmados no Espírito, “pois nele vivemos, nos movemos e existimos” (At 17.28). 

 

A partir da comunhão trinitária, o ser humano faz parte da criação e é dependente dela. Vive dentro de um contexto de interdependência com a criação. Desde o início, nosso futuro está ligado ao solo, à água e ao ar. Deus nos coloca junto e com a natureza para trabalhar essa mesma natureza (Gn 2.15). Não haveria falta (2.8-9) se soubermos administrar. Dependemos do solo e dele recebemos o nosso sustento. Pertencemos a este mundo criado e é ele que fornece a base para nossa existência.  A vida começa e se orienta sob o cuidado de Deus. 

 

Ó Senhor, tu tens feito tantas coisas e foi com sabedoria que as fizeste. A terra está cheia das tuas criaturas” (Sl 104.24).

 

 “Todos esses animais dependem de ti, esperando que lhes dês alimento no tempo certo. Tu dás a comida, e eles comem e ficam satisfeitos. Quando escondes o rosto, ficam com medo; se cortas a respiração que lhes dás, eles morrem e voltam ao pó de onde saíram. Porém, quando lhes dás o sopro de vida, eles nascem; e assim dás vida nova à terra” (Sl 104.27-30). 

 

Hoje, pensamos que o mundo é um objeto para nossa exploração, em vez de sujeito para a glorificação de Deus. Em grande parte, ignoramos as necessidades de outras formas de vida. Essa atitude utilitarista de ver e agir é pecado, é uma falta de respeito para com o Espírito de Deus.

 

O desafio do cuidado amoroso

 
É Deus quem dá e quem sustenta a vida de todo o universo. Sua preocupação por atender às necessidades básicas (comer, beber e vestir) não se restringe ao ser humano, mas se estende a toda a natureza, refletida nos pássaros e nas flores do campo.

 

É Deus quem veste a erva do campo, que hoje dá flor e amanhã desaparece, queimada no forno. Então é claro que ele vestirá também vocês, que têm uma fé tão pequena!” (Mt 6.30). 

 

O universo inteiro depende do cuidado amoroso de Deus, que não descuida de nenhuma criatura. Os lírios, por exemplo, caracterizados por sua fragilidade e vida curta, são vestidos de tal modo que nem Salomão usava roupas tão bonitas como essas flores. (Mt 6,29). 


Criação significa que tudo é completamente obra de Deus. Deus é o autor de tudo, o Deus pessoal e salvífico, que se revelou como puro amor. Toda a realidade brota da pura iniciativa deste amor divino, puro dom gratuito. 


Mas, o ser humano faz parte da criação, depende dela e é seu cuidador. O ser humano, como o restante da criação, foi criado “de acordo com a sua espécie” (Gn 1.24 e 25), só que à imagem e semelhança de Deus (Gn 1.26-27). A imagem de Deus é elaborada em termos do domínio administrativo que o ser humano teria sobre o resto da criação. O ser humano foi criado à imagem de Deus, não somente por sua liberdade e direito à escolha, mas também pela postura que assume diante da criação, uma postura de soberania em amor e comunhão, que deve refletir a soberania de Deus (Gn 1.26-28). O ser humano não foi criado apenas para realizar uma administração espiritual, mas foi criado para ordenar a criação. 

 

No entanto, fizeste o ser humano inferior somente a ti mesmo e lhe deste a glória e a honra de um rei. Tu lhe deste poder sobre tudo o que criaste; tu puseste todas as coisas debaixo do domínio dele: as ovelhas e o gado e os animais selvagens também; os pássaros e os peixes e todos os seres que vivem no mar” (Sl 8.5-6). 

 

Essa administração humana sobre a criação nós chamamos de mandato cultural. Ser criado à imagem de Deus é ser responsável pelo planeta e por todas as formas de vida! 


A soberania humana implica responsabilidade para preservar a ordem que Deus criou e promover a existência de todos os seus elementos. Tal soberania não implica em liberdade para roubar, matar e destruir. Os seres humanos são mordomos de Deus, responsáveis diante dele e cuja primeira tarefa é assegurar a permanência e equilíbrio da criação. 

 

Somos todos responsáveis


A preocupação divina com a salvação espiritual não é alheia da sua preocupação pelo bem-estar da sua criação material. A criação é o primeiro dos atos salvadores de Deus. 

 

Mas tu, ó Deus, tens sido o nosso Rei desde o princípio e nos salvaste muitas vezes. Com o teu grande poder, dividiste o Mar e esmagaste as cabeças dos monstros marinhos. Esmagaste as cabeças do monstro Leviatã e deste o seu corpo para os animais do deserto comerem. Fizeste com que corressem fontes e riachos e secaste grandes rios. Criaste o dia e a noite, puseste o sol, a lua e as estrelas nos seus lugares. Marcaste os limites da terra e fizeste o verão e o inverno” (Sl 74.12-17).

 

Por isso, não devemos conceber a participação do ser humano no mundo como opcional, nem como secundária sua missão na salvação de vidas. Desde o início, a criação fazia parte do plano salvador de Deus. A conversão de seres humanos não é o último dos atos salvadores de Deus, mas o estabelecimento de novos céus e nova terra, ou seja, uma nova criação (Ap 21.1), a libertação da própria criação em si (Rm 8.20-22). 


Até o fim, a criação fará parte do plano salvador de Deus. A mesma graça de Deus que se manifestou em Cristo, também se manifestou na criação.

 

Deus falou muitas vezes e de muitas maneiras aos nossos antepassados, mas nestes últimos tempos ele nos falou por meio do seu Filho. Foi ele quem Deus escolheu para possuir todas as coisas e foi por meio dele que Deus criou o Universo. O Filho brilha com o brilho da glória de Deus e é a perfeita semelhança do próprio Deus. Ele sustenta o Universo com a sua palavra poderosa. E, depois de ter purificado os seres humanos dos seus pecados, sentou-se no céu, do lado direito de Deus, o Todo-Poderoso” (Hb 1.1-3).

 

E a graça de Deus manifesta alcançará o seu propósito de submeter a Cristo todas as coisas.

 

Por isso Deus deu a Jesus a mais alta honra e pôs nele o nome que é o mais importante de todos os nomes, para que, em homenagem ao nome de Jesus, todas as criaturas no céu, na terra e no mundo dos mortos, caiam de joelhos e declarem abertamente que Jesus Cristo é o Senhor, para a glória de Deus, o Pai”. (Fp 2.9-11).

 

As Escrituras Sagradas dizem: Deus pôs todas as coisas debaixo do domínio dele. É claro que dentro das palavras “todas as coisas” não está o próprio Deus, que põe tudo debaixo do domínio do Cristo. Mas, quando tudo for dominado por Cristo, então o próprio Cristo, que é o Filho, se colocará debaixo do domínio de Deus, que pôs todas as coisas debaixo do domínio dele. Então Deus reinará completamente sobre tudo” (1Co 15.27-28). 

 

Uma ecoteologia bíblica envolve o uso responsável e sustentável dos recursos da criação de Deus e a transformação das dimensões culturais, econômicas, morais, intelectuais e políticas da vida. Isto inclui a recuperação do sentido bíblico de mandato cultural, que implica em administração e cuidado responsável. Da mesma maneira, o conceito bíblico de descanso semanal recorda que há limites para as atividades de produção e de consumo. Riqueza e poder devem servir, por isso é um compromisso trabalhar para libertar os ricos da escravidão ao dinheiro e ao poder, e possibilitar aos que têm menos obter acesso à dignidade e às oportunidades de desenvolvimento. A esperança de tesouros no céu nos livra da tirania de Mamon. Fazendo assim temos o sentido maior do cuidado da natureza e da vida criada pelo Eterno.

 

 

Para discussão em sala de aula. Leia o texto e analise a partir das leituras feitas.

 

AMAZÔNIDAS

 

 A alma foi lavada nas águas do rio Negro. Descobri um evangelicalismo amazônida, contextual, contemporâneo. A capital da Amazônia faz teologia de vanguarda, waku sese, que “tudo lhe vá bem”, meu camarada! O xalom dos Saterê-Mawê ressoa nos ouvidos como boas novas de um tempo bom para a teologia brasileira.

 

Receberam muitos nomes de antropólogos, sertanistas e de outros grupos indígenas, mas eles próprios se dizem Sateré, lagarta de fogo, e Mawé, papagaio inteligente. Os Saterê-Mawê habitavam o território entre os rios Madeira e Tapajós, ao norte das ilhas Tupinambaranas, no rio Amazonas, e ao sul das cabeceiras do Tapajós.

 

O paraíso era Noçoquém, a morada dos heróis, à margem esquerda do Tapajós, lá onde as pedras falam. E Hawah, a mãe do homo sapiens sapiens, da cultura hebraica, é Uri, a mãe de todos os Saterê-Mawê. O primeiro filho foi tapuya, o segundo karaiwa. Por isso, os tapuya-in foram os moradores da mata na´apy kaiwat. Mas, depois, o imperador, o primeiro herói civilizador, disse que era para eles irem para yarupap, o lugar onde os barcos encostam.

 

Mas são também filhos do guaraná, porque domesticaram a paullinia cupana, trepadeira silvestre. O guaraná é planta das terras altas da bacia do rio Maués-Açu. E a época do fabrico da bebida vira celebração com o ritual da tocandira. É liturgia do meter a mão na luva, quando os meninos tornam-se homens. Assim, os futuros guerreiros dão o salto de adesão e ruptura, com canções de amor, trabalho e guerra, e enfiam a mão em luvas de palha pintada com jenipapo e enfeitadas com penas de arara, para serem ferroados por formigas tocandiras.

 

No meio do rio Negro, meu amigo Adelson sociologa sobre as amazonas, pensa em Orellana, na viagem de 1541 e 1542, quando viu as icamiabas. Orellana, quando desceu em busca de ouro, lá dos Andes, o rio ainda era chamado Grande, Mar Dulce e da Canela, por causa das árvores que existiam ali. Mas, a vitória esmagadora das icamiabas contra os espanhóis foi narrada ao rei Carlos V e este, pensando nas guerreiras hititas, que os gregos chamavam de amazonas, que quer dizer sem centro, batizou o rio.

 

Assim, Orellana lá no Espelho da Lua, pros lados de Inhamundá, viu arqueiras majestosas, que extirpavam um dos seios, para melhor estirar o arco. Talvez tenha visto índios de cabelos longos, mas a lenda grega tomou forma e aqueceu o coração dos que mergulham no verde. Fé de quem persegue a imensidão amazônica.

 

A lancha amansa o salto e repousa na imensidão do rio Negro. Índios ribeirinhos canoeiam uma piroga a motor, que ombreia a lancha. E lá uma caixa se abre. É um momento mágico. O mundo de Orellana está ali, a eternidade sussurra palavras que não entendo – "quem come jaraqui não sai mais daqui" – e a jibóia, essa sim, majestosa, desliza por minha mão direita. É pesada, sinto a força braba da boa constrictor, que escorrega sobre o meu ombro em direção à mão esquerda. No barco estão os teólogos das boas novas. 

Pânico. Adelson quase se lança às águas, aterrorizado, as meninas gritam, a lancha oscila para a esquerda, pode virar. Mas eu estou sozinho, mergulhei na magia ancestral, não vejo o terror de Adelson, não ouço os gritos das meninas. Sós, eu e a jibóia.

 

Dialogamos, senti o peso, conversei através do tato, ela me olhou, como se me conhecesse desde eras. A língua tamborilou o ar, o olhar ficou fixo, pareceu perdido, como se quisesse me falar dos tempos mitológicos em que foi a naja do jardim, no paraíso de Orellana.

 

– Será que minha garganta é mesmo tumba aberta? Sou habitante dos pântanos, rastejante de terras profundas, princesa dos meandros, sinuosa, broto dos confins do inconsciente, a alimentar desejos, a sugerir atrações e repulsões. Será que sou sibilante, encantante, enfeitiçante ou apenas digo que se aprende pela experiência? Sou rival, guardiã do reino dos mortos, com alma e sexo, a se renovar eternamente, porque mordo a própria cauda. Sou medicina no bastão de Esculápio, mediadora entre deuses e humanos, benfeitora, malfeitora, e no livro dos mortos, tibetano, sou serpente, moro nas partes mais distantes da terra, morro, renasço e torno a ficar jovem. Será que sou acobreada, dura como o cobre, filha do cobre como minhas irmãs palestinas? Sou cobra, lagarto, dragão na cabeça das gentes, que se enroscam elas próprias, mas precisam de mim para exorcizar a culpa. Ah! Não sou Lilith, ela fugiu voando sobre o mar e persegue os nascituros, mas não é lâmia, é coruja.

 

De repente, o mergulho se desfez, ouvi gritos, vi o pessoal fugindo, a procurar distância da minha amiga. Ah, o medo mais uma vez estilhaçou o sonho. E como o espanhol, vi o diálogo emudecer. A jibóia escapou do meu abraço urbano e retornou ao seu ribeirinho. E a lancha de novo voou sobre o rio Negro.

 

Um dia depois, quando almoçava no Choupana, em Manaus, me contaram um segredo: o jaraqui é um peixe ótimo, saboroso, quando frito no azeite, numa frigideira bem quente. Deve ser temperado com sal e limão, depois enxuto e passado na farinha de trigo. O jaraqui deve ser virado sempre na frigideira até dourar. No mínimo, um jaraqui médio por pessoa. Deve ser acompanhado por baião de dois e pimenta murupi. A sobremesa pode ser pudim de cupuaçu. E no fim da tarde, um banho de igarapé. Então, o milagre acontece: "quem come jaraqui não sai mais daqui". Como eu tinha que voltar, pedi tambaqui no tucupi, bebi suco de cupuaçu e fiz o caminho do aeroporto.

 

 


 

 

 

 

 

Capítulo oito

O SER HUMANO

 

 

“MEUS FILHOS PARA UM BRASIL E / UM MUNDO FELIS E TODOS SEREM GEN- / TINS TODA A HUMANIDADE TEMOS UM DE / VERR COM DEUS DE DESLIGARDO MUNDO MA- / TERIALISMO CAPITALISMO LIGAR A UM MUNDO / DE ESPIRITUALIDADE COM AMORRR POR / JESSUSS DISSE PROFETA GENTILEZA PAZ”.

Profeta Gentileza

 

 

A doutrina do ser humano parte das Escrituras Sagradas, da teologia e da antropologia. As Escrituras são a revelação de Deus aos seres humanos, é o brotar da vontade de Deus na esfera do mundo material. A teologia é a apresentação normativa e sistemática da revelação. E esta construção, que nasce da correlação entre revelação e sua apreciação normativa e sistemática, sempre se dá dentro de um processo cultural. E a antropologia é a história natural do ser humano. É o estudo dos seres humanos e de suas relações enquanto produtores de costumes, ideologia e bens. 

 

Sempre que fazemos teologia nos deparamos com a questão: quem é o ser humano. Nesse sentido, toda reflexão sobre Deus leva-nos a pensar sobre o humano. Isto porque Deus revela-se aos seres humanos. Ou seja, quem é este ser a quem Deus se revela? Daí decorre que a teologia tem um caráter antropológico. Em outras palavras: toda reflexão sobre Deus leva a uma concentração antropológica do discurso teológico.

 

Tais razões nos levam à necessidade de uma análise antropológica para a teologia. Quando descartamos uma reflexão sobre o ser do ser-humano a quem Deus fala, temos um discurso puramente ideológico. Não temos um ser humano verdadeiro, situado na realidade em que vive e transforma, mas um ser humano-mito, onde o fato natural e histórico transforma-se em alegoria.

 

E o pressuposto fundamental dessa reflexão é a imago Dei, que traduz a verdade de que a compreensão de Deus leva à compreensão do ser humano e sua razão de existir. Não se trata de conhecer o ser humano para conhecer a Deus, porque o ser humano não é Deus, mas o contrário. Nesse sentido, a antropologia correta parte da revelação. Não utilizamos o conceito tomista de analogia em seus dois sentidos, como se fosse possível ao ser humano conhecer a Deus a partir de si próprio, mas acreditamos que as necessidades e anseios do espírito humano apontam para aquilo que ele perdeu.

 

Se a revelação é uma conversa entre Deus e o ser humano, nem sempre agradável, pois às vezes é de confronto, é a partir desse diálogo que temos os elementos fundamentais para conhecer o ser do ser-humano. Nesse sentido, por mais decaído que esteja  o ser humano, ainda lhe resta a liberdade de consciência necessária para aceitar ou não esse diálogo proposto pelo Criador.

 

I. A IMAGEM DE DEUS

 

O shemá era a oração que duas vezes por dia os judeus elevavam ao Eterno. Essa prece reconhece Deus como único e diz que deviam amá-lo com todo leb, com toda nefesh e com toda meod, conforme Deuteronômio 6.5. 

 

Leb e lebab, que os gregos traduziram por cardia e nós por coração, nos falam dos movimentos do corpo humano. Leb e sua variante lebab ocorrem 858 vezes nas Escrituras hebraicas, das quais 814 se referem ao coração humano. Expressam a noção antropológica de que somos movidos por sentimentos e emoções que movimentam e dirigem nossos membros e corpo. O coração seria responsável pelas funções de movimento e das atividades do ser humano, que levam às disposições de ânimo como alegria e aflição, coragem e temor, desejo e aspiração, e também às funções intelectuais como inteligência e decisão da vontade, como vemos em Genesis 8:21:  "Não voltarei mais a amaldiçoar a terra, por causa dos seres humanos. É certo que eles têm más inclinações, desde a infância (ou, porque os desígnios do leb do homem são maus desde a sua infância). Mas não voltarei mais a castigar todos os seres vivos, como fiz desta vez”. Vejamos também a morte de Nabal em 1Samuel 25:37-38: “”Mas, na manhã seguinte, depois de passada a bebedeira, Abigail contou-lhe tudo, e Nabal sofreu um tal choque que ficou paralisado (ou, “o leb parou no seu peito e ele ficou duro como uma pedra”). Dez dias depois, o Senhor feriu novamente Nabal e ele morreu.

 

Nas passagens do livro de Gênesis que nos falam do leb constatamos que a antropologia dos antigos hebreus se apresenta como uma psicologia teológica. Assim, leb tem um significado antropológico que fala daqueles aspectos que nos levam aos movimentos do sentir, do querer e do agir, que compõem a personalidade humana. 

 

Nefesh, que os gregos traduziram por psyché, significa garganta, respiração, fôlego, pessoa, vida, alma,e, sem dúvida, nos fala da plenitude daquilo que é humano, conforme encontramos em Gênesis 2.7 – O Senhor Deus modelou o homem com barro da terra. Soprou-lhe nas narinas e deu-lhe respiração e vida. E o homem tornou-se nefesh hayah. Dessa maneira, nefesh possibilita um rico diálogo com o texto de Gênesis e nos permite uma reconstrução dos significados da natureza humana. 

 

A expressão nefesh leva a uma concepção de exterior versus interior, que tem por base Deuteronômio 32.9, quando afirma que “uma parte do Eterno faz seu povo”. Mobiliza assim em diferentes níveis essa força criadora, que constitui uma parte de Deus. A matéria-prima utilizada por Deus na modelagem humana é ordinária, enquanto material pertencente a ordem comum de “ló nefesh”: inanimados e animais. É o sopro de Deus que faz especial essa matéria ordinária. Mas será que estamos somente diante de uma metáfora ou, de fato, a força criadora de Deus transmite à matéria ordinária não somente vida, mas intensidade e profundidade? De certa maneira, não é absurdo dizer que os seres celestiais são criaturas integralmente espirituais. Sua existência procede do exterior da força criadora de Deus. A exteriorização traduz-se no fato de que a força criadora se dá através da palavra. Mas sopro, o ruach, o Espírito procede da interioridade de Deus e por isso é conhecida como “ein sof”, que vem de seu interior. “Ele soprou” deve ser entendido como continuidade da decisão anterior “façamos a espécie humana” (Gênesis 1.26), de maneira que nefesh hayah liga céu e terra, o que está acima e o que está abaixo. Por isso, dizemos que a natureza humana é superior à natureza angélica, porque procede da interioridade do Eterno. Traduz ação mediadora e conjuntiva da força criadora. Donde, a natureza humana procede de atributos divinos não ostensivos, discretos, que se traduzem em integridade holística, pluralidade social, sabedoria, compreensão e abertura à transcendência. Nefesh hayah entende-se e revela-se enquanto natureza que se torna compreensível e inteligível. É transbordamento e transparência do Espírito do Eterno, que indica transbordamento e transparência, que relaciona o que está em cima com o que está abaixo. Da leitura de Gênesis 2.7 podemos constatar que o texto fala de respiração e daquilo que o humano passa a ser: ele não tem uma nefesh, ele passa a ser uma nefesh hayah. Por isso, o salmista clama: Vem, Senhor libertar-me; salva minha nefesh, pelo teu amor”. Sl 6.6.

 

O texto e o pensamento literário dos hebreus são sintéticos. Daí que a chave para chegarmos a uma compreensão analítica dele exige identificar com que parte do corpo o ser humano pode ser comparado e onde o agir humano faz interface com nefesh, utilizando para isso textos que apresentam diferentes sentidos de nefesh. Embora a expressão nefesh apareça 755 vezes nas Escrituras hebraicas e seja traduzida seiscentas vezes na Septuaginta por “psyché”, garganta e estômago podem ser tomados por paradigmas e transmitem a idéia de necessidade, de algo difícil de ser saciado. Nesse sentido, a palavra alma nos dá uma tradução incompleta, pois a idéia é que “o Eterno Deus formou o ser humano do pó da terra e insuflou em suas narinas o seu hálito e o ser humano se tornou um ser vivente que necessita Dele para ser saciado”.

 

Nefesh não implica algo bom ou mal, mas a realidade das necessidades da alma humana, que ao não sere preenchida pelo Eterno produz alienação, individualismo, descrença, ignorância e idolatria. Mas como o sopro de Deus pode ter gerado um ser humano com tal insaciabilidade? Se entendermos nefesh como órgão das necessidades vitais, dos movimentos emocionais da alma, somos levados a entender o pensamento sintético hebreu ao ver a nefesh como síntese da própria vida. Assim, as necessidades humanas criadas pelo Eterno só podem ser saciadas por Ele.

 

“Quem me encontra, encontrou a vida e alcançou benevolência do Eterno. Quem não me acha, faz violência à sua nefesh. Todos os que me odeiam, amam a morte”. Pv 8.39 e seguintes.

 

Mas essa natureza também se vai constituir enquanto expansão dos significados da imagem de Deus, em graça e amor. “Ele soprou” traduz o fato de que as coisas do intelecto e do coração expressam-se através dos órgãos da fala, em especial, garganta e boca, que possibilitam o sopro. Nefesh como substantivo ganhou vários sentidos, sendo garganta um deles, e assim é usado em Provérbios 23.2, quando diz “põe uma faca à tua nefesh, se fores uma pessoa de grande apetite”. A garganta ou goela é por onde entra e sai a respiração, o ar. O ser vivente, então, ganhou a designação nefesh, ser respirador. No caso do humano refere-se basicamente à forma que o Espírito e a inteligência, sem forma em si, assumiu ao animar o corpo. Esse padrão simboliza a interioridade da natureza humana. Portanto, para que o humano possa dar intensidade e profundidade a sua inteligência precisa de amor e graça, que nascem da interioridade do Eterno. Em Gênesis 2.7, “ele soprou” significa que Aquele que soprou o fez numa determinada direção e com objetivo definido. Aqui, direção e objetivo traduzem destinação.

 

Esse é o destino do humano: ter sua nefesh integralmente saciada por seu Criador e a partir daí relacionar-se com Ele, com o universo, com seus semelhantes e consigo mesmo. Nesse caso, temos uma nefesh em equilíbrio, plena do Espírito de Deus, o que se traduz em integridade holística, pluralidade social, sabedoria, conhecimento e abertura à transcendência. A ruptura desse equilíbrio produz alienação, individualismo, descrença, ignorância e idolatria. A antropologia da nefesh em Gênesis nos fala sobre a imagem de Deus e nos dirige a uma pesquisa teológica do humano, da humanidade, da pessoa e da comunidade, da pessoa e da ordem social, da pessoa enquanto excluído, da pessoa enquanto eleito, da humanidade e seu destino, ou seja, da vida para o mundo, do amor para o próximo e da criação para todos.

 

Meod, que os gregos traduziram por dynamis e nós por força, aparece trezentas vezes nas Escrituras hebraicas, e traduz a idéia de intensidade e abundância. Em alguns textos, como no caso do crescimento do povo hebreu no Egito (o povo continuou a multiplicar-se e a tornar-se mais forte”, ou  -- Ex 1.20)meod aparece ligado à idéia de reprodução, de muitos filhos, o que nos leva a uma compreensão diferente do termo dynamis em grego, que nos fala de uma força física externa ao ser humano. Em hebraico podemos entender meod como potência, aquela força, energia que faz de nós seres criadores, tanto no sentido biológico como intelectual. Seria potência que identifica o ser humano, capacidade de gerar que faz o humano crescer e multiplicar-se.

 

Diante disso, devemos nos perguntar que princípios podem nortear tal pesquisa teológica? Sem dúvida, o princípio arquitetônico, enquanto revelação, fé objetiva, base e eixo da teologia. E logicamente o princípio hermenêutico, ou seja, a interpretação dos aspectos históricos e lingüísticos dessa revelação. Devemos partir, logicamente, da razão filosófica, que produz ordenação, mas não devemos esquecer a razão científica, enquanto leitura fenomenológica da natureza da antropologia e nem da razão ordinária, enquanto universalidade do senso comum. É bom lembrar, que toda análise metodológica, consciente ou inconscientemente, no correr da história da teologia, tem levado inexoravelmente a diferentes compreensões do fato teológico. Isto porque o princípio arquitetônico depende do que colocamos como base da estruturação geral da revelação e porque o princípio hermenêutico parte sempre de uma ou de múltiplas visões filosóficas que podem ser utilizadas como instrumentos de interpretação da história da revelação. Ou seja, quer queiramos ou não, a ideologia define a hermenêutica, pois o saber sempre está sob o risco de ser arrebatado pela ideologia, já que a ideologia permanece à espreita enquanto código de interpretação. Enquanto intelectuais temos amarras, pontos de apoio, somos transportados pela substância ética. 

 

Aqui reside a dificuldade, toda teologia é transitória. Reflete um momento de compreensão da revelação e de sua história. Mas, em nosso trabalho, utilizaremos a antropologia que as Escrituras nos oferecem como um instrumental hermenêutico para compreender o homo brasiliensis. Isto porque embora não seja antropologia, a teologia nos oferece um roteiro antropológico legítimo. No centro da fé cristã se encontra Jesus Cristo, Deus e ser humano, revelador do divino e do humano. E se a teologia fala da divindade, ela fala a homens e mulheres, fala sobre um Deus que encarnou e que ama os homens e mulheres. Está a serviço do humano. Não podemos fugir a essa realidade, por isso, teologicamente, nosso objetivo é fazer a partir da própria compreensão do humano uma leitura da imagem de Deus que responda aos questionamentos e necessidades teológicas das brasilidades. 

 

No livro das origens lemos: “agora vamos fazer os seres humanos, que serão como nós, que se parecerão conosco. Eles terão poder sobre os peixes, sobre as aves, sobre os animais domésticos e selvagens e sobre os animais que se arrastam pelo chão”. (Gn 1.26). Ora, se todo o universo é o mundo do ser humano, conforme afirmam os dois relatos da criação e o salmo oito, em que sentido o ser humano é a imagem de Deus? Como Deus conferiu ao humano essa correspondência?

A partir da antropologia bíblica podemos ver que em primeiro lugar o homo sapiens é fruto de uma intervenção de Deus. Há uma concessão de encargo que diferencia o ser humano do resto da criação. Ele é apresentado como um momento sublime, especial, como um ser que coroa toda a ação criadora de Deus. Ele recebe responsabilidade e poder de decisão. Em relação a esta discussão, considero elucidativa a exposição que apresenta a imagem de Deus através de três concepções: substantiva, ou seja, física e psicológica; relacional, ou seja, com um tropismo à transcendência e possibilidade de relacionamento com Deus; e funcional, que se dá através da ação cultural do ser humano. 

 

Acredito, porém, que privilegiar uma dessas concepções em detrimento das outras duas é perder a riqueza do ser humano enquanto imagem de Deus. Por isso, aqui correlacionamos as três concepções, já que formam uma totalidade. Em segundo lugar, Deus deixa claro a finalidade da decisão de criar um ser pessoal, segundo sua imagem. Tal ser deverá ter uma relação especial com o restante da criação. Deus cria e entrega ao ser humano sua criação. Este ser pessoal deverá estar sobre ela, numa relação de trabalho, produção e administração. O ser humano relaciona-se com a criação e através do uso e de suas descobertas em relação a ela, mantém uma permanente relação com Deus. Em terceiro lugar, a imagem de Deus é traduzida na relação que mantém com as criaturas, já que é uma relação de domínio. Ele reina sobre o universo produzido pelo poder criador de Deus. Mas aqui há um detalhe sutil: este direito de domínio não lhe é próprio, ele reina enquanto imagem de Deus. Ele não é proprietário, nem tem autonomia irrestrita sobre a criação. Imagem de Deus traduz também abertura à transcendência. Aqui estão dados os elementos que nos permitem entender porque faz parte da humanidade o abrir-se à transcendência e viver com ela. Há um deslumbramento permanente diante do absoluto, do sobrenatural e do mistério. Estamos diante de um ser que pode pensar o que não está aqui e agora, e que pode refletir sobre o que vai além da realidade factual. E é por poder pensar tais realidades que não podem ser vistas, que o ser humano enquanto imagem de Deus pode refletir sobre a eternidade e relacionar-se com o transcendente. Assim, ao ser feito imagem de Deus, o próprio Deus transfere à humanidade a capacidade de relacionar-se com Ele.

 

Hadam é um ser plural. Esse ser humano de que fala Gênesis 1.26, que deve ser uma imagem de Deus, não é uma pessoa em particular, pois a continuação do texto fala que eles dominem. Assim, estamos diante da criação da humanidade e o domínio do universo não é dado a uma pessoa, mas a comunidade dos homens. Ninguém pode ser excluído da autoridade de domínio dada por Deus à humanidade. Da mesma maneira, em Gênesis 1.27 temos uma outra característica fundamental dessa mesma humanidade: ela é formada por homens e mulheres. Para alguns teólogos, como Karl Barth, tal explicação de Gênesis 1.27b, de uma humanidade formada por dois sexos, é apresentada por Deus “quase à maneira de definição”. Logicamente, há uma intenção para que o texto bíblico se aprofunde em tais minúcias. É a de apresentar como o universo criado deveria ser administrado: através da convivência de seres que se completam e se amam. Ou seja, esse ser plural só poderia exercer o domínio através da comunidade, completando-se como homem e mulher.

 

E para onde aponta o domínio? Todo o universo é o mundo do ser humano, por isso há a total desmitização da natureza. Não há astros divinos, terra divina, nem animais divinos. Todo o universo pode tornar-se o ambiente do ser humano, seu espaço, que ele pode adaptar às suas necessidades e administrar. E como ele consegue isso? Através da cultura, enquanto processo social e objetivo de sujeição da natureza, e através da necessidade de expansão e domínio, pessoal e subjetivo, que é peculiar a todo homem e mulher livres. Mas, o afastamento de Deus fez com que a humanidade perdesse sua capacidade de ser imagem de Deus viva e eficaz. Seu caráter inicial está distorcido e o mal perpassa todas suas ações. Assim, o ser humano lançou-se ao domínio de seus iguais, inclusive através do derramamento de sangue; suprimiu o equilíbrio e a mútua ajuda entre homem e mulher; mitificou a ciência e técnica; e lançou-se à destruição da própria natureza. Cristo é “a verdadeira imagem do Deus invisível” (Colossenses 1.15, cf. 2 Coríntios 4.4) e a Ele cabe fazer, a nível escatológico, aquilo que à humanidade tornou-se impossível. “Foi-me dado todo o poder no céu e na terra, por isso, indo, fazei discípulos em todas as nações...” (Mt 28.18).

 

 

II. MARIA E A FEMINESCÊNCIA

 

Como protestantes somos desafiados e refletir sobre os dogmas de Maria e a construção simbólica que mudou a face de um grande setor da religião cristã.

 

“Isabel exclamou em alta voz: De onde me provém que me venha visitar a mãe do meu Senhor?” (Lucas 1.4243).

 

Embora a dogmática cristã ao falar de duas naturezas do filho se refira ao divino e ao humano, esses dois processos simbolicamente nos falam de duas gerações. E no caso do dogma católico de Maria nos fala da filha que é gerada pelo Pai, num primeiro momento, e do Deus que é gerado pela filha.

 

“Fiéis aos santos pais, todos nós, perfeitamente unânimes, ensinamos que se deve confessar um só e mesmo Filho (...) gerado segundo a divindade antes dos séculos pelo Pai e, segundo a humanidade, por nós e para nossa salvação, gerado da virgem Maria, mãe de Deus [théotokos]. 

 

O concílio de Calcedônia, 415 AD, apresentou Maria, a moça de Nazaré, como théotokos, mãe de deus. Nesse conceito há uma desconstrução da patriarcalidade ocidental e, por extensão, da propriedade. O que significa Maria mãe-de-Deus nesta revisão da questão de parentesco? 

 

Simbolicamente, Maria aparece nos ícones como aquela que deu à luz Deus e, portanto, parceira do Pai. Ao mesmo tempo, a defesa daqueles que adoravam Maria através dos ícones era de que quando adoravam não a encaravam como deusa à maneira pagã, mas como aquela que deu à luz Deus. 

 

Esse pensamento percorreu um caminho que levou até a idéia de segunda hawah. E por que segunda Eva? Qual a diferença entre a primeira e a segunda? A primeira hawah, “a-vida”, é a mãe da humanidade, mas a segunda hawah, é a mãe de Deus. Uma revolução na história da linguagem simbólica acerca da mulher. Há algumas questões intrigantes nesta discussão: a primeira é a idéia de que ela deu à luz Deus; a segunda a percepção da necessidade de identificar uma pessoa como geradora de uma nova criação; e a terceira de que, sendo Deus gerado e a pessoa geradora da nova criação uma jovemo gênero feminino ocuparia a centralidade da nova estrutura de parentesco. Vejamos cada uma dessas questões.

 

Em primeiro lugar, a maternidade não depende de um homem e que, de fato, o pai não é um pai. Na verdade, na universalidade da maternidade da moça de Nazaré, ela se tornou mãe de todos os pais. 

 

Em segundo lugar, se acrescentarmos o anúncio do anjo Gabriel de que o que moça de Nazaré haveria de gerar seria fruto do ruach hakadosh, do vento santo, temos a ruptura do significado biológico e cultural da paternidade, o que dá à maternidade caráter suprabiológico e supracultural, já que foram rompidos os laços de sangue. Nesse sentido, podemos entender théotokos. Mas tal desconstrução não para aí. A priori há uma realidade natural: inter feces et urinas nascimur. A vulva, a madre aberta pela passagem do primogênito, permanece presente em nossa cultura e tem a consistência da lei biológica: ninguém chega ao mundo de outra maneira. Não há exceção. Mas em théotokos há uma ruptura.

 

Em terceiro lugar, é interessante notar que Pilatos pergunta à multidão quem ela deseja que seja solto: Yeshua ou Bar-abas? Ora, Yeshua é “Deus liberta”; e Bar-abas, “filho do pai”. Assim, naquele momento demônico, a multidão pede a morte da liberdade e a permanência da estrutura de parentesco. Momentos mais tarde, já na cruz, Jesus reafirma a universalidade da maternidade suprabiológica e supracultural. Jesus viu a sua mäe e junto dela o discípulo que ele amava. E disse à sua mäe: ´Mulher, aí tens o teu filho.´ Depois disse ao discípulo: ´Aí tens a tua mäe.´ E, desde esse momento, aquele discípulo recebeu-a em sua casa” (Jo 19.26-27)

 

Estamos diante de uma nova estrutura de parentesco, liberta dos laços de sangue, do biológico e dos condicionamentos culturais da patriarcalidade. Aqui encontramos uma ponte de diálogo com a cultura popular brasileira, a estrutura de parentesco matrifocal, que tem como possibilidade de construção o parentesco definido pelo amor, mas também por seu oposto, o abandono. Tal postura leva à escolha adotiva e, nesse sentido, aponta para a liberdade, mas também à escravidão, ambas, liberdade e escravidão em relação à natureza e às construções daí decorrentes.

 

Em quarto lugar, extrapola o universo da naturalidade, está embutida em théotokos e aponta para o futuro -- a gravidez e o parto da mulher virgem, que não tem a vulva como caminho, mas acontece na exterioridade do corpo. Assim, a moça de Nazaré, eterna virgem, preanuncia o tempo da maior de todas as desconstruções, a abolição da maternidade e a expansão da matrifocalidade. Essa desconstrução, sem dúvida, transformou a face da história do cristianismo. Mãe de Deus, a mulher virgem gerará seu libertador. 

 

Nessa construção teológica de expansão da matrifocalidade, o cristianismo correlacionou-se com o modelo mediterrâneo, onde o espaço físico da casa era entendido enquanto categoria de gestão da chefia feminina e de arranjos extensos presentes nos grupos de parentesco. Nesses arranjos a centralidade da figura feminina e do papel exercido pelas mulheres, além de ser traço característico, religiosos ou não, exercia um eixo estruturador, que produzia e reproduzia modos de ser do modelo familiar. 

 

A presença matrifocal no modelo mediterrâneo não está associada à idéia de pessoas e comunidades fracas do ponto de vista da sobrevivência, mas denotam a expansão das trajetórias de ascensão das mulheres, que podem ou não ser chefes da casa, assim como podem ser liderança de extenso grupo familiar, onde homens, pai e filhos, aceitam a chefia feminina. É importante entender que a matrifocalidade mediterrânea não representa ausência do homem na família ou comunidade, e nem implica em chefia de mulheres solteiras, distante dos agrupamentos familiares, ou solitárias na gerência da prole. 

 

Teologicamente, a extensão da matrifocalidade é entendida como construção e expansão da imagem da mulher (vide capítulo Escatologia, Apocalipse 12), que concentra poder entendido como força simbólica circulante, que se fundamenta em presença conquistada na trajetória da fé cristã. Na Marialogia, essa presença se traduz na definição de espaço espiritual próprio, fruto do prestigio adquirido nas comunidades, ao receber o estatuto de mãe coletiva pela sua trajetória: ser théotokos, e pelo tipo de funções desempenhadas, de parteira de um novo tempo, responsável por trazer ao mundo, com suas próprias mãos, o filho de novas gerações. A este conceito chamamos de feminescência.

 

Aqueles que procuram nas Escrituras cristãs textos que possam remeter à tradição matrifocal da moça de Nazaré surpreendem-se com o fato destes textos serem poucos. Além dos relatos agrupados nos evangelhos de Mateus e Lucas nos capítulos 1 e 2, só se menciona Maria em passagens de João 2 e 19. Afora isso, há uma alusão a que o Pai enviou ao mundo o seu filho, nascido de mulher, na carta de Paulo aos gálatas (4.4). Da mesma maneira, os estudos das Escrituras cristãs mostram que a primeira geração de escritores, como Paulo, Marcos e João, não deu importância à memória da moça de Nazaré: não se referiu a ela como virgem-mãe e nem deu destaque à história da concepção do filho por ação do Espírito. Isso, no entanto, não diminui a importância da matrifocalidade que seria construída com os passar dos anos na fé católica ocidental e oriental.

 

A raridade dos textos neotestamentários sobre a virgem-mãe contrasta com a quantidade de histórias e relatos de milagres que foram se acumulando nos séculos de história da catolicidade. A explicação para isso é que, com o passar dos tempos, a catolicidade foi desenvolvendo uma simbologia matrifocal a partir de aspectos originários de sua fé, procurando relacioná-la com culturas e sensibilidades dos povos aos quais os católicos começavam a anunciar o evangelho. Assim, podemos falar de quatro aspectos na construção da matrifocalidade católica.

 

A matrifocalidade católica

  

A matrifocalidade católica hoje nos lembra afluentes que correm para a formação de um rio. Surge do relato bíblico e da memória da virgem-mãe, com a qual a comunidade católica se identifica através do próprio canto da moça de Nazaré, quando diz que “todas as gerações me proclamarão bendita porque o Todo-poderoso fez em mim maravilhas”, conforme Lucas 1.48-49.

 

Sabemos que o cumprimento dessa profecia veio aos poucos, dando seu salto formal com os concílios da jovem igreja católica. Mas não podemos dizer que o cumprimento dessa profecia de bendição ao Pai, pela graça dada à moça de Nazaré, se deve exclusivamente aos católicos. Maria sempre virgem foi vista assim por Lutero, que dedicou a ela seu Magnificat, mas também por Wesley. O que as jovens igrejas reformadas não aceitaram é que se construísse uma piedade cristã a partir de uma teologia matrifocal que colocasse Maria ao mesmo nível do Cristo. Não podemos nos esquecer que certas tradições católicas chamam Maria de co-redentora. 

 

Paulo afirma em sua primeira carta a Timóteo (2.5) que há um só Deus e um único mediador entre Deus e a humanidade, que é Jesus Cristo. Os catecismos católicos responderam à polêmica suscitada pela matrifocalidade fazendo distinções entre adoração a Deus e veneração à virgem-mãe, procurando expressões doces para a matrifocalidade e ligando-a de forma mais íntima à própria piedade ao Cristo. Mas a simbologia matrifocal tem tanta força que, de fato, a leitura patriarcal da Trindade fez água: Pai e filho perderam importância de forma crescente na tradição popular.

 

Esta situação tem raízes históricas. Uma delas, sem dúvida, foi o analfabetismo das massas e a conseqüente despreocupação em relação à leitura dos textos neotestamentários no longo período de construção da igreja católica, restando ao povo a devoção tradicional combinada às crenças e costumes de suas comunidades. Este tipo de sincretismo foi a regra no mundo antigo que se tornava católico.

 

Quando o catolicismo entrou no norte da Europa, encontrou os cultos celtas a uma deusa que era a rainha do céu. Logicamente, a síncrese entre a rainha do céu e a virgem foi um processo natural, onde os celtas convertidos atribuíram à imagem de Maria as capacidades e peculiaridades da rainha do céu. Assim, essas percepções se deram cada vez que o catolicismo se inseriu em uma região, assumiu a cultura e procurou traduzir as crenças que lhe eram anteriores a uma forma compatível com a fé católica.

 

Na América invadida pelos europeus, a matrifocalidade religiosa se traduzia, em muitas regiões, pelos cultos à terra mãe, e também foram substituídos pelo culto à virgem mãe católica. O mesmo se deu em outros lugares com o culto à deusa lua. O culto asteca à Tonantzim foi incorporado na figura e no culto à virgem de Guadalupe. Este fenômeno é correlacional porque se deu como uma forma de esvaziar um mito da ancestralidade substituindo-o pela devoção católica invasora. Por outro lado, acabou em alguns casos, sendo expressão de inserção do catolicismo nas culturas. Tomemos como exemplo o caso de Guadalupe, onde a devoção a Maria foi proposta como forma de substituir o culto ancestral a Tonantzim, heroína civilizadora. Mas com o tempo, os descendentes dos astecas se reapropriaram da matrifocalidade católica de tal forma que através dela voltaram a expressar a simbologia de sua cultura com seus valores próprios, que de outro modo estaria condenada pela dominação colonial.

 

O testamento cristão deu continuidade às escrituras hebraico-judaicas a partir da vida e das palavras de Jesus. Quando Lucas conta, no primeiro capítulo do seu evangelho, a anunciação do anjo a uma moça de Nazaré e depois sua visita à prima Isabel (1.36 e seguintes), ele estava recorrendo a alguns relatos proféticos das escrituras hebraico-judaicas, como o relato de Sofonias capítulo 3 e o relato de 2º. Samuel capítulo 6. Se for assim, a idéia da matrifocalidade está explícita, aquela moça simbolizava a figura da comunidade crente. É o símbolo da gente despossuída, fiel a Deus e, ao mesmo tempo, da humanidade nova.

 

Nesse sentido a figura de uma mulher, mais precisamente de uma moça no desamparo de seu gênero, sintetiza a vocação do seu povo e dos crentes da nova aliança. Ela seria, então, em pessoa a realização plena do que os profetas antigos chamaram de virgem, filha de Sião, referindo-se ao povo fiel, conforme vemos em 2º. Reis (19.21); Isaías 52; Jeremias (31.4 e seguintes); e Sofonias (3.12 e seguintes). A matrifocalidade católica está descrita nessa moça sem poderes políticos, mas mãe de Deus, e sintetiza a história do Israel fiel à aliança. E é uma parábola da humanidade.

 

É interessante ver como a matrifocalidade católica fortalece e amplia a leitura de gênero presente nas escrituras hebraico-judaicas. Na leitura da criação, narrada no Gênesis, a mulher é produção do pai e culminou sua ação criadora. Em muitos textos bíblicos, embora a mulher seja figura da humanidade em sua relação com o pai, ela mais que nada é esposa. Tal imagem no livro do Apocalipse expande a matrifocalidade nascente ao dizer que apareceu no céu um grande sinal: uma mulher vestida do sol, com a lua debaixo dos pés e na cabeça uma coroa de doze estrelas (12.1). Por trás desta imagem, está o simbolismo matrifocal de antigas ancestralidades e apresenta a vitória da comunidade cristã que enfrentava perseguições e martírio. Não foi por acaso, então, que o catolicismo nascente viu nesta imagem da comunidade grávida do Messias a figura de Maria-mãe.

 

A dogmática matrifocada

 

A construção matrifocal católica criou uma rica simbologia ao redor da moça de Nazaré. É interessante que essa construção procurou na medida do possível partir de bases conceituais neotestamentárias. Assim, a imaculada concepção de Maria, declarada em 1854 pelo papa Pio IX, é fruto, em previsão, dos méritos do Cristo na cruz. Os cristãos católicos diziam assim que o Pai preservou a moça de Nazaré do pecado original pelos méritos antecipados da morte do filho. Ela, a moça de Nazaré teria sido a primeira salva, ou seja, com ela aconteceu antes, antecipou-se, a salvação que, pela cruz, os outros filhos receberiam.

 

Na seqüência da mesma construção simbólica, quando, em 1950, o papa Pio XII tornou dogma a assunção da moça de Nazaré ao céu com corpo e alma, dizia que ocorreu com ela, também em antecipação, o destino de todos, pois os cristãos oram no Credo, “creio na ressurreição da carne”. É isso e não privilégio dado por santidade própria ou por mérito diverso.

 

Mas ao discutir o fim do parentesco como conseqüência da expansão da matrifocalidade, esses dois dogmas que, talvez por centenas de anos, repousaram no inconsciente cristão, trazem percepções importantes: ela é mãe de Deus, mas é santificada e exaltada pela morte do filho que vai nascer. Nesse sentido, o fato de ser mãe do Deus-filho que vai morrer, e liberto libertar, faz dela símbolo perfeito da feminescência: é figura do caminho da vida de toda a humanidade.

 

O eixo fundamental das escrituras hebraico-judaicas e cristãs é a revelação de que o Pai tem um projeto para a humanidade: uma vida de intimidade com ele. Essa intimidade que recebe também os nomes de aliança ou reino de Deus supõe uma proximidade afetiva que lembra a relação homem/mulher. É como um casamento. Ora, a imagem tradicional de Deus nas religiões é de um pai dono do poder. Para se ter acesso a esse pai é necessário um intermediário. É como alguém que para ter acesso a um presidente precisa de um intermediário político ou de um padrinho. É essa constatação, num primeiro momento inconsciente, que se conscientiza na construção católica e leva ao surgimento e à expansão da matrifocalidade. Por ter sido educado olhando o pai ausente, no caso brasileiro, o povo simples não é diferente das massas dos primeiros séculos do início do catolicismo.

 

Para ouvir a palavra do Pai, as massas recorreram àquilo que as Escrituras chamaram de “anjo do Senhor”, emanação visível do pai transcendente. É imagem ou expressão da presença do Pai. Em outros lugares, os textos chamam de “glória do Senhor”, o sinal visível da presença do Pai. Como no Êxodo, a nuvem que desce sobre o monte Sinai quando o Pai fala (Ex 19) ou a tenda na qual o povo consulta o Pai. Quando os israelitas acolhem e reverenciam a tenda, a arca, a nuvem ou o vento, sinais da presença divina, não é nenhum destes elementos em si que eles adoram e sim o Pai presente através deles.

 

A matrifocalidade rompe a ausência e o distanciamento patriarcal. O que ela faz é trazer a realidade da ancestralidade para o presente, que deixa de estar no passado e passa a estar no cotidiano da vida, nas coisas que são feitas e que representam no dia a dia a manutenção da vida. Nesse sentido, a expansão da matrifocalidade não é representação do pai ou do filho, mas o fim do parentesco. Diante da matrifocalidade todos são filhos e não há um filho mais importante, porque o primeiro, o mais querido, morreu. E a volta dele, o levantar dele, se dá como esperança em todos os demais.

 

Essa expansão da matrifocalidade, presente no inconsciente cristão, possibilitou a construção de pontes com outras culturas também marcadas pela matrifocalidade. E essa compreensão nos remete às tradições do catolicismo popular brasileiro. Mas, aponta para uma teologia onde a universalidade cristã repousa em colo feminino. E porque uma virgem deu à luz Deus e é geradora de nova criação, o feminino passa a ocupar a centralidade da estrutura de parentesco da nova criação.

 

Podemos, então, dizer: uma virgem gerou como filho seu criador. Estamos diante da desconstrução das relações convencionais de sangue, filiação, paternidade e parentesco, mas, sobretudo, da quebra da naturalidade, da abolição do que restava da maternidade biológica. Essa desconstrução das relações familiares, aqui chamada feminescência, produziu um estado simbólico inovador que transformou a face da história cristã. A partir daí nasceu uma época e, ao mesmo tempo, uma criança. E, assim, desejos de pureza, incorpóreos e virginais da espécie humana, são preenchidos pela feminescência da virgem. Por isso, 1,2 bilhão de católicos, ocidentais e orientais, olham com tanto carinho para Maria, a moça de Nazaré.

 

 

III. PRAZER E SEXUALIDADE

 

Vamos fazer esta discussão a partir de uma poeta brasileira, mineira, católica, Adélia Prado, e um filósofo e teólogo francês, de formação católica, Georges Bataille, que têm preocupações comuns: o cristianismo e o prazer. Cada um a sua maneira, é verdade. Mas, ambos, por meio da literatura traduzem o paradoxo de, ao contrário do que vê correntes do cristianismo, principalmente do catolicismo, não consideram o prazer humano como excrescência. Ao contrário, abordam a vida a partir daí, da experiência marcada pelo prazer. O prazer de viver. Por isso, neste texto partiremos do diálogo possível e necessário entre os dois autores. Tal leitura procura superar a acentuação da teologia do pecado original, com a conseqüente culpa infindável, que perpassa a tradição cristã, no mínimo, pós-agostiniana. Aliás, a tradição cristã traduz este tropeço, uma vez que em sua metanarrativa fundante pesa a sombra de um instrumento de tortura, a cruz. Mas sem negar a dor e o mal, talvez seja possível no protestantismo recuperar o prazer de viver. Por isso, consideramos o diálogo Adélia/Bataille pertinente.

 

Até que ponto o comportamento humano é tão diferente do comportamento dos animais? Logicamente, responder a esta pergunta nos leva a discutir se de fato há liberdade e responsabilidade no comportamento humano. Se voltarmos, por exemplo, a Baruch Spinoza o comportamento humano deve ser descrito em termos de causas mecanicistas, como os demais fenômenos da natureza. Spinoza dedica ao problema moral e à sua análise os livros III, IV e V da Ethica. No livro III faz uma história natural das paixões, isto é, analisa as paixões teoricamente e cientificamente, e não desde um ponto de vista moral. O filósofo deve “humanas actiones non ridere, non lugere, neque detestari, sed intelligere; assim se exprime Spinoza no proêmio ao II livro da Ethica. Tal atitude científica, em Spinoza, é favorecida pela concepção determinista da realidade, em virtude da qual o mecanismo das paixões humanas é tão necessário como o mecanismo físico-matemático, e as paixões devem ser tratadas com a mesma serena indiferença que as linhas e superfícies das figuras geométricas. 

 

bom passa a ser apenas uma palavra para descrever coisas que nos dão prazer e mau coisas que nos causam dor.

 

O marquês de Sade (1740-1814), antes de Nietzsche, disse que o que move a ação do ser humano é o bom e o ruim. E o bom, para Sade, é tudo o que causa prazer ao indivíduo, ao passo que o ruim não é o que causa desprazer, mas antes o que vai contra à Natureza. Por isso, podemos chegar a Bataille partindo de Spinoza e passando por Sade, para quem a essência do bom é uma inversão de valores, que visa transformar o mundo em outro que se acredita melhor. 

 

Talvez seja necessário partir daí, da experiência marcada pelo prazer. O prazer de viver. Tal leitura procura superar a acentuação de uma teologia do pecado, com a conseqüente culpa infindável, que perpassa a tradição cristã, no mínimo, pós-agostiniana. Aliás, a tradição cristã traduz este tropeço, uma vez que em sua metanarrativa fundante pesa a sombra de um instrumento de tortura, a cruz. Mas sem negar a dor e o mal, talvez seja possível, mesmo no cristianismo, recuperar o prazer de viver. Ou, como disse Gonzaguinha, "viver e não ter a vergonha de ser feliz. Cantar e cantar a beleza de ser um eterno aprendiz. Eu sei que a vida devia ser bem melhor e será. Mas isso não impede que eu repita: é bonita, é bonita e é bonita". (O que é o que é, Gonzaguinha).

 

Assim, prazer, do latim placeretraduz a idéia de emoção agradável que resulta da atividade satisfeita, inclusive de gozo sensual, mas por oposição nos lembra dor e aflição. Nesse sentido, costumamos chamar aquele prazer que envolve a sexualidade de erotismo, já que aí está implícita a idéia de amor sensual. Por isso, erotismo pode ser considerado a indução ou tentativa de indução de sentimentos, mediante sugestão, simbólica ou alusiva, da questão sexual, o que nos leva ao prazer erótico na literatura. 

 

João Ubaldo Ribeiro, em entrevista ao jornal português Diário de Notícias, de 22/01/2000, conta que uma cadeia de supermercados portuguesa recusou-se a vender seu livro, A Casa dos Budas Ditosos, invocando o fato de esta ser pornográfica. Para o escritor tal atitude traduz o fato de que na cultura cristã, “há um sentimento de culpa ligado ao prazer, que tem marcado o pensamento ocidental. A ponto de Epicuro (...) passar a ser olhado com uma certa reserva, por ser o filósofo do prazer. (...) Numa sociedade que suspeita do prazer. É comum nós, cristãos, ou pelo menos de formação cristã e católica, sentirmo-nos desconfiados no momento em que estamos felizes”. 

 

Daí que neste ensaio sobre o prazer, partiremos de dois mal-compreendidos, uma poeta brasileira de primeira grandeza, Adélia Prado, e um filósofo francês, Georges Bataille. Ambos de formação católica, acusados de excessivamente prazerosos por críticos e teólogos. Por isso, tal diálogo é pertinente.

 

Adélia Luzia Prado de Freitas nasceu em Divinópolis, Minas Gerais, em 1935. Suas obras principais são Solte os Cachorros, conto, de 1977, O Coração Disparado, poesia, de 1978,  Poesia: Bagagem, de 1979, e Cacos para um Vitral, romance, de 1980. Depois de anos sem publicar, lançou Oráculos de Maio, uma coletânea de poemas, e Manuscritos de Felipa, um texto curto, que ela definiu como experiência literária e religiosa  

 

Adélia escreve para dialogar com Deus. O leitor entra só como testemunha e até um pouco como invasor. Mas, apesar dos fortes laços que tem com a religião, Adélia considera-se poeta e não profeta. "Meu projeto sempre foi escrever", ela diz.

 

Não a afeta que parte da crítica e também da comunidade dos poetas, fiéis a um velho preconceito, ainda a considerem mais evangelista do que escritora.

 

Seus poemas e sua prosa são, a rigor, longas conversas com Deus. E faz questão de dizer que não separa a experiência literária da experiência religiosa. “Muitos poetas, aqueles que se dizem ateus, apesar da grande poesia que fazem, não ligam uma coisa à outra. (...) Deus é o grande problema e a grande platéia, tanto que eu engano os críticos. Mas não engano Deus”. 

 

Georges Bataille, 1897-1962, nasceu em Billon, Puy-de-Dôme, França. Filósofo e escritor francês, ficou conhecido como o metafísico do mal. Sua obra está marcada por três experiências centrais: a experiência cristã de sua formação católica e jesuítica, a experiência estética no âmbito do surrealismo e a experiência política de esquerda. Escreveu sobre sexo, morte, degradação e as potencialidades do prazer. 

 

Considerava que o objetivo de todo intelectual, artista e teólogo, deveria ser a aniquilação da racionalidade em um ato violento, transcendental de comunhão. Bataille cursou teologia, com a intenção de ser padre, participou do movimento surrealista, mas acabou por se dedicar à sociologia, religião e literatura. Fundou e editou jornais. Foi o primeiro a publicar pensadores como Barthes, Foucault e Derrida. Casou-se duas vezes. Depois de divorciar-se de Silvia Maldés, sua primeira esposa, esta se casou com o psicanalista Jacques Lacan. Com sua segunda esposa, Diane de Beauchanais, teve uma filha. 

 

Uma de suas obras mais polêmicas é a Histoire de l´oeil (1928), que foi filmada, e que influenciou, entre outros, a filmografia do diretor japonês Nagisa Oshima (Império dos Sentidos) e a produção do cantor pop islandês Björk Guödmundsdóttir. Outras obras importantes são Le bleu du ciel (1945), L´abbé (1950). No campo da religião produziu um clássico chamado O Erotismo. Sua bibliografia é muito vasta e influenciou alguns dos principais pensadores modernos, que não lhe poupam elogios, como Jürgen Habermas, Barthes, Foucault e Derrida. Um ano antes de sua morte, em 1961, Pablo Picasso, Max Ernst e Juan Miró organizaram um leilão de pinturas para ajudar Bataille a superar suas dificuldades financeiras. Bataille morreu em Paris no dia 8 de julho de 1962. 

 

Em O Erotismo, Bataille apresenta uma chave de análise dos aspectos fundamentais da natureza humana, o ponto limite entre o natural e o social, o humano e o inumano. Bataille vê a experiência do prazer como aquela que permite ir além de si mesmo, superar a descontinuidade que condena o ser humano. E a partir dessa constatação, se propõe tratar da questão sob três perspectivas, o prazer dos corpos, o prazer dos corações e o prazer sagrado, já que o desafio é substituir o isolamento do ser, a sua descontinuidade, por um sentimento de continuidade profunda. 

 

A santidade do prazer

 

A religiosidade primitiva, para Bataille, extraiu das proibições o espírito da transgressão, enquanto, a religiosidade cristã se opôs ao espírito de transgressão. A visão de bom e mau, prazer e pecado, nos limites do cristianismo está ligada a esta relativa oposição.

 

Há no cristianismo um movimento duplo. Nos seus fundamentos o cristianismo quis abrir-se às possibilidades dum amor que era princípio e fim. Quis encontrar em Deus a continuidade perdida, invocar os delírios rituais para além das violências reguladas, o amor total e sem cálculo dos fiéis. Os homens, transfigurados pela continuidade divina, eram chamados, em Deus, a amarem-se uns aos outros. 

 

Assim, o cristianismo jamais abandonou a esperança de levar este mundo de descontinuidade ao reino da continuidade, abraçado pelo amor. O movimento inicial da transgressão derivou no cristianismo na visão duma superação da violência, que foi. transmutada no seu próprio contrário. Há neste sonho algo de sublime e trágico.

 

E para Adélia Prado, poética e religião se cruzam. Na verdade, ela vai além. “Não separo, para mim elas são a mesma coisa. (...) a poesia é um fenômeno de natureza religiosa, pois tem um papel fundador, que me conecta ao centro do ser”.   


Talvez por isso, ela é poeta e profeta, que vê imbricamentos e destinos que se costuram no ofício que exerce. “Eu entendo a poesia como um oráculo, a fala de uma divindade. Como posso dissociar as duas coisas? Mas sei que, porque não dissocio, corro o risco de ser vista como uma catequista e não uma poeta. Estou fazendo uma poesia na qual o religioso é forte? Estou. Mas é poesia? É poesia. Eu sou catequista, sim, mas em outras horas”. 

 
E por ser religiosa e poeta, profeta e escritora, acaba desagradando aos críticos que olham desconfiados essa poesia deslavadamente religiosa e aos religiosos que acham excessivamente prazerosos os oráculos desta senhora mineira. 

  

Sem dúvida, o prazer permeia os seus textos, prosa ou poética, de forma desafiadora. “Tenho um pouco de pudor de contar, mas só um pouco, porque sei que vou acabar contando mesmo. É porque lá em casa a gente não podia falar nem diabo, que levava sabão, quanto mais... ah, no fim eu falo”.  

 

Voltando a Bataille, a transgressão é a desordem organizada, ao introduzir num mundo organizado algo que o ultrapassa. Mas essa organização, fundada no trabalho, tem por base a descontinuidade do ser. O mundo organizado do trabalho e o mundo da descontinuidade são o mesmo mundo. Se os utensílios e produtos do trabalho são coisas descontínuas, aquele que se serve do utensílio e fabrica produtos é também um ser descontínuo e a consciência da sua descontinuidade aprofunda-se na utilização e criação de objetos descontínuos. E é no mundo descontínuo do trabalho que a morte se revela: já que para quem trabalha a descontinuidade se faz presente, com poder, através da morte. Ela é tragédia elementar que evidencia a inanidade do ser descontinuo. 

 

E a partir do poema Moça na sua cama, podemos ver como prazer, transgressão e descontinuidade se cruzam na poética de Adélia Prado.

 

“Papai tosse, dando aviso de si,/ vem examinar as tramelas, uma a uma./ A cumeeira da casa é de peroba do campo,/ posso dormir sossegada. Mamãe vem me cobrir,/ tomo a bênção e fujo atrás dos homens,/ me contendo por usura, fazendo render o bom./ Se me tocar, desencadeio as chusmas,/ os peixinhos cardumes./ Os topázios me ardem onde mamãe sabe,/ por isso ela me diz com ciúmes:/ dorme logo, que é tarde”. 

 

Ao reduzir o sagrado, o divino, à pessoa descontínua de um Deus criador, o cristianismo medieval foi longe e transformou o outro mundo num local onde se prolongavam todas as almas descontínuas. Povoou céus e infernos de multidões condenadas à descontinuidade eterna de cada ser isolado. Eleitos e condenados, anjos e demônios, transformaram-se em fragmentos, para sempre divididos, para sempre distintos uns dos outros, para sempre desligados dessa totalidade do ser à qual era contudo necessário religá-los.

 

Assim, o dilema está colocado: como continuar religioso sem perder o prazer? Tal como a proibição criou, na violência organizada das transgressões, o prazer inicial, proibindo a transgressão organizada, o cristianismo aprofundou os graus da perturbação sensual. E tal dilema está exposto em Moça na cama.

 

“Sim, mamãe, já vou:/ passear na praça sem ninguém me ralhar./ Adeus, que me cuido, vou campear nos becos,/ moa de moços no bar, violão e olhos/difíceis de sair de mim./ Quando esta nossa cidade ressonar em neblina,/os moços marianos vão me esperar na matriz./ O céu é aqui, mamãe./ Que bom não ser livro inspirado/o catecismo da doutrina cristã,/posso adiar meus escrúpulos/e cavalgar no torpor/dos monsenhores podados./ Posso sofrer amanhã/ a linda nódoa de vinho/ das flores murchas no chão”.

 

E o prazer se ligou à transgressão. Mas o mal não é a transgressão, é a transgressão condenada. O mal é o pecado, é a flecha perdida. É o pecado de que fala Baudelaire. Segundo Otto Maria Carpeaux, Baudelaire era "espiritualista porque levou às últimas conseqüências o pecado como condição da alma, ora enfatizando audazmente a dissolução, ora padecendo pelo que a consciência lhe dita. Daí o ser denominado “poeta do tormento humano”. E as narrativas dos sabbats, por exemplo, correspondem a uma procura do pecado. Sade negou o mal e o pecado. Mas teve que introduzir a idéia de irregularidade para transmitir o desencadeamento da crise voluptuosa. Teve de recorrer à blasfêmia. Sentiu que a profanação era inócua, se o blasfemo negava o caráter sagrado do bem, que pretendia macular. A necessidade e a impotência das blasfêmias de Sade são significativas. A Igreja negou o caráter sagrado do prazer, encarado como transgressão. 

 

Por isso, filósofos e poetas negaram o que a Igreja medieval considerava sagrado. Nessa negação, a Igreja perdeu em parte o poder religioso de evocar uma presença sagrada: perdeu-o quando o diabo deixou de estar na base duma perturbação fundamental. Ao mesmo tempo, os espíritos livres deixaram de acreditar no mal. Desse modo, encaminharam-se para um estado de coisas em que o prazer, deixando de ser um pecado, deixava de poder encontrar-se na certeza de fazer o mal, o que implica a destruição da sua própria possibilidade. Num mundo profano só haverá mecânica animal. A consciência do pecado pode manter-se, mas só se mantém ligada à consciência de um logro. O que nos leva, de novo, à Moça na cama

 

“As fábricas têm os seus pátios,/ os muros têm seu atrás./ No quartel são gentis comigo./ Não quero chá, minha mãe,/ quero a mão do frei Crisóstomo/ me ungindo com óleo santo./ Da vida quero a paixão./ E quero escravos, sou lassa./ Com amor de zanga e momo/ quero minha cama de catre,/ o santo anjo do Senhor,/ meu zeloso guardador./ Mas descansa, que ele é eunuco, mamãe”.

 

Ultrapassar uma situação não pode significar regressos ao ponto de partida. Há na liberdade a impotência da liberdade, mas nem por isso a liberdade deixa de ser disposição de nós por nós próprios. As ações dos corpos podem, na lucidez, abrir-se, apesar dum empobrecimento, à recordação inconsciente duma metamorfose infindável, cujos aspectos não deixarão de estar disponíveis. O prazer dos corações, o prazer mais ardente, ganhará aquilo que o prazer dos corpos tiver perdido, o que nos remete à fêmea do louva-a-deus como heroína sadiana.  

 

O prazer da santidade 

 

O prazer nos deixa na solidão. Prazer é aquilo sobre o que é difícil falar. Por razões que não são meramente convencionais, o prazer, principalmente o dos corpos, é definido pelo segredo. Não pode ser público. Tal experiência prazerosa situa-se fora da vida de todos os dias. No conjunto da nossa experiência, permanece separada da comunicação que fazemos das nossas emoções. Trata-se de tabu. Evidentemente que nada é completamente tabu, há sempre transgressões. Mas o tabu intervém para que se possa dizer que o prazer, sendo intensa emoção, já que nossa existência está presente sob a forma de linguagem, existe como se não existisse.

 

Há em nossos dias uma atenuação deste tabu, mas, apesar de tudo, o prazer ficará sempre como algo de exterior, algo que só é possível sob uma condição: sair para mergulhar na solidão, numa separação do mundo em que estamos. Assim, a experiência prazerosa leva ao silêncio.

 

Não sucede a mesma coisa com a santidade. A emoção experimentada na experiência da santidade pode ser expressa no discurso, pode ser objeto dum sermão. A experiência prazerosa, contudo, talvez seja vizinha da santidade. E Adélia Prado tem consciência disso:

 

“Corro o risco é dos preconceitos, e o preconceito é um inferno. Há pessoas que não têm audição ao que estou falando, e sem ter audição têm opinião. Não tenho medo de virar guru. Para mim, a poesia tem uma qualidade de oráculo. Mas não sou uma divindade, sei que sou só porta-voz. Agora, se uma pessoa acreditar que o poema pode curar, é a força da palavra que está curando, não sou eu. Se a poesia faz bem, ótimo, a mim também ela faz muito bemEu fico só sofrendo. Se eu fosse grande igual ao Rosa, eu o imitaria, colecionando as críticas ruins de cabeça para baixo. É o que se diz a meu respeito: "Apesar do religioso, até aparece alguma poesia". Como se o religioso não fosse matéria de poesia. O registro católico, esse sim, é acidental, resulta de minha cultura, de minha herança familiar. O católico é acidental, mas o religioso é essencial. Podia ser budista, islâmica, judaica, mas seria sempre religiosa”.

 

Isto não quer dizer que prazer e santidade tenham a mesma natureza. Mas que uma e outra experiência têm uma intensidade extrema. Quando se fala da santidade, fala-se da vida que determina a presença em nós de uma realidade sagrada, de uma realidade que pode nos perturbar completamente. A emoção da santidade e a emoção do prazer, quando traduzem uma intensidade extrema, nos aproximam de outras pessoas e nos afastam delas, nos deixam na solidão.

 

A passagem do prazer à santidade tem sentido, afirma Bataille. É a passagem do que é maldito e rejeitado ao que é abençoado e bendito. O prazer é crime solitário, que não salva senão opondo-nos a todos os outros, que não salva senão na euforia de uma ilusão, uma vez que aquilo que no prazer leva ao extremo grau da intensidade atinge-nos ao mesmo tempo com a maldição da solidão. Já a santidade faz sair da solidão, com a condição de aceitar este paradoxo -- felix culpa! -- cujo próximo excesso resgata. 

 

Só um desvio permite nestas condições regressar aos nossos semelhantes. Este desvio merece sem dúvida o nome de renúncia, uma vez que no cristianismo não podemos simultaneamente operar a transgressão e gozar dela, e só outros podem gozar dela na condenação da solidão. O acordo com os seus semelhantes só é encontrado pelo cristão sob condição de nunca mais gozar daquilo que o liberta, daquilo que nunca é mais do que transgressão, violação das proibições sob as quais repousa a civilização.

 

Se seguirmos o caminho indicado pelo cristianismo, considera Bataille, podemos não apenas sair da solidão, mas aceder a uma espécie de equilíbrio, que escapa ao desequilíbrio primeiro e que nos impede de conciliar disciplina e trabalho com a experiência dos extremos. A santidade cristã abre-nos pelo menos a possibilidade de levar até ao fim a experiência desta convulsão final, a morte. Aquele que compreende a importância do prazer apercebe-se que esse valor é o valor da morte. Talvez seja um valor, mas a solidão abafa-o.

 

Talvez por isso, em 1992, antes de escrever O Homem da Mão Seca, Adélia fez seis meses de psicanálise. E ela garante: “Já se disse que a religião do futuro será a psicanálise, o autoconhecimento. As igrejas, as instituições vão acabar, a igreja real é dentro de mim. Hoje ainda necessitamos do rito - mas um dia a instituição desaparecerá, para que se institua a igreja real, que está no coração de cada um. Jung disse que, para que a cura aconteça, o analista deve remeter o paciente à sua religião de origem. Ele descobriu a qualidade curativa da religião, ter um criador para adorar, para a gente não ficar feito boba. Deus é personagem principal em sua obra. Ele está em tudo. Não apenas Ele, mas a fé católica, a reza, a lida cristã”. 

 

E assim, na santidade de sua mineirice, Adélia diz que a religião dá sentido à vida, “costura minha experiência, me dá horizonte. Acredito que personagens são álter egos, está neles a digital do autor. Mas, enquanto literatura, devem ser todos melhores que o criador para que o livro se justifique a ponto de ser lido pelo seu autor como um livro de outro. Autobiografias das boas são excelentes ficções”. 

 

Por isso, para Bataille, o santo vive como se morresse, mas vive a fim de encontrar a vida que é a vida. A santidade é sempre um projeto. Talvez não o seja em essência. A intenção da vida eterna liga-se à santidade como se liga ao seu contrário. Como se, na santidade, só um compromisso permitisse entregar o santo à multidão, entregar o santo a todos os outros: à multidão, ou seja, ao pensamento comum.

 

O mais estranho é que possa haver ligação entre a transgressão deliberada e a condição de não se falar dela. Este acordo é encontrado nas religiões arcaicas. O cristianismo inventou um caminho aberto à transgressão que permite se falar da transgressão. Reconhecemos assim que o pensamento, que vai além do cristianismo, tende a negar tudo o que se assemelha à transgressão, a negar tudo o que se assemelha à proibição. 

 

Assim, no plano do prazer, temos a linguagem do prazer, que é  negação da proibição, negação da transgressão que gera a proibição. Aqui, a palavra é a negação do que define o humano por oposição ao animal.

 

E Adélia Prado, majestosamente, nos mostra isso em seu poema Objeto de Amor.

 

“De tal ordem é e tão precioso/ o que devo dizer-lhes/ que não posso guardá-lo/ sem que me oprima a sensação de um roubo:/ cu é lindo!/ Fazei o que puderdes com esta dádiva./Quanto a mim dou graças/ pelo que agora sei/ e, mais que perdôo, eu amo”.

 

E quando entrevistada pelo jornalista Pedro Bial, num programa de televisão, no dia 27 de dezembro de 1998, ao ouvir a pergunta tantas vezes repetida... como uma senhora mineira, católica e mãe de família, podia usar expressão tão grosseira, Adélia Prado justificou o uso da expressão maldita afirmando que a palavra traduzia a sacralização do corpo, templo de Deus. 

 

 

Para discussão em sala de aula. Leia e analise a partir dos textos lidos.

 

NA CONTRAMÃO COM ARISTÓFANES

 

O texto hebraico das Origens conta que o eterno disse não é bom que o cara viva sozinho, vou construir para ele alguém que o ajude a ir em frente. Isso a gente sabe, todos num estado de tranqüilidade, e ciente dos desejos do coração, deseja amar e ser amado. 

 

Ou seja, num momento de sinceridade, amamos ter alguém em quem confiar, e se possível a ponto de podermos revelar nosso lado íntimo. É, acho que gostaríamos muito poder confiar àqueles que gozam de nossa intimidade alguns dos sentimentos que guardamos lá dentro. Talvez, por isso, nos sentimos atraídos por grupos de relacionamentos como facebook, twitter e outros. É isso mesmo, no raso e no fundo, queremos amar e ser amados.

 

Às vezes no silêncio da noite/ Eu fico imaginando nós dois/ Eu fico ali sonhando acordado/ Juntando o antes, o agora e o depois (“Sozinho”, de Caetano Veloso e Peninha). 

 

Por isso, a pergunta procede: o que nos impede de abrir o coração e amar? Tememos riscos? Que riscos? 

 

Vamos pensar isso com o poeta Aristófanes, lá no Banquete de Platão. Ele disse que antigamente a natureza não era como é hoje. Nossos ancestrais eram duplos, mas tinham unidade. Cada pessoa constituía um todo, de forma esférica, com costas e flancos arredondados. Tinham quatro mãos, o mesmo número de pernas, dois rostos idênticos num pescoço redondo, mas uma cabeça única para o conjunto desses dois rostos opostos um ao outro. Tinham quatro orelhas e dois órgãos sexuais.

 

Por que você me deixa tão solto?/ Por que você não cola em mim?/ Tô me sentindo muito sozinho

 

Essa dualidade genital explica por que não havia dois e sim três gêneros na espécie humana: os machos, que tinham dois sexos de homem, as fêmeas, que tinham dois sexos de mulher, e os andróginos, que tinham ambos os sexos. 

 

O macho, conta o poeta, era filho do Sol, a fêmea filha da Terra, a espécie mista da Lua, que participa do Sol e da Terra. Todos tinham uma força impressionante e, por isso, tentaram subir ao céu e derrubar os deuses. Para puni-los, Zeus decidiu cortá-los em dois, de cima a baixo, como se corta uma laranja. Então terminou a completitude e a unidade. A partir de então cada um é obrigado a buscar o outro pedaço.

 

Não sou nem quero ser o seu dono/ É que um carinho às vezes cai bem/ Eu tenho meus desejos e planos secretos/ Só abro pra você mais ninguém

 

Agora, estaríamos separados de nós mesmos. Esse desejo de busca é o que Aristófanes chamava amor, e, quando satisfeito, seria a condição da felicidade. Somente o amor reconstruiria a natureza, ao fundir dois seres num só. Por isso, para o poeta e dramaturgo, uma pessoa seria homoafetiva, heteroafetiva ou andrógina, conforme a unidade perdida.

 

Assim, a partir do mito, Aristófanes considerou que quando uma pessoa, tenha ela inclinação por homens ou mulheres, encontra a sua metade, transforma-se num prodígio de amor e ternura.

 

Por que você me esquece e some?/ E se eu me interessar por alguém?/ E se ela, de repente, me ganha?

 

Essa é a definição do amor fusional de Aristófanes, que faria voltar à unidade da natureza primeira, que libertaria da solidão, e que seria, tanto nesta vida como na outra, a maior felicidade a ser alcançada. 

 

Mas, por necessitar duas pessoas tal fusão é sempre um momento e, por isso, longe de abolir a solidão, a confirma. Se as almas pudessem se fundir seria outra coisa, mas são os corpos que se fundem, por um momento.

 

Daí o fracasso. Todos querem ser um só, mas eis todos mais do que nunca sendo dois, sempre. Por isso, os romanos diziam que post coitum omne animal triste. Mas se o amor não nasce dessa fusão de corpos, nasce o prazer. Ou, podemos dizer, os corpos entendem mais de Eros do que os especialistas. Os corpos entendem as solidões, as loucuras dos desejos, os abismos do prazer. Se após a união dos corpos, a solidão é parceira, o corpo é este pedaço de mim nunca completado.

 

Detalhe: Platão não gostava de Aristófanes. E o relato hebreu, que mergulha nas profundezas na existência, não deixa por menos, somos dois mesmos, sempre. E é do diferente, do divergente, que deve nascer a união. Ou como disse o homem de Nazaré, e ambos serão uma só carne. E se isso é bênção ou maldição, acho que depende de cada dois.  

 

Ou você me engana/ Ou não está madura/ Onde está você agora? (“Sozinho”, de Caetano Veloso e Peninha). 


 

 

 

 

Capítulo nove

A DOUTRINA DA ALIENAÇÃO E DO PECADO

 

 

“GENTILEZA GERA GENTILEZA 41 AMORRR A NATUREZA  / E DEUS NOSSO PAI CRIADOR / NÃO VENDE TERRAS NÃO COBRE / PARA NOS DAR ALIMENTAÇÃO DA / TUDO DE GRAÇA O CAPITALIS- / MO DESTROI E LEVE PARA O / ABISMO I POR JESSUSS DISSE GENTILEZA”.

Profeta Gentileza 

 

 

A existência, enquanto processo, pode ter determinação construtiva no sentido teleológico, por apresentar qualidades adequadas à sua natureza ou função. E o humano, momento da existência, tem possibilidades diante dela. Essas possibilidades podem ser chamadas de liberdade condicionada e relativa à própria existência. Mas tais possibilidades são desafios à compreensão da condição humana e de suas relações reais. Estamos, então, falando de alienação.

 

I. A ALIENAÇÃO COMO DESAFIO

 

A alienação antecede o exercício da liberdade. A idéia, trabalhada por Tillich, a partir de Hegel, é de que pertencemos essencialmente àquilo de que estamos separados. Ou seja, o humano não está separado de seu ser, mas é julgado por ele, e mesmo quando este lhe é hostil não consegue separar-se dele. As possibilidades humanas estão, nesse sentido, mesmo enquanto determinação construtiva e dinâmica, sob funções correlatas, alienação e lei, liberdade e necessidade, que são realidades da existência.  

 

Se a alienação é ruptura essencial, parto que vai produzir a consciência humana, remete tanto ao distanciamento como à aproximação com o Ser. Não seria, então, apenas disfunção, mas apontaria também às funções do humano, enquanto ser com possibilidades de realização somática, psíquica, cultural, ecológica e do sentido pleno da vida. 

 

Na tradição judaico-cristã essa relação entre alienação e liberdade foi um tema teológico de importância. Dos textos judaicos resgatamos idéias como aliança, constância, fidelidade, que remetem à correlação alienação/lei. E no testamento cristão a idéia de destino traduziu o conceito de alienação em seus dois vetores, distanciamento e aproximação.

 

As tensões ao redor da compreensão das idéias de alienação, que traduz funções e disfunções do humano, e graça, enquanto ação divina para a salvação, apontam para duas outras questões: história e liberdade. Essas duas questões formam a base do pensamento de que o ser humano por ser imagem do Eterno é um ser livre e, por extensão, faz história. Livre significa liberdade de julgamento e ação no âmbito da existência. Então, para que as pessoas sejam livres, o Eterno garante a liberdade delas. 

 

Na carta aos  Romanos (5.12), Paulo afirma que hamartia entrou no cosmo através do humano e com hamartia, a morte. Ora, hamartia ou peccatus é um fazer, uma consequência que nasce deste conceito militar dos gregos, ato do arqueiro errar o alvo, quer no treinamento, quer na batalha. Paulo utiliza a expressão no sentido de que a humanidade vive um fazer em que errar o alvo é possibilidade crescente na existência, embora não seja um estado dela.  

 

Errar o alvo, ou, em hebraico moderno, errar o tiro, leva à conseqüências. Paulo privilegia uma delas, a consciência da morte. Para o apóstolo, hamartia ou peccatus produz uma consciência matricial, a consciência da morte. A partir da consciência da morte temos a consciência do divino, a consciência da diversidade, já que não somos bichos e, por extensão, não somos natureza, a consciência de que podemos escolher, e a consciência de que coisas e ações podem ser boas ou não. Dessa maneira, o alvo é o desafio de acertar, e estão diante do humano, de forma permanente, as necessidades diante da lei, daquilo que é ou está frente à existência e possibilidades diante da liberdade, daquilo que não existe, mas pode ser criado.

 

Alvo implica, então, em necessidades e lei e possibilidades e liberdade, que não se excluem: estão correlacionadas na existência humana, fazem parte do desafio da existência.

 

Ora, em termos teológicos, a partir dessa primeira reflexão, podemos dizer que todos são chamados à comunhão e cada pessoa pode responder positivamente a esse chamado. Caso o ser humano responda positivamente ao chamado, vive o processo de libertação que leva à comunhão plena. A comunhão consiste, então, em metanóia, que é volta ao estado de liberdade e permanência na escolha. A partir desta resposta, o Eterno opera a salvação do ser humano. Por isso, podemos dizer que a vontade humana abre o caminho da libertação. A partir daí entendemos a graça universal, pois todos os seres humanos poderiam responder positivamente ao chamado à comunhão. Ou seja, a liberdade de julgamento no âmbito da existência leva a pessoa a escolher os caminhos de sua história.

 

As funções e disfunções existenciais do humano, ou seja, a alienação, fazem com que as ações humanas, a partir dos desejos – emoções e sentimentos – levem o ser humano à possibilidade de errar o alvo, lehatati em hebraico, hamartia, em grego, e peccatu, em latim. Dentro da tradição das escrituras hebraico-judaicas, lehatati é a violação da lei. Mas lehatati é sempre uma ação do coração e não um estado do ser. Já a alienação, esta sim, é um estado da existência e toda a humanidade se encontra nesse estado de disfunção, ou inclinação para fazer o mal, conforme vemos em Gênesis 8.21. Assim, lehatati traduz não somente falta moral, mas todas as violações da lei, quer conscientes ou não. E, segundo a tradição judaica, todo ser humano nasce sem lehatati, e a culpa de Hadam recaiu sobre ele e sua família, mas não se estendeu à espécie humana. Apesar disso, todo ser humano é responsável pelo lehatati porque todos temos vontade livre, mas natureza alienada e, por isso, tendemos também para o mal. Por isso, o texto acima citado de Gênesis diz que o coração humano é mau desde a sua juventude. Mas o Eterno, através de sua misericórdia, possibilita ao ser humano a metanóia e o perdão. 

 

A libertação humana é um processo, por isso, a pessoa não é plenamente livre, porque depende dela permanecer ou não na opção escolhida. Se ela manter a escolha será plenamente livre, se abandonar a escolha retorna à alienação. Caso a pessoa livre se alienar, se não houver metanóia, se não voltar à comunhão, estará alienada.

 

Dessa maneira, na polaridade alienação/comunhão dá-se a construção da história, ou seja, as pessoas e as comunidades humanas interagem, por opção ou por omissão, na construção de sua história. O Eterno é soberano porque criou e mantém o universo, sustentando-o na universalidade do Espírito, aqui entendida como sentido da vida. A soberania especial está sobre a comunidade que permanece na escolha. As outras comunidades estão fora desta soberania especial, da graça que gera comunhão plena, exatamente porque usaram a liberdade para escolher o lehatati

 

E quanto maior a alienação, mais o Eterno retrai sua soberania sobre tais pessoas e comunidades, e, consequentemente, a graça que gera comunhão plena. O que explica o mal enquanto feituras pessoal e social. E para que o processo histórico se dê, o Eterno contrai espaço-temporalmente sua justiça executora. 

 

Por paixão ao ser humano, ele contrai a ação de seu conhecimento. Caso o Eterno, a partir de seu conhecimento, definisse todas as ações livres do ser humano, as pessoas e as sociedades poderiam fazer apenas aquilo que o Eterno por conhecer definisse, sem poderem tomar decisões alienadas, sem poderem se afastar dele. 

 

O Eterno dirige o seu fazer, mas interage com as pessoas e as comunidades humanas na produção da história, enquanto obra que nasce das correlações liberdade e comunhão e liberdade e alienação. A polaridade alienação versus comunhão não apresenta o ser humano como bom ou mal, mas como ser que age a partir dessa polaridade. Isso fica claro no diálogo que o Eterno tem com Caim, quando diz que ele está inclinado para o mal, mas deve dominá-lo. Essa conversa apresenta um padrão humano, a alienação. 

 

Em Gênesis, o Eterno disse para Hawah, que no texto representa a vida, que a alienação seria a regra e a humanidade cresceria sob o signo da violência. A alienação estabelece uma proposição, um princípio atemporal e não espacial, sobre o qual a razão titubeia, uma vez que aparentemente transcende a concepção de humanidade, mas, ao mesmo tempo, reduz qualquer expressão humana. Parece estar além da razão: é impensável. Podemos, no entanto, partir do postulado de que há uma alienação ontológica, que antecede todo mal manifesto. Esta causa maior é a raiz sem raiz de tudo que foi e é mal. Despida de atributos não tem, a princípio, nenhuma relação com o mal expresso. É  o mal que é e está além da razão de ser maligno, malévolo, malvado.

 

O que é mal está simbolizado no ser alienado sob dois aspectos: por um lado, é o não-espaço da subjetividade, aquilo que a mente não pode excluir, nem conceber por si mesma. Por outro lado, o mal incondicionado é dinâmico. A consciência é inconcebível quando separada do movimento, pois é ele que leva à mudança. Tal aspecto do mal é simbolizado na ideação multiplicarei o teu sofrer e a tua conceição: em dor darás à luz filhos”. Um símbolo gráfico do mal presente no parir a vida. Este axioma fundante do mal ontológico remete àquilo que podemos simbolizar como características do mal.

 

A natureza da causa do mal, derivada da alienação aparentemente sem causa, aflora como consciência, impessoal, que permeia a natureza. Esta causa do mal é o campo da consciência, que transcende a relação com a existência e da qual a existência consciente é condicão. Mas, ao atravessar pela negação a relação entre existência e consciência, surge a alienação enquanto estado da existência: o espírito do mal, a consciência do mal e a matéria do mal.

 

Espírito do mal, consciência do mal e matéria do mal devem ser considerados não como independentes, mas correlações que se originam no ser alienado. Considerada a alienação ontológica, raiz da qual procedem todas as manifestações do mal, a expressão multiplicarei o teu sofrer e a tua conceição: em dor darás à luz filhos” assume o caráter de ideação do que ainda não é humano. Ela é a fonte da força de todo mal individual e social e fornece os elementos para a análise do mal que perpassa o humano e sua história. Tal raiz pré-humana é o absoluto expresso no multiplicarei o teu sofrer e a tua conceição: em dor darás à luz filhos”, base do mal objetivo. Tal ideação do porvir humano é a raiz do mal individual e social, enquanto estado da existência, alienação em seus diferentes graus.

 

A correlação dos aspectos da alienação ontológica, de origem, é fundante da existência enquanto mal manifesto. A ideação da humanidade, separada de tal estado, não se manifesta como mal individual e social, uma vez que é somente através de um veículo, a alienação da ideação, que o mal aflora como violência que é, ato alienado que necessitou de base física para apresentar-se como momento de uma complexidade maior, natural e humana. Da mesma forma, tal estado da existência, separado da ideação da humanidade, permaneceria como uma abstração da qual o mal não poderia emergir. O mal-manifesto, assim, é permeado pela correlação, que é fundamento de sua existência como alienação que se manifesta.

 

As correlações entre mal-manifesto, espírito e matéria do mal são símbolos da alienação ontológica, presentes no universo manifestado da alienação. Essa correlação é alienação existencial, a ponte através da qual as idéias são impressas enquanto substância da natureza do mal, presentes na forma de leis da natureza e da sobrevivência do humano. A alienação, dessa maneira, é dinâmica da ideação do humano, é meio que guia a manifestação. 

 

Ou como disse Lameque (Gn 4.23-24), ser violento mítico consciente do ciclo do mal, apresentado nas escrituras hebraicas: “Ada e Zilá, ouçam a minha voz. Escutem, mulheres de Lameque, as minhas palavras: matei um homem, porque me machucou. E um jovem, porque me pisou. Se são mortas sete pessoas para pagar pela morte de Caim, então, se alguém me matar, serão mortas setenta e sete pessoas da família do assassino”.

 

Assim, a consciência procede também da ideação do mal, e fornece os meios que possibilitam ao mal individualizar-se na existência humana. A alienação em suas manifestações é o elo entre o espírito e a matéria do mal, presença que, paradoxalmente, equilibra vida e morte, permanência e destruição. Por isso, o apóstolo Paulo disse que o Cristo é a paz, porque derrubou a parede da separação que estava no meio, a inimizade, e aboliu a lei dos mandamentos na forma de ordenanças, para criar, nele próprio, o novo humano. 

 

Podemos, dessa maneira, ler Gênesis 6.5 (“a imaginação dos pensamentos de seu coração era continuamente má”), 8.21 (“a imaginação do coração do homem é má desde a sua meninice”) e Deuteronômio 31.21 (“porque conheço a sua imaginação”), a partir da compressão do conceito de alienação. É interessante que nenhum desses textos fala do ser humano como essencialmente corrupto, mas alienado. A própria palavra yetzer, que vem da raiz yzr, utilizada quando as Escrituras hebraicas falam de inclinação maligna, significa moldar, propor-se. A idéia é que o ser humano é dirigido por suas inclinações, imaginações, sejam elas boas ou más. É yetzer que, combinado ao julgamento livre no âmbito da existência, possibilita a metanóia. Ou, conforme diz Deuteronômio, o Eterno coloca diante do ser humano a possibilidade do bem e a possibilidade do mal. Os seres humanos terão comunhão se obedecerem aos mandamentos do Eterno e errarão o alvo se desobedecerem aos mandamentos do Senhor (11.16-28). 

 

Só o Eterno é capaz de fazer com que exista a liberdade humana e mantê-la.  Essa graça, oriunda do Eterno e derramada sobre a humanidade, possibilita a construção da história. Por isso, Paulo diz que o Eterno fica de humor transverso com a alienação que distancia, mas segura as pontas com calma, por saber que a alienação é fruto da sua valência e, diante da alienação que aproxima, também obra sua, Ele expressa alegria. (Romanos 9.22-23).

 

Essa leitura da liberdade entregue ao ser humano é importante para a teologia, pois ao dizer que as pessoas e as comunidades humanas podem agir à margem daquilo que o Eterno desejaria para a humanidade, apresenta a violência, a guerra e os genocídios como frutos da opção e ação humanas. E o teólogo pode, então, analisar porque os profetas clamam e apontam às sociedades o caminho do Reino, embora estas possam escolher os seus próprios caminhos. O campo de concretação de Auschwitz, sob o nazismo, e os genocídios contemporâneos são, então, passíveis de estudo. Mas a nossa leitura coloca, também, para as comunidades de fé, o clamor profético e o desafio de expandir o Reino.

 

Em relação à alienação, o ser humano herdou de Hadam a inclinação para o mal e, como consequência, a possibilidade crescente de errar o alvo, mas não a culpa. Os seres humanos são alienados porque separaram razão e coração e erram o alvo porque são alienados. E em relação ao processo de libertação, a morte do Cristo abre as portas da comunhão, mas não assegura a libertação plena, pois esta só será definitiva se a pessoa não desistir da corrida.

 

Paralelo ao pensamento hebraico, a cultura grega apresentou uma rica leitura do conceito de destino, que relaciona alienação e hamartia. O conceito destino nasceu da reflexão de que os deuses são imortais porque o humano está situado entre a finitude existencial e a infinitude potencial. Para os gregos o destino era finitude existencial, e esse é o tema da tragédia grega e da busca da superação filosófica, principalmente de estóicos e epicuristas. Era uma tentativa de colocar o humano acima do destino que o distanciava de seu ser, transformando-se em poder destrutivo que envolveu o mundo helênico em culpa e julgamento. 

 

Um exemplo dessa leitura, que nos interessa para a construção de uma compreensão teológica da alienação, seria o arrazoado que Pedro, o apóstolo, fez em sua segunda epístola, ao dizer que a graça não tem limites, pois o Eterno não retarda a sua promessa, como alguns afirmam, por julgá-la demorada, mas por ser paciente. Ele não escolheria a danação eterna de pessoas, ao contrário, desejaria que todos chegassem à metanóia, ou seja, fizessem o caminho de volta à liberdade e construíssem comunhão. 

 

Dessa maneira, a graça tem eficácia ilimitada, mas há uma chave para que a função graça seja plenamente exercida. E essa chave é: chegar à metanóia. Dessa maneira, o sacrifício do Cristo, que é graça plena e universal, deve ser somado à metanóia, produzindo então a libertação. Ou seja, graça plena mais metanóia é igual à libertação. E o sacrifício do Cristo sem a metanóia, produz justiça. Ou seja, o valor da cruz não é limitado, mas sim sua aplicação. E a preparação da pessoa e das comunidades humanas para a graça tem o julgamento livre no âmbito da existência como movimento e o Eterno como móvel. 

 

Essa preparação pode ser pensada como movimento que parte, enquanto universalidade, da liberdade humana em direção à especificidade que tem o Eterno como móvel e implica em graça determinada pelo Eterno, embora não seja proveniente da coação, mas do seu pleno conhecimento, porquanto a intenção do Eterno não pode deixar de ter efeito. 

 

Por isso, podemos falar da universalidade da graça, presente na comunidade humana, e na especificidade da graça, que infalível segue a boa vontade humana. Mas esse movimento é dialético, pois, quando olhamos da perspectiva do humano, ele parte da universalidade, mas se olharmos da perspectiva divina parte da especificidade. Ou seja, universalidade e especificidade são termos relativos, que se complementam na plenitude da graça. Por isso, liberdade, eleição e graça fazem parte de uma dança permanente, onde cada conceito implica na existência do outro e nenhum tem existência independente, mas criam uma unidade/diversidade correlacional plena e necessária. 

 

Todas as pessoas e comunidades humanas realizam suas existências dentro desse processo, fazem parte dele, o que significa dizer que existência, liberdade e graça fazem parte da história humana. O Eterno mobiliza o processo em direção à especificidade, com base no seu conhecimento da fé e da perseverança de cada pessoa e das comunidades humanas, mas conhece e aceita o sentido da universalidade humana. Esta seria a leitura do texto de Pedro, quando disse que no meio do povo surgiram falsos profetas que introduziram doutrinas destruidoras, a ponto de renegarem o Eterno que os resgatou.

 

II. ALIENAÇÃO E DESTINO

 

Na teologia paulina, enquanto diálogo das concepções do apóstolo com o mundo helênico, principalmente em sua carta aos Romanos, alienação/destino é o tempo favorável que triunfa sobre o espaço. O caráter do tempo propício à liberdade substituiu o tempo cíclico, transitório e perecível do pensamento helênico. A partir dessa compreensão, destino traduz aproximação, e apresenta novas possibilidades de construção da liberdade no tempo e na história. 

 

Antes, a filosofia confrontava-se com a inspiração dos poetas, mas, a partir de Paulo, a revelação apodera-se da filosofia. Assim, o destino que distanciava foi questionado pelo pensamento paulino: “aquele que não era meu povo será chamado de meu povo, e aquela que não era amada passou a ser amada”. (Romanos 9.25). O transitório e perecível perdeu importância e a idéia da construção da existência enquanto tempo favorável foi tomando forma. 

 

Mas voltemos um pouco atrás, para entendermos esse processo. Dentro da visão paulina, que traduz o pensamento cristão palestino, alienação/destino, no sentido de que os limites são potencialmente ilimitados, é a lei na qual surge o conceito de liberdade. Assim, alienação/destino correlaciona conceitos, porque a alienação está sujeita à liberdade; porque alienação significa que a liberdade também está sujeita à lei; e porque alienação significa que liberdade e lei são complementares e interdependentes.

 

Analisando o conceito cristão palestino de alienação/destino -- exposto por Paulo em sua carta aos Romanos -- podemos dizer que a liberdade humana está ligada às leis universais, de tal forma que liberdade e leis se encontram entrelaçadas. Para Paulo, assim como para a tradição judaica, lei é imposição de limites. Por isso, a alienação é um estado que surge da correlação entre lei e vida, porque se o julgamento é inerente a tudo na existência, também o é a liberdade.

 

Assim, a certeza de que a alienação/destino é propícia e tem significado realizador e não destruidor, é a peça chave do pensamento de Paulo, que coloca o sentido da vida, que é o Cristo -- revelado pelo amor do Pai na presença do Espírito --,  acima do destino. Ao fazer isso, Paulo está dizendo que a compreensão do destino não está ao alcance da razão humana, mas o sentido da vida traduz a imortalidade potencial do humano. 

 

Quando o humano faz a defesa do sentido incondicional da vida deixa de temer a ameaça da alienação/destino que distancia, e aceita o lugar que cabe à alienação enquanto estado da existência. Reconhecemos, então, que desde o princípio vivemos num estado de alienação e que sempre desejamos nos livrar dela, mas nunca conseguimos. Mas nessa análise da alienação cabe relacionar sentido de vida tempo. O sentido da vida deve envolver as leis universais, a plenitude do tempo e a própria existência. E quando o Cristo alcança a existência, penetra no tempo e faz da alienação, aproximação. 

 

É necessário, porém, entender que a consciência parte da alienação e que o reino da existência só é acessível ao conhecimento liberto da alienação que distancia. Dessa maneira, ao contrário do que pensavam os gregos, o humano possui potencialidade própria, enquanto ser, para realizar seu destino. Quanto maior a potencialidade humana – que cresce na medida da expansão do sentido da vida, sempre entendida como o Cristo revelado pelo amor do Pai na presença do Espírito -- maior será sua consciência de destino.

 

O destino humano, que nasce da alienação, aponta para o sentido da vida que emerge das crises e desafios. Quanto mais profundamente entendermos nosso destino, no sentido paulino de prokeimai, estar colocado, ser proposto, predestinado, e o de nossas comunidades, tanto mais livres seremos. É o que nos explica o apóstolo Paulo:

 

E da mesma maneira também o Espírito ajuda as nossas fraquezas; porque não sabemos o que havemos de pedir como convém, mas o mesmo Espírito intercede por nós com gemidos inexprimíveis. E aquele que examina os corações sabe qual é a intenção do Espírito; e é ele que segundo Deus intercede pelos santos. E sabemos que todas as coisas contribuem juntamente para o bem daqueles que amam a Deus, daqueles que são chamados por seu decreto. Porque os que dantes conheceu, também os predestinou para serem conformes à imagem de seu Filho, a fim de que ele seja o primogênito entre muitos irmãos. E aos que predestinou, a esses também chamou; e aos que chamou, a esses também justificou; e aos que justificou, a esses também glorificou”. Romanos 8. 26-30.

 

A liberdade humana se dá na existência, enquanto realidade condicionada pela materialidade. A liberdade entende-se como correlação entre lei e sentido de vida, que como vimos é o Cristo revelado pelo amor do Pai na presença do Espírito. Quando Hegel afirmava que a liberdade é a consciência da necessidade, como fez questão de mostrar Marx, cometia um erro porque descartava a realização da liberdade. É por isso que Marx dirá que liberdade é práxis. Ora, para Marx, praxe é consciência da necessidade somada à ação transformadora. Ou seja, consciência da lei diante do estado de alienação que distancia é mudança radical, é ação transformadora da vida.

 

Lehatati, hamartiapeccatu é um fazer. Em relação ao imediato transforma-se em estado e no que se refere à espécie humana é um domínio. Lehatati, hamartiapeccatu acontece quando minha liberdade é desafiada, quando ela é chamada a surgir como feitura humana. Nesse sentido, lehatati, hamartiapeccatu não se apresenta sem agente moral, sem liberdade. Toda vez que realizo minha liberdade a lei está presente, pois lehatati, hamartiapeccatu é um contra-tipo da liberdade.

 

Por isso, só podemos responder à alienação que distancia reconhecendo que lehatatihamartiapeccatu é feitura minha e de minha espécie, e que devo promover a ruptura desse fazer através da ação de expansão do sentido pleno da vida. Ao nível do pensamento, do sentimento, da vontade e da ação -- pois a alienação que distancia é o que não devia estar -- devemos exercer uma ética radical de defesa da vida e de seu sentido, de combate ao estado de alienação na vida de pessoas e comunidades.

 

Em 1970, Manuel Ballestero publicou em Madri, pela Siglo XXI, La Revolución del Espíritu (Tres pensamientos de libertad), analisando o caráter radical da liberdade no pensamento de três gênios da modernidade: Nicolas de Cusa, Lutero e Marx. Ballestero diz que sua preocupação residiu em analisar o projeto de liberdade desses três pensadores, sabendo que a autonomia e o ato livre são concebidos de maneiras diferentes e mesmo antagônicos, embora existam, no contexto da obra dos três, analogias de fundo. E essas se referem ao fato de que liberdade poderia significar a abolição da lei, o colapso da determinação exterior, e não o comportamento que se adequou aos limites da ordem. Assim, segundo Ballestero, Cusa, Lutero e Marx olham a liberdade como a destruição da ordenação exterior e anterior ao próprio ato livre. Ou, como disse o apóstolo Paulo:

 

“Portanto, agora, nenhuma condenação há para os que estão em Cristo Jesus, que não andam segundo a carne, mas segundo o espírito. Porque a lei do Espírito de vida, em Cristo Jesus, me livrou da lei do pecado e da morte. Porquanto, o que era impossível à lei, visto como estava enferma pela carne, Deus, enviando o seu Filho em semelhança da carne do pecado, pelo pecado condenou o pecado na carne, para que a justiça da lei se cumprisse em nós, que não andamos segundo a carne, mas segundo o Espírito. Porque os que são segundo a carne inclinam-se para as coisas da carne; mas os que são segundo o Espírito, para as coisas do Espírito. Porque a inclinação da carne é morte; mas a inclinação do Espírito é vida e paz”. Romanos 8.1-6.

 

Os ensaios mostram que a revolução teórica empreendida por Cusa e Lutero não foi gratuita, nem produto de um simples ato ideal, mas se enraizou no tecido histórico do movimento de decomposição global da formação social pré-capitalista. Cusa e Lutero clamaram por essa destruição. Sem entrar nos detalhes das mutações vividas no século dezesseis, com a ruptura do equilíbrio cidade/campo, o surgimento das manufaturas e a consolidação do sistema de trabalho assalariado, vemos que a alienação que distancia da condição humana na incipiente sociedade capitalista foi percebida por Cusa e Lutero: a liberdade do sujeito se dá como dor. 

 

Mas ambos consideraram essa subjetividade liberada pelo início da arrancada capitalista como desequilíbrio. Assim, tanto Cusa quanto Lutero partiram do distanciamento nessa subjetividade alienada do nascente capitalismo, considerando que deveria ser superada para que o sentido da vida florescesse. Aí, então, teríamos o fim da não-essencialidade do sujeito alienado e a inserção deste na totalidade objetiva. Mas isso não poderia acontecer sem a transformação dessa realidade objetiva em realidade plena de vida, que sustenta o humano. Dessa maneira, o sentido da vida constrói num nível superior o universo anteriormente negado.

 

O jovem Marx, seguindo os passos de Hegel, partiu dessa discussão. Para ele, a religião era a realização imaginária da essência do humano, e que essa essência não tinha realidade alguma. De todas as maneiras, há um ponto de interligação nessa perspectiva: a liberdade como abolição da legalidade, como coincidência do momento subjetivo com o momento objetivo e como responsabilidade maior do ser humano. 

 

Para Lutero, o humano existe como estrutura ontológica dual. Sua conceituação partiu da ansiedade teórica do século dezesseis, mas traduziu-se em superação da subjetividade alienada. O humano pleno do sentido da vida é senhor de todas as coisas, não está submetido a ninguém e esse senhorio radical é produto da vida em plenitude. Sua liberdade transforma a subjetividade alienada em realidade objetiva. Nesse sentido, o caráter da liberdade do humano pleno do sentido de vida se dá como processo: morre o imediato, o alienado, e tem início a construção de uma segunda natureza. 

 

A liberdade surge como deslocamento do humano alienado, como distanciamento crítico daquilo que foi naturalmente dado. O primeiro momento da liberdade parte de uma concepção trágica, porque o senhorio num primeiro momento implica em servidão, criando tensão e luta. “É necessário desesperar-se por você mesmo, fazer com que você saia de dentro de você e escape de sua prisão” (Lutero, Les grands écrits, p. 259). Mas superada a tensão, temos a liberdade enquanto sentido pleno de vida, uma dimensão de combate. E retornando ao apóstolo Paulo:

 

“Vós, porém, não estais na carne, mas no Espírito, se é que o Espírito de Deus habita em vós. Mas, se alguém não tem o Espírito do Cristo, esse tal não é dele. E, se Cristo está em vós, o corpo, na verdade, está morto por causa do pecado, mas o espírito vive por causa da justiça.  E, se o Espírito daquele que dos mortos ressuscitou a Jesus habita em vós, aquele que dos mortos ressuscitou a Cristo também vivificará o vosso corpo mortal, pelo seu Espírito que em vós habita. De maneira que, irmãos, somos devedores, não à carne para viver segundo a carne,  porque, se viverdes segundo a carne, morrereis; mas, se pelo espírito mortificardes as obras do corpo, vivereis. Porque todos os que são guiados pelo Espírito de Deus, esses são filhos de Deus”. Romanos 8.9-14.

 

Os humanos são chamados a superar a alienação, ter a liberdade que vai além, a liberdade que é construída na expansão do sentido pleno da vida. E, assim como Paulo, estou convencido de que morte ou vida, anjos ou governos, coisas presentes ou futuras, poderes, altura ou profundidade, ou qualquer criatura não poderá me distanciar do amor do Eterno, que está no Novo Ser, o Senhor.

 

III. O PECADO ESTÁ NO MUNDO

 

“Que é, pois, o tempo? Se ninguém me pergunta, eu o sei; se desejo explicar a quem o pergunta, não o sei”, afirmou Agostinho, um homem entre um tempo romano que desmoronava e o tempo medieval em formação. O jeito romano de olhar o mundo dava lugar a um novo olhar. E para olhar o mundo e entendê-lo era necessário saber de onde vinha o mal e a existência do pecado.


De Pelágio (c. 360-420) sabemos pouco. Saiu da Grã-Bretanha, onde tinha jogado um papel importante na formação do cristianismo céltico. Como Agostinho também era monge, e muito respeitado na Grã-Bretanha tanto entre o clero como entre os líderes celtas não religiosos. Nunca foi visto como herege ou alguém que não merecesse a confiança de seus colegas. Foi um precursor do humanismo, pois acreditava nas possibilidades da pessoa e via o mal como um produto social.


Em 410, Roma, fragilizada, foi saqueada pelos godos. Os pagãos, nome com que a Igreja designava os não-cristãos, atribuíram a invasão ao fato de os romanos terem abandonado os deuses antigos. De acordo com eles, enquanto fora adorado, Júpiter protegera a cidade; ao ser trocado pelo cristianismo, deixara de fazê-lo.


Assim entre 412 e 427, Agostinho escreveu A Cidade de Deus, um livro cuja base era o pensamento neoplatônico e que exerceria forte influência nos tempos medievais. Nele respondeu a tais acusações, argumentando que coisas piores haviam ocorrido em tempos pré-cristãos. Que os deuses pagãos eram perversos. Ele não negava a existência de entidades como Baco, Netuno e Júpiter, mas os considerava demônios.


Demônios que ordenavam aos homens, por exemplo, que criassem peças teatrais, definidas por Santo Agostinho como “espetáculos da imundície”. Em razão desses deuses, Roma sempre fora perversa e pecaminosa. 


Com o cristianismo, Roma se salvaria. E, se a cidade dos homens fora invadida, pouco importava, já que o objetivo maior era a salvação por meio do amor para atingir a cidade de Deus, a sociedade dos eleitos. A busca central não era a cidadania na sociedade dos homens, mas a salvação no reino de Deus.

 

E assim questões do dia-a-dia, políticas, levarão Agostinho a discutir a questão do mal. Nas suas Confissões conta a história de sua descoberta de Deus, ainda na infância. Para ele, o mal habitava a natureza de todos os seres humanos. Fazia parte da essência do ser, depois do pecado de Adão. E, se os bebês são inocentes, não é porque lhes falte o desejo de fazerem o mal, mas por carecerem de força.

 

Agostinho, como sua geração, estava preocupado com o problema do mal.  E vai procurar a solução para esta questão na construção de uma teologia que combinaria os textos da revelação bíblica com uma leitura hermenêutica neoplatônica. Assim, a partir da questão da essência em Platão, rompe com o pensamento cristão grego e oriental, que norteava entre outros o monge britânico Pelágio e a igreja cristã celta.

 

As idéias de Pelágio e da igreja oriental não combinavam com o determinismo essencialista da nascente igreja romana. Nessa época Roma combatia teologicamente os donatistas da África do Norte. Para os donatistas a eficácia dos sacramentos dependia do estado espiritual dos sacerdotes que os ministravam. Essa idéia trouxe um problema para a Igreja. Se ela concordasse com tal visão, poria abaixo o edifício cerimonial e litúrgico da Igreja. E se não concordasse significaria que o edifício cerimonial da Igreja dependia do caráter moral dos clérigos e ninguém poderia ter a certeza se as ordenanças e os rituais teriam eficácia espiritual. 

 

Mas, se a declaração dos donatistas fosse declarada falsa, então os sacramentos poderiam ser administrados eficazmente mesmo por um herético ou pecador. A acusação de heresia conservaria, desta forma, a estrutura da igreja. Naquela época, muitos homens da igreja, inclusive Agostinho, defendiam que a igreja era uma instituição cuja santidade vinha dos sacramentos e não da fé das pessoas. Para Agostinho e para a igreja de Roma os sacramentos produziam santificação e não era a vida pia que produzia homens santos.

 

Tal discussão levou Agostinho a negar a realidade metafísica do mal. O mal não é um ser, uma pessoa, mas privação de ser, como a escuridão é a ausência de luz. Tal falta estaria presente em todo ser que não seja Deus, enquanto criado e limitado. 

 

Quanto ao mal físico, que atinge os seres humanos, Agostinho justificou-o através de um argumento estético: o contraste dos seres contribui para a harmonia do conjunto. 

 

E em relação ao mal moral, Agostinho disse que existe a vontade má que livremente faz o mal. Ela, porém, não é causa eficiente, mas deficiente, sendo o mal não-ser. Este não-ser pode unicamente provir do homem, livre e limitado, e não de Deus, que é puro ser e produz unicamente o ser. 

 

Assim Agostinho, através do neoplatonismo, explica que o mal moral entrou no mundo humano pelo pecado original. Por isso, a humanidade foi punida com o sofrimento, físico e moral, além perder dos dons que Deus havia dado a Adão. 

 

Como se vê, para Agostinho, o mal físico teria origem na culpa do próprio ser humano.  Mas este mal foi remediado pela redenção em Cristo, que restituiu à humanidade os dons sobrenaturais e a possibilidade do bem moral. Mas deixou o sofrimento, conseqüência do pecado, como meio de purificação e expiação. 

 

E a explicação última de tudo isso estaria no fato de que é mais glorioso para Deus tirar o bem do mal, do que não permitir o mal. Assim, a teologia agostiniana considera que o mal é a privação do bem e não o contrário. E que essa privação do bem não tem origem no mal metafísico ou no mal moral e físico. O bem nunca é conseqüência, porque se fosse conseqüência nasceria do mal. Então, para Agostinho, a solução do problema para o mal -- físico e moral (pecado original versus redenção) -- é estético: o contraste entre os seres leva a harmonia do conjunto. Por isso, para ele, na Igreja está a salvação.

 

A Igreja celta, porém, não viu a discussão dessa maneira. Para Pelágio e seu discípulo Caelestius, a questão girava ao redor da teologia do livre arbítrio. Não concordava, com a idéia essencialista defendida por Agostinho, que até aquele momento não era majoritária, de um pecado original que degenerou a natureza da humanidade. Numa leitura existencial-fenomenológica do problema do mal, simplesmente revolucionária para sua época, defendeu que eram os atos e as ações que levavam o ser humano a herdar o inferno. E discordou de Agostinho, quando este afirmou que o ser humano só poderia ganhar a salvação através da igreja.

 

Considerou a doutrina do pecado original sem base neotestamentária e afirmou que todos são concebidos sem o mal moral e que diante dos delitos e pecados são salvos pela graça de Deus, que não merecemos, que nos é entregue através de Jesus Cristo.

 

Até aquele momento, a visão de Pelágio e seus seguidores traduziam a doutrina histórica do livre arbítrio humano e a da maldade socialmente presente no mundo. Tal visão levou Pelágio a entrar em choque com seu maior opositor, Agostinho de Tagasta. 

 

Mas, as posições de Pelágio não eram a única fonte de seus problemas com a igreja. Quando ela visitou Roma, em torno de 380, o que viu e ouviu estava em oposição com o rigoroso asceticismo praticado por ele e pelos monges britânicos. Ficou chocado com a pompa e o luxo da hierarquia da igreja romana. Responsabilizou a lassidão moral do Papado, mas obteve como resposta a partir de citação das Confissões de Agostinho, que Deus em sua vontade determina uns para o luxo e outros para a abstinência. Pelágio atacou este ensino, afirmando que a lei moral impera sobre toda a terra.

 

Pelágio manteve sua vida de asceta. Pregou a natureza moral boa do ser humano e sua responsabilidade para escolher o asceticismo cristão como forma de avançar espiritualmente. Apesar de viver na Irlanda, ganhou inimigos e ficou sob os ataques de Agostinho. 

 

Ao redor de 412, Pelágio foi para a Palestina, onde em 415 compareceu diante do Sínodo de Jerusalém acusado de heresia. Para defender-se dos ataques de Agostinho e de Jerônimo, escreveu Arbitrio de libero (Na vontade livre), em 416, que ao invés de melhorar a situação, levou-o a ser condenado em dois conselhos africanos. 

 

Ele e Caelestius foram propostos à condenação e excomunhão pelo papa Inocente. Mas o sucessor de Inocente, Zosimus declarou Pelágio inocente em sua Fidei de libellus (Indicação breve da fé), mas depois reconsiderou, quando nova investigação foi proposta pelo concílio de Cartago (397-419). Zosimus confirmou as acusações e Pelágio foi condenado. A partir dessa data, mas nada se sabe dele.

 

No entanto, Pelágio é lembrado como aquele que teologicamente tentou livrar a humanidade da culpa de Adão. Seus seguidores fazem questão de mostrar que ele foi um dos primeiros dissidentes da igreja católica romana em construção. 

 

O individualismo áspero do monge celta, sua convicção de que cada pessoa está livre para escolher entre o bem e o mal, e sua insistência de que a fé deve ser prática (ora et labora), marcaram a imaginação teológica do final do século 20. E não somente a imaginação da Teologia, mas também da Pedagogia e da Psicologia.

 

IV. PECADO, CULPA E GRAÇA

 

As tensões ao redor da compreensão das idéias de alienação, enquanto inclinação existencial para o mal, e graça, enquanto ação divina para a salvação humana, apontam para duas outras questões: história e liberdade. Essas duas questões formam a base do pensamento de que o ser humano por ser imagem do Eterno é um ser livre e, por extensão, faz história. Livre significa liberdade de julgamento no âmbito da existência. Então, para que as pessoas sejam livres, o Eterno garante a liberdade delas. 

 

Assim, todos são chamados à comunhão e cada pessoa poderia responder positivamente ou não a esse chamado. Caso o ser humano respondesse positivamente ao chamado viveria o processo de libertação que leva à comunhão plena. A comunhão consistiria, então, em arrependimento, que é volta ao estado de liberdade, mais permanência na escolha. A partir desta resposta, o Eterno opera a salvação do ser humano. Por isso, podemos dizer que a vontade humana abre o caminho da libertação. A partir daí entendemos a graça universal, pois todos os seres humanos poderiam responder positivamente ao chamado à comunhão. Ou seja, a liberdade de julgamento no âmbito da existência leva a pessoa a escolher os caminhos de sua história.

 

A inclinação para o mal, ou seja, a alienação, faz com que as ações humanas, a partir dos desejos – emoções e sentimentos – levem o ser humano a errar o alvo, leharati (להחט'א), em hebraico, hamartáno, em grego, e peccátu, em latim. Dentro da tradição das escrituras hebraico-judaicas, leharati é a violação da lei. Mas o leharati é sempre uma ação do coração e não um estado do ser. Já a alienação, esta sim, é um estado da existência e toda a humanidade se encontra nesse estado de inclinação para fazer o mal, conforme vemos em Gênesis 8.21. Assim, leharati traduz não somente falta moral, mas todas as violações da lei, quer conscientes ou não. E, segundo a tradição judaica, todo ser humano nasce sem leharati, e a culpa de Adão recaiu sobre ele e sua família, mas não se estendeu à espécie humana. Apesar disso todo ser humano é responsável pelo leharati porque todos temos vontade livre, mas natureza alienada e tendemos para o mal. Por isso, o texto citado de Gênesis, acima, diz que o coração humano é mau desde a sua juventude. Mas o Eterno, através de sua misericórdia, possibilita ao ser humano o arrependimento e o perdão. 

 

A libertação humana é um processo, por isso a pessoa não seria plenamente livre, porque dependeria dela permanecer ou não na opção escolhida. Se ela se mantivesse na escolha seria plenamente livre, se abandonasse a escolha voltaria à alienação. Caso a pessoa livre se alienasse, se não se arrependesse e voltasse à comunhão, seria eternamente alienada.

 

Dessa maneira, na polaridade alienação versus comunhão dá-se a construção da história, ou seja, as pessoas e as comunidades humanas interagem, por opção ou por omissão, na construção de sua história. O Eterno é soberano porque criou e mantém o universo, sustentando-o na universalidade do Espírito. A soberania especial estaria somente sobre a comunidade que permanece na escolha. As outras comunidades estariam fora desta soberania especial, da graça que gera comunhão plena, exatamente porque usaram a liberdade para escolher o leharati

 

E quanto maior a alienação, mais o Eterno retrai sua soberania sobre tais pessoas e comunidades, e, consequentemente, a graça que gera comunhão plena. O que explica o mal enquanto feituras pessoal e social. E para que o processo histórico se dê, o Eterno contrai espaço-temporalmente sua justiça executora. 

 

Por paixão ao ser humano, ele contrai a ação de seu conhecimento. Caso o Eterno, a partir de seu conhecimento, definisse todas as ações livres do ser humano, as pessoas e as sociedades poderiam fazer apenas aquilo que o Eterno por conhecer definisse, sem poderem tomar decisões alienadas, sem poderem se afastar dele. 

 

Assim, o Eterno dirige o seu fazer, mas interage com as pessoas e as comunidades humanas na produção da história, enquanto obra que nasce das correlações liberdade/ comunhão e liberdade/ alienação. A polaridade alienação versus comunhão não apresenta o ser humano como bom ou mal, mas como ser que age a partir dessa polaridade. Isso fica claro no diálogo que o Eterno tem com Caim, quando diz que ele está inclinado para o mal, mas deve dominá-lo. Essa conversa apresenta um padrão humano, a tendência à alienação. 

 

Assim podemos ler Gênesis 6.5, 8.21 e Deuteronômio 31.21. É interessante que nenhum desses textos fala do ser humano como essencialmente corrupto, mas inclinado à alienação. A própria palavra yetzer, que vem da raiz yzr, utilizada quando as Escrituras hebraicas falam de inclinação maligna, significa moldar, propor-se. A idéia é que o ser humano é dirigido por suas inclinações, imaginações, sejam elas boas ou más. É yetzer que, combinado ao julgamento livre no âmbito da existência, possibilita o arrependimento. Ou, conforme diz Deuteronômio, o Eterno coloca diante do ser humano a possibilidade do bem e a possibilidade do mal. Os seres humanos terão comunhão se

obedecerem aos mandamentos do Eterno e serão alienados se desobedecerem aos mandamentos do Senhor (11.16-28). 

 

Assim, só o Eterno é capaz de fazer com que exista a liberdade humana e mantê-la.  Essa graça, oriunda do Eterno e derramada sobre a humanidade, possibilita a construção da história.

 

Essa leitura da liberdade entregue ao ser humano é importante para a teologia, pois ao dizer que as pessoas e as comunidades humanas podem agir à margem daquilo que o Eterno desejaria para a humanidade, apresenta a violência, a guerra e os genocídios como frutos da opção e ação humanas. E o teólogo pode, então, analisar porque os profetas clamam e apontam às sociedades o caminho do Reino, embora estas possam escolher os seus próprios caminhos. O campo de concretação de Auschwitz, sob o nazismo, e os genocídios contemporâneos, frutos de políticas religiosas fundamentalistas, são, então, passíveis de estudo. Mas a nossa leitura coloca, também, para as comunidades de fé, o clamor profético e o desafio de expandir o Reino.

 

Em relação à alienação, o ser humano herdou de Adão a inclinação para o mal e, como consequência, a possibilidade crescente de errar o alvo, mas não a culpa. Os seres humanos são alienados porque separaram razão e coração e erram o alvo porque são alienados. E em relação ao processo de libertação, a morte do Cristo abre as portas da comunhão, mas não assegura a libertação plena, pois esta só será definitiva se a pessoa não desistir da corrida.

 

Um exemplo dessa leitura, que nos interessa para a construção de uma hermenêutica teológica, seria o arrazoado que Pedro, o apóstolo, fez em sua segunda epístola, ao dizer que a graça não tem limites, pois o Eterno não retarda a sua promessa, como alguns afirmam, por julgá-la demorada, mas por ser paciente. Ele não escolheria a danação eterna de pessoas, ao contrário, desejaria que todos chegassem ao arrependimento, ou seja, fizessem o caminho de volta à liberdade e construíssem comunhão. 

 

Dessa maneira, a graça tem eficácia ilimitada, mas há uma chave para que a função graça seja plenamente exercida. E essa chave é: chegar ao arrependimento. Dessa maneira, o sacrifício do Cristo, que é graça plena e universal, deve ser somado ao arrependimento, produzindo então a libertação. Ou seja, graça plena mais arrependimento é igual à libertação. E o sacrifício do Cristo sem o arrependimento produz justiça. Ou seja, o valor da cruz não seria limitado, mas sim sua aplicação. E a preparação da pessoa e das comunidades humanas para a graça tem o julgamento livre no âmbito da existência como movimento e o Eterno como móvel. 

 

Essa preparação pode ser pensada como movimento que parte, enquanto universalidade, da liberdade humana em direção à especificidade que tem o Eterno como móvel e implica em graça determinada pelo Eterno, embora não seja proveniente da coação, mas do seu pleno conhecimento, porquanto a intenção do Eterno não pode deixar de ter efeito. 

 

Por isso, podemos falar da universalidade da graça, presente na comunidade humana, e na especificidade da graça, que infalível segue a boa vontade humana. Mas esse movimento é dialético, pois, quando olhamos da perspectiva do humano, ele parte da universalidade, mas se olharmos da perspectiva divina parte da especificidade. Ou seja, universalidade e especificidade são termos relativos, que se complementam na plenitude da graça. Por isso, liberdade, eleição e graça fazem parte de uma dança permanente, onde cada conceito implica na existência do outro e nenhum tem existência independente, mas criam uma unidade/ diversidade correlacional plena e necessária. 

 

Todas as pessoas e comunidades humanas realizam suas existências dentro desse processo, fazem parte dele, o que significa dizer que existência, liberdade e graça fazem parte da história humana. O Eterno mobiliza o processo em direção à especificidade, com base no seu conhecimento da fé e da perseverança de cada pessoa e das comunidades humanas, mas conhece e aceita o sentido da universalidade humana. Esta seria a leitura do texto de Pedro, quando disse que no meio do povo surgiram falsos profetas que introduziram doutrinas destruidoras, a ponto de renegarem o Eterno que os resgatou.

 

V. DIANTE DO MAL

 

Na teologia cristã, teodicéia, termo cunhado por Gottfried Wilhelm Leibniz (1646-1716), designa a doutrina que procura conciliar a bondade e onipotência de Deus com a existência do mal no mundo. E será a partir dessa doutrina que vamos voltar à questão do mal, que focamos antes, biblicamente, como alienação e pecado. A palavra mal vem do latim malu, e refere-se aquilo que é nocivo, prejudicial, que fere, que é um estado mórbido, doença, angústia, sofrimento, e desgraça. Temos, então, o mal moral, contrário ao caráter do Criador, produzido por agentes morais e temos o mal natural, conseqüência dos desequilíbrios da natureza: furacões, terremotos, e as sequências degenerativas, como as epidemias, deformidades congênitas, AIDS, etc.

 

As cosmovisões se posicionam diante da questão do mal de diferentes maneiras. Para alguns pensadores agnósticos e ateus o mal não existe. Jean-Paul Sartre, por exemplo, embora descartasse o mal, falava do absurdo da existência, e disse que o inferno são os outros. Mas, a posição clássica dos ateísmos humanistas, positivistas, marxistas e mesmo existencialistas relativizam o mal, já que seria uma visão antropocêntrica, sem contudo negá-lo. 

 

Já para o panteísmo monista, como é o caso do hinduísmo e setores do budismo, tudo é deus, então nada é mal. Para essa cosmovisão, as coisas parecem más, mas isso é ilusão.  

 

Para o teísmo, o mal é uma realidade. Mas o teísmo tem muitas leituras. Assim, para as correntes dualistas, existem duas forças opostas em equilíbrio, o bem e o mal. Para as correntes teístas finitistas, que negam atributos da divindade, Deus pode ser bom, mas não onipotente. Essa é a cosmovisão de setores do judaismo contemporâneo. O problema dessa leitura é que apresenta um Deus com limitações, que não controla o universo, ao contrário do que diz Paulo – “nele, digo, no qual fomos também feitos herança, predestinados segundo o propósito daquele que faz todas as coisas conforme o conselho da sua vontade” (Ef 1.11). Outra afirmação do teísmo finitista é de que Deus pode ser onipotente, mas não é lá muito bom. Essa cosmovisão foi defendida por John Stuart Mill e R. Roth. O problema aqui é que esse Deus de Mill e Roth aparentemente não é o mesmo de quem Tiago diz – “toda boa dádiva e todo dom perfeito são lá do alto, descendo do Pai das luzes, em quem não pode existir variação ou sombra de mudança (Tg 1.17). Mas há ainda outras leituras teístas, como a de Irineu e J. Hick que acreditavam que Deus criou o universo como lugar de provação e aperfeiçoamento. Aqui também temos um problema: é que o conceito de resgate do ser humano diante do pecado deixa de ter significado, pois Deus seria o responsável pela trágica condição do mundo. O que não está de acordo com a afirmação de Gênesis (1.31)  – “e viu Deus tudo quanto fizera, e eis que era muito bom. Houve tarde e manhã, o sexto dia” 

 

Ora, em Gn 1.31; ITm 4.4; Ez 28.12-16 vemos que o universo, enquanto criação dinâmica, é bom no sentido teleológico, tem as qualidades adequadas à sua natureza ou função, e que Deus fez seres livres que tinham e têm opção de escolha: ele nos gerou pela palavra da verdade, para que fôssemos como que primícias das suas criaturas (Tg 1.18). A impossibilidade de escolha diante do bem e do mal implicaria na remoção do livre arbítrio. Hc 1.13; Tg 1.13; IJo1.5; Is 6.3; At 17.31; IITm 2.13; Tito 1.2; Ap 4.8.

 

Dessa maneira, o mal tem origem no exercício do livre arbítrio de seres espirituais (Ez 28.12-17; Is 14.12-15; Jo 8.44; Ap 12.9; Mt 13.19; Ef 6.16, Ijo 2.13s; 3.12; 5.18) e de humanos (Gn 3.1-20; Rm 5.12-19). A liberdade de escolha era e é boa, enquanto liberdade dinâmica e progressiva, pois reflete a própria imagem do Deus criador. Mas, tecnicamente, o Criador é responsável pela possibilidade de degradação de algo bom, o livre arbítrio, mas não pela execução do mal, pois o mal moral e o mal natural são fruto do processo de deslocamento da imagem de Deus: o que teologicamente chamamos de mau encontro, conceito antropológico criado por La Boétie e mais tarde utilizado por Pierre Clastres, que usamos como categoria que traduz as disfunções da imago Dei na espécie humana -- alienação espiritual (Gn 3.8-11, ICo 2.14), alienação psicossomática (Gn 3.3, 4, 16, 19, Jó 14.1-2), alienação sociológica (Gn 3.12, 16-17; Gn 4) e alienação antropo-ecológica (Gn 3.17-19; 9.12). Assim, o ser humano está alienado, separado, em estado de pecado em relação a Deus, a si mesmo, aos outros homens, à natureza, e esta consigo mesma.

 

Parte da ciência no século XX apresentou-se como materialista. É bom lembrar que antes, cientistas como Galileu, Francis Bacon, Isaac Newton, B. Pascal, M. Faraday e outros não se posicionavam como ateus. Albert Einstein, já no século XX, afirmou: “Deus nunca joga dados com o Universo”. Ao negar o ação criadora de um Deus infinito e pessoal, o ateísmo retira a base para qualquer significado moral no universo, e com isso o ser humano deixa de ter sentido existencial.

 

Por isso, nos remetemos aqui à teologia da criação e vamos analisar, primeiramente, a questão do termo dia, yom, em Gênesis 1:1-2.3. A raiz de yom aparece 2.355 vezes no texto massorético e pode exprimir um instante de tempo (Gn 3.5); um período de luz (Gn 1.14,16,18); um período de 24 horas; uma época; um período geral e indefinido (Gn. 2:4, sete dias; 4:3, ao cabo de dias; 29:14, um mês inteiro; 41:1, ano; Amós 5:18, o dia de Iaveh. Não temos um conceito único para yom. Não há uma posição unânime na igreja. Agostinho considerou que o tempo surge com o universo. E Tomás de Aquino disse que o tempo é uma medida humana.

 

Mas tempo nos remete a outro conceito o de caos. E aí vem a pergunta: Deus criou o caos? Na leitura tradicional, tohu significa apenas sem forma, caos; e bohu vazia, desolada. Mas temos outros termos que nos levam a idéia de caos: trevas (Gn.1:2,4, 5); abismo (Gn.1:2); águas (Gn.1:2,6-10,21). Mas na leitura tradicional o caos reflete apenas uma situação sem ordem, é plenamente histórico e faz parte da criação original.

 

Mas temos outras teorias, como as da catástrofe: (a) teoria da criação a partir do caos. Nela, Gn.1:1 é um resumo do capítulo inteiro (1:2-2:3). Aqui a conjunção vê, em hebraico, traduz seu sentido mais comum “e”. E céu e terra significam o universo organizado (Gn.2:4, 5:1; 9:32). Essa seria a primeira criação que aparece em Hb.11:3; Cl.1:16,17; Jo.1:1-3; e Rm.4:17. E (b) teoria da brecha, onde Gn.1:1 é criação original e a conjunção  que inicia 1:2 deve ser traduzida como porém, simbolizando um lapso de tempo desconhecido, em que houve uma catástrofe entre os dois períodos. Donde, Gn. 1:3-21 é uma recriação da terra.

 

A questão da criação é fundamental para o estudo do mal, pois posiciona o mal em condições e momentos diferentes, conforme a leitura que se faça de Gênesis. De todas as maneiras, a relação criação versus mal sublinha o risco calculado de Deus ao fazer o ser humano à sua imagem e semelhança, que consistiu, entre outras coisas, em conceder liberdade ao ser humano como pessoa. O ser humano poderia usar essa liberdade para retribuir o seu amor ao Criador, oferecendo-se a ele em adoração e serviço. Mas no dom da liberdade estava contida outra possibilidade, a de decidir se opor a Deus e fazer-se a si próprio alvo de seu amor. A queda consiste nisso, na decisão do ser humano de distanciar-se de seu Criador. Essa deslocamento leva ao abuso da dignidade própria e à distorção da aliança de seu ser à imagem de Deus, colocando-se a si próprio como deus, como centro de seu querer e amor, para ser como Deus. Ou como disse Etienne La Boétie (Discurso da servidão voluntária, São Paulo, Brasiliense, 1982, p. 19), “que mau encontro foi esse que pode desnaturar tanto o ser humano, o único nascido de verdade para viver francamente, e fazê-lo perder a lembrança de seu primeiro ser e o desejo de retomá-lo?”. E Clastres, analisando o texto desse libertário do século XVI, que influenciou o pensamento huguenote francês, afirma: 

 

Mau encontro: acidente trágico, azar inaugural cujos efeitos não cessam de ampliar-se, a tal ponto que é abolida a memória do antes, a tal ponto que o amor da servidão substituiu-se ao desejo de liberdade. O que diz La Boétie? Mais do que qualquer outro clarividente, afirma inicialmente que essa passagem da liberdade à servidão deu-se sem necessidade, afirma acidental – e, desde então, que trabalho pensar o impensável mau encontro!”.

 

Antropologicamente, mau encontro é descrito como enfermidade, vício ou corrupção da liberdade do ser humano por ele próprio que, por essa corrupção, se coloca em estado de servidão voluntária. Teologicamente, definimos como a opção do ser humano de não mais confiar a Deus sua vida, mas deixar-se dominar por suas próprias paixões. O entendimento do mau encontro enquanto rebelião forma o pilar da antropologia evangélica, já que o problema do mau encontro passa a estar ligado à liberdade do ser humano e porque essa liberdade é uma expressão da imago Dei. Infelizmente, a ciência moderna esqueceu que o mau encontro e a degradação da liberdade humana, assim como a ativação do ser pessoal do humano num sentido contrário à vontade de seu Criador, introduziram a desordem no relacionamento de todo o universo de Deus.

 

O distanciamento do ser humano de Deus teve como conseqüência o entorpecimento da responsabilidade e da materialidade do mundo, dando à morte poder sobre o humano. Criou distorção na primitiva relação de equilíbrio da imago Dei e inverteu a relação entre espírito, alma e corpo, gerando conflitos que não remontam à estrutura original do ser humano, mas estão na base do afastamento do ser humano em relação a Deus. O distanciamento do ser humano, que entorpece sua liberdade, nos leva à compreensão do Cristo como figura histórica que representa o penhor de redenção do ser humano, conforme João 1.4. Assim, dois elementos fazem parte da compreensão da encarnação: o primeiro deles é a absoluta irrepetibilidade do acontecimento; e o segundo é o fato material de que o próprio Deus, como ser humano, como membro de uma família, de uma comunidade, de um tempo, entra na corporabilidade, na materialidade da história da humanidade, criando no meio dela a semente de uma radical transformação de todo o modo de ser do humano, abrangendo todas as esferas da natureza humana, material, psíquica e espiritual.

 

Vejamos como se dá na tradição judaico-cristã essa relação entre liberdade versus mal. No Antigo Testamento temos uma aspiral conceitual na trindade aliança, fidelidade e constância, cujo centro epistemológico é a liberdade. No Novo Testamento o vértice é o conceito de destino.

 

Paralelamente ao pensamento hebraico, a cultura grega apresentará uma leitura diferente do conceito de destino, que traduzia a maneira de pensar e viver do helenismo. Na sua época, por razões apologéticas, o apóstolo Paulo apresentará um conceito de destino que resgata e transcende o conceito veterotestamentário de aliança. Entre os gregos, a religião e o culto de mistérios traduziam uma luta contra o destino, numa tentativa de colocar-se acima dele. A origem dos cultos de mistérios não pode ser entendida quando os vemos apenas como mitos. Para o ser humano helênico a luta com o destino era inevitável porque o destino tinha qualidades demoníacas. Era um poder sagrado e destrutivo. Envolvia o ser humano numa culpa objetiva. Os cultos de mistério, dessa forma, ofereciam uma purificação das mãos de deuses que manipulando o destino, excluía do ser humano qualquer possibilidade de liberdade. Assim, também a filosofia helênica, através do conhecimento, procurava elevar o ser humano à transcendência, despojando-o dos objetivos e formas da vida imediata, para lançá-lo através da abstração em direção ao ser puro. O mundo helênico era um mundo de culpa objetiva e castigo trágico e m profundo pessimismo atravessava todo o conhecimento, desde Anaximandro, passando por Pitágoras, Demócrito, Sócrates, Platão e Aristóteles.

 

Apesar dessa visão trágica, os gregos eram apaixonados pela vida e é essa dicotomia que dará riqueza a esta que será uma das mais expressivas culturas da humanidade. Mas, em última instância, a luta do filósofo permaneceu inalterada em todo o helenismo: superar o destino. E isso foi tentado através do domínio do pensamento, como forma de elevar-se acima da existência, já que no campo da ação e da transformação da existência é impossível superar o destino. No entanto, nunca essa meta foi alcançada. Possibilidade e necessidade foram conceitos chaves nas discussões do helenismo pós-platônico. O medo de demônios obscureceu o espírito helênico. O epicurismo tentou, em vão, libertar seus seguidores do medo, mas ao definir o conceito de possibilidade absoluta [ou azar], abriu o espaço para o medo em sua argumentação filosófica.

 

Dessa maneira, a filosofia grega caminhou para ceticismo, já que a busca de uma certeza transcendente para a existência humana se mostrou nula. Ao mesmo tempo, enquanto força sobre-humana do destino, as nações eram submetidas ao poderio romano. Diante desse destino trágico, o mundo helênico tinha necessidade da revelação. Ameaçado por um destino demoníaco, o mundo helênico ansiava por um destino salvador, necessitava de graça.

 

Cristo é a vitória sobre a idéia de que a matéria é força que resiste a Deus e o vence. Nesse sentido, o cristianismo traduz a compreensão de que o mundo é uma criação divina e de que Cristo é a vitória da perfeição do novo ser em todos seus aspectos sobre o medo trágico e a matéria que resiste, hostil a Deus. É a negação radical do caráter demoníaco da existência em si. Dá a existência um valor essencialmente positivo e valoriza os acontecimentos da ordem temporal. Em Cristo, ao contrário do que pensava Anaximandro, a ordem do tempo não leva apenas ao transitório e perecível, mas também à possibilidade de algo totalmente novo, um propósito e um fim que dá pleno significado à vida humana.

 

No cristianismo o tempo triunfa sobre o espaço. O caráter irreversível do tempo bom [kairós] substitui o tempo cíclico, transitório e perecível do pensamento helênico. A partir desse momento, destino outorga graça, que traz salvação no tempo e na história. O mundo helênico e sua interpretação da vida estão superados e com eles, a filosofia, a religião e os cultos de mistério.

 

Antes, a filosofia buscava desesperadamente a revelação, agora a revelação apodera-se da filosofia dando origem à teologia. Assim, a teologia jogou fora o destino demoníaco e, por extensão, a metafísica helenística e se apropriou de suas formas lógicas e de seus conteúdos empíricos. O transitório e perecível da filosofia helenística não teve importância na formação do pensamento ocidental, mas sim a idéia da criação divina do mundo e a fé numa providência divina, através da salvação que se constrói historicamente e acontece num tempo bom. E isso já não é helenismo, mas antropologia teológica cristã.    

 

Mas voltemos um pouco atrás, para entendermos esse processo. Dentro da visão paulina, que traduz o pensamento cristão palestino, destino, no sentido de que os limites estão dados de antemão, é a lei transcendente na qual está imbricado o conceito de liberdade. Assim, destino também implica numa trindade conceitual: (1) o destino está sujeito à liberdade; (2) destino significa que a liberdade também está sujeita à lei; (3) destino significa que liberdade e lei são interdependentes e complementares.

 

Analisando o conceito cristão palestino de destino, exposto por Paulo (Romanos 8.31-39; e 9), podemos dizer que a liberdade humana está ligada às leis universais, de tal forma que liberdade e leis se encontram intrinsecamente entrelaçadas. Aqui Paulo trabalha com um conceito judaico, de que lei é imposição de limites, que faz parte da revelação, que se expressa pela primeira vez como criação de Deus. Mas para Paulo, se o mal é uma probabilidade que surge da dialética lei e graça, o julgamento era inerente a tudo na criação, mas também a liberdade.

 

Assim, a certeza de que o destino é divino e não demoníaco e tem um significado realizador e não destruidor é a peça chave do pensamento paulino, que coloca o Logos acima do destino. Ao fazer isso, Paulo está dizendo que a compreensão do destino não está ao alcance do ser humano, nem pode ser submetido aos processos do pensamento humano. Mas esse Logos eterno se reflete através de nossos pensamentos, embora não exista um ato do pensamento sem a secreta premissa de sua verdade incondicional (Romanos 12.2 e ICoríntios 2.16). Mas a verdade incondicional não está ao nosso alcance. Em nós humanos há sempre um elemento de aventura e risco em cada enunciado da verdade. Mas, mesmo assim, devemos correr este risco, sabendo que este é o único modo que a verdade pode ser revelada a seres finitos e históricos.

 

Quando mantemos relação com o Logos eterno e deixamos de temer a ameaça do destino demoníaco, aceitamos o lugar que cabe ao destino em nosso pensamento. Podemos reconhecer que desde o princípio esteve submetido ao destino e que o nosso pensamento sempre desejou livrar-se dele, mas nunca conseguiu. Tarefa teológica da maior importância na análise cristã do destino é saber relacionar Logos e kairós. O Logos deve alcançar o kairós. O Logos deve envolver e dominar as leis universais, a plenitude do tempo, a verdade e o destino da existência. A separação entre Logos e existência chegou ao fim. O Logos alcançou a existência, penetrou no tempo e no destino. E isso aconteceu não como algo extrínseco a ele próprio, mas porque é a expressão de seu próprio caráter intrínseco, sua liberdade.

 

É necessário, porém, entender que tanto a existência como o conhecimento humano estão submetidos ao destino e que o imutável e eterno reino da verdade só é acessível ao conhecimento liberto do destino: a revelação. Dessa maneira, ao contrário do que pensavam os gregos, todo ser humano possui uma potencialidade própria, enquanto ser, para realizar seu destino. Quanto maior a potencialidade do ser – que cresce à medida que é envolvido e dominado pelo Logos – mais profundamente está implicado seu conhecimento no destino.

 

Nosso destino, que aqui deve ser entendido como missão, é servir ao Logos, num novo kairós, que emerge das crises e desafios de nossos dias. Quanto mais profundamente entendermos nosso destino (no sentido de prokeimai, estar colocado, ser proposto) e o de nossa sociedade, tanto mais livres seremos. Então, nosso trabalho será pleno de força e verdade.

 

A vontade humana não é neutra e a liberdade humana sempre se dá dentro de uma realidade condicionada. Assim, a liberdade entende-se como relação dialética entre lei e graça. Quando Hegel afirmava que a liberdade é a consciência da necessidade, como fez questão de mostrar Marx, cometia um erro porque descartava a realização da liberdade. É por isso que Marx dirá que liberdade é praxe. Ora, para Marx, praxe é consciência da necessidade mais ação transformadora. Ou seja, em termos teológicos, consciência da lei diante da existência do mal é arrependimento e ação transformadora do Logos produzindo justificação e mudança de vida, graça.

 

Dentro da visão cristã e exatamente pelo que acabamos de ver, o mal, ao contrário do que pensavam os gnósticos, não é um ser, mas um fazer. Em relação ao imediato é um estado e no que se refere à espécie humana é um domínio. Numa definição teológica, o mal acontece perante aquilo que minha liberdade é desafiada, quando ele, o mal, é chamado à surgir como feitura humana. Nesse sentido, o mal não se apresenta sem agente moral, sem liberdade. Toda vez que realizo minha liberdade a lei está presente, pois o mal é um antítipo da salvação.

 

Por isso só podemos responder ao mal reconhecendo que o mal é feitura minha e de minha espécie, colocando a ruptura desse domínio nas mãos daquele único que pode fazê-lo, o Logos. A partir daí, ao nível do pensamento, já que é um desafio teológico, o caminho é a reflexão, como aquela que Agostinho fez frente aos gnósticos, quando esses levantarem a satânica pergunta: Por que o mal existe? Transformando assim o mal em coisa e mundo, dando existência e imagem ao mal. Agostinho responde dizendo que a única pergunta que posso fazer é: O que me leva a fazer o mal? E ao nível da vontade e do sentimento, crendo em Deus apesar do mal, pois a Cristologia nos ensina que o Logos também sofreu. E por fim, ao nível da ação, pois o mal é o que não devia estar, devemos ter uma ética de responsabilidade social, de combate a este estado e domínio na vida de meu próximo e da sociedade.

 

Mil anos depois de Agostinho, a questão do mal continuava em discussão e a teodicéia, ainda em construção, oscilou entre dois imperativos aparentemente excludentes, o da soberania de Deus, (ICr.29:11-14; Sl.139:1-16; Is.45:1-13; 63:16-17; Ef.1:11; Jo.6:44; Rm.9:11-24) e o do livre arbítrio (II Pe.2:1 redenção, IJo.2:2 propiciação, IICo. 5:19; reconciliação, Is. 53:6, Jo.1:29, 3:16-18, 4:42, ITm. 4:10, IIPe.3:9). Mas, no início do século XX, a partir da teologia dialética, passou-se a ver tais imperativos como conjunto ou totalidade. Assim eleição e oferta aberta foram lidos como termos complementares, e a cruz como base da salvação e da condenação, Jo.3:18,36.

 

Mas vamos analisar a dialética de tais imperativos sob um novo ângulo. Em 1970, Manuel Ballestero publicou em Madri, pela Siglo XXI, La Revolución del Espíritu (Tres pensamientos de libertad), analisando o caráter radical da liberdade no pensamento de três gênios da modernidade: Nicolas de Cusa, Lutero e Marx. Ballestero diz que sua preocupação residiu em analisar o projeto de libertação desses três pensadores, sabendo que o ato livre e a autonomia são concebidos de maneiras diferentes e mesmo antagônicas, embora existam, no contexto da obra dos três, analogias de fundo, “já que neles, em um e outro plano, liberdade significa abolição da lei, colapso da determinação exterior, e não – à maneira conservadora – comportamento que se adequou aos limites da ordem. Liberdade para os pensadores que aqui analisamos significa a destruição de toda ordenação que seja exterior e anterior ao próprio ato livre.”

 

Os ensaios mostram que a revolução teórica empreendida por Cusa e Lutero não é gratuita, nem produto de um simples ato ideal, mas se enraíza no tecido histórico do movimento de decomposição global da formação social pré-capitalista. Cusa e Lutero clamam por essa destruição. Sem entrar nos detalhes das mutações vividas no século 16, com a ruptura do equilíbrio cidade/campo, o surgimento das manufaturas e consolidação do sistema de trabalho assalariado, vemos que a dimensão negativa da condição humana na incipiente sociedade capitalista será percebida por Cusa e Lutero: a autonomia do sujeito se dá como dor. Mas ambos consideram essa subjetividade liberada pelo início da arrancada capitalista como desequilíbrio. Assim, tanto Cusa quanto Lutero partem da negação dessa subjetividade alienada do nascente capitalismo, considerando que deve ser superada para que o Espírito floresça. Aí, então, teríamos o fim da inessencialidade do sujeito alienado e a inserção deste na totalidade objetiva. Mas isso não pode acontecer sem a transformação dessa realidade objetiva em realidade espiritual, que sustém o ser humano. Dessa maneira, para os dois pensadores, o Espírito constrói num nível superior o universo anteriormente negado.

 

O jovem Marx, seguindo os passos de Hegel, partirá dessa discussão. Para ele, a religião é a realização imaginária da essência do ser humano, já que essa essência do ser humano não tem realidade alguma. Mas há um ponto de interligação nessa perspectiva, quando vê, assim como Cusa e Lutero, a liberdade como abolição da legalidade, como coincidência do momento subjetivo com o momento objetivo, e como responsabilidade suprema do ser humano. Para entender esse ponto de partida de Marx é bom ler seus manuscritos econômicos e filosóficos, mas também sua Introdução à Crítica da Economia Política (Marx, São Paulo, Abril Cultural, 1982), texto que só foi descoberto em 1902 e publicado por Kautsky em 1903.

 

 O cristão é senhor de todas as coisas e não está submetido a ninguém. O cristão é servo em tudo e está submetido a todo mundo” (Lutero, Les grands écrits reformateurs, Paris, Aubier, 1955, p. 225). Livre e não submisso, servo e escravo. Para Lutero, o ser humano existe como estrutura ontológica dual. Sua conceituação traduz a ansiedade teórica do século XVI, mas traduz-se em superação da subjetividade alienada. O cristão é senhor de todas as coisas, não está submetido a ninguém e esse senhorio radical é produto da graça. Sua liberdade é fruto da fé que transforma a subjetividade alienada em realidade objetiva. Nesse sentido, o caráter espiritual da autonomia do cristão se dá como processo. Morre o imediato, o alienado, e tem início a construção de uma segunda natureza. A liberdade surge como deslocamento do ser humano natural, como distanciamento crítico daquilo que foi naturalmente dado. O primeiro momento da liberdade parte de uma concepção trágica, porque o senhorio num primeiro momento implica em servidão, criando tensão e luta... “É necessário desesperar-se por você mesmo, fazer com que você saia de dentro de você e escape de sua prisão” (Lutero, Les grands écrits, p. 259). Mas superada a tensão, temos a liberdade enquanto espiritualidade, uma dimensão de combate. O ser humano, que em Cristo vive essa metamorfose, tem a liberdade que vai além, a liberdade no Espírito que é fonte de realidade e ação. Assim, o cristão transforma-se em receptáculo da fé, em intencionalidade aberta ao Absoluto.

 

 

Para discussão em sala de aula. Leia e analise a partir das leituas feitas.

 

A SOPA DE REPOLHO E O COZINHEIRO DE PRATOS PICANTES

 

Porque as vossas mãos estão contaminadas de sangue, e os vossos dedos, de iniqüidade; os vossos lábios falam mentiras, e a vossa língua profere maldade. Ninguém há que clame pela justiça, ninguém que compareça em juízo pela verdade; confiam no que é nulo e andam falando mentiras; concebem o mal e dão à luz a iniqüidade”. (Isaías 59. 3-4).

 

Quando falamos de assassinatos por envenenamento nos lembramos imediatamente de uma jovem chamada Lucrecia, que nasceu em Roma em 1480. E que teve por pai o cardeal Rodrigo Borgia, que mais tarde se tornaria o Papa Alexandre VI, e por mãe Vanozza Cattanei. Embora filha ilegítima, Rodrigo a reconheceu, lhe deu seu sobrenome, e a usou nas mais diferentes intrigas palacianas. Mas, ao contrário do que conta a lenda, seus contemporâneos não viam em Lucrecia Borgia nada mais que uma princesa usada por seu pai e por seu irmão Cesare Borgia, Il Valentino, em lutas políticas, por ser bela, culta, amante das artes e mulher caridosa.

 
Por isso, talvez seja melhor falar de filosofia e teologia. 


Definir prato picante pode variar, conforme a culinária ou o gosto de cada um. Mas uma coisa permanece nesta idéia: é um prato que chama a atenção por condimentos que excitam o paladar e deixam um gosto marcado na boca. Assim, o escritor Airton Ortiz, por exemplo, tem uma receita de churrasco, onde recomenda que coloquemos «no primeiro espeto um pedaço de lingüiça calabresa, a mais picante que encontrar». Segundo ele, «aprendi a comer pratos picantes na Índia, fiquei contaminado e agora não abro mão da pimenta. Asso-a rapidamente, na labareda mesmo. Ela fica torradinha. Para torrar mais rápido, furo a tripa com um palito, para escorrer a água. Servida no início do churrasco, na hora dos aperitivos, serve especialmente para despertar nos meus convidados o gosto pela cerveja. Mesmo os que não são adeptos do álcool partem imediatamente para um copo estupidamente gelado». 


Mas, talvez, um dos pratos picantes mais conhecidos e citados na historiografia da culinária seja a Shchi ou sopa de repolho russa, conforme receita usada e divulgada por Josef Stálin (1929-1953), ex-ditador da União Soviética. A shchi pode ser feita com carne ou sem ela, mas é indispensável o chucrute ou o repolho, ou ambos. Uma recomendação fundamental é que deve sentar e curar no mínimo por um ou dois dias, antes de ser comida. Esta receita que fazia parte do cardápio de Stálin, e era, segundo alguns, seu prato preferido, por causa da presença do chucrute e do repolho, é cheia de sabores e texturas e deve ser comida quente, com pumpernickel ou pão de centeio e manteiga. 


É importante dizer que não foi Stálin quem inventou a shchi, pois há evidências de que já era conhecido na Rússia desde antes do ano 988, quando o cristianismo foi aceito. Shchi originariamente significava "comida líquida" e só depois ficou conhecida como "sopa de repolho", quando o legume passou a ser cultivado na região. Foi a sopa favorita de mongóis, de Ivã, o terrível, Nicholas II, de Lênin, de Stalin, e de Mao Zedong. 


E Alexandre Dumas gostou tanto da shchi que a colocou no seu livro de receitas. E Lewis Carroll a achou bebível, mas um pouco azeda, condizente com o paladar russo. Isso é tão verdadeiro que ainda hoje na Rússia se alguém for chamado de “professor de shchi azedo” significa que é uma fraude, ou seja, incapaz de preparar algo que todo mundo sabe fazer.


Por isso, fugindo ao apodo de “professor de shchi azedo” segue aqui uma versão unânime da sopa de repolho russa. Ingredientes: quatro xícaras de repolho, duas ou três xícaras de chucrute não enlatado. Duas colheres de massa de tomate, doze xícaras de carne de boi, ou, se você não come carne, de legumes variados, em especial cogumelos. Três colheres de sopa de manteiga, uma cenoura descascada e cortada em Julienne, uma xícara e meia de cebola cortada, um talo de aipo bem cortadinho, um nabo grande descascado e também bem cortadinho. E ainda tomates cortados, sal e pimenta. E, por fim, cravo da Índia picado..

 
Como preparar: comece saturando os cogumelos, depois de lavados e secados e fatiados, em água.


Em uma frigideira grande derreta a manteiga em calor médio, refogue a cenoura, cebolas, aipo, nabos, e cogumelos até tudo ficar ligeiramente marrom (aproximadamente quinze minutos). Numa caçarola, coloque o repolho e o chucrute e refogue durante 15 minutos, mexendo sempre. Depois coloque os ingredientes da frigideira na caçarola, e os temperos. Mexa tudo, cubra e deixe cozinhar em fogo brando por vinte minutos. Por fim, acrescente o alho e cozinhe por mais cinco minutos. 


Deixe então sentar e curar por um ou dois dias. Se for inverno aqueça antes de servir. Se for no verão, como recomenda Edouard Limonov, sirva frio. Com guarnição sirva endro fresco cortado e misturado com nata azeda. Por ser um prato azedo e picante combina com vinho branco, mas os russos, logicamente, preferem acompanhar com vodca. Assim, presente tanto na historiografia da culinária, como na literatura , não seria de estranhar que também se fizesse presente na política russa.


Vladimir Illich Lênin, pai da revolução bolchevique, apelidou Stálin de “o cozinheiro de pratos picantes”. Esse apelido partia do viés culinário de Stálin, mas guardava um outro sentido: a acusação velada de que Stálin envenenava seus desafetos. O apelido foi mais tarde utilizado por Trotsky contra Stálin e acabou se generalizando na Oposição de Esquerda.

Trotsky acreditava ou ao menos fez questão de publicitar que Stálin tinha envenenado Lênin.

Apesar de, durante todo o período stalinista, esta acusação ter ficado marginalizada da historiografia soviética, ela reapareceu com força com o fim da União Soviética. Ela por exemplo está presente em “Touro”, filme do cineasta russo Alexander Sokourov que evoca os últimos dias de Lênin em 1922, depois que sofreu um primeiro derrame. Prematuramente velho, caminha com dificuldade e tem surtos de depressão e delírios. Só Krupskaya, sua mulher, o trata com carinho. Rodeado por guardas e criados, alguns dos quais informantes da polícia política, aqui o retrato de Lênin é o do Minotauro, monstro e vítima, possuidor de poder, mas cada vez mais solitário e isolado. A cena em que Lênin descobre que o telefone da datcha foi cortado mostra isso. E a visita de Stálin, discutida várias vezes, mas em especial num jantar, onde o prato servido é a shchi, traz à tona o medo de Lênin de ser envenenado pelo novo secretário-geral do Partido. E quando Stálin chega e entra na casa, Sokourov traduz em sombras e meia-luz esta presença maligna do anjo da morte. 


Trotsky décadas antes de Sukourov já havia apresentado sua versão: “Eu imagino que as coisas se passaram quase dessa forma. Lenin pede veneno ao final de fevereiro de 1923. No inverno, o estado de Lenin começou a melhorar lentamente. O uso da voz retornara. Stálin queria o poder. O objetivo estava próximo, mas o perigo emanado de Lênin estava mais próximo ainda. Stálin devia tomar a resolução que lhe era imperativa, de agir sem demora. Se Stálin enviou o veneno a Lênin depois que os médicos tinham deixado entender por meias palavras que ele não tinha mais esperança ou se recorreu a outros meios mais diretos, eu ignoro”. Essa leitura de Trotsky também é a de historiadores contemporâneos, como Domènech, que afirma ter sido Lênin assassinado por Stálin. 


Certamente é difícil dar uma palavra final sobre a morte de Lênin. Em 1991, documentos foram divulgados, entre eles a autópsia de Lênin, assim como as memórias daqueles que acompanharam sua morte. Um trabalho publicado no "European Journal of Neurology" de junho de 2004 sugere que Lênin, aos 54 anos, morreu de neurossífilis. Os autores, V. Lerner, Y. Finkelstein e E. Witztum, de Israel, com base em cinco anos de pesquisas em arquivos liberados da antiga União Soviética, relatórios de necropsia e livros de memória de antigos médicos, concluíram que Lênin sofreu de sífilis terciária, que no correr dos anos afeta o cérebro. A causa oficial da morte de Lênin foi uma arteriosclerose cerebral, mas apenas oito dos 27 médicos que trataram dele assinaram esse diagnóstico. Os dois médicos pessoais do revolucionário recusaram-se a assinar o atestado de óbito oficial. Segundo os médicos israelenses, a sífilis produziu lesões cerebrais e demência nos dois últimos anos de vida do líder. 


É verdade que a sífilis na época era incurável, mas é interessante que sua mulher Krupskaya viveu até 1939 e nunca apresentou nenhum sintoma da doença. Assim, a sífilis de Lênin pode ser mais uma especulação, principalmente quando nos lembramos que ele sofreu uma tentativa de assassinato em 1918 e que a bala nunca foi removida. Daí, uma outra hipótese, o do envenenamento lento causado pela bala não extraída.


Diante dessa comida que mata, dessa bebida que fulmina, talvez o jeito seja cantar o rock punk do k2o3: 


Veneno que me rouba a vida

veneno, uoohhoo! 

é o veneno que me está a matar

mesmo que queria não consigo escapar

cruel e fria perseguição

que só acaba com destruição

Veneno que me rouba a vida veneno, uoohhoo”! 

 

 

 

 


 

 

 

 

Capítulo dez

A ESSENCIALIZAÇÃO DA VIDA

 

 

“PENSEM / DEUS PAI / GENTILEZA / CRIADORRR / A NATUREZA / DA TUDO DE GRA- / ÇA JESUS / NOS CONDUZ / CAMINHO DE DEUS / DISSE GENTILEZA”.

Profeta Gentileza

 

 

A vida de um cristão como pessoa é compreendida no contexto da comunidade de crentes. Cada pessoa é chamada a viver e a avançar em crescimento espiritual e moral na abundância da graça. A doutrina da encarnação, na tradição cristã, ocupa uma posição central. Assim, Jesus é mais que um homem santo ou um mestre de moralidade. Ele é Deus encarnado. A doutrina da encarnação é uma expressão da experiência do Cristo enquanto ser humano. Nele a divindade está unida à humanidade, sem a destruição de nenhuma dessas realidades. Jesus Cristo é verdadeiramente Deus, que tem em comum a mesma realidade com o Pai e o Espírito. Ele é verdadeiramente ser humano que compartilha com todos nós daquilo que é humano. Como único Deus-ser humano, Jesus Cristo recolocou a humanidade em comunhão com Deus.

 

Pela manifestação divina, pelo ensinamento do significado da autêntica vida humana e pela vitória sobre os poderes do pecado e da morte através da ressurreição, Cristo é a expressão suprema do amor de Deus, o Pai, por seu povo, tornado presente em cada época e em cada lugar pelo Espírito Santo através da vida da igreja. 

 

A essencialização da vida  é momento e processo que tem início com o arrependimento e um ato de fé, a metanóia, que produz uma profunda e radical mudança de vida. Esse processo tem sua continuidade até a morte. A vontade de Deus manifesta em Jesus e na Palavra são os critérios norteadores dessa nova vida em Cristo. O objetivo da piedade cristã é a união com Deus e nossa participação na graça divina. O esforço para viver em Deus exige uma escalada constante, longe das ambigüidades de uma condição humana pecadora e corrompida, em direção à glória eterna do reino de Deus. Esta possibilidade é dada a todos em Jesus Cristo. 

 

As verdades eternas da revelação salvífica de Deus em Jesus Cristo são transmitidas às novas gerações pela igreja, viva e contextualizada, mas sob a direção do Espírito Santo. As Escrituras são o fundamento e o testemunho escrito da revelação de Deus, regra de fé e prática. E a vida dos cristãos através dos séculos é a experiência da igreja fiel sob a permanente condução do Espírito Santo. A este processo, que une coração e razão, revelação e vida cristã, chamamos teologia.

 

Diante dessas questões que pontuam a fé que professamos, a cristologia. se coloca como centro da doutrina cristã, intimamente ligada à soteriologia. Por isso, não podemos esquecer a presença do Espírito e sua correlação com Cristo, pois a humanidade é emancipada por esta correlação. Temos, assim, através do Espírito, uma humanidade emancipada, exaltada, esperançosa e exultante. Traçado o curso da humanidade, no qual o presente triunfa, os humanos experimentam o livramento da alienação.

 

O desejo de Eterno pode ser sintetizado na ceia do Cristo, mas também no seu sofrimento e alegria da ressurreição. Quando o humano cresce no presente se reveste de semelhança. Comer o pão juntos, na comunidade da fé, se faz através da misericórdia, que é afetiva e cuidadosa com o humanidade machucado. Por isso, quando Cristo viu a humanidade, ficou com misericórdia porque ela estava aflita e abandonada. Daí que vamos bailar algumas idéias sobre a ceia do Cristo.

 

A teologia diz que há essencialização da vida  para aqueles que estão em Cristo. O Espírito da vida em Cristo é a vida liberta do destino de alienação e acabamento. De fato, o Eterno enviou o seu Cristo em humanidade semelhante a nós e disse não à alienação no humano, a fim de que um novo destino se cumprisse no humano segundo o Espírito. Com efeito, os humanos que vivem segundo o Espírito amam as coisas que são do Espírito.

 

Daí o amor-serviço para fazer o bem bom sem olhar se judeu ou grego, pois o Eterno mostrou o seu prazer: Cristo se acaba quando o humano dorme e acorda na alienação. O amor-serviço fala com os que estão caídos e diz que Cristo não quis ser assentado, mas entregou a vida pela humanidade. O amor-serviço traz paz aos caídos, porque não pesa a mão, ao contrário quer pessoas novinhas em folha. Sigam os meus pés, manejem e treinem do meu jeito, porque tenho amor-serviço e estou agachado, só assim vocês vão dormir folgados, disse Cristo. É isso mesmo, em Cristo o humano não vive no rabo de arraia, mas na sapiência. É mestre sim, mas do bem, de delicadeza.


Temos, então, um alinhamento igual à esquerda e à direita pela certeza, a exclusão temporal de alguns e a inclusão da humanidade. Ao analisar o alinhamento igual à esquerda e à direita vemos que o ir além do humano repousa sobre a certeza, proveniente do presente em Cristo. Essa misericórdia do Eterno não depende do escrito, porque o humano não tem como responder às exigências do escrito, que expressa o Eterno que está do outro lado. Assim, o presente chega com o Cristo, que no seu prazer e dor, dá o indulto às alienações humanas. A liberdade diante do escrito não depende do humano aqui, mas do humano para lá de humano. Assim, há um ir além nessa correlação entre o escrito e o presente. 

 

Uma toada linda é a animação, que não pisa a fraqueza do humanidade. Quando alguém é apanhado com a faca na mão, no momento do golpe vil, humanos desarmam, mas não esquecem o amor-serviço do Espírito. Ajudam e obedecem à lei do Cristo. Por isso desobriga e é desobrigado por Eterno. A desobrigação da pena foi cantada por Cristo, porque esquecer o dinheiro que foi levado é difícil, mas é o que Eterno faz comigo e você. E é o que nos leva à rede, na varanda, no fresco da tarde. É resultado do gozo, da desobrigação e da amor-serviço, é quando a comunidade da certeza acende o farol alto e mostra ao humanidade que a taba e a rede são possíveis, mesmo quando o mar não está para peixe.

 

Cristo fala de liberdade. Para ser livre não basta a certeza, é necessário permanecer. Mas o que é isso? É continuar na certeza. No humano para lá de humano não deve haver cera. Permanecer é constância e ser humano no Cristo. Mas para ser livre é preciso também conhecer o axioma. E o que é conhecer? É gostar de dormir com, mesmo que tenha que comer sal junto. Depois, então, é que se vai inteirar, descobrir. É a partir daí que o humano caminha em direção à liberdade. E a liberdade passa a ser a vida distante da azáfama da alienação.

 

É quando se acorda e dorme no partir do pão. Gente é parecença com Deus chamada a viver a experiência humana como comunidade da certeza. Pode beber e comer bênçãos nas celebrações de todos juntos. Gente é convocada a conviver na consistência de Cristo.

 

Liberdade para Cristo é ir para a cama sem a faina da alienação, das coisas que amarram e impedem o movimento do Espírito. Descobrir o significado de duas toadas, ficar e conhecer, na celebração do Cristo leva ao axioma e ao livramento da azáfama da alienação, escombros e acabamento.

 

Os caminhos de um processo

 

1. A alienação de Adão e Eva definem um padrão humano, ou seja, a alienação humana faz parte da existência. Já o conceito mal, usado no seu sentido mais amplo cobre tudo o que é negativo e inclui tanto a alienação, quanto a destruição. Neste sentido, o pecado é visto como a maldade presente na natureza humana, sendo chamado, às vezes, de mal moral. Os seres humanos são tentados quando atraídos e enganados pelos maus desejos da natureza humana. Então, esses maus desejos da natureza humana fazem brotar o pecado, e o pecado quando está maduro produz a morte. 

 

Ninguém, ao ser tentado, diga: Sou tentado por Deus; porque Deus não pode ser tentado pelo mal e ele mesmo a ninguém tenta.  Ao contrário, cada um é tentado pela sua própria cobiça, quando esta o atrai e seduz.  Então, a cobiça, depois de haver concebido, dá à luz o pecado; e o pecado, uma vez consumado, gera a morte”. [Tiago 1.13-15]

 

Então, lhe disse o SENHOR: Por que andas irado, e por que descaiu o teu semblante? Se procederes bem, não é certo que serás aceito? Se, todavia, procederes mal, eis que o pecado jaz à porta; o seu desejo será contra ti, mas a ti cumpre dominá-lo”. [Gênesis 4.6-7]. 

 

Aqui vemos que há um processo: alienação/mal, pecado, destruição. O que nos possibilita a construção de duas teorias, a da alienação/mal e a do pecado. 


2. Somos libertos da alienação que nos separa do Eterno pela graça. Ou como afirma Tiago, tudo o que é bom e perfeito vem daquele que é o fundamento e ele nos fez para ocuparmos um lugar central na existência.  

 

Toda boa dádiva e todo dom perfeito são lá do alto, descendo do Pai das luzes, em quem não pode existir variação ou sombra de mudança. Pois, segundo o seu querer, ele nos gerou pela palavra da verdade, para que fôssemos como que primícias das suas criaturas”. [Tiago 1.17-18].  

 

3. O Eterno, antes da criação do mundo, elegeu em Cristo, entre a raça humana alienada, aqueles que pela graça crêem em Jesus Cristo e obedecem na fé. Contrariamente, o Eterno rejeita os que desobedecem a Cristo. 

 

Porque Deus amou ao mundo de tal maneira que deu o seu Filho unigênito, para que todo o que nele crê não pereça, mas tenha a vida eterna”. [João 3.36].


4. Cristo, o libertador da existência alienada, morreu por todos as pessoas, de modo a garantir, pela morte na cruz, liberdade e perdão para o pecado de todas as pessoas. Mas, a essencialização da vida  é desfrutada por aqueles que arrependidos aceitam pela fé este perdão e perdoados abandonam seus alvos errados. 

 

E ele é a propiciação pelos nossos pecados e não somente pelos nossos próprios, mas ainda pelos do mundo inteiro”. [1João 2.2]. E também João 3.16, como vimos acima.


5. A pessoa não pode obter a fé salvadora por si mesmo ou pela força do seu livre-arbítrio, necessita da graça de Deus por meio do Cristo para ter sua vontade e seu pensamento renovados. 

 

Eu sou a videira, vós, os ramos. Quem permanece em mim, e eu, nele, esse dá muito fruto; porque sem mim nada podeis fazer”. [João 15.5].


6. A graça é a causa do começo, do progresso e da completude da essencialização da vida  da pessoa. Ninguém poderia crer ou obedecer na fé sem esta graça cooperante. A obediência e as boas obras devem ser creditadas à graça de Deus em Cristo. Mas, a operação desta graça não é irresistível. É necessário que a pessoa a deseje e queira permanecer nela. 

 

Homens de dura cerviz e incircuncisos de coração e de ouvidos, vós sempre resistis ao Espírito Santo; assim como fizeram vossos pais, também vós o fazeis”. [Atos 7.51].


7. Os crentes têm força suficiente, por meio da graça divina, para lutar contra Satanás, contra a natureza humana (a alienação) e contra o pecado e para vencê-los.

 

Sujeitai-vos, portanto, a Deus; mas resisti ao diabo, e ele fugirá de vós”. [Tiago 4.7]. 


8. A expiação por meio de Jesus Cristo é universal e comunica essa graça preveniente, que vem antes, a todas as pessoas, mas ela pode ser resistida. Assim, como a alienação/mal entrou no mundo pelo primeiro Adão, a graça foi concedida ao mundo por meio do Cristo, o segundo Adão. 

 

Pois assim como, por uma só ofensa, veio o juízo sobre todos os homens para condenação, assim também, por um só ato de justiça, veio a graça sobre todos os homens para a justificação que dá vida. Porque, como, pela desobediência de um só homem, muitos se tornaram pecadores, assim também, por meio da obediência de um só, muitos se tornarão justos”. [Romanos 5.18-19]. Veja também João 1.9.


9. Em 1Timóteo 4.10 a essencialização da vida  em Cristo se expressa de duas maneiras: uma universal e uma especial para os que crêem. A primeira corresponde à graça preveniente, concedida a todos as pessoas, que lhes restaura o arbítrio, ou seja, a capacidade de aceitar ou não o chamado de Deus. Ela é distribuída a todos as pessoas porque Deus é amor (1João 4.8, João 3.16) e deseja que todas as pessoas se salvem (1Timóteo 2.4, 2Pedro 3.9). A segunda é alcançada por aqueles que não resistem à graça salvadora e crêem em Cristo.


10. A expressão liberdade deve ser entendida como arbítrio liberto pela graça convencedora, iluminadora e capacitante que torna possível o arrependimento e a fé. Sem a atuação da graça, nenhuma pessoa teria livre-arbítrio.


11. A graça preveniente, concedida a todos as pessoas, não é uma força irresistível, que leva o homem ou a mulher à essencialização da vida . Tal graça, se fosse irresistível, violaria o caráter pessoal da relação entre Deus e o homem ou a mulher. Todas as pessoas têm a capacidade de resistir a Deus. Veja Atos 7.51, Lucas 7.30, Mateus 23.37.

 
12. A responsabilidade humana na essencialização da vida  consiste em não resistir ao Espírito Santo.

 

 

Para discussão em sala de aula. Leia e analise a partir das leituras feitas

 

O BANQUETE DA PÁSCOA

 

Ela virou e respondeu em hebraico: Meu mestre!

 

[De Montpellier, França] -- Na sala, o notebook toca música brasileira. Eu, Naira e Paloma convidamos quatro jovens para o almoço de páscoa: Andreas, alemão, que estuda engenharia; Georgine, de Barcelona, que estuda economia; Térèse, alemã, que estuda Teologia; e Serge, de Barcelona, que veio passar uma semana em Montpellier. Jovens cujas famílias estão longe, cristãos na diáspora acadêmica.

 

Enquanto eles conversam, Djavan canta que amar é um deserto e seus temores, e a vida vai na cela dessas dores. Lá fora, junto ao pinheiro, companheiro da janela da sala, a primavera chega a passos largos. Eu preparo coelho a caçadora e Naira manchon de canard. Essas serão as carnes do almoço. O almoço é a francesa, com toda a liturgia que isso implica. E os paralamas do sucesso dizem que o calibre do perigo é não saber de onde vem o tiro

 

Como vocês notaram estamos em pleno domingo de páscoa. E quando se fala de páscoa, se fala de morte, já que não haveria ressurreição se não houvesse morte. Donde, procedem os temores de Djavan e dos paralamas. E isso me leva à teologia, através de um velho amigo dos últimos anos, Paul Tillich.

 

Ele conta em sua autobiogafia, “Minha busca pelo Absoluto”, que a primeira Guerra Mundial colocou um ponto final em sua formação, pois sua geração foi chacoalhada de tal maneira pela guerra, que deixou para trás sua existência individualista e predominantemente teórica.

 

Tillich serviu como capelão do exército alemão de setembro de 1914 a setembro de 1918. Ele conta que “antes que as primeiras semanas tivessem passado, meu entusiasmo original desapareceu, e depois de alguns meses me convenci de que a guerra duraria indefinidamente e arruinaria toda a Europa. Acima de tudo, vi que a unidade das primeiras semanas era uma ilusão, que a nação estava fendida em classes, e que as massas industriais consideravam a Igreja como um aliado incontestado dos grupos governantes. Esta situação se tornava mais clara conforme se aproximava o fim da guerra. Produziu a revolução que fez desmoronar a Alemanha imperial. O modo como tal situação deu origem ao movimento socialista religioso na Alemanha já foi descrito. Porém, eu quero acrescentar algumas reflexões”. 

 

Revela que apoiou o movimento socialista que fez a revolução de 1918 na Alemanha, revolução que foi morta pela fraqueza dos proprios socialistas, por seus erros politicos, como a utilização do Exército na repressão aos comunistas; por razões econômicas, como a inflação galopante; e pela volta das forças reacionárias que cresceram nos anos vinte. “Minha empatia com os problemas sociais da revolução alemã teve raízes em minha infância (...). Talvez fosse uma gota do sangue que induziu minha avó a construir barricadas na revolução de 1848, talvez a impressão deixada pelas palavras dos profetas hebreus contra injustiça e pelas palavras de Jesus contra os ricos, estas palavras eu aprendi de cor quando menino”. 

 

E Tillich constata que essa empatia aumentou com o passar dos anos e se transformou em militância socialista religiosa que, depois da segunda Guerra Mundial definhou em resignação e amargura por ver o mundo dividido em dois grupos todo-poderosos, que esmagaram as sobras de um socialismo democrático e religioso. Mas, confiante no futuro,  afirma: “se a mensagem profética é verdadeira não há nada além do socialismo religioso”.

 

Quando Tillich fala de socialismo, fala da necessidade incondicional de justiça, presente no coração humano, e que deve fundamentar toda ação política. E isso só é possível se o amor ágape fecundar a política e produzir frutos de justiça. Por isso, socialismo verdadeiro é aquele socialismo que está pleno de sentido último [ultimate concern] e transcendência. Se isso não se der, o socialismo se transformará em quase-religião, idolatria que violenta e oprime o ser humano.

 

Ao falar de páscoa, ao nos lembrarmos da ressurreição, nos vem à mente os dois dias e meio de silêncio e tristeza, que marcaram a pós-morte de Jesus. Por que esses quase três dias? Na verdade, eles fazem parte de uma pedagogia que transcende. Através desses quase três dias de silêncio e tristeza, Deus possibilitou aos discípulos a aprendizagem da unidade do corpo. Em meio ao silêncio daqueles que fogem e se escondem, em meio ao silêncio da dor da separaçao daquele que é querido, e da tristeza diante daquele que está morto, mas devia estar vivo, os discípulos se uniram, abandonaram velhas brigas e juntos oraram pela misericórdia daquele que é amor. 

 

A unidade foi selada por condições tão adversas. E Jesus levantou-se para dizer que o que separava não separa mais. Agora, ao invés de silêncio temos louvores; ao invés de tristeza, alegria; ao invés de morte, vida.

 

E assim, como a primavera que cobre de flores o jardim em frente de minha casa, que faz algumas semanas estava seco, a páscoa possibilita o encontro. Estamos reunidos ao redor de uma mesa, brasileiros, espanhois, alemães. Oramos em francês, mas falamos também em português, espanhol, alemão.      

 

Quero dizer a Djavan que de fato há o momento do deserto, do temor e da dor, mas já não pode durar para sempre. Quero dizer aos paralamas que já sabemos de onde vem o tiro, por isso o perigo pode ser enfrentado. A mensagem é verdadeira e por isso o mundo será coberto pela justiça. O Cristo ressurreto nos une, e o mundo conhecerá sua glória e o amor que tem por nós. 

 

O banquete da páscoa estava delicioso, porque foi multiplicado, porque foi ágape de paz, amor e justiça. 

 

Jesus disse: Não me segure, pois ainda não subi para o meu Pai. Vá se encontrar com os meus irmãos e diga a eles que eu vou subir para aquele que é meu Pai e o Pai deles, o meu Deus e o Deus deles. [João 20.16-17]. 


 

 

 

 

Capítulo onze

A COMUNIDADE DE FÉ

 

 

“GENTILEZA GERA / GENTILEZA AMORRR / MEUS FILHOS VAMOS / TODOS COLABORAR COM / O NOSO QUERIDO PRESI- / DENTE PARA QUE DEUS / E JESSUSS COLABORE COM / TODOS PARA 1 BRASIL”.

Profeta Gentileza

 

 

Existem padrões que fundamentam a igreja cristã, assim a partir da experiência neotestamentári temos elementos para construir uma eclesiologia. Tal entendimento nos leva a traçar um caminho de diálogo com a história neotestamentária, a fim de enriquecer o estudo da eclesiologia.

 

No início da era cristã, o evangelho de Lucas e o livro de Atos formavam uma só obra em dois volumes, que poderíamos chamar de "História das Origens Cristãs". Esses dois volumes só foram separados por volta dos anos 150. O título "Atos dos Apóstolos" surgiu nessa época, já que a literatura helenística conhecia os "Atos de Aníbal" e os "Atos de Alexandre", entre outros.

 

A sinopse padrão que delineamos para Atos está intimamente ligada às correntes de informação recolhidas por Lucas. É certo que o valor excepcional do livro se funda no testemunho ocular do autor em relação a uma série de acontecimentos. No entanto, Lucas teve acesso a uma documentação variada, extensa e pormenorizada, conforme ele próprio afirma no prólogo de sua obra (1:1-4).

 

Segundo o helenista P. Benoit, da Escola Bíblica de Jerusalém, "a despeito de uma atividade literária sempre vigilante, que por toda parte deixou seus traços e assegura a unidade do livro, facilmente se reconhece a utilização de documentos diversos". Benoit afirma ainda que a própria linguagem de Atos varia de um grego excelente, "quando Lucas depende de si mesmo e se inspira nas suas notas de viagem", a um texto semitizante, às vezes incorreto, quando fala sobre os primórdios da comunidade cristã na Palestina. Muito possivelmente porque respeita e corrige o menos possível as informações de textos aramaicos.

 

"O livro de Atos, juntamente com o evangelho de Lucas e o tratado aos Hebreus, contém a redação grega mais culta de todo o Novo Testamento".

 

Assim, temos quatro blocos de informações diferentes, que podemos enumerar da seguinte forma: (a) aquele que se refere à primitiva comunidade de Jerusalém  (do capítulo 1 ao 5); (b) as atividades de personagens como Filipe (8:4-40) e Pedro (9:32-11:18 e 12), que podem ter sido fornecidas pelo próprio Filipe, já que ele se encontrou com Lucas em Cesaréia (21:8); (c) o da comunidade de Antioquia, fornecidos por judeus helenistas (6:1-8:3; 11:19-30; 13:1-3) e, sem dúvida, pelo próprio Paulo, que deve ter passado a Lucas informações sobre sua conversão e sobre suas viagens (9:1-30; 13:4-14; 15:36s; 28); (d) o período final das viagens de missão contou com as notas pessoais de Lucas e muito possivelmente foi daí que transcreveu as seções em que diz "nós". Esses são trechos do livro onde se concentram as particularidades do texto de Lucas (11:28; 16:10-17; 20:5-21; 18; 27:1-28).

 

Esse material foi organizado num todo, interligado por recursos de estilo, como em 6:7, 9:31, 12:24, entre outros.

 

"As descobertas arqueológicas têm confirmado a exatidão histórica de Lucas, de maneira surpreendente. Por exemplo, sabe-se atualmente que o uso que Lucas fez dos títulos de vários escalões de oficiais locais e governamentais de províncias - procuradores, cônsules, pretores, politarcas, asiarcas e outros, mostra-se acuradamente correto, correspondentes às ocasiões e lugares acerca dos quais Lucas estava escrevendo".  

 

E forma um texto que pode ser subdividido em 12 blocos de acontecimentos e eventos, que seguem uma não muito estrita sequência cronológica, conforme apresentamos abaixo:

 

1. A fé se implanta em Jerusalém, onde a comunidade cresce em graça e número. Data: 31 a 33. Capítulos: 1 a 5.

 

2. Tem início a expansão fora de Jerusalém, devido à tendência universalista dos convertidos do judaísmo helenista e pela fuga em consequência do martírio de Estevão. Data: 33 a 35. Capítulos:6:1 a 8:3.

 

3. Atinge-se a Samaria. Data: 33 a 35. Capítulo:8:4-25

 

4. A região sul e oeste de Jerusalém até a costa de Cesaréia é evangelizada. Data: 33 a 35. Capítulos: 8:26-40; 9:32 a 11:28

 

5. Damasco já tem comunidades cristãs e a evangelização segue em direção à Cilícia. Data: 35 a 40. Capítulo: 9:1-30.

 

6. Antioquia recebe a mensagem de Jesus. Data: 42. Capítulo: 11:19-26.

 

7. Antioquia e Jerusalém estabelecem acordos sobre os principais problemas missionários. Data: 42 a 45. Capítulos: 11:27-30; 15:1-35.

 

8. Pedro, depois da conversão de Cornélio e da prisão em Jerusalém, parte com destino desconhecido. Data: 42. Capítulo: 12:7.

 

9. Primeira viagem de Paulo a Chipre e a Ásia Menor, antes do Concílio de Jerusalém. Data: 44 a 48. Capítulos: 13 e 14.

 

10. Outras duas viagens de Paulo o levarão até a Macedônia e a Grécia. Data: 50 a 57. Capítulos: 15:36 a 18:22; 18:23 a 21:17

 

11. Paulo retorna a Jerusalém, é preso e levado cativo a Cesaréia. Data: 58 a 60. Capítulos: 21:18 a 26:32.

 

12. É conduzido preso até Roma, onde acorrentado anuncia a Cristo. Data: 60 a 62. Capítulos: 27 e 28. 

 

Podemos dizer que o texto de Lucas, em seu segundo livro, parte da percepção de que a história tem importante significado teológico. Aliás, o escritor apresenta em seus trabalhos uma visão da continuação dos atos de Deus no testamento antigo: quer no evangelho, como atos de Jesus, quer em seu livro segundo, como atos do Espírito Santo.

 

Lucas mostra que Deus se revela através dos atos e eventos da história humana, definidos por sua preciência. É fundamental entender que se há negação da realidade dos eventos históricos não há base para a fé. Nesse sentido, o evangelho não é uma mensagem meramente existencial, sem conexão imediata com a história.

 

A compreensão de Lucas da historicidade do cristianismo parte da própria tradição judaica, que entendia o monoteísmo ético e a esperança escatológica como frutos da intervenção divina na vida do povo judeu. Lucas traz essa tradição teológica, singular em relação à religiosidade do mundo antigo, para a vida do que seria anos mais tarde chamado de novo testamento.

 

Assim, para o escritor, todos os eventos que se registraram em Atos foram levados a efeito por meio da vontade e do propósito de Deus. E esses fatos surgem na vida da igreja como cumprimento das Escrituras. Dessa maneira, a história que Lucas descreve foi dirigida por Deus. E o poder de Deus revela-se através da ação do Espírito Santo, em sinais e maravilhas operados em nome do Senhor Jeus.

 

Entendendo que o livro de Atos tem como finalidade transmitir a força da expansão espiritual do cristianismo e o ensinamento teológico vivido pelos cristãos, podemos dizer que há um plano sinóptico claro, traçado por Lucas, que num primeiro momento se nos apresenta como histórico. Mas a história de Lucas não é a história da igreja, e sim aquela que foi possível redigir com os documentos e informações de que dispunha. Não relata, por exemplo, a fundação da igreja de Alexandria, nem a de Roma. E nada fala do apostolado de Pedro fora da Palestina. Mas, esses silêncios e omissões só contam a favor. Estamos diante de um homem que foi profundamente fiel à documentação de que dispunha.

 

Da mesma maneira, não podemos entender a história de Lucas sem inserir nela toda a contribuição vivenciada pelos primeiros cristãos. A fé em Cristo, base do querigma apostólico, aí está exposta, primeiro pelo triunfo do homem Jesus como kurioV (kyrios, em grego), pela ressurreição (2:22-36), e depois, pela boca de Paulo, como Filho de Deus (9:20). Vemos ainda, através dos discursos, a formulação da cristologia e a base para a argumentação com os judeus, notadamente os temas referentes ao Servo (3:13-26; 4:27-30; 8:32-33), e a Jesus, com o novo Moisés (3:22s; 7:20s). A ressurreição é comprovada através do salmo 16:8-11 (2:24-32; 13:34-37). Dessa maneira, a história do povo eleito deve colocar os judeus de sobre-aviso contra as resistências à graça (7:2-53; 13:16-41) e aos pagãos invocam-se argumentos de uma teodicéia mais geral (14:15-17; 17:22-31).

 

O problema crucial da igreja nascente era o do acesso dos gregos à essencialização da vida , e o segundo livro de Lucas mostra como os fiéis de Jerusalém, reunidos em torno de Tiago, continuam fiéis à lei judaica (15:1-5; 21:20s), enqunto os helenistas, cujo porta-voz é Estevão, sentem a necessidade de romper com o templo. Pedro e Paulo garantem o triunfo da doutrina da graça no Concílio de Jerusalém (15:1-29), que dispensa os pagãos da circuncisão e das observâncias mosaicas. A verdade, de que a essencialização da vida  vem de Israel, leva Paulo a pregar sempre, inicialmente, aos judeus, para depois voltar-se aos gentios, quando seus irmãos de raça o rejeitam (13:5+).

 

Aparentemente, o objetivo de Atos é descrever a missão definida em 1:8: "Sereis minhas testemunhas tanto em Jerusalém, como em toda a Judéia e Samaria, e até aos confins da terra". Acontece que o propósito da igreja é testificar de Jesus. 

 

Assim, a Igreja se posiciona em relação tanto à aliança quanto ao reino; ela administra os sacramentos da aliança e exercita as chaves do reino. Chego as essas conclusões com relaçào à Igreja seguindo a abordagem redentora-histórica. Nenhuma menção da Igreja é feita após as duas referências de Mateus (16 e 18) até depois do evento de Pentecoste em Atos. No dia de Pentecoste foi iniciada uma assembléia de crentes batizados que “perseveraram na doutrina dos apóstolos e na comunhão, no partir do pão e nas oraçòes”(2:42). A primeira referência à ekklesia é encontrada em 5:11, após o primeiro exercício da função bloqueadora das chaves no caso de Ananias e Safira; “sobreveio grande temor a toda a igreja e a todos quantos ouviram a notícia destes acontecimentos”. Inicialmente, os discípulos são denominados irmãos, santos (9:32), fiéis, (10:45), numerosa multidão (11:26) e muitas pessoas (12:12). Somente quando organizados e governados (ordenados) por presbíteros, eles são designados como igreja (cf. 13:1-3; 14:19-28; 15:1-41). No final do livro de Atos encontramosreferências regulares a algumas igrejas que envolviam grupos de crentes batizados, que confessavam uma fé, eram ordenados por presbíteros, e que se reuniam para adoraçào, edificacão e missão. E a igreja, a qual foram confiadas as chaves do reino, deve em sua missão proclamar a mensagemdo reino (conforme observamos antes em Mt 24:14; 28:18-20)”. 

 

A missão só pode ser compreendida se inserida na mensagem, que é Jesus. Essa é a tarefa dos apóstolos, que conviveram com o Messias, participaram de seu ministério e estiveram com ele após a ressurreição. E que agora estavam equipados para a proclamação da boa nova oferecida por Deus.

 

É interessante notar que Lucas coloca o centro de sua mensagem teológica na ressurreição e exaltação de Jesus. Essa postura, no entanto, é uma particularidade do cristianismo nascente e vemos esse pensamento funcionar como pedra angular entre todos os escritores do Novo Testamento. As bençãos provenientes dessa boa nova é o perdão dos pecados e o nascer do Espírito.

 

O roteiro do trabalho de Lucas é a expansão da mensagem. Lucas produz um texto, cuja história vai num crescendo emocionante, com clímax e anticlímax, até cortar repentinamente a narrativa. Momentos de clímax são a morte de Estevão, a conversão e o naufrágio de Paulo, entre outros. Momentos de anticlímax, que levam à reflexão teológica, são os discursos, o concílio e as defesas de Paulo ante tribunais e governadores. Esse roteiro acontece não somente dentro de uma situação histórica singular, como é histórico em seu próprio desenrolar.

 

O batismo no Espírito Santo, já anunciado por João Batista (Mt 3:11) e prometido por Jesus (At 1:8), será inaugurado no Pentecostes (2:1-4). A seguir, segundo o mandato do Cristo (Mt 28:19), os discípulos e apóstolos continuarão a administrar o batismo 2:41; 8:12 e 38; 9:18; 10:48; 16:15 e 33; 18:8; 19:5) como ritual de iniciação ao reino messiânico (cf. Mt 3:6+), agora "em nome de Jesus" (2:38+). Pela fé na obra redentora do Cristo (cf. Rm.6:4+), o batismo será não apenas de arrependimento, mas simbolizará a concessão do Espírito Santo (2:38).

 

O Espírito Santo, tema especialmente caro a Lucas (Lc 4:1+), aparece antes de tudo como um poder (Lc 1:35; 24:49; At 1:8; 10:38), enviado de junto de Deus por Cristo (2:33) para a difusão da boa nova. O Espírito Santo outorga os dons, que autenticam a mensagem: dons de línguas (2:4+), dos milagres (10:38), de profecia (11:27+; 20:23; 21:11), de sabedoria (6:3, 5,10), dá força para anunciar a Jesus Cristo, apesar das perseguições (4:8 e 31; 5:32; 6:10; cf. Fl. 1:19) e dar testemunho dele. Intervém, enfim, nas decisões capitais: na admissão dos gentios na igreja (8:29 e 39; 10:19,44-47; 11:12-16; 15:8) e nas missões de Paulo no mundo gentio (13:2s; 16:6-7; 19:11).

 

Assim, todo o livro está impregnado, dirigido e impulsionado pela presença irresistível do Espírito Santo. Ele atua na expansão da igreja (1:8) com tal poder que muitos se sentem a vontade para chamar o livro de "Atos do Espírito Santo".

 

Para Lucas, a organização e a vida da igreja são uma questão teológica. E graças a isso, aprendemos que a presença do Espírito Santo é a base do funcionamento da igreja. Ele guia na escolha dos líderes, na atividade evangelizadora e, inclusive, na estrutura que a igreja vai construindo. Apóstolos, anciãos, profetas e mestres, residentes ou itinerantes, todos tem atividades definidas, e se colocam sob a direção do Espírito Santo.

 

O Espírito Santo é Deus pleno. Por isso, Lucas vê a igreja como comunidade levantada e dirigida por Deus. Ele acredita no triunfo final do evangelho. Mas essa teologia da glória está mediada pelo sofrimento e pelo martírio, pela teologia da cruz.

 

No final da Idade Média, os discípulos de Jesus Cristo oriundos da Reforma radical se caracterizavam pela fidelidade às Escrituras e, por isso, só recebiam em suas comunidades, como membros atuantes, pessoas convertidas pelo Espírito Santo de Deus. Somente essas pessoas eram por eles batizadas e não reconheciam como válido o batismo administrado na infância por qualquer grupo cristão, pois, para eles, crianças recém-nascidas não podiam ter consciência de pecado, regeneração, fé e essencialização da vida . Para adotarem essas posições se fundamentavam nos Evangelhos e nos demais livros do Novo Testamento. A mesma fundamentação tinham todas as outras doutrinas que professavam. Mas sua exigência de batismo só de convertidos é que mais chamou a atenção do povo e das autoridades, daí derivando a designação "batista" que muitos supõem ser uma forma simplificada de "anabatista", "aquele que batiza de novo".

 

A revolução protestante

 

A história anabatista é uma saga ao estilo do cristianismo antigo, anterior à estabilização imperial pós-Constantino, de sangue, perseguições e martírios. E os eventos notáveis e feitos heróicos do movimento anabatista até hoje repercutem no imaginário protestante, levando alguns historiadores e teólogos a exorcizarem o movimento e seus líderes.

 

Segundo Weber, o ascetismo laico do movimento anabatista, que ele chama de “movimento batista”, espraiou-se pela Europa Ocidental e Estados Unidos, nos séculos 16 e 17, dando origem, quer diretamente, quer por adoção, a novas formas de pensamento religioso, como aqueles dos batistas, menonitas e quakers. Um processo semelhante se deu no Brasil, por isso, os evangélicos brasileiros não podem voltar as costas à história dos anabatistas. Afinal, as influências eclesiológicas e teológicas do anabatismo, herdadas pelos batistas, foram repassadas para as comunidades, igrejas e pensadores evangélicos brasileiros que em algum momento de sua história comungaram com o pensamento batista.

 

Por isso, fazemos uma abordagem das origens do anabatismo, principalmente daquele de forte conteúdo social, a partir da leitura histórica e do uso da sociologia da religião como ferramentas, com a intenção de demonstrar que em sua prática o anabatismo construiu uma eclesiologia que formatou uma teologia e não o contrário.

 

Mas como o nosso texto trabalha a relação entre a eclesiologia e a revolução camponesa e plebéia liderada pelos anabatistas, convém entender o que significa eclesiologia. Nós a consideramos o estudo teológico da realidade de comunidades de fé em seus aspectos estruturais: sua forma de se relacionar com o mundo, seu papel social e sua forma de governo. Por isso, vamos analisar o comunitarismo, que mais tarde foi caracterizado por Karl Marx e Friedrich Engels como socialismo utópico, enquanto construção político/religiosa marcante e central do movimento anabatista.

 

Os anabatistas eram cristãos reformados que se levantaram contra a hegemonia da Igreja católica e dos príncipes alemães. A partir da frase do Evangelho de Marcos (16.16), “quem crer e for batizado será salvo, mas quem não crer será condenado”, deduziram que quem não crê de nada adiantou o batismo que recebeu quando pequeno. Então, negaram valor ao batismo de crianças, afirmando que aquele sacramento católico e reformado, só deveria ser recebido quando a pessoa tivesse plena consciência do que estava a fazer. Por isso, aqueles que tinham sido batizados antes de terem consciência do bem e do mal deveriam ser batizados de novo.

 

O fato de levantarem a importância de escolha pessoal na opção pela caminhada cristã levou grupos e comunidades anabatistas a crescerem rapidamente. Mas, o crescimento dos anabatistas na Alemanha e na Europa central se tornou um problema para as autoridades eclesiásticas, afinal propunham às pessoas não batizar os filhos. Logicamente, os católicos e os reformados se colocaram em oposição direta a essa idéia. E como o poder eclesiástico estava ligado às forças do feudalismo ou às forças da burguesia emergente, ambos os lados optaram pelo extermínio dos anabatistas.

 

Thomas Münzer

 

Para Engels, a descentralização, a autonomia local e regional, a diversidade comercial e industrial das províncias alemães e a insuficiência das comunicações foram os fatores que explicam o agrupamento das classes sociais da Alemanha no início do século 16 em três campos: o feudal nucleado ao redor do catolicismo; o burguês reformista, ao qual se aliaram os luteranos; e o plebeu/camponês liderado pelos anabatistas.

 

É bom lembrar que na Alemanha medieval a Igreja católica tinha o monopólio da educação, o que fazia com que todo o ensino tivesse um caráter religioso. Nas mãos do clero católico estavam a política, a jurisprudência e o conhecimento, que era visto como extensão da teologia. E os dogmas do catolicismo, assim como a compreensão católica das Escrituras tinham força de lei em todos os tribunais. Dessa maneira, críticas ou ataques ao feudalismo traduziam-se em confronto com o catolicismo.

 

A oposição ao feudalismo, começou bem antes do século 16, com os valdenses, albigenses, com as insurreições nos cantões suíços e foi tomando conta da Alemanha com as reivindicações religiosas, sociais e políticas que tomaram corpo como pensamento divergente. Os plebeus e camponeses alemães queriam o estabelecimento da igualdade cristã, que devia se traduzir em igualdade civil e social. Ou seja, a nobreza devia colocar-se ao nível dos camponeses, e os patrícios e burgueses no mesmo nível dos plebeus. Ou seja, reivindicavam, pela primeira vez na história, direitos cidadãos universais. Além disso, exigiam o fim das leis feudais, tais como obrigatoriedade dos serviços pessoais, tributos, privilégios e nivelamento das escandalosas diferenças no que se referia à propriedade. 

 

Dessa maneira, essas reivindicações democráticas levaram às reivindicações pelo estabelecimento de comunidades onde a propriedade e os bens fossem comunitários, o que era visto como a realização da promessa do Reino de Deus.

 

Até 1525-1526, o movimento protestante era mais ou menos informal na Alemanha. Mas com as guerras camponesas, os conventos foram secularizados, o direito canônico abandonado e, com a recusa dos bispos de se associarem ao movimento pelas reformas, as autoridades civis foram empurradas a se tornar favoráveis às novas orientações e a se envolver na reorganização da igreja.

 

Estas ações se inspiraram nas antigas visitas pastorais efetuadas antes pelos bispos. Os príncipes passaram, então, a visitar as paróquias, com delegações compostas de juristas e teólogos. A partir de 1530, criaram instituições permanentes com superintendentes, levando as igrejas a ficarem dependentes do príncipe que, de fato, substituiu o bispo. Nasceu assim a igreja territorial reformada.

 

Em 1555, a Dieta de Augsbourg proclamou o princípio do “cujus regio, ejus religion” segundo o qual o príncipe ou uma outra autoridade podia determinar a religião das pessoas. A legislação e o órgão jurisdicional, em especial matrimonial, passaram para o poder do príncipe, que o entregava a uma instância jurídica: e o príncipe ou o magistrado das cidades passaram a ser a autoridade última em matéria de liturgia, doutrina ou nomeação de sacerdotes. Os bens eclesiásticos secularizados foram incorporados às possessões dos príncipes, ou geridos por administradores autônomos, em especial as escolas. Dessa maneira, passou a existir um controle sobre o comportamento religioso, e o estado jurídico e financeiro das paróquias, bem como sobre a doutrina e a vida moral dos pastores.

 

Thomas Münzer e outros dissidentes do protestantismo reformado procuraram mobilizar seus pares e exigir das autoridades políticas liberdade de expressão e de ação religiosas e criaram comunas autônomas, proibindo os seus adeptos de exerceram funções políticas no Estado. Entre suas ações, Münzer suprimiu completamente o uso do latim, em 1522, antes de Lutero. Em Altstadt, nos cultos que dirigia vinha gente de todas as partes ouvi-lo. Seus ataques voltaram-se em especial contra o clero católico, chamando os príncipes e o povo à intervenção armada contra a Igreja católica.

 

Não disse Cristo, vim trazer-vos não a paz, porém a espada? E que deveis fazer com ela? Nada, senão afastar a gente má que se opõe ao Evangelho. Cristo ordenou com grande severidade (Lucas 19.27): quanto, porém, a esses meus inimigos, que não quiseram que eu os governasse, trazei-os aqui e matai-os diante de mim... Não vos valhais do vão pretexto de que o braço de Deus deve fazê-lo sem ajuda da vossa espada que bem poderia enferrujar-se na bainha. Os que se oponham à revelação divina que sejam aniquilados sem piedade, como Ezequiel, Ciro, Josias, Daniel e Elias destruíram os pontífices de Baal; de outro modo a Igreja cristã não pode retornar à sua origem. Na época da vindima temos que arrancar a erva daninha das vinhas do Senhor. Deus disse (Deuteronômio 7.5): nem terás piedade dos idólatras;... deitarás abaixo seus altares... e queimarás a fogo as suas imagens de escultura... Porque tu és um povo santo e Jeová teu Deus...” 

 

Münzer, segundo Tillich, foi o mais criativo dos evangélicos radicais e acreditava que o Espírito podia sempre falar por meio das pessoas. No entanto, para se receber o Espírito era preciso participar da cruz.

 

Lutero, dizia eleprega um Cristo doce, um Cristo do perdão. Devemos também pregar o Cristo amargo, o Cristo que nos chama a carregar sua cruz”. 

 

Assim, os anabatistas atacavam a teologia de Lutero a respeito das Escrituras, porque consideravam que Deus não falara apenas no passado, tornando-se mudo no presente. Mas que sempre falou e fala nos corações ou nas profundezas de qualquer ser humano preparado para ouvi-lo por meio de sua própria cruz. O Espírito habita nas profundezas do coração. A cruz, explica Tillich, representava a situação limite, era externa e interna.

 

 Surpreendentemente, Münzer expressa esta idéia em termos existencialistas modernos. Quando percebemos a finidade humana, desgostamo-nos com a totalidade do mundo. E nos tornamos pobres de espírito. O homem é tomado pela ansiedade de sua existência de criatura e descobre que a coragem é impossível. Nesse momento Deus se manifesta e ele é transformado. Quando isso acontece, o homem pode receber revelações especiais. Pode ter visões pessoais não apenas a respeito de teologia como um todo, mas sobre assuntos de vida diária”.

 

Nessa conjuntura de choque, em Zurique, na Suíça, no meio dos seguidores do reformador Zwinglio, surgiu um grupo de cristãos que rejeitou o poder eclesiástico, fosse ele católico ou reformado, exigindo a autonomia das comunidades cristãs. Assim, os anabatistas fundaram sua primeira comunidade no dia 21 de janeiro de 1525. E eles próprios passaram a escolher seus pastores e a construir comunidades separadas do estado.

 

Em 21 de janeiro de 1525, Hans Denck, um teólogo anabatista de primeira grandeza, foi obrigado a deixar Nuremberg e nunca mais retornar. No correr do ano seguinte, ele sofreu o mesmo destino em outras cidades no sul da Alemanha e Suíça por causa de seu espiritualismo radical. Ele se uniu aos anabatistas do sul da Alemanha e se tornou seu líder principal até sua morte precoce, de peste, em 1527.

 

Sua “Confissão ante o Concílio de Nuremberg” é parte da herança confessional dos irmãos huteritas, dos menonitas e dos pietistas alemães, e seus escritos influenciaram os trabalhos de pensadores espiritualistas como Sebastian Frank (1495–1592) e Caspar Schwenckfeld (1490-1561) nos primeiros anos da Reforma.

 

Vejamos trechos fundantes da Confissão Ante o Concílio de Nuremberg, 1525.

 

“Eu, Hans Denck, confesso que verdadeiramente considero, sinto, e percebo que por natureza sou uma pessoa pobre de espírito, sujeito a toda doença do corpo e da alma. Ainda assim, eu também sinto alguma coisa dentro de mim que poderosamente resiste a minha obstinação inata e me leva para uma vida ou santidade que parece tão impossível de alcançar como parece inconcebível para o meu corpo ascender aos céus visíveis. Eles dizem que isso vem para a vida através da fé. Eu deixei estar. Mas quem me deu essa fé? Se isto é inato em mim, então eu devo ter essa vida naturalmente, mas não é isso.

 

Desde a infância aprendi a fé dos meus pais e usei a linguagem dela – depois, também através da leitura de livros humanitários – e, o mais importante, me gabava de ter fé, mas nunca considerei realmente sua contrapartida, a qual por natureza é inata em mim, apesar de eu ter sido frequentemente reprovado por isso. Essa fé tradicional decisivamente confronta a pobreza de espírito anteriormente mencionada. Pois vejo verdadeiramente que essa “doença” inata ou pobreza de espírito não é o todo enquanto empobrecer fundamentalmente; quanto mais estou preocupado comigo mesmo, mais necessariamente isto aumenta. Como uma árvore enferma por natureza não se torna melhor, mas só piora; por mais ataduras e cuidados que tenha, se não atentar para a raiz e dominá-la.

                                                                                                                                                                                 

Aquele que gostaria de ter dinheiro e ainda não tem nenhum, diria alegremente ter mil florins se isso fosse verdade. Mas como ele não os têm, ele não deve dizer também, pois se falasse assim enganaria as pessoas, e a ele mesmo mais do que todos. Eu queria muito ter fé, isto é, vida. Mas, como isso não está completamente alicerçado dentro de mim, não posso enganar a mim, nem aos outros. 

 

De fato, se eu digo hoje eu acredito, posso, contudo, amanhã reprovar a mim mesmo por mentir, ainda que não eu, mas a verdade reprove, que percebo imperfeitamente em mim.

 

Isso reconheço em mim, sem dúvida, como a verdade, o porquê, meu Deus, escutarei o que isso deseja me dizer; e não deixarei ninguém arrancá-los de mim. E onde discernir o que é elevado ou baixo em uma criatura eu escutarei; para onde isso me dirigir irei de acordo com a sua vontade, de onde isso me levar eu fugirei. Visto como percebo a Escritura Sagrada em meu poder, não entendo nada. Quanto mais essa verdade me compele, mais consequentemente entendo, não por mérito, mas pela graça. Por natureza, não posso, de fato, crer na Escritura Sagrada. Mas isso é o que está em mim, não digo de mim, mas o que me compele sem qualquer desejo ou ato meu, que me compele a ler a Escritura Sagrada por causa do seu testemunho.

 

Consequentemente, a leio e encontro especial testemunho que poderosamente confirma que exatamente o que me compele é o Cristo a quem a Escritura Sagrada testifica ser o Filho do Altíssimo.

 

Quanto a essa fé, não ouso dizer que a tenho, pelo motivo declarado. Quão melhor vejo que a minha incredulidade não pode estar diante Dele. Por isso, eu digo: Muito bem então, no nome do onipotente Deus, a quem eu temo do fundo do meu coração. Senhor, eu creio, ajuda-me na minha incredulidade! 

 

Assim como Pedro, tomo a Escritura Sagrada para ser um farol que brilha no escuro. A escuridão da minha incredulidade está por natureza profundamente enraizada na verdade. A Sagrada Escritura, o farol, brilha na escuridão, mas não pode por si mesma, por ser escrita por mãos humanas, falada por boca humana, vista por olhos humanos, e ouvida por ouvidos humanos, remover plenamente a escuridão. Mas, quando o dia, essa luz eterna amanhece, quando a estrela da manhã – que a fé como um grão de mostarda a qual em breve anuncia o sol da justiça do Cristo – nasce em nossos corações, como a Sagrada Escritura também testemunha acerca do patriarca Jacó, então apenas assim a escuridão da incredulidade é superada. Isso ainda não está em mim.

 

Enquanto tamanha escuridão está em mim, é impossível que deva entender completamente a Sagrada Escritura. Mas, se não a entendo, como deveria então tirar a fé disso? Isso significaria que a fé origina-se de si mesma se alegasse isso antes de ser revelado a mim por Deus.

 

De fato, aquele que não quer esperar a revelação de Deus, mas presume o trabalho que pertence unicamente ao Espírito de Deus, certamente faz pouco do mistério de Deus, documentado na Sagrada Escritura -- uma abominação dissoluta diante de Deus -- e perverte a graça do nosso Deus em libertinagem, como é apontado nas epístolas de Judas e 2 Pedro. Daí logo depois da morte dos apóstolos, seguiram-se muitas divisões ou seitas oriundas de si mesmas, com a Sagrada Escritura mal compreendida. Por que mal compreendida? Procedendo impetuosamente de acordo com seus próprios pressupostos, elas adquiriram uma falsa fé antes de rogarem a Deus pela verdadeira.

 

Por isso, Pedro ainda diz que a Sagrada Escritura “não é uma questão de interpretação própria”, porém compete ao Espírito Santo interpretá-la, quem também a deu primeiro.

 

Dessa interpretação do Espírito cada um deve primeiramente estar seguro em si mesmo. Onde isto não for assim, é falso e não vale de nada. O que “é falso e não vale de nada” alguém pode refutar com outro testemunho da Sagrada Escritura. Essa é a minha posição com a qual eu me apego, de bom grado, para o amor e a honra de Deus e para o mal e a desgraça de ninguém, exceto o que não está na verdade. Disto é em parte percebido facilmente: o que me atenho com respeito a Sagrada Escritura, pecado, justiça de Deus, lei, e evangelho. Contudo, para brevemente me explicar, falo dessas quatro últimas da seguinte forma:

 

Incredulidade sozinha é pecado, o qual a justiça de Deus extirpa através da lei. Tão logo a lei perde essa função, o evangelho toma o seu lugar. Pelo ouvir da mensagem a fé vem. Fé não tem pecado. Onde não há pecado habita a justiça de Deus.

 

Assim, a justiça de Deus é o próprio Deus. Pecado é o que cresce sozinho contra Deus; isto na verdade não é nada. A justiça trabalha através da palavra que estava desde o início e é dividida em duas, subsequentemente, lei e evangelho, por causa da posição dupla a qual Cristo como Rei da justiça pratica, a saber: extirpar a incredulidade e trazer a vida aos crentes. Sendo assim, todos os crentes eram incrédulos. Tornando-se crentes, primeiro tiveram que morrer na condição de que eles não poderiam mais viver para si mesmos como um não crente faz, mas para Deus através do Cristo eles podem caminhar tanto na terra como no céu, como disse Paulo.

 

Davi também comprovou isso quando ele disse: “O Senhor faz descer à sepultura e dela resgata”.

 

Em tudo isso eu creio -- Senhor, esmague minha incredulidade -- verdadeiramente, agora na expectativa, de quem quer que deseje negar e derrubar isso. Por isso, procuro também registrar que creio no batismo e na ceia do Senhor. Agora[meu tempo é curto. O Senhor esteja conosco. Amém”. 

 

Sobre o Batismo

 

Eu, Hans Denck, ainda confesso, que em verdade entendo, à medida que isso é compreendido por mim, que todas as coisas que são impuras por natureza, quanto mais as purificamos menos podemos realizar com elas.

 

Quem se aventuraria a lavar o vermelho do tijolo e o preto do carvão visto que eles não são essencialmente diferentes? Em todo caso, isso seria um trabalho desnecessário, porque (a) natureza não é de modo essencial mudada e superada. Do mesmo modo, é tão inútil lavar externamente um homem cujo corpo e alma são por natureza impuros se ele não estiver de início arrependido e convencido interiormente. A poderosa palavra de Deus sozinha é capaz de sobrevir e penetrar dentro do abismo da impureza do homem, exatamente como um solo árido é preparado pela boa chuva. 

 

Onde isso acontece, nasce o conflito no homem antes da natureza ceder, e [resulta em] desespero, então presume-se que ele deve perecer de corpo e alma [e que] ele poderá não suportar o trabalho que Deus começou. Como se supõe, quando chega uma grande enchente [que] a terra não poderá aguentar mas será lavada.

Em grande desespero Davi disse: “Senhor Deus, ajuda-me, pois as correntezas subiram até a minha alma”. Mas tamanho desespero, embora grande ou pequeno, dura tanto quanto o eleito está em seu corpo, e o trabalho do Cristo começa imediatamente após isso. Por isso, não apenas João Batista mas também os apóstolos do Cristo batizaram-se nas águas. A razão: tudo que não sobrevivesse a água pode de fato tolerar menos o fogo, pois o batismo do Cristo é no Espírito, (e) a perfeição de seu trabalho.

Essa água ou batismo santifica (1Pe 3), não que ela remova a sujeira do corpo, mas por causa do compromisso de uma boa consciência diante de Deus. Esse compromisso significa que, aquele que se deixa ser batizado o faz perante a morte do Cristo, que morreu assim como este também morre para Adão; como Cristo ressuscitou, ele também caminhará na nova vida [de] Cristo, de acordo com Romanos 6.

 

Onde esse compromisso está, o Espírito do Cristo está junto e acende o fogo do amor o qual consome completamente o que permanece enfermo, e completa a obra do Cristo. Depois disso acontece o Sabbath, o eterno descanso em Deus, acerca do qual todas as línguas se calam.

Onde o batismo formal exala o compromisso anteriormente mencionado, é bom. Onde não é, isso não serve para a razão indicada. O batismo formal não é preciso para a salvação; como Paulo disse, ele não foi enviado para batizar, o que seria desnecessário, mas para pregar o evangelho [que é] necessário.

Mas, o batismo interno, acima mencionado, é necessário. Como está escrito, quem crer e for batizado será salvo.

Sobre a Ceia de Cristo

 

Eu, Hans Denck, confesso novamente, assim como, que percebo que sou por natureza doente de corpo e alma, verdadeiramente envenenado e febril; tudo que eu neste enfermo, envenenado e desassossegado corpo e alma como, não afasta minha doença mas apenas a piora.

Eu percebo também que isso que me conduz e prepara, não como eu desejaria mas como isso mesmo deseja, me adverte e diz como um médico cheio de fé [que] por causa do veneno correndo em meu sangue, a febre não pode ser aliviada exceto se o sangue for acalmado e subjugado.  E isso pode ser feito de dois modos: através da abstinência e da sangria. Estar de dieta significa que alguém não está bem internamente, com alimentação irregular, isto é, com falsa satisfação. Sangria significa que alguém também deveria suportar sofrimento externo pela recomendação do médico.

Essa é a obra do Cristo concernente à morte de Adão. Agora, embora isso não tenha sido concluído enquanto eu vivo no meu corpo, isso entretanto começou no corpo [e] às vezes também   padecendo por causa do compromisso com Deus como eu coloco meu querer no querer de Deus através do Cristo, o Mediador, como dito acima com relação ao batismo. Aquele que portanto está lembrado e come o invisível pão vivo, sempre será fortalecido e capacitado na vida justa.

 

Aquele que portanto está lembrado e bebe do vinho invisível do cálice invisível, o qual Deus desde o início verteu através de seu Filho, através da palavra, torna-se exaltado e não mais sabe nada sobre si mesmo mas através do amor de Deus torna-se divino e Deus está humanizado nele. Isso é denominado ter comido o corpo do Cristo e ter bebido o sangue do Cristo, João 6.

 

De fato, aquele que portanto está lembrado, tão frequentemente quanto lembra do que o Senhor diz, isto é, tão frequentemente come o pão e bebe do cálice, celebra e proclama a morte do Senhor. Assim sendo, para aquele que entretanto fisicamente também come e bebe, isso é verdadeiramente benéfico e saudável para o corpo porque o corpo sujeita-se ao Espírito e também o serve em verdade.

 

Já se isso é soar e aclamar, então não pode diferir da palavra de Deus, como Paulo frequentemente chamou de “dar ouvidos”. Mas visto que isso é invisível no pão visível e ainda não diferente do pão, portanto, isto é de fato o Mundo invisível no corpo visível, que é concebido pelo Espírito Santo, nascido de Maria, a Virgem. Como o comer e o beber, um não pode ser sem o outro em benefício próprio. Comer sem beber causa indigestão e não nutre.  Isso é o propósito de Paulo quando ele diz: “Ainda que eu tenha fé capaz de mover montanhas, e não tiver amor, nada disso ainda valeria!”

 

O beber sem o comer enfraquece e intoxica. Amor sem fé engana a si mesmo naquilo que significa amar a todos por causa de Deus. Por um tempo, entretanto, isso assim pode parecer, contudo, isso realmente não prevalece. Visto que de repente tornar-se evidente que apenas isso é amado por ele, que foi amado antes ainda de ser mal; e que ele sempre odeia o que a verdade lhe diz, ainda que seja bom. O comer e o beber, juntos ambos são benéficos. O comer alegra e fortalece, o beber acende o amor e aperfeiçoa aquilo para que o Cristo veio, que é a purificação do pecado que realizou-se no derramamento do sangue do Cristo.

 

Assim sendo, o que foi dito acima diz respeito ao pão visível, também podendo ser aqui referente ao cálice. O mesmo pode viver sem esse pão exterior através do poder de Deus onde quer que sua  glorificação o requerer, como fez Moisés no Monte Sinai e Cristo no deserto. Sem o pão interior ninguém pode viver. O justo vive pela fé. Aquele que não crê, não vive.

 

Tudo isso eu confesso do fundo do meu coração diante da face do Deus invisível, para quem através dessa confissão eu devo me submeter humildemente; eu não deveria dizer “eu”, mas ele propriamente me sujeita a Ele, não por Ele mesmo mas para todas as criaturas Nele. Não obstante,

 

Eu imploro a todas as criaturas e a sua sabedoria, a qual está nas mãos de Deus, através do terrível e grande nome de Deus, para julgar-me e aos meus irmãos presos, a quem eu amo em verdade, não de acordo com a aparência mas de acordo com a verdade. Assim também o Senhor julgará quando ele vier em sua glória no dia da revelação de todos os mistérios. Amém. Amém”.

 

Mas, no sul da Alemanha, sem dúvida, foi Thomas Münzer quem se levantou como defensor de uma proposta de revolução social camponesa. Em 1521, liderou um grupo de anabatistas que se somaram aos camponeses sublevados ao redor da reivindicação de terra e liberdade. Münzer criou, assim, pela primeira vez na história um movimento de libertação camponês anabatista. Münzer não foi apenas um pensador, mas um militante que praticava a fé. Acreditava ser um profeta, chamado para implantar o Reino de Deus.

Considerava ser seu dever denunciar e executar as sentenças contra os governantes que exploravam o povo. Suas pregações estavam impregnadas de conteúdo social e político: o fim da velha Igreja deveria marcar o inicio de uma nova ordem social.

 

Engels, que junto com Marx foi um dos pais do socialismo moderno, considerou as guerras camponesas lideradas pelos anabatistas como combates sociais. Afirmou que “se, em termos gerais, a burguesia podia arrogar-se o direito de representar, em suas lutas com a nobreza, além dos seus interesses, os das diferentes classes trabalhadoras da época, ao lado de todo grande movimento burguês que se desatava, eclodiam movimentos independentes daquela classe que era o precedente mais ou menos desenvolvido do proletariado moderno. Tal foi na época da Reforma e das guerras camponesas na Alemanha, a tendência dos anabatistas e de Thomas Münzer”.

 

Considerou que, apesar de terem uma face cristã reformada, as reivindicações anabatistas iam além da expressão religiosa que apresentavam. Para Engels, a política de Münzer nasceu de seu pensamento revolucionário, que caminhava adiante da situação social e política de sua época. Seu programa propunha o estabelecimento do Reino de Deus, com o milênio de justiça, paz e felicidade, com a supressão de todas as instituições que se encontravam em contradição com o mandamento do amor.

 

Para Münzer, o céu estava aqui no chão. E, por isso, o cristão deveria construí-lo na vida. A esse cristão anabatista cabia a missão de estabelecer o Reino de Deus sobre a terra. Seus sermões eram clamores políticos e estavam dirigidos a instaurar uma nova ordem social. A partir de Münzer, os anabatistas fizeram dos sermões proféticos, elaborados a partir da realidade social em que estavam inseridos, manifestos revolucionários, cujas propostas atemorizavam as autoridades, governantes eclesiásticos e príncipes de toda a Europa.

 

A crise econômica, fruto da exploração agrícola predatória e extensiva; a crise demográfica, por causa das epidemias e fome; a crise social gerada com o surgimento da burguesia e dos assalariados; a crise clerical, devido às contradições e o enfraquecimento da Igreja católica e a crise espiritual ocasionada pelo surgimento de novas leituras do cristianismo fizeram da baixa Idade Média um período de alta instabilidade e angústia coletiva. 

 

Milhares de camponeses sem terra e plebeus desempregados vagavam pelos campos e cidades. Essa situação levou às propostas de construção de comunidades formadas por camponeses e plebeus, onde pudessem viver e trabalhar juntos, num sistema de vida em comum com os bens partilhados, disponíveis segundo as necessidades das pessoas e famílias. E, de fato, os anabatistas organizaram comunidades com este formato, organizações baseadas na propriedade social autônoma em relação ao Estado e aos poderes eclesiásticos e laicos da época, em primeiro lugar católico e depois reformado.

 

Dessa maneira, os anabatistas tiveram a compreensão de que o cristianismo era uma ferramenta para a mudança da condição social em que se encontravam os camponeses e deserdados da terra. Partiram de suas próprias experiências de vida e trabalho e quebraram o paradigma de que a fé devia estar alienada da vida social e política.

 

Mais tarde, em combate, e exército de Münzer foi derrotado e ele foi preso, torturado e executado. Mas a guerra camponesa na Alemanha se estendeu até 1525, quando os anabatistas revolucionários foram afogados em sangue. O conflito, que teve lugar nas áreas do sul, centro e oeste da Alemanha, também afetou regiões vizinhas na Suíça e Áustria, e envolveu no seu auge, no verão de 1525, cerca de 300 mil camponeses. Estimativas da época situaram o número de mortes em torno de 100 mil camponeses e plebeus.

 

O sonho anabatista, porém, não morreu aí, subsistiu no coração de milhares de cristãos. Vejamos alguns exemplos. Sete anos depois da morte de Münzer, em 1532, uma insurreição tomou conta da cidade de Münstzer. Ela foi iniciada por um ex-padre da Catedral de Münstzer, que se tornou luterano, Bernard Rothmann, e acabou sendo expulso da cidade. Dois anos depois, em 1534, o pastor anabatista Jan Matthys, junto com outros líderes, entre os quais Jan van Leiden e Gert Tom Kloster, declarou a cidade de Münstzer livre do domínio dos príncipes e do poder eclesiástico.

 

Matthys iniciou uma revolução social: os proprietários de terras foram expropriados e suas terras e bens distribuídos entre os camponeses. Dando seqüência à revolução, ele e um grupo de anabatistas atacaram a guarnição liderada pelo príncipe Franz von Waldeck, que era bispo de Münstzer e também chefe do exército. No confronto Matthys foi morto. Foi, então, sucedido por Jan van Leiden. Após um ano de resistência, Waldeck liderou um exército bem equipado e assaltou a cidade. Jan van Leiden e seus oficiais foram presos, torturados e executados. Os combatentes anabatistas foram lançados às prisões e, posteriormente, deportados para outras regiões da Alemanha e Suíça.

 

A partir desse momento as comunidades anabatistas passaram a viver umas isoladas das outras, de forma clandestina. Seus líderes eram leigos que pregavam em roupas civis. Adotaram uma disciplina e uma ética rígidas a fim de sobreviverem na clandestinidade. Essas pequenas comunidades se refugiaram no interior da Europa e se estruturaram de forma autônoma. Cada comunidade de fé sobrevivia do compromisso de serviço e financeiro de seus afiliados.


Já a designação “batista”, que muitas vezes em textos de História aparece como sinônimo de “anabatista” surgiu no século XVII, embora fossem cristãos espiritualmente ligados àqueles que nos séculos anteriores procuraram permanecer fiéis aos ensinamentos das Escrituras, repudiando, mesmo com risco da própria vida, os acréscimos e corrupções de origem humana. Através dos tempos, esses cristãos que nadavam na contra-corrente se notabilizaram pela defesa de alguns princípios: a aceitação das Escrituras Sagradas como única regra de fé e conduta; o conceito de igreja como comunidade local, democrática e autônoma, formada de pessoas regeneradas e, biblicamente, batizadas; a separação entre igreja e Estado; a absoluta liberdade de consciência; a responsabilidade individual diante de Deus; e a autenticidade e apostolicidade das igrejas. 


Caracterizaram-se pela cooperação entre as igrejas, não havendo nenhum poder que pudesse constranger a igreja local, a não ser a vontade de Deus, manifestada através de seu Espírito. No Brasil, os batistas convencionais, por exemplo, que em parte são herdeiros da Reforma radical, baseados no princípio da cooperação voluntária das igrejas, dedicaram-se às obras de missões, à evangelização, à educação teológica, religiosa e secular, à ação social e à beneficência. Para a execução desses fins, organizaram associações regionais e convenções estaduais e nacional, não tendo estas, no entanto, autoridade sobre as igrejas locais, sendo suas resoluções entendidas como sugestões às igrejas locais.


Para os herdeiros da Reforma radical, ou seja, para a grande maioria da igreja evangélica brasileira, as Escrituras Sagradas, em particular o Novo Testamento, constituem a regra de fé e conduta, mas, de quando e quando, as circunstâncias exigem que sejam feitas declarações doutrinárias que esclareçam dúvidas e reafirmem posições. 

 

Assim, Lucas mostrou a diferença entre o cristianismo e a estrutura judaica oficial que entrava numa etapa de caducidade. Herdamos, dessa maneira, dos cristãos dos dois primeiros séculos, a compreensão de que entre os cristãos a organização não reflete poder pessoal, nem burocratismo. Não há como separar a vida e a estrutura da igreja nascente de sua mensagem e de sua missão. Estamos diante de uma totalidade viva, em expansão, cheia de glória e do poder de seu senhor e mestre: Jesus, juiz dos vivos e dos mortos (Atos 10:42).

 

As comunidades cristãs descritas em Atos fornecem elementos concretos e práticos sobre a ação e atuação ideais para a igreja de nossos dias. E essa é a conclusão que desejamos apresentar, conforme os parâmetros tão bem definidos por Scott Horrel em seu trabalho. Lucas fala de um cristianismo de adoração, de aprendizado, de comunhão e de evangelização. São as atividades primordiais de uma igreja habitada pelo Espírito Santo. Esse cristianismo pode ser descrito assim:

 

(a)  Era uma igreja marcada pelo louvor. E o amor traduzia-se na criatividade das formas de adoração. Assim, ao invés de reduzir a adoração exclusivamente à música e à oração, os primeiros cristãos tinham a liberdade de experimentar formas que criavam condições para a igreja se deleitar no Senhor.

 

(b)  O aprendizado, que pode ser traduzido em ensino, doutrina e teologia, era considerado fundamental para a vida cristã. Era a porta de entrada para conhecer a palavra de Deus.

 

(c)  A comunhão era muito mais do que o mero bom relacionamento entre cristãos. A igreja, através da oração e do planejamento, desenvolveu formas de encorajar a comunhão genuína. Afinal, o relacionamento com Deus é medido mais pela comunhão com outros cristãos do que por qualquer outro fator.

 

(d)  A evangelização era entendida como um ato corporal, não apenas como discurso. Isto porque, ao viverem num clima de adoração, de aprendizado e comunhão, os cristãos exerciam uma poderosa atração sobre aqueles que estavam procurando a verdade.

 

Dessa maneira, as comunidades cristãs de Atos romperam com a centralização  nacional e geográfica de Israel e iniciaram a construção de uma igreja para todos os povos, em todo o lugar, em cada dia. Hoje, da mesma forma que o cristianismo nascente, a igreja local precisa ter claro sua essência, sua função, seu ponto de equilíbrio, sua forma e estilo. Isso significa que o propósito básico da igreja local é encarnar o corpo do Cristo na terra, fazendo a vontade Deus. Suas atividades primárias devem ser aquelas que caracterizavam a igreja no Novo Testamento e isso deve ser construído de forma equilibrada. Não desenvolvendo apenas uma função, mas todas as quatro. E por fim, deve adaptar sua organização ao povo e às novas gerações.

 

Existe ainda uma questão fundamental que é a responsabilidade diante da igreja como um todo. É necessário aprender a experimentar comunhão entre as diferentes confissões. Existem diferenças e muito possivelmente devem ser mantidas, mas as outras igrejas locais, as outras denominações não são inimigas. Representam grupos de pessoas, com experiências e tradições diferentes das nossas. Rejeitar a comunhão com um irmão é, de fato, rejeitar o corpo do Cristo.

 

E por fim, fica a pergunta: o que seria uma igreja sem templo, sem domingo, sem grande programa de culto e sem clero profissional? Aparentemente, poderia não ser o ideal, mas nem por isso deixaria de ser uma igreja local, se mantivesse a adoração, a proclamação, o ensino e o serviço. Jesus Cristo instituiu a sua igreja (2), tornando-a real e efetiva (3), revestindo-a de condições para receber todos os povos, fazendo-os  família de Deus (4), amando-a e dando-se a si mesmo por ela (5), a fim de torná-la o instrumento perfeito para o testemunho da sua graça e proclamação da sua salvação. 


A igreja é uma congregação local, formada por pessoas regeneradas e biblicamente batizadas, após pública profissão de fé, em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo. Ela cumpre os propósitos de Deus no mundo, sob o senhorio de Jesus Cristo, o qual deseja criar um novo homem, segundo a imagem e semelhança do Deus Triúno, e formar uma nova humanidade, um povo para louvor da glória de sua graça, no tempo presente e na eternidade. 


A igreja cumpre este propósito através do culto, da edificação dos salvos, da proclamação do evangelho, da ação social e da educação, vivendo em amor. No cumprimento destas funções, a igreja coopera com Deus para a consecução do plano divino de redenção. Baseada no princípio da cooperação voluntária entende a igreja que, juntando seus esforços aos de igrejas co-irmãs, pode realizar a obra comum de missões, educação, formação de ministros e de ação social, com mais eficiência e amplitude. A igreja é autônoma, tem governo democrático, pratica a disciplina e rege-se pela Palavra de Deus em todas as questões espirituais, doutrinárias e éticas, sob a orientação do Espírito Santo. Sem dúvida, a questão fundamental para nossas igrejas é saber, precisamente, qual a sua razão de ser e como está usando a liberdade que Cristo lhe deu.

 

A Igreja Como Corpo de Cristo

 

"Ora vós sois Corpo do Cristo; e individualmente membros deste corpo" (I Co 12:27). A A Igreja é um corpo, que tem um objetivo específico. Este objetivo e sentido é expressar a vida do Espírito de Deus, a vida do Cristo. O contato do Cristo com o mundo se dá por meio do corpo. Em outras palavras, o propósito do corpo é de se relacionar com o mundo exterior, o corpo é a expressão do Espírito. Esta é a principal responsabilidade da Igreja como corpo -- expressar a vida e a glória de Deus. O contato do mundo com Deus se faz pela Igreja. Anjos não pregam o Evangelho.

 

A Bíblia apresenta metáforas para falar da igreja. Cada uma dessas imagens traduz um aspecto particular da comunidade de fé. (1) templo do Espírito Santo -- ICo 3.16; (2) habitação de Deus -- Ex 25:08, Sl 22:03, Ef 2:22; (3) edifício de Jesus -- ICo 3:09, Mt 16:16-18; (4) casa de Deus -- Hebreus 3.06; (5) povo de Deus -- IPedro 2:9-10; (6) Universal Assembléia -- Hebreus 12:22; (7) Esposa -- Ap 19:07, Ef 5: 25-32; (8) Coluna e baluarte da verdade -- ITimóteo 3:15; (9) Jerusalém de cima, Nova Jerusalém, Jerusalém Celestial -- Gl 4:26, Hb 11:22, Ap 21:01; (10) Corpo do Cristo -- Ef 1:22-23;, I Co 12:27.

 

Fazer parte do corpo do Cristo significa ser representante de Deus no mundo em que habitamos. Em ICo 5:20, Paulo diz que somos embaixadores do Reino de Deus. E como embaixadores temos a responsabilidade de representar o nosso Senhor diante de toda a humanidade. Jesus deu-nos poder e autoridade afim de que tornássemos seus representantes. 

 

De que maneira o membro do corpo do Cristo deve viver ? Consciente de que: o corpo não é formado por um só membro (ICo 12: 12-14); de que o corpo é do Cristo (ICo 12:27); de que cada membro do corpo tem uma função  (ICo 12:14-15); de que não existe membro desnecessário (ICo 12:22); de que os membros obedecem à cabeça (Ef 5:23); de que os membros são diferentes e têm funções diferentes (ICo 12:13,17).

 

Jesus o Senhor dos Senhores se fez servo a fim de servir. "Não será assim entre vós, antes qualquer que entre vós que quiser tornar-se grande entre vós será esse que vos sirva (diáconos) e qual dentre vós que quiser ser o primeiro será esse vosso servo (doulos); assim como o filho do homem não veio ser servido (diáconos) mais para servir (diáconos) e para dar a vida a favor de muitos" (Mt 20:26-27).

 

Esse exemplo Jesus nos deu também na última Ceia: "Levantou-se da ceia tirou o manto e tomando uma toalha cingiu-se" (Jo 13.04). Esta expressão tirou, no grego tithmi, é a mesma palavra usada em João 10.11 com referência a dar a vida pelas ovelhas. Ou seja, quem serve deve fazer do serviço uma doação de vida.

 

I. IGREJA, REINO DE DEUS  E POLÍTICA 

 

Para esta reflexão sobre igreja, reino de Deus e polítca partimos de dois teólogos luteranos, Karl Barth e Paul Tillich. O primeiro foi socialista durante toda a vida, membro do Partido Social Democrata alemão, e o segundo criador do Movimento Socialismo Religioso, também na Alemanha. E começamos pela constatação de que  igreja, reino de Deus e política não são realidades estanques, por uma simples razão: repousam sobre a ação humana e as raízes do fazer e pensar não são apenas pensar e fazer, mas expressão de pessoas e comunidades políticas, de situações sociais. Não se pode entender formas de fazer e pensar quando não se leva em conta as realidades sociais que lhes deram origem. 

 

Essas raízes do fazer e pensar político não agem sempre com a mesma força em todos os  momentos e em todas comunidades. Às vezes, pode predominar uma ação ou pensamento, que depende de determinada situação social, de grupos que pressionam em determinado sentido. Depende, dessa forma, de estruturas sociopsicológicas e da interação de comunidades com a situação social. 

 

Por isso, partimos, em nossa análise, de uma antropologia da imagem do Eterno e de uma teologia da vida. Nosso primeiro referencial é o ser humano. Nesse sentido, trabalhamos com uma fenomenologia política ao abordar as questões políticas referentes ao ser humano e a origem das ações e formas de pensar político, enquanto construções arquetípicas, nascidas dos mitos de origem, que trazem à tona as idéias submersas, não-reflexivas, do fazer e pensar político. 

 

Procuramos tal caminho, porque, conforme defende Barth, “a orientação da ação política da igreja se constrói a partir do discernimento, do juízo e da eleição de escolhas e compromissos, por estar relacionada com o caráter dual do Estado, que tem a possibilidade de oferecer e a necessidade de receber a imagem analógica do reino de Deus que a igreja anuncia”.

 

 O Estado não é uma réplica da igreja, nem uma antecipação do reino de Deus, em sua relação com a igreja tem realidade própria e em sua relação com Deus representa, da mesma maneira que a Igrejam, um fenômeno humano, acompanhado das características do mundo temporal. Não se pode pensar em identificar o Estado nem com a igreja, nem com o reino de Deus. Mas, desde o momento em que está fundado sobre uma disposição da vontade divina, não é autônomo porque pertence na realidade ao reino de Deus. Não pode, se pretende de fato ser Estado, existir independente da igreja e do reino de Deus. Por isso, não se pode falar de uma diferença absoluta entre a cidade dos homens e cidade de Deus, e cidade dos homens e o reino de Deus. Fica, então, a constatação: desde o ponto de vista cristão, o Estado e sua justiça são uma parábola do reino de Deus, que é o objeto da fé e da proclamação da igreja. Como comunidade civil, o Estado constitui o círculo exterior em cujo interior se inscreve a comunidade cristã, com o mistério da fé que ela confessa e proclama. Os dois, Estado e comunidade cristã têm o mesmo centro. São diferentes, porém, pela origem e pelas tarefas que lhes corresponde. Mas por se encontrarem em relação analógica com a justiça, a cidade dos homens é capaz de refletir, como espelho, a justiça que a igreja anuncia. Mas por estar condenado a ser o que é e a atuar dentro de seus limites, o Estado, como reflexo da justiça não possui justiça e, consequentemente, não possui existência intrínseca e definitiva. Ao contrário, sua justiça e sua existência estão sempre ameaçadas e por isso perguntamos: até que ponto, está a cumprir com justiça suas tarefas diante do povo e de Deus”.

 

1. E para mergulhar nesta questão, consideramos que a questão existencial, presente na teologia da vida, nos leva a uma antropologia existencial. Ora, a questão existencial esta imbricada com a espiritualidade, ou se preferirem, com a religião, que é a dimensão da profundidade do espírito humano. Quando falamos profundidade estamos dizendo que a dimensão religiosa, consciente ou não, aponta em direção àquilo que na vida espiritual humana é incondicional. No sentido mais amplo do termo, religião é a preocupação que se manifesta em todas as funções criativas do espírito humano. Assim, a religião constitui a substância da vida espiritual humana.

 

Muitas vezes, quando se quer correlacionar igreja, reino de Deus e Estado não é necessário perguntar pelas raízes de tal fenômeno espiritual ou social, isto porque às vezes há um testemunho claro, translúcido, que revela a integridade dessas raízes. Mas, em outros casos, igreja e Estado caminham por sendas tortuosasm afastando-se do justiça, então é necessário buscar as raízes dessas opções. 

 

2. É necessário procurar pelas raízes do fazer e pensar político no próprio ser humano. Sem uma compreensão do humano, de suas forças e tensões, não se pode dizer nada sobre as fundações do fazer e pensar político. Sem uma teoria do humano, não se  pode construir uma teoria das orientações políticas. O humano, diferente do restante da natureza, é um ser dividido. Aqui não estamos preocupados em saber onde terminou o dado natural e onde começou o humano, não estamos preocupados nesse momento em analisar como se deu a passagem entre natural e humano, se através de lentas transições ou por um salto. O importante é que em determinado momento, a diferença ficou clara.

 

Há, no entanto, na vida consciente uma questão que desdobra a natureza, um processo que está ligado àquilo que se encontra na vida consciente e faz parte do que ela é. A vida consciente deseja saber sobre o humano, e coloca questões: ele, dialeticamente, não é um ser dividido, mas está dividido. É idêntico a si mesmo quando diante de si mesmo, no ato de pensar e de conhecer. Mas não apenas isso.

 

3. O ser humano tem consciência de si mesmo, distingue-se da natureza enquanto ser que se desdobra, tornando-se um ser consciente de si mesmo. A natureza ignora esta divisão. Por isso, o humano não é uma combinação de duas partes autônomas, tais como natureza e mente ou corpo e alma, mas um só ser, porém fendido em sua unidade. Estas constatações levam a algumas considerações no que se refere à pesquisa do pensar político. Elas mostram que não há pensamento político enquanto puro movimento de pensamento, de exigências ético-religiosas, ou considerações ditadas por determinada cosmovisão. 

 

Por isso, “para preservar a cidade dos homens da ruína é necessário recordá-la de quais são as exigências da justiça. A cidade dos homens precisa da analogia com o reino de Deus, porque não é capaz de criá-la. Necessita de um quadro histórico que possa ajudá-la a chegar a ser uma parábola do reino de Deus, permitindo que cumpra as tarefas da justiça humana. Mas, a iniciativa humana não pode orientar-se somente por si mesma. A cidade dos homens não conhece o mistério do reino de Deus, nem o centro do qual depende a mensagem da comunidade cristã. Tem, por isso, que buscar água nas fontes do direito naturalm exatamente por não se lembrar do critério verdadeiro de sua justiça, e por não saber colocar-se em movimento para cumprir com as tarefas desta justiça. Por esta razão, precisa da presença, às vezes incômoda, da atividade que se desenvolve ao redor do centro comum dos dois domínios: a presença da cidade de Deus no exercício de sua corresponsabilidade política. Sem ser reino de Deus, a cidade de Deus sabe algo Dele: crê, espera e ora no nome do Cristo e anuncia a excelência deste nome sobre todos os outros. Nesse ponto não é nem neutra nem impotente. Quando passa ao plano político para tomar sua parte de responsabilidade não abandona sua atitude de compromisso, sua fidelidade ao único Senhor”. 

 

4. O pensar político vem do ser humano exatamente opor ser ele uma unidade, nefesh hayah. Pensar politicamente, o relacionar-se, está enraizado no humano e na sua consciência. É por isso que não se pode entender um sistema de pensamento político sem contextualizar seu enraizamento no ser humano enquanto ser social, ou seja, sem o imbricamento de interesses e pulsões, aspirações e constrangimentos constituintes do ser social. Mas é impossível separar o ser humano de sua consciência, ou ver o pensar político como simples subproduto do humano, pois a consciência estrutura o humano enquanto o ser social, em cada um de seus elementos, inclusive as sensações pulsantes arquetípicas. 

 

Quando se tenta desfazer laços passa-se ao largo de uma característica do humano, o que produz uma distorção na compreensão dele, de que há uma consciência inadequada ao ser, uma falsa consciência, mas que não invalida a unidade do ser e da consciência. Isto porque falsa consciência, aquela que não é crítica e não busca a transformação da realidade, não se dá quando a coisa que se designa é não pode ser conhecida. Assim, a consciência crítica e transformadora é uma consciência que emerge do ser e ao mesmo tempo o determina. Não pode ser uma coisa sem ser a outra, porque o ser humano é uma unidade na divisão, e desta unidade nascem as duas raízes de todo pensamento político. 

 

5. O ser humano se encontra enquanto realidade dada, assim como seu ambiente. Mas estar no mundo enquanto realidade significa que isso não vem de si mesmo, que ele não é sua própria origem. Conforme disse Heidegger, é um “ser lançado”. Esta situação leva o ser humano a buscar sua origem. E porque tal questão repousa no âmbito da filosofia, quer religiosa ou não, é uma construção que parte sempre da ancestralidade, de compreensões arquetípicas do humano, dos mitos de origem.   

 

6. A origem é o que nos traz à tona. É o que dá lugar a algo novo, que não existiu antes, que produz uma consciência própria, mas diferente da própria origem referenciada. A realidade que somos está colocada, mas também é algo próprio, construído. Por isso, há uma permanente tensão ser-posto e o ser-próprio.

 

Mas, a origem não nos liberta. Não se pode dizer que era e que não é mais. Constantemente somos puxados pela origem: ela nos faz emergir, mas nos segura firme. É ela que nos estabelece como algo, enquanto essência. Dessa maneira, ser-posto no mundo significa caminhar daqui para a frente, ir em direção à a morte. 

 

6. Diante da origem, desse passado mítico a que nos reportamos para dizer o que somos, ou pensamos ser, uma forma de pensar político chamamos de concepção conservadora. Tal maneira de ler a origem admite o surgimento do eterno no tempo, que repousa no passado, mas nega toda possibilidade de mudança, presente ou futura. A força dessa concepção, que hoje chamamos de direita, repousa no fato de que considera o eterno como dado e não como resultado da ação cultural e religiosa do ser humano. Tal concepção conservadora também reconhece o kairós, mas o situa no passado. 

 

A idéia de cairos tem origem na expressão “plenitude do tempo” referente ao evento Jesus, e fala de um tempo carregado de impossibilidades, tensão, possibilidades, rico de conteúdo, mas qualitativo. Nem tudo é possível sempre, nem tudo é verdade em todos os tempos, nem tudo é exigido em todo momento. Diversos mestres, diferentes poderes cósmicos, reinam em tempos diferentes, mas o Senhor triunfa sobre anjos e poderes, reina no tempo pleno do destino e de tensões, que se estende entre a ressurreição e a parousia. Reina no tempo presente que, em sua essência, é diferente dos outros tempos do passado. É nessa viva e profunda consciência da história que está enraizada a idéia de kairós, e é a partir dela que deve ser elaborado o conceito de uma teologia da vida, consciente, crítica e transformadora da história.  

 

Assim, a política conservadora desconsidera que se o cairos brotou no passado como acontecimento único, é ele quem se revela em todos os acontecimentos fundantes do passado, presente e futuro. Sob tal perspectiva atua o pensar político conservador, que perdeu o sentido supratemporal do kairós.

 

7. A ancestralidade, as leituras arquetípicas, os mitos de origem expressam com profunda riqueza o estado das coisas, como testemunho de eventos nos quais a comunidade humana percebe sua origem. Em toda ancestralidade, leituras arquetípicas, mitos de origem ressoam a lei cíclica do nascimento e da morte. Toda ancestralidade, leituras arquetípicas, mitos de origem responde à pergunta da providência e conta porque somos segurados na origem e estamos debaixo de seu império. A consciência ancestral, arquetípica, mìtica original são as raizes de todos os pensamentos políticos conservadores e românticos.

 

A consciência mítica não apresenta jamais a origem de forma geral ou de maneira abstrata, mas sempre de forma concreta, sob a forma de poderes originais determinados. A existência humana em geral é bem distinta, e diferentes são suas origens, também são diferentes os poderes da origem, percebidos no mito e atualizados no culto. Porém, é possível operar alguns reagrupamentos significantes de poderes originais que têm uma grande importância política.

 

Embora haja pontos de contado entre os conceitos expressos por Tillich e o pensamento marxiano, principalmente no que se refere à construção de um pensamento político conservador, é interessante ver as diferenças. Para Marilena Chauí, filósofa brasileira, teórica do Partido dos Trabalhadores, o mito deve ser entendido enquanto conceito antropológico, no qual a narrativa é a solução imaginária para conflitos, contradições e tensões que não encontram caminhos para serem resolvidos no nível da realidade. “Um mito fundador é aquele que não cessa de encontrar novos meios para exprimir-se, novas linguagens, novos valores e idéias, de tal modo que, quanto mais parece ser outra coisa, tanto mais é a repetição de si mesmo”. Dessa maneira, para Chauí a concepção conservadora é sempre falsa consciência.

 

Mas o ser humano vai além do colocar-se como realidade dada, vai além do saber colocar-se diante do ciclo do nascimento e a morte. Faz a experiência de uma exigência que separou o imediato da vida e o leva a colocar diante da pergunta da providência uma outra pergunta: por que?

 

Esta pergunta quebra o ciclo do nascimento e morte e eleva o ser humano acima da esfera do simples viver. Porque é a exigência de algo que não está aqui, que deve se tornar realidade. Quando se faz a experiência desse tipo de exigência não se está mais colado à origem. Vai-se além da afirmação do que já está. A exigência nomeia o que deve ser. O que deve ser não é determinado com a afirmação daquilo que já é, significa que tal exigência impôs ao ser humano aquilo que não está condicionado. 

 

O “por que” não está dentro dos limites da origem. É o incondicionalmente novo. É através do “por que” que o ser humano alcança algo do incondicionalmente novo. Este é o sentido da exigência, quando o homem, por ser dividido, faz esta experiência. Ele detém um conhecimento próprio, por isso é possível ir além da realidade, além daquilo que o cerca. 

 

9. Tal é a liberdade do ser humano: não que ele tenha uma vontade plenamente livre, mas não está preso, enquanto humano, ao que está dado. O ciclo do nascimento e morte foi quebrado, sua existência e sua ação não estão amarradas na simples propagação de sua origem. Quando esta consciência se impõe são deixados atrás ancestralidade, leituras arquetípicas, mitos de origem. A ruptura da ancestralidade, das leituras arquetípicas, dos mitos de origem pela exigência incondicional é a raiz do pensamento político democrático, liberal e socialista. 

 

A concepção progressista, que chamamos de democrática, liberal, socialista, considera o eterno um alvo infinito, existente em cada época, mas que não se apresenta enquanto irrupção. Assim, os tempos tornam-se vazios, sem decisão, sem responsabilidade. Na concepção progressista existe uma tensão diante do que foi. Mas a consciência de que o alvo é inacessível a debilita e produz um compromisso continuado com o passado. A concepção progressista não oferece nenhuma opção ao que está dado. Transforma-se em progresso mitigado, em crítica pontual desprovida de tensão, onde não há nenhuma responsabilidade última.  

 

Este progressismo mitigado é a atitude característica da sociedade burguesa. É um perigo que ameaça constantemente, é a supressão, em última instância, da exigência incondicional, a supressão do anúncio da plenitude dos tempos. É o verdadeiro adversário da consciência crítica e transformadora da realidade.

 

10. A exigência que o ser humano faz na experiência diante do incondicional não é estranha a ele. Se fosse estranha à sua essência, não lhe seria concernente e ele não poderia ver tal coisa como exigência. Se ela lhe toca é porque coloca diante de seus olhos sua essência enquanto exigência. Funda-se a incondicionalidade, a irrevogabilidade com que o dever-ser aborda o ser humano e exige ser afirmado por ele. 

 

Se a exigência incondicional é essência do humano, então ela encontra seu fundamento na origem, e providência e destino não pertencem a mundos diferentes. Assim, diante da origem, o que é requerido é o incondicionalmente novo. Isto poraue a origem é ambígua, há nela uma separação entre origem verdadeira e origem real. O que é realmente  original não é o que é original de verdade. 

 

Por isso, “para a igreja aceitar a parte de responsabilidade que lhe corresponde significa tomar a iniciativa humana que a cidade dos homens não pode tomar, dar a comunidade civil um impulso que ela não pode dar a si própria, fazê-la lembrar das coisas que a comunidade civil não sabe lembrar por si mesma. Discernir, julgar, eescoher u, pensar e agir político implica para a igreja em aclarar as relações que existem entre a ordem política e a ordem da graça. Entre as diferentes possibilidades políticas, os cristãos devem discernir e escolher aquelas cuja realização leve a uma analogia, a um conteúdo de sua fé e de sua mensagem. Os cristãos se encontram ali onde a soberania do Cristo, acima de todas as coisas de ordem política ou de outras ordens, não é obscurecida, mas evidente. A comunidade de fé deve exigir que o Estado oriente homens e mulheres em direção ao reino de Deus e não os distanciem. Não pede que a política humana coincida com a de Deus, mas sim, que na imensa distância que a separa daquela, seja paralela. Pede que a graça de Deus, revelada e atuante, se reflita na totalidade das medidas exteriores, relativas e provisórias assumidas pela cidade dos homens dentro dos limites das possibilidades que este mundo oferece. É, pois, em primeiro e último lugar, diante de Deus – este Deus que em Jesus Cristo revelou sua misericórdia a homens e mhlueres – que a igreja exerce sua responsabilidade política. Todas suas decisões políticas (discernir, eleger, julgar, querer) têm por isso valor como testemunho, que não é menos real por ser um testemunho implícito e indireto. Sua ação política é pois, também, uma forma de confessar sua fé. Exorta à cidade dos homens para que saia de sua atitude de neutralidade, de ignorância espiritual, de seu paganismo natural, para comprometer-se junto com ela, diante de Deus, em uma política de responsabilidade compartida. Desencadeia, além disso, o movimento histórico cujo fim e conteúdo são fazer da cidade terrestre um sinal analógico do reino de Deus, permitindo a esta cumprir com as tarefas da justiça civil”.

 

Dizemos, então, que a realização da origem é esta exigência, é este dever-ser pelo qual o homem de fé é confrontado. O “por que” do ser humano é a realização da sua providência. A origem real é negada pela origem verdadeira; mas certamente, não é uma pura e simples negação. A origem real tem que levar à real verdadeira, ela é sua expressão, mas também disfarce e distorção. A pura consciência ancestral, arquetípica, de origem ignora todas as ambigüidades da origem. É por isto que esta consciência está presa à origem e considera sacrilégio toda a ultrapassagem da origem. Só a consciência que, fazendo a experiência da exigência da incondicionalidade, se livra dos laços de origem e se apercebe da ambigüidade da origem.    

 

A exigência quer a realização da origem verdadeira. Porém o ser humano não recebe uma exigência incondicionada de outros. É no reencontro do eu e você que a exigência torna-se concreta. Seu conteúdo é reconhecido no encontro do eu-você, no nós, no diálogo que traduz a dignidade para ser livre. Reconhecer no outro uma dignidade igual à do eu, isto é justiça. A palavra hebraica tsedeq, que traduzimos por justiça, leva à idéia de estabelecimento de uma ordem que o Eterno deseja e, por extensão, também à idéia de vitória do Senhor. Ou, como lemos em Isaías 41.2: “Quem suscitou do Oriente aquele que a justiça chama para segui-la? Quem deu as nações à sua face e a fez dominar sobre reis? Ele os entregou à sua espada como o pó e como palha arrebatada do vento, ao seu arco”.  Dessa maneira, desde os tempos dos profetas hebreus, está dito “o que é bom; e o que o Eterno pede de ti, que pratiques a justiça, ames a bondade, e te sujeites a caminhar com o teu Deus?” (Mq 6.8). 

 

11. A exigência que nos arrasta à ambigüidade da origem é a exigência da justiça. A origem não rompida conduz a poderes em tensão que procuram a dominação e destroem um ao outro. Quando a origem é rompida vem a paz de ser, a quebra dos poderes que antes oprimiam. A exigência incondicional eleva acima do ciclo trágico. Diante da impotência do ser, opõe-se a justiça, a paz e a alegria que provêm do dever-ser. Portanto, não há uma simples oposição, porque o dever-ser é a realização do ser. Justiça, paz e alegria são o verdadeiro poder do ser. Nisto se torna realidade o que é apontado na origem. Na relação entre os dois elementos da existência humana e as duas raízes de todos fazer e pensar político, a exigência predomina sobre a pura origem, e a justiça, a paz e a alegria sobre o puro poder do ser. Ancestralidade, leituras arquetípicas, mitos de origem não devem representar no fazer e pensar político mais do que uma crença rompida. Esse é o caminho da utopia.

 

Para Tillich,  utopia e espírito profético estão envolvidos na situação histórica, e devem tea coragem de colocar-se sob julgamento, ao nível do particular, sem esquecer que tal ação aponta àquilo que é incondicional, ou seja, ao ponto mais alto possível de alcançar no tempo. Mas não deveria pela impossibilidade de transformar a realidade de forma permanente perder a audácia do clamor concreto.  

 

Isto é exato na medida em que cada tensão orientada para adiante comporta uma representação daquilo que deve vir e de como se entende a realização desse ideal. Eis porque o espírito da utopia está presente em todo agir incondicionalmente decidido, em todo agir orientado à transformação do presente .

 

12. A utopia quer realizar a eternidade no tempo, mas esquece que o eterno abala o tempo e todos seus conteúdos. É por isso que a utopia leva, necessariamente, à decepção. Progresso mitigado é o resultado da utopia revolucionária desencantada.

 

A idéia do cairos nasce da discussão com a utopia. O cairos comporta o brotar  eternidade no tempo, o caráter absolutamente decisivo deste instante histórico enquanto destino, mas tem a consciência de que não pode existir um estado de eternidade no tempo, a consciência de que o eterno é, em sua essência, aquele que faz a irrupção no tempo, sem contudo fixar-se nele. Assim, a realização da visão profética se encontra além do tempo, lá onde a utopia desaparece, mas não a sua ação. Essa é a missão política da igreja, ser proclamadora da justiça, paz e alegria diante dos poderes do mundo, e exigir do Estado que seja analogia do reino de Deus. 

 

É importante compreender que a justiça produz paz e alegria. Uma nova ordem, um novo tempo, é a promessa de que naquele dia, o Senhor fará uma aliança com os animais do campo, com as aves dos céus e com os répteis da terra. E exterminará da face da terra o arco, a espada e a guerra, para que repousem em segurança” (Os 2.18). E é interessante ver que antes de João nascer, o Eterno fala para Zacarias que ele “ficaria alegre e se regozijaria e muitos se alegrariam com ele” (Lc 1.14). Aliás, o clima de alegria atravessa os capítulos um e dois de Lucas, mas seu ponto culminante é a fala do anjo para Maria, que começa com um chamado à alegria (Lc 1.30).  

 

Metodologicamente, toda mudança, toda transformação exige uma compreensão do momento vivido que vá além do meramente histórico, do aqui e agora. Deve projetar-se no futuro, deve entender que há no espírito profético da responsabilidade incondicional da justiça, paz e alegria um choque entre cairos e utopia. E é a partir dessa compreensão do que significa o espírito de profecia no tempo presente, que voltamos ao kairós, mas agora com novos conteúdos, construído enquanto responsabilidade inadiável. Cairos significa tempo concluído, o instante concreto e, no sentido profético, a plenitude do tempo, o brotar do eterno no tempo. Cairos não é um qualquer momento pleno, uma parte ou outra do curso temporal: cairos é o tempo onde se completa aquilo que é absolutamente significativo, é o tempo do destino. Considerar uma época como um kairós, considerar o tempo como aquele de uma decisão inevitável, de uma responsabilidade inelutável, é considerá-lo enquanto espírito da profecia.

  

As duas raízes do fazer e pensar político mantêm entre elas uma correlação. A exigência predomina na origem. Considerando as várias tendências políticas, oriundas das duas concepções analisadas, não se pode supor que sejam atitudes humanas justificadas. Quando decisões devem ser tomadas, o conceito tradicional de realidade nem sempre é aplicável. Diferente, porém, é quando estamos diante de uma exigência incondicional. Por isso, não se pode compreender o cristianismo, caso não se experimente a exigência incondicional da justiça, paz e alegria. Quem não é confrontado por esta exigência terá o cristianismo como expressão exterior. Não pode falar dele, porque ele próprio é contrário à incondicionalidade da justiça, paz e alegria. Aí está o nó da origem.

 

Mas, todo sistema político requer autoridade, não só no sentido de possuir instrumentos de força, mais também em termos de consentimento mudo ou manifesto das pessoas. Tal consentimento só é possível se o grupo que está no poder representa uma idéia que goze de significado para a maioria. Existe, pois, na esfera política uma relação entre autoridade e autonomia, relação que se caracteriza assim: 

 

Toda estrutura política pressupõe poder e, conseqüentemente, um grupo que o assume. Mas um grupo de poder é também um conglomerado de interesses opostos a outras unidades de interesses e sempre necessita uma correção. A democracia está justificada e é necessária na medida em que é um sistema que incorpora correções contra o uso errôneo da autoridade política.

 

Dessa maneira, igreja, reino de Deus e política não são realidades estanques, porque as  raízes do fazer e pensar político não são apenas pensamentos. E como, em nossa realidade brasileira, igreja e cidade dos homens nem sempre caminham de forma paralela, nem sempre em ritmo semelhante, necessitam de correção de rumo e velocidade, ou seja, da democracia enquanto correlação das forças no poder e fora dele. Assim, a exigência incondicinal de justiça, paz e alegria leva a igreja ao desafio político de chamar o Estado a ser analogia do reino de Deus. 

 

II. IGREJA E ELEIÇÕES NO BRASIL

 

A cada eleição pensamos: as eleições já aconteceram e os dados foram lançados. E, quer queiramos ou não, viveremos em nossos municípios as conseqüências de nossas ações nas urnas. E pronto, nos distanciamos de qualquer compromisso político e social. Mas é bom lembrar: vivemos num Ocidente criado à nossa imagem. Um Ocidente que correlaciona cristianismo, democracia e violência. E mesmo os protestantes, cristãos reformados históricos, e evangélicos, cristãos reformados posteriores, não estão distantes de ações trágicas. A história nos mostra isso: Martinho Lutero, por exemplo, apoiou os príncipes alemães contra os anabatistas e os camponeses rebelados. Os anabatistas foram massacrados e cem mil camponeses mortos. Os bolcheviques na Rússia fundamentaram sua ação política no exemplo dos jacobinos durante a revolução francesa, que eram huguenotes, ou seja, cristãos reformados.

 

Lá no testamento hebraico, uma sábia mãe deu conselhos a um filho que seria coroado. E ela disse: “Você é o meu filho querido, a resposta das minhas orações. O que lhe direi? Não gaste toda a sua energia nem todo o seu dinheiro com mulheres, pois até reis já se destruíram assim. Escute, Lemuel! Os reis não devem beber vinho nem outras bebidas alcoólicas. Quando eles bebem, não lembram das leis e esquecem os direitos dos que são explorados. As bebidas alcoólicas são para os que estão morrendo, para os que estão na miséria. Que eles bebam e esqueçam que são pobres e infelizes! Fale a favor daqueles que não podem se defender. Proteja os direitos de todos os desamparados. Fale por eles e seja um juiz justo. Proteja os direitos dos pobres e dos necessitados”. (Pv 31.1-9). 

 

Conselhos que continuam válidos para qualquer funcionário público eleito pelo voto popular, não importa que cargo venha a exercer: vereança ou presidência da República.

 

Embora, todos saibam, às vezes, vale a pena chover no molhado. As eleições no Brasil acontecem sempre a cada dois anos, em anos pares, sendo que a escolha do presidente da República acontece juntamente com a dos senadores, deputados federais, governadores e deputados estaduais. As eleições municipais, onde se escolhe os prefeitos e vereadores acontecem dois anos depois. À exceção dos senadores, todos os outros cargos têm seus mandatos com a duração de quatro anos. As eleições são democráticas, e todos a partir dos dezoito anos até os sessenta e cinco anos são obrigados a votar. Caso não votem devem cumprir uma série de burocracias inclusive pagar determinada multa.

 

Isso significa que em relação à cidadania representativa, traduzida nas eleições, a cada dois anos protestantes e evangélicos devem se posicionar e escolher o melhor para o país. E é nesse momento que são bajulados e envolvidos com promessas nem sempre sérias ou reais. Mas, eu diria que o que desejamos não deve ser menos do que a rainha-mãe do príncipe Lemuel propôs a ele.

 

Muitos políticos, enganados por maqueteiros e pelos exageros da mídia, pensam que o voto protestante e evangélico é voto de cabresto, dirigido e manipulado por pastores. Estão equivocados. As estatísticas mostram que até mesmo nos agrupamentos evangélicos mais tradicionais, o momento do eleitor diante da urna é pessoal e intransferível

 

A pessoalização do fenômeno eleitoral protestante e evangélico é a resposta dos cristãos não-católicos para os problemas terrenos que todos vivemos. Há um deslocamento do plano transcendental e tal postura cumpre um papel político: cada protestante ou evangélico mostra-se auto-suficiente de pastor ou doutrinas no momento da urna. Essa pessoalização frente à a fé, às lideranças questiona a realidade social desigual e desumana, e possibilita uma resposta representativa e indireta diante dos problemas da nação.

 

É claro que a posição dos protestantes e evangélicos nem sempre caminha no sentido das sábias palavras da rainha-mãe de Lemuel. Entram aí, a pressão massificadora da mídia e vários outros fatores, alguns, sem dúvida, pessoais e de amizades. 

 

Muita gente acha que cristianismo protestante e eleições não se discutem. É o outro lado da moeda. Se por um lado, há gente que pensa, como dissemos acima, que voto protestante e evangélico é voto de cabresto, há outros que acham que esse tema nem deve fazer parte da pauta protestante e evangélica. Ledo engano. Precisamos refletir sobre a relação entre democracia e violência e, por outro lado, entre estas e o cristianismo. Um simples olhar sobre a história do Ocidente mostra os imbricamentos existentes entre cristianismo, democracia e violência. Como podemos esquecer, por exemplo, a barbárie da Inquisição? Ou o horror da noite de São Bartolomeu? Ou mesmo a violência dos invasores cristãos europeus na América conquistada? A democracia, e os protestantes e evangélicos brasileiros compreendem essa realidade, conquistada a duras lutas, é o caminho que pavimentamos para colocar de lado a violência que se fez como razão de Estado ou em nome de Deus. Nesse sentido, o primeiro sentido do voto protestante e evangélico traduz o sentido da defesa da democracia e da liberdade.

 

Por isso, talvez, nas próximas eleições quando os candidatos se dirigirem aos eleitores protestantes e evangélicos, acrescentem aos conselhos da rainha-mãe do príncipe Lemuel, a pergunta do profeta Miquéias (6.7-8), aos israelitas: 

 

Será que o SENHOR ficará contente se eu oferecer milhares de carneiros ou milhares e milhares de rios de azeite? Será que deverei oferecer o meu filho mais velho como sacrifício para pagar os meus pecados e as minhas maldades? O SENHOR já nos mostrou o que é bom, ele já disse o que exige de nós. O que ele quer é que façamos o que é direito, que amemos uns aos outros com dedicação e que vivamos em humilde obediência ao nosso Deus”. 

 

Os protestantes e evangélicos, como todos os brasileiros, desejam respostas de justiça, paz e alegria. E essas coisas, mais do que discursos são ações que mudam corações e mentes.


 

 

 

 

Capítulo doze

AS ÚLTIMAS COISAS

 

 

As questões escatológicas que surgiram durante o período de presença helenica na Palestina e que depois se farão presentes na apocalíptica cristã traduzem algumas preocupações: como o fiel enfrenta a dominação imperial, quando o reino de Deus se instalaria, qual o destino do povo de Deus, e quando terminaria a maldade na história?

 

A visão profética clássica nasceu da compreensão do momento presente, já que o profeta conhecia a realidade de sua época, tinha consciência do chamado do Eterno, e a partir dessa dialética apresentava Sua vontade aos líderes na nação. O profeta não era apenas um pensador crítico, mas um homem que pregava a postura correta diante do Eterno. Nesse sentido, a profecia clássica era um exercício ético.

 

A história de Israel sob a presença helênica foi de crise social. Tempo onde a memória dos antigos profetas emergiu com radicalidade: o Eterno estava ao lado do perseguido e contra o perseguidor. Esta memória se transformou numa visão de esperança. Não nasceu da acomodação, nem da alienação diante da injustiça, mas da compreensão daquele momento e da vontade do Eterno para com o povo.

 

No correr desses séculos, o Eterno falou ao povo através de sábios e mestres, mesmo quando estes, para evitar a perseguição e o martírio, reeditaram antigos manuscritos e relatos memoriais omitindo seus verdadeiros nomes. Durante todo o período, antigas promessas foram apresentadas com maiores detalhes. Avivados pela releitura profética, o povo tomou conhecimento da revelação do Eterno. Há na história da revelação um desenvolvimento gradual e a base histórica da revelação é linear e ascendente, mas o desenvolvimento da fé não se dá assim, por isso, na época dos macabeus chegou-se a um processo combinado, onde aspectos até então pouco definidos emergiram com claridade.

 

Dessa maneira, encontramos uma visão profética, resgatada da memória dos textos bíblicos antigos, que alcançou seu momento de maior expressão com a literatura apocalíptica.

 

A partir da ascensão dos selêucidas até 67 a.C., surgiu uma rica literatura apocalíptica, onde podemos incluir Judite, 2Esdras, Baruch, a Carta de Aristéia; o Livro dos Jubileus; os Oráculos Sibilinos; Enoque (etiópico), o Testamento dos Doze Patriarcas, e um apocalíptico canônico, o livro de Daniel,  já que a última edição do livro de Daniel estaria situada no período da perseguição de Antíoco IV Epifânio, entre os anos de 167 e 164 a.C. 

 

Os profetas clássicos falavam à sociedade, o que requeria escolhas políticas e éticas, que podiam afetar ou modificar o juízo divino iminente. O futuro permanecia aberto, porque a decisão do Eterno poderia mudar, caso as pessoas se arrependessem. Os apocalípticos, no entanto, encaram a história como um processo fechado, vendo a sua época como derradeiro elo de eventos que se desenrolam em seqüência pré-ordenada.

 

Outra diferença entre a profecia clássica e a literatura apocalíptica envolve sua proximidade com o reino do céu. Os profetas clássicos, com exceção de Ezequiel, eram reticentes nos relatos do que viam durante a revelação. Sua tarefa principal era comunicar a ordem oral e não apresentar uma descrição visual da corte divina. Já o apocalíptico descreve suas visitas ao céu com pormenores, mencionando os anjos pelos nomes e falando dos palácios, sala do trono e membros da corte celestial que cercam o divino rei. Imagens fantásticas e a ênfase na escatologia indicam uma ligação com a profecia tardia do pré-exílio, mas o pensamento apocalíptico deve muito à tradição da sabedoria helenística. 

 

O ponto de contato mais importante entre a literatura apocalíptica e a sabedoria grega é a idéia de uma ordem cósmica predeterminada. Anteriormente, a idéia de inacessibilidade levou, por exemplo, o Eclesiastes a falar sobre a ilusão do esforço humano. A literatura apocalíptica, no entanto, apresenta uma linguagem imagológica amarrada e uma virtualidade bem encadeada. 

 

A preocupação do escritor apocalíptico com o definitivo não se limita à virtualidade. O poder do Eterno não pode ser limitado pela morte, de modo que a escatologia é virtualidade existencializada. Assim, Daniel refere-se existencialmente à ressurreição dos mortos: “alguns para a vida eterna, outros para a vergonha e desprezo eternos” (Dn 12.2). No final dos dias, os justos “que dormem no pó da terra” retornarão para “brilhar como as luminárias do firmamento... como estrelas, para todo o sempre” (Dn 12.3).

 

É no período helenico que a idéia da ressurreição toma corpo, e se transforma numa idéia-força do judaísmo popular. A fé na ressurreição aparece de forma clara em 2Macabeus 7.9 e 14.46 e é o fundo do relato do martírio dos sete irmãos (I2Mc.7.11, 14, 23, 29 e 36). Antes, só tínhamos no Antigo Testamento dois versículos que falavam da ressurreição (Is 26.19 e Jó 19.26s).

 

Outras obras importantes que fazem parte da literatura apocalíptica são os livros de Enoque, 2Esdras e Baruch. Enoque é uma edição de vários fragmentos, da qual certas partes podem até ser anteriores a Daniel. No correr do livro, o narrador Enoque (Gn 5.21-24) descreve suas visitas aos extremos da terra e sua ascensão aos palácios celestiais. O livro inclui um tratado sobre astronomia, poemas sobre o destino derradeiro do justo e do pecador, e uma seção chamada Similitudes, referente ao eleito ou Filho do Homem, que será mandado pelo Eterno nos últimos dias para julgar a humanidade.

 

Em 2Esdras, o narrador sente-se perplexo ante as calamidades que recaem sobre Israel, o aparente abandono em que o Senhor deixa seu povo amado e pergunta por que tão poucos merecerão a vida eterna. Um anjo dá a Esdras conta do significado da história e seu fim, instruindo para que escreva e esconda “setenta livros” que consolarão os que viverem antes dos últimos dias.

 

Baruch, de quem se diz ter sido escriba de Jeremias, trata de questões similares. Contém uma oração de confissão e de esperança, um poema sapiencial, no qual a sabedoria é identificada com a Lei, um trecho profético, onde Jerusalém personificada se dirige aos judeus da diáspora e onde o profeta a encoraja com a evocação das esperanças messiânicas. A importância dessa coleção de textos sob o nome de Baruch é nos levar às comunidades da diáspora e de nos mostrar como a vida religiosa também lá, distante, estava relacionada com Jerusalém, pela oração, pelo culto à Lei, pelas promessas proféticas e pelo espírito messiânico.

 

Assim, a partir dos diferentes textos apocalípticos analisados podemos definir os elementos formais desse gênero de literatura: (1) Uso de pseudônimo. É um contemporâneo dos seus primeiros leitores, mas fala como se fosse um personagem antigo. É o que se vê no livro de Daniel. No Apocalipse de João é um anjo quem revela. (2) Caráter reservado. As revelações foram comunicadas ao personagem da Antiguidade; que deviam, porém, ficar em segredo até os dias do fim. Veja-se, por exemplo, Dn 8.26 e 12.9. (3) Presença de anjos. Estes aparecem, nos apocalipses, ora como ministros de Deus que colaboram com a Providência Divina na dispensação da salvação aos seres humanos, ora como intérpretes das visões ou revelações que o autor do livro descreve. Cf. Ez 40.3; Zc 2.1s; 2.5-9; 5.1-4; 6.1-8; Ap 7.1-3; 8.1-13. (4) Forte imagologia. Animais podem significar homens e povos; feras e aves representam geralmente as nações pagãs; os anjos bons são descritos como se fossem homens, e os maus como estrelas caídas. O recurso aos números é frequente, explorando-se então o simbolismo dos mesmos -- 3, 7, 10, 12, 1000 como imagens de bonança; 3 ½, como imagem de penúria e tribulação. É a exuberância da imagologia dos apocalipses que torna difícil a compreensão dos mesmos. O leitor analisar essa imagologia a partir de passagens bíblicas e extrabíblicas paralelas. Há imagens que se repetem com a mesma significação: gafanhotos, águias, cedro, três anos e meio, mil anos. Os autores de apocalipses estão livres ao construir virtualidades a partir de imagens, visões e personificações: propõem tais virtualidades sem se preocupar com a realidade em que vivemos. Exemplo é Jerusalém nova em Ez 47.1-12 e Ap 21.1-7. (5) Forte escatologia. Os apocalipses se referem a tempos finais virtuais e os descrevem apresentando a intervenção do Eterno em meio a um cenário cósmico, o julgamento dos povos, o abalo da natureza, a punição dos maus e a exaltação dos bons, estando reservado para Israel nesse contexto um papel de relevo e recompensa. 

 

Na literarura apocaliptìca a razão ética perde força a favor do discurso existencial. O que preocupa João, por exemplo, é a fidelidade, que deve nascer da esperança escatológica. E as duas idéias que revolucionaram o judaísmo: a recompensa apresentada na ressurreição e a restauração da justiça, apresentada na figura do Messias, fundamentarão o Apocalipse joanino.

 

Vejamos agora como a preocupação existencial do pensamento helênico se fez presente no livro de Eclesiastes, no capítulo 15 de Romanos e no Apocalipse de João.

 

 

I -- CAMINHANDO COM QOHÉLET

 

Compreendi que não há nada melhor do que a gente ter prazer naquilo que faz. Esta é a recompensa. Pois como é que podemos saber sobre o não-ser?” -- perguntou Qohélet.  

 

Qoh procurou a felicidade e a paz. Foi objetivo e prático na avaliação de seu tempo e constatou que o evento humano está sujeito à lei da alternância, que vai além da explicação imediata: o humano não tem domínio sobre as dinâmicas que governam a morte e a vida. E procurou refúgio na sofia grega. O texto hebraico de Qohélet, com a presença de palavras aramaicas e persas, sugere autoria anônima, situada entre 450 e 200 antes de Cristo, e se apresentou com o nome de Salomão. 

 

Qoh procurou entender o ser e o não-ser -- aquilo que está fora, além da existência -- no jogo de seus movimentos. Percebeu que não tinha controle sobre o movimento dos fenômenos do universo e viu que era preciso respeitar o espaço e o tempo para poder existir dentro do ritmo dos eventos. 

 

Mas ele não foi o único a pensar nessas coisas. A pergunta pelo não-ser, presente na história do humano desde que ele é sapiens, levou à pergunta pelo sentido do ser. Qohélet -- em português Eclesiastes e, segundo Haroldo de Campos, O-que-sabe -- de forma magnífica, quase à maneira de Nietzsche, trabalhou o tema da morte e da vida e nos levou a pensar sobre a única realidade a que de fato temos acesso: a existência -- terreno afetivo e emocional que produz e repousa sobre a riqueza material das humanidades. Qoh numa abordagem existencial discute o ser, sua integralidade e potencialidades.

 

Mas ele não foi o único a pensar a não-existência e a existência. Górgias (480-375 a.C.) traduziu no pensamento grego a dúvida sobre o não-ser e, por extensão, sobre o ser. Disse que se existisse alguma coisa, seria ser ou não-ser, ou ser e não-ser juntos. E se o não-ser existe, ele é e não-é ao mesmo tempo. Mas é absurdo dizer que alguma coisa existe e não-existe ao mesmo tempo. Para Górgias, em formulação matemática “(pv¬p)v(p^¬p)”, a proposição “pv-p” é verdadeira, mas “v” é verdadeiro se e somente se “p” for verdadeiro. Na lógica proposicional do filósofo temos, então, a negação de “p”. Donde, o não-ser não existe. Górgias disse mais do que isso, mas essa constatação, o não-ser não existe, é o que nos interessa nesse momento. 

 

É interessante que Qoh apresentou o não-ser, aquilo que está fora, além da existência, de uma maneira que nos lembra Górgias. Disse que ninguém se lembra do que aconteceu no passado e que até as coisas que acontecerão no futuro também vão ser esquecidas. Que ninguém se lembra dos sábios, assim como ninguém se lembra dos imbecis, pois no futuro todos seremos esquecidos. Há tempo para nascer e tempo de morrer, mas todos caminham para um mesmo lugar, pois tudo vem do pó e tudo volta ao pó. 

 

Disse, ainda, que felicitava os que já morreram mais do que os que estavam vivos. E considerou que mais vale o dia da morte do que o dia do nascimento. Ou, mais vale ir a uma casa em luto do que ir a uma casa em festa. Que ninguém é senhor do dia da própria morte e que nessa guerra não há trégua. Por isso, um cão vivo vale mais que um leão morto, já que os vivos sabem que irão morrer; mas os mortos não sabem de nada e não tem recompensa nenhuma: sua memória já está no esquecimento. O amor, ódio e ciúmes pereceram com eles. E nunca mais participarão de qualquer coisa que se faz debaixo do sol.

 

A consciência do não-ser remete ao sentido do ser. E aqui há uma diferença básica com Górgias, porque para ele a negação do não-ser é também a negação do ser e, por isso, fez três afirmações que marcaram o pensamento lógico-matemático e balizaram o ceticismo: não dá para dizer que algo existe; se alguma coisa existe não temos como conhecer sua existência; caso o ser exista não temos como explicar sua existência aos outros.

 

Já o argumento de Qoh, a partir do não-ser, afirma o sentido do ser, único conhecido. A negação do não-ser de Qoh expressa o desejo de ser em abundância, enquanto está, porque tem por limites as bordas do tempo de ser. O ser existe, mas tem espaço e tempo – hoje diríamos é existencial e histórico. Por isso, é melhor o sentido do ser, a intensidade das ações do ser do que ficar na espera do não-ser. Assim, quando o não-ser sinalizar que está chegando e se aproximar, teremos o prazer de ter sido plenamente, com intensidade, de forma abundante. 

 

E, por isso, Qoh nos aconselha a aproveitar a vida, a ir em frente. A comer com prazer e beber alegremente o nosso vinho, pois a eternidade já aceitou deliciada o nosso bem-fazer. Sejamos felizes, diz O-que-sabe. Enquanto vivermos na fumaça desse mundo, curtamos a vida com a pessoa amada, pois essa é a recompensa pelo nosso fazer debaixo do sol. E o que tivermos para fazer, façamos ótimo, porque o não-ser é nada e no nada nada se faz, e no não-ser não existe pensamento, nem conhecimento, nem sabedoria. E depois do ser, vamos repousar no nada.

 

O fazer da existência vale a pena. A eternidade aprecia esse bem-fazer humano, que tem seu próprio tempo, que integra a existência de cada ser na história dos fazeres humanos. É por isso que Bereshit, o primeiro texto na Torá, apresenta um ponto zero. O tempo zero vai do entardecer à meia-noite. É quando o sol desilumina o nosso espaço de forma gradual. O tempo do não-ser não é uma fratura do tempo, é tempo da história. Qoh não contempla a passagem do tempo, mas a vinda do tempo. O tempo significa nada ou pouco para o eterno, mas há um sentido de tempo para o humano. A conclusão de Qoh é que temos de ser no tempo para dar valor à eternidade que brota do nada do não-ser. E a partir de Qoh vamos a Paulo de Tarso.

 

Pede-se ser levantado

 

 Você está falando de bens materiais, de coisa frágil. Se você tem certeza de que esses bens ficarão sempre com você, fique com eles sem partilhar com ninguém. Mas se você não é o senhor absoluto deles, se tudo que você tem depende mais da sorte do que de você mesmo, por que este apego a eles?”. 

 

Fuks conta que Freud, um dia depois do sepultamento do pai, sonhou com um cartaz onde estava escrito: “Pede-se fechar os olhos”. Mais tarde, em carta a Fliess, o pai da psicanálise falou dos sentidos subjetivos da frase: “era parte da minha auto-análise, minha reação diante da morte de meu pai, vale dizer, diante da perda mais terrível na vida de um homem”. 

 

Não vou entrar nos detalhes das leituras que o próprio Freud fez da frase que apareceu em seu sonho. Diria ao leitor que vale a pena ler Freud e a Judeidade. Pretendo aqui levantar uma proposta de Fuks: “há que ler o desejo: sem terra, sem pátria e sem objeto, ele vaga por um deserto, cujas trilhas conduzem o leitor à experiência limite mais-além do que aparece na imagem”. É a partir dessa hermenêutica, que vamos ler trechos do final da primeira carta de Paulo aos Coríntios. 

 

“... Foi sepultado e foi despertado do sono no terceiro dia, de acordo com o escrito”. 

 

A frase acima, e a continuação do texto, é uma das mais importantes sobre a egeiro e anástasis, duas expressões gregas não substancialmente diferentes, que sintetizam a teologia da anástase dos cristãos do primeiro século. As traduções posteriores, e creio que dificilmente poderiam ser diferentes, criaram um padrão de imagem que dificultam a experiência do ir além. Por isso, fomos obrigados antes da tradução transversa fazer a desconstrução histórico-filosófica da anástase.

 

As leituras da anástasis e egeiró remontam a Homero e ao grego antigo e com seus sentidos correlatos axanástasisanhistémi e anazaó, que podem ser traduzidas por “ficar de pé”, “ser levantado” e “voltar à vida”, foram fundamentais para a construção do conceito anástase, amplamente utilizado pelas ciências do espírito. Mas é com Platão, na literatura filosófica, que vamos encontrar um debate fundamental para a teologia da anástase, quando apresenta a alma enquanto semelhança do divino e o corpo enquanto semelhança do que é físico e temporário. 

 

Platão, em Fédon, num diálogo entre Sócrates e seus amigos defendeu a idéia da imortalidade da alma. Sócrates foi condenado à morte por envenenamento, mas não teve medo, por crer ser a alma imortal. Para Platão, as almas possuem semelhanças com as formas, que são realidades eternas por trás do mundo físico, natural. Nesse sentido, para Platão, o corpo morre, mas a alma não. Ele parte do padrão cíclico da natureza, frio/ quente/ frio, noite/ dia/ noite. Assim, os mortos despertam numa nova vida depois da morte: caso contrário, a vida desapareceria. 

 

E dirá através de Sócrates em Fédon: “(...) perguntemos a nós mesmos se acreditamos que a morte seja alguma coisa? (...) Que não será senão a separação entre a alma e o corpo? Morrer, então, consistirá em apartar-se da alma o corpo, ficando este reduzido a si mesmo e, por outro lado, em libertar-se do corpo a alma e isolar-se em si mesma? Ou será a morte outra coisa? (...) Considera agora, meu caro, se pensas como eu. Estou certo de que desse modo ficaremos conhecendo melhor o que nos propomos investigar. És de opinião que seja próprio do filósofo esforçar-se para a aquisição dos pretensos prazeres, tal como comer e beber?” 

 

Paulo conhecia a discussão filosófica grega acerca da anástase, já que isso se evidencia em seus escritos, principalmente no trecho que estamos analisando, mas é certo que construiu seu conceito também levando em conta a tradição judaica, acrescentando novidades ao debate teológico. Existem referências ao ser trazido de volta à vida nas escrituras hebraico-judaicas. Mas a preocupação judaica era existencial, como vimos em Qohélet. Mais do que remeter a um futuro distante, embora tais leituras estejam presentes na teologia de alguns profetas, as histórias de anástase relacionadas aos profetas Elias e Eliseu falam do aqui e agora. Aliás, este último, mesmo de depois de morto, trouxe à vida um defunto que foi jogado sobre sua ossada. Ao tocar os ossos de Eliseu, o morto ficou vivo de novo e se levantou. Esse caminho será a novidade da compreensão cristã/ helênica da anástase.

 

“Somos arautos de que o ungido foi levantado do meio dos mortos: como alguns podem dizer que não há o ser erguido dos mortos? E, se não há o despertar do sono da morte, também o ungido não foi levantado. E se o ungido não foi levantado, é inútil o que falamos e também inútil a nossa crença. Somos então testemunhas falsas, porque anunciamos que Deus ergueu o ungido. Mas se ele não foi levantado, os mortos também não são erguidos. E se os mortos não são erguidos, o ungido também não o foi. E, se o ungido não foi erguido, a nossa crença é inútil e vocês continuam a vagar sem destino. E os que foram colocados para dormir no ungido estão destruídos”. 

 

Outras fontes de Paulo foram o profeta Daniel e outras literaturas intertestamentárias, que trabalharam com a idéia de “despertar subitamente do sono”. Chifflot e De Vaux situam o livro de Daniel no período helênico por entender que é uma edição de antigos fragmentos do período babilônico, compilados, organizados e contextualizados ao momento histórico descrito no capítulo onze. Nesse capítulo, as guerras entre lágidas e selêucidas, assim como as investidas de Antíoco IV Epífanes contra Jerusalém e o templo são narradas com riquezas de detalhes. Ao contrário do que acontece nos livros proféticos anteriores, aqui o autor cita fatos aparentemente insignificantes, querendo demonstrar que é uma testemunha ocular da história. Dessa maneira, a edição que conhecemos do livro de Daniel deve ser situada no período da grande perseguição de Antíoco IV Epífanes, possivelmente entre os anos de 167 e 164 a.C., segundo Chifflot e De Vaux, já citados. A partir desse enquadramento, os capítulos 7 a 12 de Daniel, enquanto edição são chamados de “vaticinia ex eventu”, dado que o texto é contemporâneo aos acontecimentos descritos. Esses capítulos expressam a reação contra a helenização da Judéia e das perseguições em curso, mas, paradoxalmente, uma forma de pensamento afetado pela civilização helênica.

 

A partir da segunda metade do livro, o autor trabalha sobre dois temas registrados na primeira metade: que o judeu deve ser fiel a Deus em meio à tentação e à provação; e que Deus defende o servo leal que prefere morrer a violar os mandamentos. Nos seis capítulos finais, o sábio (ou grupo de sábios, cujos escritos foram compilados por um redator) retoma o conteúdo das visões que teve em relação à profanação do templo, em 167 a.C., e o erguimento da “abominação desoladora”. 

 

Durante o período helênico idéias novas afloraram em meio à vida judaica, entre elas a esperança da recompensa escatolõgica apresentada pelas profecias apocalípticas, como em 2Macabeus 7, Daniel 12:2-3 e o Escrito de Damasco 4:4, que se traduzem concretamente na anástase.

 

Assim, os elementos novos da compreensão paulina da anástase já aparecem delineados no profeta Daniel: “Muitos dos que dormem no pó da terra despertarão, uns para a vida eterna, e outros para vergonha e horror eterno. Os que forem sábios, pois, resplandecerão como o fulgor do firmamento; e os que a muitos conduzirem à justiça, como as estrelas, sempre e eternamente”. Paulo, porém, somará um componente existencial à compreensão de Daniel, dirá que a morte, o maior de todos os odiados pela espécie humana, será privada de força.

 

“Caso o ungido só sirva para esta vida, somos as pessoas mais dignas de lástima. Mas o ungido foi levantado dentre os mortos e foi o primeiro fruto dos que foram colocados para dormir. Porque se a morte chegou pela humanidade, também o ungido dará à luz nova vida. Como morre a espécie, no ungido ela recebe vida. E isso acontece numa ordem: o ungido é o primeiro fruto, depois os que pertencem ao ungido, quando ele aparecer. E veremos o limite, quando o ungido entregar o reino a Deus e Pai, e tornar inoperante o império, os poderes e os exércitos. Convém que seja rei até derrubar os odiados por terra. O último odiado a ser privado de força é a morte, porque o resto já foi colocado debaixo de seus pés”. 

 

É interessante que Paulo em seu texto sobre a anástase cita o dramaturgo, filósofo e poeta grego Menandro (342-291 a.C.), que num verso disse: “as más companhias corrompem os bons costumes”. E voltando ao Misantropo: “insisto que, enquanto você é dono deles, você deve usá-los como um homem de bem, ajudando os outros, fazendo felizes tantas pessoas quantas você puder! Isto é que não morre, e se um dia você for golpeado pela má sorte você receberá de volta o mesmo que tiver dado. Um amigo certo é muito melhor que riquezas incertas, que você mantém enterradas”. Tudo indica que Paulo gostava de teatro e de comédias.

 

Que Paulo recorreu à tradição profética fica claro quando cita o profeta Oséias literalmente: “eu os remirei do poder do inferno e os resgatarei da morte? Onde estão ó morte as tuas pragas? Onde está ó morte a tua destruição?”. Mas há uma correlação entre Platão e a tradição hebraico-judaica, que pode ser lida nesta carta de Paulo. Isto porque, como afirma Fuks, o leitor desconstrói, pois ler não é repetir o texto: é um modo de criação e de transformação. Por isso, digo que ler é um ato de anástase. E Paulo trabalhou de forma brilhante o termo, tanto nas suas leituras e estudos, como na reconstrução do próprio conceito.

 

“Que farão os que se batizam pelos mortos, se os mortos não são chamados de volta à vida? Por que se batizam então pelos mortos? Por que estamos a cada hora em perigo? Protesto contra a morte de cada dia. Eu me glorio por vocês, no ungido Iesous a quem pertencemos. Combati em Éfeso contra animais ferozes, mas o que significa isso, se os mortos não podem ressurgir? Comamos e bebamos, porque amanhã morreremos. Mas não vamos nos enganar: as más companhias corrompem os bons costumes”.

 

Na sequência da tradição hebraico-judaica, ou como diz Fuks, “os antigos hebreus não estavam trabalhados, como nós, pela necessidade de abstração, de síntese e de precisão na análise conceitual do real, herança dos gregos”, Paulo está preocupado com o corpo, com a vida.

 

“Mas alguém pode perguntar: como os mortos são trazidos à vida? E com que corpo? Estúpido! O que se semeia não tem vida, está morto. E, quando se semeia, não é semeado o corpo que há de nascer, mas o grão, como de trigo ou qualquer outra semente. Deus dá o corpo como quiser, e a cada semente o corpo que deve ter. Nem toda a carne é uma mesma carne, há carne humana, de animais terrestres, de peixes, de aves. E há corpos celestes e corpos terrestres, uma é a dignidade dos celestes e outra a dos terrestres. Diferente é o esplendor do sol do esplendor da lua e das estrelas. Porque uma estrela difere em brilho de outra estrela. Assim também o ser levantado dentre os mortos. Semeia-se o corpo perecível; levantará sem corrupção. Semeia-se na desgraça, será levantado em excelência. Semeia-se em debilidade, será erguido vigoroso. Semeia-se corpo controlado pela psique, ressuscitará corpo espiritual. Se há corpo controlado pela psique, também há corpo espiritual”. 

 

Para Paulo, anástase leva à uma teologia da vida que nasce do corpo. Mas, não é simplesmente ter de volta a vida do corpo material, tanto que em certo momento Paulus diz que “deveremos ser a imagem do homem do céu”.

 

“Assim também está escrito: o primeiro ser humano, terrestre, foi feito ser-que-deseja, o futuro humano será um espírito-cheio-de-vida. Mas o que não é espiritual vem primeiro, é o natural, depois vem o espiritual. O primeiro ser humano, da terra, é terreno; o segundo humano, a quem pertencemos, é celestial. Como é o da terra, assim são os terrestres. E como é o celeste, assim são os celestiais. E, como somos a imagem do terreno, assim seremos também a imagem do celestial”. 

 

O pensamento grego, platônico, está presente na anástase paulina, já que a eternidade não é construída em cima da carne e do sangue. Vemos aqui a dualidade entre a realidade física e o mundo das formas. O dualismo metafísico de Paulo admite aqui duas substâncias que regem o ser humano, no mundo natural, a psyquê, e no mundo pós-anástase, o pneuma. E dois princípios, nesse sentido bem próximo a Platão, o bem e o mal. 

 

“E agora digo que a carne e o sangue não podem herdar o reino de Deus, nem a corrupção herdar a eternidade. Digo um mistério: nem todos vamos adormecer, mas seremos transformados. Num momento, num abrir e fechar de olhos, ante a última trombeta, porque a trombeta soará, os mortos serão levantados incorruptíveis, e seremos transformados. Convém que o corrompido seja tornado eterno, e o que é mortal seja tornado imortal. E, quando o que é corruptível se vestir de eternidade, e o que é mortal for transformado em imortal, então será cumprida a palavra que está escrita: a morte foi conquistada definitivamente. Onde está, ó morte, a tua picada? Onde está, ó inferno, a tua vitória? Ora, a picada da morte é o desviar-se do caminho da honra e da justiça, e a força do erro é a lei. Mas a alegria que Deus dá é a vitória por Iesous, o ungido, a quem pertencemos. Sejam firmes e persistentes, abundantes no serviço daquele a quem pertencemos, conscientes de que o trabalho árduo e duro não é desprezado por aquele a quem pertencemos”.

 

Caso voltemos à análise do conceito anástase no capítulo 15 da primeira carta aos Coríntios, tomando como ponto de partida o desafio de Fuks: “há que ler o desejo: sem terra, sem pátria e sem objeto, ele vaga por um deserto, cujas trilhas conduzem o leitor à experiência limite mais-além do que aparece na imagem”, vemos que Paulo traduziu para as novas gerações o desejo judaico-helênico, humano, da anástase: “Pede-se ser levantado”.

 

Para discussão em sala de aula

Veja o filme e o analise a partir das leituras feitas.

 

21 GRAMAS

 

"O meu amor é o meu peso. Para qualquer parte que eu vá, é ele quem me leva. O Teu dom inflama-nos e arrebata-nos para o alto. Andamos e partimos. Fazemos ascensões no coração e cantamos o cântico dos degraus”.

 

Este texto de não é somente belo. Mil e trezentos anos antes de sir Isaac Newton, santo Agostinho intuía que há coisas tão leves, que sobem, ao invés de cair. E que todas as coisas só encontram o repouso quando estão no lugar que deveriam estar. 

 

Para Alejandro González Iñárritu que dirigiu o filme “Vinte e um gramas” a vida é uma história de esperança: você pode ter medo da morte, mas ela virá e, nesse instante, seu corpo se tornará 21 gramas mais leve. E por isso coloca-nos a pergunta: será que é a alma que pesa esses 21 gramas? 

 

Para Agostinho, teólogo da igreja cristã, "o corpo, devido ao peso, tende para o lugar que lhe é próprio, porque o peso não tende só para baixo, mas também para o lugar que lhe é próprio. Assim, o fogo encaminha-se para cima e a pedra para baixo. Movem-se segundo o seu peso. Dirigem-se para o lugar que lhes compete. O azeite derramado sobre a água aflora a superfície. A água vertida sobre o azeite submerge debaixo deste. Movem-se segundo o seu peso e dirigem-se para o lugar que lhes compete. As coisas que não estão em seu lugar próprio agitam-se, mas quando o encontram, ordenam-se e repousam".

 

Ora, se tudo tem um peso, por que não a alma. E se a alma tem um peso, o que a leva para cima ou para baixo? Segundo Agostinho, repousamos no dom do Espírito, que é o nosso descanso, é o nosso lugar. É para lá que o amor nos arrebata e que o Espírito levanta o nosso abatimento desde as portas da morte. 

 

O filme Vinte e um gramas explora a existência física e emocional de três casais. O professor universitário Paul Rivers e sua mulher Mary vêem o seu casamento oscilar entre a vida e a morte enquanto ele aguarda um transplante de coração. O ex-presidiário Jack Jordan e sua mulher Marianne lutam para criar os dois filhos, enquanto Jack reafirma seu compromisso com a igreja. Cristina perde o marido Michael Peck e suas duas meninas num acidente trágico que entrelaça destinos e os levará às profundezas da vingança, aos limites do amor e à promessa da redenção.


Assim, Paul, Cristina e Jack são colocados ante a realidade da morte. E ela pesa de maneiras diferentes na vida de cada um. Mas, diante da morte, para que a esperança se faça presente, a vida deve renascer. 

 

Vinte e um gramas é o peso de cinco moedas de cinco centavos, de um beija-flor e, talvez, da alma humana.

 

O filme vale a pena, embora pese mais que 21 gramas. Mas, depois de ver o filme, não esqueça que o seu peso é o amor, que nos puxa para cima. Ou, como diz Agostinho:

 

"É o Teu fogo, o Teu fogo benfazejo que nos consome, enquanto vamos e subimos para a paz da Jerusalém celeste. Regozijei-me com aquilo que me disseram: iremos para a casa do Senhor. Lá nos colocará a boa vontade, para que nada mais desejemos senão permanecer ali eternamente".

 

Ficha Técnica

Titulo Original: 21 Grams

Ano de Lançamento: 2003

Gênero: Drama Duração: 125 minutos.

Direção: Alejandro González Iñárritu

Roteiro: Guillermo Arriaga, Alejandro González Iñárritu

Elenco: Sean Penn, Naomi Watts, Benicio Del Toro, Charlotte Gainsbourg, Melissa Leo, Clea DuVall, Danny Huston, Carly Nahon, Claire Pakis, Nick Nichols, John Rubinstein, Eddie Marsan.

 

 

II – LIÇÕES DE APOCALIPSE 

 

Ressurreição e Messias deram vida à esperança judaica. Criou um judaísmo da pessoa comum, cheio de fé na aparição iminente do Messias e na recompensa divina através da ressurreição. Esse judaísmo fugiu para o deserto, ocupou as ruas, subiu os montes. 

 

João tinha razões para consolar seus companheiros perseguidos e predizer a vitória final do bem sobre o mal, porque esta é anunciada em profecias e promessas feitas a Israel. De todas as maneiras, a revelação não é secreta, mas apresenta o Cristo como chave-hermenêutica para a compreensão da existência. A linguagem é imagológica, por causa das condições de perseguição que afligiam a igreja, mas também porque o texto repousa sobre a mística judaica. 

 

Apokálipsis em grego quer dizer revelação. O verbo apo-kalyptôo significa revelar algo obscuro. É um livro que fala da esperança cristã. Abre com a revelação de Jesus como Messias, a testemunha fiel e verdadeira, o primogênito entre os mortos, o rei dos reis e o Senhor dos senhores, o libertador e aquele que criou, para o Pai, um povo santo. 

 

Embora o autor chame o livro de profecia, há momentos que recorre a um estilo semelhante às epístolas do Novo Testamento, por isso, também é uma leitura hermenêutica dos textos cristãos do primeiro século. O livro usa a trajetório do povo hebreu no deserto como protótipo das libertações do Eterno. Utiliza imagens presentes em Ezequiel, mas repousa também sobre textos não-canônicos como Enoque (etiópico) e textos de Qumran, como o Rolo da Guerra. O Apocalipse une analogia e vida, escatologia e política, consciência e transformação. A mensagem dos mártires vencendo a Besta, por exemplo, é uma lição de fé e libertação. O livro foi escrito no tempo em que a Igreja se instaurava. O cristianismo foi desde o início um movimento profético-apocalíptico, mas o Apocalipse não possibilita uma exegese padrão, uniforme e consolidada. Exegetas, ao analisarem o texto a partir de leituras literais ou verem nele historicidadem caminham por águas turvas.

 

Assim, parece um livro impenetrável se analisarmos sua linguagem imagológica literalmente, ou se vermos sua virtualidade como história. Torna-sem porém, fascinante, quando se considera que exalta a vitória do Cristo na existência humana, não seguindo o desenrolar da história, mas fornecendo metáforas sobre o viver cristão e a esperança escatológica. 

 

A maioria das hipóteses hermenêuticas sobre o Apocalipse trabalham com a idéia de que anuncia a vitória do bem, do reino do Cristo. Mas não chegam a um acordo, quando tentam definir literal ou historicamente o conteúdo do livro. Assim, três diferentes hipóteses agrupam praticamente todas elas.

 

hipótese do fim dos tempos: João teria descrito o conflito dos séculos. Esta interpretação esteve em voga na Antigüidade, mas foi posta de lado na Idade Média. A partir do século XVI entrou em voga nas interpretações milenaristas que vêem o fim do mundo para breve. 

 

hipótese da história antiga (do século I até 476): o Apocalipse descreveria a luta do judaísmo e do Império Romano contra o cristianismo, luta que terminou com a queda da Roma pagã (476) e a consolidação do Cristianismo como religião do império. 

 

E a hipótese da história universal: o Apocalipse apresentaria uma visão da história do Cristianismo.

 

Mesmo a terceira hipótese, aparentemente mais contemporânea, perde a riqueza da virtualidade do texto, que trabalha numa linguagem imagológica a recorrência dos padrões do viver cristão em sua luta contra três adversários: o mundo, a carne e o diabo. E tal padronagem está presente na existência das pessoas e da instituição igreja em todas as épocas, até a parousia.

 

O livro apresenta, dessa maneira, os conflitos da vida presentes no viver cristão, e descreve padrões existenciais recorrentes. Fala de valores permanentes, norteadores da fé cristã. Se no Antigo Testamento, o Eterno desejou viver no meio do povo (Ex 25.8) para que sua presença fosse proteção contra os adversários, agora o Cristo está com os seus até a consumação dos séculos (Mt 28.20). Esta é uma promessa para os dias da existência cristã, o que nos permite dizer que o Apocalipse baliza uma teologia da vida, entendendo, porém, que ela se projeta escatologicamente. Por isso, o livro começa com as coisas que são (1.4-3.22), a vida das comunidades de fé da Ásia Menor. Aqui o estilo é o da sabedoria judaica. Só depois disso é que o Apocalipse fala das coisas que devem acontecer (4.1-22.15).

 

Nos interessa, porém, agora, analisar três questões importantes para a teologia sistemática, uma matricial e duas escatológicas.

 

A mulher e o dragão

 

Viu-se grande sinal no céu, a saber, uma mulher vestida do sol com a lua debaixo dos pés e uma coroa de doze estrelas na cabeça, que, achando-se grávida, grita com as dores de parto, sofrendo tormentos para dar à luz. Viu-se, também, outro sinal no céu, e eis um dragão, grande, vermelho, com sete cabeças, dez chifres e, nas cabeças, sete diademas”. (Ap 12.1-3).

 

O capítulo 12 relata o conflito existencial da comunidade de fé, ilustrado na luta entre uma mulher e um dragão (vv. 1-5), imagens que remetem às da mulher e da serpente em Gn 3.15. Apresenta uma mulher gloriosa e sofredora ao mesmo tempo. Ela está para dar à luz um filho que um dragão, diabo, aquele que é "mentiroso e homicida desde o início" (Jo 8.44), pretende devorar. A mulher gera o filho (vv. 7-9), o Cristo. Ele escapa do dragão e é elevado aos céus. Temos, então, uma guerra entre o arcanjo Miguel, acompanhado de anjos, e o dragão, que é lançado à terra (12,10-12), onde persegue e procura matar a mulher e mãe. Mas Deus defende a mulher, que se refugia no deserto por três anos e meio, ou seja, 42 meses, ou ainda 1260 dias. Ao ver que não consegue destruir a mulher-mãe, o diabo se lança contra seus filhos (12,6 e 13-16)

 

Na cultura grega, a que João recorre, o mar gerou monstros e dragões. O mais terrível deles foi Ládon, com um corpo de serpente e cem cabeças que falavam idiomas diferentes. Serviu aos deuses do Olimpo, que os cristãos viam como demônios, guardando a macieira de ouro de Zeus. Dessa maneira, João relacionou o dragão com a serpente e lhe deu funções demoníacas, a principal delas perseguir a mulher e seus filhos. Por isso, para muitos exegetas, o dragão simbolizaria o Estado pagão que desejava matar a mulher e exterminar todos seus filhos.

 

Dragão, serpente, diabo. O dragão é adversário de Deus, da mulher e de seus filhos. Ele investiu contra a humanidade essencializada em Cristo, coroa da criação de Deus, e procura a sua destruição, razão pela qual é chamado destruidor (Ap 9.11). Atacou Jesus, enquanto Esrado romano, quando este realizava a obra da redenção. Acusa o povo de Deus (Ap 12.10) em centenas de idiomas. É o chefe dos demônos (Mt 25.41; 9.34; Ef 2.2), é o líder das forças inimigas e as emprega no combate a Cristo e ao reino de Deus. 


Não mítico não é humano, mas não é um deus, exerce influência sobre a sociedade civil, mas tem lá seus limites (Mt 12.29; Ap 20.2) e será lançado no abismo (Ap 20.10). É presunçoso (Mt 4.4,5), orgulhoso (1Tm 3.6), poderoso (Ef 2.2), maligno (Jó 2.4) e astuto (2Co 11.3). É enganador (Ef 6.11), cruel (1Pe 5.8), perturbar a obra de Deus (1Ts 2.18) e se opõe ao Evangelho (Mt 13.19; 2Co 4.4). 


O dragão é forte, mas para a comunidade de fé é um inimigo derrotado (Jo 12.31). E apesar de falar através de muitas cabeças em línguas diferentes é covarde (Tg 4.7). 


E assim João nos dá o caminho ao correlacionar o dragão com a serpente e o diabo, mostrando que o Estqdo não limita seu controle apenas sob a humanidade alienada, mas atua também nos círculos elevados da política, apresentando como sábio e conhecedor do mundo (2Co 11.14). Faz-se presente nas conferências das nações (Jó 1.6), procura enganar gregos e troianos (1Tm 4.1), e fomenta sínodos e entidades onde tenha o controle (Ap 2.9). E é este Estado aparentemnet todo-poderoso que ataca a humanidade essencializada por Cristo. 

 

As relações culturais construídas entre mulheres e homens na Palestina antiga e na história do hebreu antigo estavam enraizadas nos relatos sobre Eva, ha´wah, “a-vida”, e Adão, ha´adam, “da-terra”. Diante disso, é importante fazer uma hermenêutica etiológica, dos fatores que levaram à construção dos diferentes sentidos presentes nesses textos, a fim de se encontrar neles jóias escondidas sob a literalidade do texto. Essa compreensão parte da constatação de que o pensamento hebreu não foi construído apenas pela racionalidade, mas é correlato às experiências de conhecimento cultural, intuitivo e transcendente, que deu sentido e significado à vida das comunidades de fé judaicas.

 

Daí que se há uma leitura literal de Gênesis e da criação que consideram hAdam e hAwah figuras históricas, ancestrais da espécie humana, não podemos esquecer que há uma rica simbologia no texto. Ou como disse Orígenes no De Principiis"as Escrituras Sagradas têm um sentido que é aparente à primeira vista, e um outro que a maioria dos homens não percebe. Porque são escritas em forma de certos mistérios, e à imagem de coisas divinas. A respeito do que há uma opinião em toda a igreja, que toda a lei em verdade é espiritual, porém que o sentido espiritual da lei não é conhecido a todos, mas apenas aqueles que receberam a graça do Espírito Santo na palavra de sabedoria e conhecimento".

 

Há alguns anos, a historiadora Elaine Pagels (Adam and Eve and the Serpent, Londres: Weidenfeld and Nicholson, 1988) voltou-se para a leitura de Gênesis por curiosidade científica. Ela estava em Cartum, no Sudão, numa discussão com o então ministro do Exterior sudanês, membro da tribo Dinka, que tinha escrito um livro sobre as histórias ancestrais de seu povo. Então, ele lhe disse que a história da criação dos dinkas traduzem a cultura de parte do Sudão, não somente religiosa, mas também social e política. 

 

E que era assim porque remontava às origens do humano em busca por soluções para os problemas referentes à natureza, sua origem, o modo como esta cultura se comportava, as transformações que nela se verificavam e seu caráter de continuidade. Estes questionamentos levaram ao surgimento desses relatos ancestrais, formas pictóricas para a explicação dos fenômenos – em geral da natureza, mas também da origem e razão do humano. Daí que os relatos ancestrais formataram as culturas dos povos antigos.

 

Depois da conversa, Pagels leu na revista Time que leitores contestaram um artigo que falava da mudança de costumes nos Estados Unidos. Algumas dessas cartas mencionavam a história de Hadam e Hawah, como Deus criara o primeiro casal humano, e a importância disso para o comportamento estadunidense hoje. Estimulada por sua conversa com o líder sudanês, ela constatou que os povos, mesmo aqueles que não acreditavam literalmente no relato da criação, precisavam retornar a ele como padrão de referência, quando confrontados com os desafios dos seus valores.

 

Pagels considerou que, como as estórias de outras culturas, o relato de Gênesis abordava questões fundamentais. Os dinkas e os americanos, do norte, do centro e do sul, não seriam assim tão diferentes. Por isso, por que não olhar para os relatos da criação, quando se procura respostas a perguntas como: existe uma finalidade para a existência humana? Por que sofremos? Por que morremos?

 

Os debates intelectuais nos anos 1990 levantaram questões que o filósofo da religião Stephan A. Hoeller chamou de “Fator Gênesis”. No segundo semestre de 1996, palestras e discussões realizadas no Manhattan Theological Seminary, lideradas pelo rabino Burton Visotzky, virou série de televisão dedicado ao livro do Gênesis. 


A historiadora judia Sarah Roth Lieberman (The Eve Motif in Ancient Near Eastern and Classical Greek Sources, Boston University, 1975) estudou a origem da palavra “tselá” (costela, costa, lado) e disse que em sumério ela significa tanto “costela” como "tornar vivo" e que na antiga Mesopotâmia, Ninti, significa tanto “senhora da costela” como “senhora que traz a vida”. O duplo significado remete à idéia de que hAwah não foi tirada de uma costela de hAdam, mas brotou dele e lhe trouxe vida e sentido existencial. 

 
Então, uma das hipóteses é que a estrutura familiar patriarcal se faz presente na narrativa de Gênesis, embora em certos trechos encontremos elementos que nos remetem à presença de estruturas matrilineares e matrifocais. Ora, o caso do serviço de Jacó a Labão (Gn 29) para que pudesse casar-se com a mais velha e depois com a mais nova é um exemplo que está em conformidade com as práticas matrifocais do casamento. Sara e Rebeca também são vistas como cumprindo papel matrifocal. No caso de Sara, um desses aspectos é a opção pela esterilidade, visto como resultante de abstinência sexual a fim de não engravidar. Tal postura de afirmação matrifocal tem paralelo com o papel tradicional das sacerdotisas da Mesopotâmia, terra natal de Sara. Da mesma maneira, a frase "deixará pai e mãe para ficar com a mulher" sugere que o homem se deslocava em direção à família da mulher, o que também é um elemento da família matrifocal.

 

O pastor batista Bill Moyers, que depois veio a ligar-se à Igreja Unida do Cristo, foi um dos teólogos a propor que diante da modernidade que se esvai, cheia de desafios para a civilização ocidental, de efervescência religiosa com poucas definições, não faz sentido procurar a saída lá na frente, mas voltar ao livro das origens. E, assim, católicos, protestantes e judeus, mas também agnósticos, budistas, hindus e muçulmanos, participarqm dos debates de Bill Moyers.

 

E as escrituras não-canônicas do vale de Nag Hammadi, no Egito, enriqueceram os debates. biblioteca de Nag Hammadi é uma coleção de textos não-canônicos, que cobre do surgimento do cristianismo até o Concílio de Nicéia em 325. Descoberta no Alto Egito, próximo à cidade de Nag Hammadi, em 1945, a biblioteca contem textos de cinquenta e dois tratados, três trabalhos pertencentes ao Corpus Hermeticum e uma  tradução parcial de A República de Platão. Segundo James M. Robinson, na sua obra The Nag Hammadi Library in English, os códices pertenceram ao monastério de São Pacômio e foram enterrados depois que o bispo Atanásio de Alexandria foi condenado pelo uso de versões não-canônicas dos testamentos em suas Cartas Festivas de 367. Após o Concílio de Niceia, monges tomaram os livros e os esconderam em potes de barro nas cavernas de Djebel El-Tarif.  Ali ficaram por mais de 1500 anos. Os textos nos códices estão escritos em copta, embora sejam traduções do grego. O mais conhecido deles é o Evangelho de Tomé, cujo único texto completo está na Biblioteca de Nag Hammadi. Atualmente, todos os códices estão no Museu Copta do Cairo.

 

Os textos de Nag Hammadi não analisam os relatos do Gênesis literalmente, mas construíram hermenêuticas a partir da tradição matrilinear. Assim, hAdam e hAwah eram representações dos padrões existenciais do humano. Hadam era símbolo da psique, a alma, e hAwah do pneuma, o espírito. Mas ambos eram, igualmente, corpo, matéria. Alma traduzia as funções emocionais, de pensamento e da personalidade, enquanto o espírito representava a capacidade humana para a consciência existencial. Hadam era representação do self menor, o ego da psicologia profunda, e Hawah da função transcendental, ou o “eu superior’. Obviamente, Hawah não era inferior a Hadam.

 

E o papel de Hawah teria sido o de despertar Hadam. Em sono profundo, Hadam teria sido levantado por Hawah. Enquanto Hawah da versão patriarcal é uma costela, dependente, na versão matrifocal é um princípio espiritual. Não teria saído fisicamente do corpo de Hadam, mas brotado das profundezas do inconsciente de um Hadam adormecido. E foi assim que nasceu a consciência crítica, que aponta para a liberdade. 

 

O texto “Sobre a Origem do Mundo” [On the Origin of the World] apresenta Hawah como Zoe, vida, mensageira da Sabedoria de Deus. A Sabedoria enviara Zoe, a vida, como instrutora, a fim de levantar Adão, que se encontrava espiritualmente adormecido. A finalidade era fazer com que aqueles que fossem gerados por ele pudessem ser existencialmente livres. Quando Hawah viu que seu companheiro dormia, sentiu pena dele e exclamou: “Adão, vive! Levante-se sobre a terra!” Ao clamor de Hawah, Adão abriu os olhos e levantou-se. Quando ele a viu disse: “Você vai ser chamada de ‘Hawah, a-vida’, porque é a mãe dos humanos”.

 

Tillich fez uma interpretação semelhante: entendeu que a alienação traduz símbolicamente a situação humana. O humano alienado é despertado para a realidade da existência através da consciência crítica e transformadora. Nesse sentido, sem a função Hawah, de despertamento para a vida e para a consciência, não haveria a construção da espécie humana.

 

A leitura da primeira hawah, que apresenta a dualidade entre a tradição matrilinear e a formação da cultura patriarcal, se prolongou na segunda Hawah, a humanidade essencializada pelo Cristo. Por isso, em Ap 12.1 e seguintes, a Mulher é gloriosa, mas sofredora porque seus filhos estão sujeitos aos ataques do dragão, o Estado a serviço dos poderes espiriturais da maldade. Segundo Lopez, “encontramos aqui uma riqueza mítico-simbólica interessante. Vemos um Deus solidário que corre em auxílio da mulher, que representa a comunidade. Por trás disso, percebe-se que o corpo da mulher é visível e é salvo, graças a esse filho ´maravilhoso´ que regerá as nações”. 

 

No Apocalipse a leitura de gênero da mulher é reconstruída matrilinearmente. Na verdade, João funda a partir de sua leitura neotestamentária a matrifocalidade cristã. A mulher é gloriosa e sofredora, porque no primeiro século da comunidade de fé havia uma leitura solidária em relação a ela: desde o Éden, Deus lhe prometera um papel nobre na obra da redenção. Passa, então, a ser valorizada por causa do filho, mas é sofredora porque a geração dele provoca a fúria do adversário. A matrifocalidade joanina rompe a ausência e o distanciamento patriarcal, traz a realidade da ancestralidade para o presente, pois a partir dela todos são filhos e não há um filho mais importante, porque o primeiro, o mais querido, foi elevado e nele repousam todas as esperanças.

 

A matrifocalidade do Apocalipse aponta para uma teologia onde a universalidade cristã repousa em colo feminino. E porque uma virgem deu à luz e é geradora de nova criação, o gênero feminino tem centralidade na expansão do Reino. A mulher descrita por João faz a desconstrução das relações convencionais de sangue, filiação, paternidade e parentesco. Essa desconstrução das relações familiares, aqui chamada feminescência, produz um estado simbólico inovador que transforma a face da existência cristã. A partir da mulher gloriosa e sofredora do Apocalipse nasce uma criança e, ao mesmo tempo, uma época. 

 

A mulher do Apocalipse não pode ser identificada com nenhum personagem individual, mas a partir de hawah, passando por Maria, a feminescência joanina remete a todas as mulheres e, por extensão, à igreja. Eis a lição de João: “A-vida” que nos primórdios foi atravessada pelo adversário, pela alienação, pela dor e sofrimento, no paraíso que se perdeu no tempo, agora atravessa a existência em luta contra a não-vida, e na feminescência o sentido se faz presente e constrói a esperança de um mundo novo.

 

O juízo e o inferno

 

Não temas: eu sou o primeiro e o último e aquele que vive; estive morto, mas eis que estou vivo pelos séculos dos séculos e tenho as chaves da morte e do inferno”. (Ap 1.17-18).

 

Derrotado, o diabo foi jogado no lago de fogo e enxofre. E diante do trono branco, João viu que a Morte e o Abismo entregaram também os seus mortos e cada um deles foi julgado segundo as suas obras. A Morte e o Abismo foram lançados no lago de fogo. Este lago de fogo é a segunda morte. E quem näo tinha o seu nome escrito no Livro da Vida foi lançado no lago de fogo". (Ap 20.13-15).

 

O conceito inferno está correlacionado à idéia de não estar na presença do Eterno. Várias imagens descrevem essa idéia, mas o essencial é que inferno traduz a compreensão de estar desvinculado de Deus. Há passagens que tratam o inferno como a arder em fogo, enquanto outras falam de ranger de dentes, ou seja, uma situação como de frio intenso. Tais imagens descrevem uma condição que extrapola a linguagem comum, direta e  objetiva. São recursos literários, metáforas, como aquelas que falam de ser deixado do lado de fora do banquete ou da festa nupcial. Mas, qualquer que seja a imagem utilizada, os autores bíblicos estão a falar de um estado consciente de separação de Deus.

 

O inferno existe, assim, enquanto estado consciente de separação de Deus. Para pensar, escatologicamente, como se dá entrada nesse estado consciente de separação de Deus, temos duas hipóteses. A primeira é de que há um meio-tempo de espera. Os mortos no Senhor esperariam no paraíso o estabelecimento do reino do Eterno, que se daria de forma concomitante com a parousia e a ressurreição. E os condenados esperariam o julgamento final no hades, para serem lançados no lago de fogo e enxofre. A segunda hipótese é de que justos e condenados receberiam imediatamente após a morte a recompensa ou a punição definitivas, sendo o juízo final um referendar da punição já aplicada.

 

Quer diante da primeira hipótese ou da segunda, o inferno se apresentaria como estado consciente de separação de Deus. Eliminar tal leitura, teologicamente seria colocar de lado, também, um outro conceito, o do estado consciente da união eterna com o Eterno, que traduzimos como céu ou reino vindouro.

 

Caso consideremos que o inferno é o hades e que será um dia - ele próprio, assim como a morte - lançados no lago de fogo e enxofre, ele não é eterno. Mas deixar de estar, conscientemente, na presença de Deus, esta seria uma condição perpétua.

 

Está claro que, como os antigos judeus, “não falamos de um inferno que se localiza abaixo da crosta da terra, ou que se pense no inferno como uma habitação debaixo da superfície da terram pois estas formas de expressão remontam a cosmologias antigas. O problema maior para o intérprete é descobrir a intenção teológica do texto, não considerar a validade científica do pensamento do povo e do autor”, afirma Harbin.

 

O Apocalipse nos diz que o inferno foi destinado para o diabo e seus anjos, fruto da desobediência. 

 

Para Lewis, “pode haver grande parte de verdade no ditado: ‘o inferno é inferno, não de seu próprio ponto de vista, mas do ponto de vista celestial’. Não acredito que isto interprete mal a severidade das palavras de Nosso Senhor. Somente aos condenados é que seu destino poderia parecer menos do que insuportável. E deve ser admitido que (...) à medida que pensamos na eternidade, as categorias de dor e prazer (...) começam a retroceder, enquanto bens e males mais vastos surgem no horizonte. Nem a dor, nem o prazer como tais têm a última palavra. Mesmo se fosse possível que a experiência (se pode ser chamada assim) dos perdidos não contivesse dor mas muito prazer, ainda assim, esse prazer negro seria de um tipo tal que faria qualquer alma, ainda não condenada, voar para suas orações num terror de pesadelo”. 

 

tártaro dos gregos e romanos era o lugar, segundo a religião do império, para onde iam as almas. Estava localizado abaixo do hades. Etimologicamente, hades e geena são lugares diferentes. Hades era o lugar dos mortos, uma dimensão de sombras, lúgubre e fria. Já geena nos remete ao vale de Hinom, uma depressão que ficava ao sul de Jerusalém. Ali, sob o governo de Manassés, os hebreus sacrificavam seus filhos a Moloque. O ídolo oco era aquecido por dentro, até ficar em brasa e, então, as crianças eram jogadas em seus braços. Mais tarde, virou o lixão de Jerusalém, onde eram queimadas as carcaças de animais e os corpos de criminosos executados. O fogo e a fumaça do lixão a queimar criou a imagem que os hebreus nos transmitiram de inferno. Para Jesus (Mt 18:8,9; Mc 9:43), o condenado viverá este estado de separação. É um estado de separação e, por isso, recebe as imagens de  trevas, calor insuportável e sede. Nele as pessoas estão distantes da vida, que é Cristo. Esta dimensão foi preparada especialmente para o diabo e seus anjos, mas será também a habitação dos condenados. As Escrituras apresentam o verbo tartaróo como sinônimo de “lançar no inferno”. Em 2Pe 2:4 a expressão “precipitando-os no inferno”, se refere a um esperar, tempo de trevas, onde anjos caídos aguardam o julgamento final, conforme Lc 16:23-26 e Ap 20:11-15.

 

O conceito mais próximo do hades dos gregos e romanos, em hebraico, é o sheol. No Antigo Testamento, sheol é usado como sepultura (Gn 37:35; Is 38:10) e inferno (Dt 32:22; Sl 9:17). Uma das idéias básicas de sheol é a de algo insaciável. Os hebreus enriqueciam o conceito com elementos os mais variados. Assim, o sheol estaria debaixo da terra (Nm 16:30, Ez 31:17; Am 9:2), tinha portas (Is 38:10), era tenebroso e melancólico, lá a alma consciente vivia triste e inativa (2Sm 22:6; Sl 6:6; Ec 9:10).

 

No Novo Testamento, porém, sheol deixa de ser um lugar para onde vão todos os mortos e passa a designar o inferno. Temos então uranos e hades como lugares opostos, o primeiro de recompensa e o segundo de punição.

 

A parábola de Lázaro (Lc 16:19-31) apresenta a idéia de que existem dois estados, um de estar com e outro de separação. Hades traduz a separação uranos, seio de Abraão ou paraíso, o encontro e o estar com o Eterno. É interessante ver que o texto não usa geena, mas hades, o que representaria para os judeus do primeiro século a existência de uma habitação dos mortos no mundo inferior, como lugar de espera para o juízo. De todas as maneiras, Jesus está falando de um estado onde não há gozo. Nesse sentido, a parábola foi construída em cima de metáforas sobre estar ou não com Deus depois da morte. 

 

O Dia do Senhor

 

Vi quando o Cordeiro abriu o sexto selo, e sobreveio grande terremoto. O sol se tornou negro como saco de crina, a lua toda, como sangue, as estrelas do céu caíram pela terra, como a figueira, quando abalada por vento forte, deixa cair os seus figos verdes, e o céu recolheu-se como um pergaminho quando se enrola. Então, todos os montes e ilhas foram movidos do seu lugar. Os reis da terra, os grandes, os comandantes, os ricos, os poderosos e todo escravo e todo livre se esconderam nas cavernas e nos penhascos dos montes e disseram aos montes e aos rochedos: Caí sobre nós e escondei-nos da face daquele que se assenta no trono e da ira do Cordeiro, porque chegou o grande Dia da ira deles; e quem é que pode suster-se?” (Ap. 6.12-17)

 

Há uma expressão no Antigo Testamento que serviu de referência para JoãoO dia do Senhor. Esta expressão, que muitas vezes é tomada apenas em seu sentido escatológico, futuro, faz parte do linguajar teológico e pastoral. Por isso, queremos aqui refletir sobre ela e ver como apresenta uma abrangência que não se limita ao seu conteúdo escatológico.

 

Vamos partir do texto de Joel 2.1-3, que nos serve de referência, e procurar compreender os sentidos teológicos implícitos na expressão, conforme se encontram nos textos de Isaías 2.5, Isaías 58.13-14 e Joel 1.15 e em seus correlatos gregos no Novo Testamento: João 4.21-23, Gálatas 4.4 e 2 Pedro 3.7. 

 

Tocai a buzina em Sião, e clamai em alta voz no monte da minha santidade. Perturbem-se todos os moradores da terra, porque o dia do Senhor vem, ele está perto; Dia de trevas e de tristeza; dia de nuvens e de trevas espessas, como a alva espalhada sobre os montes, povo grande e poderoso, qual desde o tempo antigo nunca houve, nem depois dele haverá pelos anos adiante, de geração em geração. Diante dele um fogo consome, e atrás dele uma chama abrasa; a terra diante dele é como o jardim do Éden, mas atrás dele um desolado deserto; sim, nada lhe escapará”. Joel 2.1-3.

 

Yom é um conceito da teologia hebraica, relativo a tempo, presente no Antigo Testamento, que não deve ser entendido como simples palavra, mas como idéia que dependendo do contexto em que é utilizado pode significar um instante, um momento especial ou um longo ou distante período de tempo. Mas, também, dia de 24 horas.

 

Pode expressar o período de iluminação natural, em contraste com o período de escuridão. O dia é formado por opostos que se complementam, o período da tarde (ereb, tarde e layla, noite) e da manhã formam uma unidade de 24 horas. Quando este dia luz ou dia tarde e manhã se refere ao dia hoje dizemos em hebraico hayom

 

É importante dizer que o yom de luz no mundo hebraico não era medido em horas, mas de acordo com os fenômenos naturais e as atividades cotidianas. As duas refeições do dia, eram balizadoras das atividades do dia luz. E o dia ereb, tarde, ou dia layla, noite, eram divididos pelas três vigílias. Mas, além desse dia dual, havia o dia ano, e nesses casos o conceito vem no plural. Mas dia podia ser também um período indeterminado de tempo. 

 

A palavra dia em português deriva do latim vulgar, dies, e de forma genérica significa o tempo em que a Terra está clara, ou seja, o intervalo entre uma noite e outra. Mas significa também a medida de tempo que nosso planeta ou qualquer corpo celeste leva para descrever uma volta em torno de seu eixo de rotação. Temos, assim, em português, os dias ou os tempos quotidianos, o dia-a-dia. E temos os dias litúrgicos, que ao contrário dos primeiros são separados, escolhidos para a realização de alguma adoração especial. Podemos dizer, por exemplo, que o dia de ano-bom é o primeiro dia do ano; que o dia de Reis é 6 de janeiro, comemoração da adoração do menino Jesus pelos reis magos (Baltasar, Melchior e Gaspar). Mas temos, ainda, um dia sem data, um dia de juízo, de julgamento final, de clamor, confusão e desgraça.    

 

Então, em nossa análise, vamos começar por este dia luz, dia novo que começa a cada entardecer. Dia de tarde e manhã. Conforme nos diz Isaías, 2.5: Venha, ó descendência de Jacó, andemos na luz do Senhor! O dia do Senhor”. se formos ao Novo Testamento vemos uma idéia correlata em João 4.21-23: Disse-lhe Jesus: Mulher, crê-me que a hora vem, em que nem neste monte nem em Jerusalém adorareis o Pai. Vós adorais o que não sabeis; nós adoramos o que sabemos porque a salvação vem dos judeus. Mas a hora vem, e agora é, em que os verdadeiros adoradores adorarão o Pai em espírito e em verdade; porque o Pai procura a tais que assim o adorem.

 

No texto de Lucas, Jesus fala com a samaritana que chegaria uma hora, e usa a palavra grega que deu a expressão hora em português, que podemos traduzir também por tempo ou mesmo dia, em que Deus exigiria de nós adorá-lo no Espírito e não mais segundo as tradições, fossem elas samaritanas ou judaicas. 

 

E para falar dessa hora luz, desse dia luz, devemos entender como o Espírito de Deus se faz presente nele e atua em nossas vidas. Por isso, vamos ver rapidamente como hebreus e cristãos viam a ação do Espírito.

 

A expressão hebraica ruach e seu correlato grego pneuma significam literalmente vento ou sopro. Normalmente traduzimos esses termos, quer do hebraico ou do grego, por “espírito” ou por “Espírito” com letra maiúscula. Quando optamos pela tradução “espírito” queremos nos referir ao espírito humano ou a um espírito, que pode ser um demônio ou um anjo. Optamos pela tradução “Espírito” quando o texto se refere ao Espírito Santo ou Espírito de Deus. Assim, em 2Ts 2.8 significa sopro -- a quem o Senhor Jesus matará com o sopro de sua bocaE em Ec 8.8 indica o princípio essencial da vida, nosso fôlego de vida. Mas, ao nascermos de novo, através da aceitação pela fé do sacrifício de Jesus na cruz do calvário, o Espírito Santo passa a habitar em nós, como explica Paulo em 1Co 3. Em Rm 1.4, 2Co 3.17 e 1Pe 3.18 a expressão grega pneuma nos remete à uma das Pessoas da Trindade, ao Espírito Santo de Deus.

 

O Espírito Santo nos manuscritos encontrados em Qumran, que faziam parte da biblioteca dos essênios, piedosa comunidade judaica que vivia no deserto na época de Jesus, aparece de forma explícita como Pessoa trinitária. Por isso, podemos dizer que nos textos de Qumran encontramos elementos conceituais da doutrina do Espírito Santo. E é interessante ver que um manuscrito ao falar da promessa da autoridade profética, restauradora da justiça, apresentada na figura do Messias, diz que “O Espírito Santo desceu sobre o seu Messias”. 2Q 287 (3.13). “Céu e terra pertencerão ao meu Messias (...) e tudo o que neles há. Ele não se afastará dos mandamentos dos santos (linha 6) e o seu Espírito estará sobre os humildes e os crentes serão fortalecidos por seu poder”. 4Q 521 (fragmento 1, coluna 2). E a Regra da Comunidade afirma que: “Ele purificará a carne de todas as obras ímpias pelo Espírito Santo e aspergirá sobre ela o Espírito de verdade como água de purificação”(IQS 4.21). 

 

Estamos, dessa maneira, diante de um dia onde se deve andar na luz do Espírito da verdade. É o dia tarde e manhã que, sucessivamente, Deus cria para nós: é dia de adoração. Este é um dia particular, me envolve como pessoa, mas é cotidiano, são todas as horas do dia, todos os dias. Mas deve ser comunitário, porque implica em reunião, porque é assim que se adora e se  serve no Espírito da verdade. É por excelência o dia da igreja.

 

Quando falamos de cairos falamos plenitude, falamos de máxima extensão, brilho e glória. Plenitude é tempo de beleza, é um momento de graça onde a possibilidade humana se torna cheia da força divina. Mas este cairos é diferente de todos os tempos anteriores e futuros, pois aponta para a possibilidade de liberdade e salvação. E a esperança que o cairos gera é maior que a simples ilusão humana, pois esta esperança tem o próprio Cristo por fundamento, já que aqui a graça gera a plenitude. Assim, o cairos é o dia da plenitude, de grande magnitude e beleza. É um dia especial de irrupção da liberdade e da salvação. É um dia diferente, é particular, marca as nossas vidas e não se repete. É o dia do Senhor Jesus.

 

Se desviares o teu pé do sábado e de fazer a tua vontade no meu santo dia, e se chamares ao sabado deleitoso, e santo dia do Senhor, digno de honra, e o honrares não seguindo os teus caminhos, nem pretendendo fazer a tua própria vontade, nem falar as tuas próprias palavras. Então te deleitarás no Senhor, e te farei cavalgar sobre as alturas da terra, e te sustentarei com a herança de teu pai Jacó; porque a boca do Senhor o disse”. (Is 58.13-14).

 

No Antigo Testamento, o dia cairos era simbolizado pelo sábado, que traduzia a idéia de regeneração da vida e, por isso, de liberdade e salvação. Com o tempo, os hebreus perderam esse sentido maior do sábado e passaram a ver nele apenas um aspecto, o da separação e santificação, que sem dúvida está presente.

 

No Novo Testamento, o dia cairos ressurge com toda sua força simbólica na Pessoa de Jesus, que encarna na plenitude dos tempos, na época certa de liberdade e salvação. Mas, vindo a plenitude dos tempos, Deus enviou seu Filho, nascido de mulher, nascido sob a lei”. (Gl 4.4).

 

Por isso, ele traz a plenitude da salvação para nossas vidas através de um dia especial: o dia de nossa conversão. Esse dia acontece apenas uma vez em nossas vidas. Ele é definitivo e faz com que nossas vidas se dividam em antes de depois dele.

 

João testificou dele, e clamou, dizendo: Este era aquele de quem eu dizia: O que vem depois de mim é antes de mim, porque foi primeiro do que eu. E todos nós recebemos também da sua plenitude, e graça por graça”. (Jo 1.15-16).

 

Por isso, o dia cairos é um dia particular, pessoal, de encontro com o Salvador. É o dia do Cristo: é único, é transformador. Produz regeneração que se projeta na eternidade. Esse é o meu dia, da particularidade da minha salvação. Eu sei o que ele significa. É cheio de beleza, graça e força. E por isso eu testemunho sobre ele.

 

Mas há um dia escatológico, de consumação do tempo e da história, quando os seres humanos que não aceitaram a alforria e a salvação pelo cairos do Cristo estarão sob a justiça e juízo do Deus eterno. Este é o grande e  terrível dia do Deus Pai, que abre um tempo novo, o yom eterno.  

 

Eterno é Deus do tempo e da história. Isso significa que é Deus que atua na história com destino a uma meta final. A história segue uma direção, algo novo há de criar-se nela. Essa meta pode ser compreendida de várias maneiras, como vitória sobre os poderes demoníacos, bem-aventurança, chegada do reino de Deus e, mais além da história, criação de novos céus e nova terra, ou seja, de uma realidade nova e superior. 

 

Ah! aquele dia! porque o dia do Senhor está perto, e virá como uma assolação do Todo-poderoso”. (Joel 1.15(.

 

A rainha do meio-dia (uma referência de Jesus à rainha de Sabá) se levantará no dia do juízo com esta geração, e a condenará; porque veio dos confins da terra para ouvir a sabedoria de Salomão. E eis que está aqui quem é mais do que Salomão”. (Mt 12.42).

 

No profetismo antigo muitos eram os símbolos para expressar a esperança escatológica e o Dia do Senhor era talvez o de maior impacto. No profetismo, a história é história universal. Negam-se as limitações espaciais e as fronteiras entre as nações. Para Abraão todas as nações serão benditas, todas poderão adorar a Deus no monte Sião, pois o sofrimento do Filho da nação escolhida tem o poder de salvar todas as demais arrependidas. O milagre do Pentecostes supera as diferenças do idioma. Em Cristo salva-se e une-se o cosmo, o universo.

 

Mas os céus e a terra que agora existem, pela mesma palavra se reservam como tesouro. e se guardam para o fogo, até o dia do juízo, e da perdição dos homens ímpios”. (2 Pe 3.7).

 

Nós evangélicos comprometidos com as missões no mundo vivemos a promessa desse dia quando nos lançamos à transculturalidade para proclamar o Cristo. Esse tempo do Deus Pai alcança plenitude na história, porque a história aponta para o reino universal de Deus, o reinado da justiçada paz e da alegria. Isso nos leva ao ponto decisivo da luta entre o tempo e o espaço. 

 

O Dia do Senhor, quer nos símbolos vétero-testamentários, quer na revelação apocalíptica neo-testamentária, traduz a idéia de que o círculo trágico do espaço será superado e que a história teve um princípio e terá um fim. E isso tem um significado especial para nós, já que o apóstolo Paulo também fala de “nova criatura”. 

 

Com o Dia do Senhor o monoteísmo profético se apresenta como monoteísmo da justiça, porque os falsos deuses do espaço suprimem, necessariamente, a justiça. O direito ilimitado de todo deus espacial choca-se inevitavelmente com o direito ilimitado de outro deus espacial. A vontade de poder das comunidades submetidas a esses deuses espaciais não pode fazer justiça diante da vontade de poder de outras comunidades submetidas a outros deuses espaciais. Isso é válido para os grupos poderosos que operam dentro de uma nação e para as próprias nações. O politeísmo, que é a religião do espaço, é forçosamente injusto. O direito ilimitado de todo deus do espaço anula a universalidade implícita na idéia de justiça. Este é um clamor do Dia do Senhor presente no monoteísmo profético. 

 

Mas a ameaça profética do Dia do Senhor também pende sobre joio que se esconde em meio ao povo eleito, de ser rechaçado por Deus, por causa da injustiça. A tragédia e a injustiça são próprias dos falsos deuses do espaço, mas a realização histórica e a justiça o são do Deus eterno que atua no tempo para criar um dia eterno. Por isso, o dia escatológico é um dia universal. Terrível para aqueles que rechaçaram a plenitude da graça e o viver no Espírito.

 

O Dia do Senhor é tempo do Espírito, de adoração e serviço, é tempo do Cristo, de salvação e proclamação, é tempo do Eterno, de juízo e justiça. 


 

 

 

 

 

PRAXE E ULTIMATO

 

 

Vvverde é vida/ Gentileza meus/ filhos bemvindo ao / Rio amorrr não usem pro / blemas não usem pobreza / usem amorrr do Gentileza / e a natureza Deus nosso / Pai criador tem beleza / perfeição bondade e ri /
praga assassino e o / capetalismo surdos ce / ga mata conduz para / o abismo tem que sserr / queimado por Jessuss Gentileza”.

Profeta Gentileza.

 

 

A alienação que separa humano e consciência é necessária para que nos elevemos à consciência. Por isso, a consciência supõe não somente uma ligação ao que somos, mas também um distanciamento que permite reflexão. Quando somos confrontados com nossas origens e somos chamados a mudar de rumo, ter consciência e sentido de vida em uma comunidade que originalmente não era a nossa, chamanos tal fenômeno, conforme Weber, de conversão. Por isso, depois desse acontecimento cairótico em nossas vidas, rompemos com as origens e nos colocamos a serviço da comunidade de sentido. 

 

A relação entre a situação humana original e a escolha espiritual nos eleva da esfera biográfica para aquela das relações de sentido. Tal realidade tem por base a expressão “sentido de vida” e caracteriza de maneira global nossa nova comunidade, pois deixa de lado a esfera biográfica e nos permite a multiplicidade de significados que é comum a todos os membros dessa comunidade de fé. Essa ação, que se torna uma praxe, é o que nos leva da esfera biográfica, de nossas origens, à essência da caminhada de fé, agora aberta à nossa frente. 

 

Mas, se por um lado temos um fenômeno aparentemente pessoal e privado na caminhada de fé, por outro milhões de pessoas no Brasil fazem trânsitos desse tipo, em direções as mais diversas. Por isso, a liberdade de organização das crenças e religiões tem no Brasil uma dimensão importante. Em relação ao Estado, de forma geral, as crenças e religões podem ser chamadas a se posicionar de três formas, por fusão, união e separação. Um estado laico é leigo, neutro e separado da religião. O termo laico remete-nos a uma atitude crítica em relação à interferência das crenças e religiões na vida pública da sociedade e, também, do Estado em relação à livre expressão da fé. 

 

Assim, a laicidade do estado brasileiro é condição indispensável para a existência da democracia. Sem o respeito às crenças, às descrenças e à ausência de crenças, de neutralidade confessional, é impossível ao estado brasileiro assegurar paz religiosa e, inclusive, social. 

 

Os Estados constitucionalmente religiosos, assim como as militâncias fundamentalistas, sejam elas cristãs, de descrença ou islâmicas, na modernidade que se esvai, ameaçam o respeito ao outro e geram discriminação e ódio. 

 

A essa influência temporal e poder de crenças e religiões sobre o Estado, chamamos clericalismo. E, a partir daí, podemos dizer que não existe anticlericalismo onde antes não houve clericalismo. Sem liberdade não há laicidade, por isso Estados religiosos negam, de fato, a democracia. 

 

Dessa maneira, quando repousamos nossa ação religiosa exclusivamente na essência da caminhada de fé expulsamos a força viva da vida de nossa praxe. Isso porque a essência da fé não pode ser individual e privatista, mas acontecer na vida da comunidade de fé e na própria vida do país. Isso é o que faz do cristianismo uma fé socialmente dialética, que se posiciona na contra-corrente, em oposição à perda de sentido, mas solidária com os movimentos e instituições que se colocam na brecha pela luta a favor da vida plena, da justiça, paz e alegria. Entender esta raiz do cristianismo ajuda a entender as raízes do pensamento teológico protestante. 

 

Uma teologia da vida tem seu primeiro referencial no humano, imagem de Deus. E como dissemos no correr deste Manual de Teologia Bíblica e Sistemática, não se pode entender o protestantismo caso não se experimente a exigência de sua justiça como uma necessidade incondicional, pois quem não é desafiado a viver o compromisso com a justiça, paz e alegria não pode falar do cristianismo a não de forma superficial. Não pode falar dele porque é omisso ou contrário àquilo que ele defende. É por isso que uma teologia bíblica e sistemática, que rastreia as aspirações e necessidades do povo brasileiro, rompe as bases preconceituosas sobre certos debates e possibilita abordar temas polêmicos sem estigmatizar pessoas, grupos e movimentos. 

 

E em nosso país já vivemos tal Estado religioso, não-democrático e excludente. Não podemos esquecer que a Constituição de 1824 estabelecia três vetores em relação à questão religiosa: (1) o catolicismo era a religião oficial do Império; (2) a permanência da Igreja Católica Apostólica Romana na condição de religião do Império, que só admitia o culto particular de outras crenças, desde que realizadas em casas previamente destinadas para isso, mas sem forma exterior de templo; e (3) a permissão da elegibilidade para o Congresso apenas daquelas pessoas que professassem o catolicismo.

 

No Brasil essa hegemonia foi superada, ao menos no texto, com a chegada da República. Dessa maneira, o Brasil é um estado laico desde a edição do Decreto 119-A, de 17 de janeiro de 1890, que instaurou a separação entre a Igreja e o Estado. É uma vitória cidadã e democrática. Quebrar essa conquista é retrocesso que em última instância não favorecerá grupo algum. 

 

Nós protestantes devemos defender, no Brasil democrático e laico, nossas convicções políticas e agir em nome próprio, como cidadãos, e não enquanto representantes de confissões ou instituições religiosas. E devemos nos associar livremente como qualquer grupo organizado da sociedade para expor e propagar maneiras de ver e viver. 

 

Logicamente, ao olhar a realidade cristã a partir de aspirações e necessidades da espiritualidade brasileira, é preciso não esquecer que toda teologia da vida é um pensar sobre o Eterno que se revela na história, que se revela através do outro que, segundo Dussel, é o mistério incompreensível de nossa liberdade. Crer na revelação do Eterno é compreender o sentido da história, que ele nos apresenta através de nossa vida com o outro e também para o outro. 

 

A influência das igrejas protestantes pode ser muito positiva para a sociedade. A exposição de valores como a ética cristã, a solidariedade e a luta por melhor distribuição de oportunidades e possibilidades, pode fazer enorme diferença para o futuro da nação. 

 

Se compreendermos que a democracia e a laicidade não são inimigas das crenças particulares, vamos entender que os protestantes têm o direito de exercer sua cidadania e se manifestar sobre aqueles temas que geram discussão e polêmica. As questões éticas em tempos de crise têm importância especial. Mas essas questões não podem ser encaradas apenas como questões religiosas, embora nosso protestantismo deva, permanentemente, abastecer a ética e influenciar nas decisões do País.

 

Tal compreensão da teologia da vida permite analisar como o protestantismo e as brasilidades se relacionam na história brasil. A relação protestantismo-brasilidade está colocada: é um desafio de vida que hoje ocupa um espaço cultural, político e social inédito na história brasileira. Eis o desafio, ou melhor o ultimato, de uma Teologia Bíblica e Sistemática para a ação e praxe protestante brasileira.





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