samedi 30 novembre 2024

Hevel e Qayn

 Hevel e Qayn

Jorge Pinheiro



"Adão teve relações com Eva, a sua mulher, e ela ficou grávida. Eva deu à luz um filho e disse: — Com a ajuda de Deus, o Senhor, tive um filho homem. E ela pôs nele o nome de Caim. Depois teve outro filho, chamado Abel, irmão de Caim. Abel era pastor de ovelhas, e Caim era agricultor. O tempo passou. Um dia Caim pegou alguns produtos da terra e os ofereceu a Deus, o Senhor. Abel, por sua vez, pegou o primeiro carneirinho nascido no seu rebanho, matou-o e ofereceu as melhores partes ao Senhor. O Senhor ficou contente com Abel e com a sua oferta, mas rejeitou Caim e a sua oferta. Caim ficou furioso e fechou a cara. Então o Senhor disse: — Por que você está com raiva? Por que anda carrancudo? Se tivesse feito o que é certo, você estaria sorrindo; mas você agiu mal, e por isso o pecado está na porta, à sua espera. Ele quer dominá-lo, mas você precisa vencê-lo. Aí Caim disse a Abel, o seu irmão: — Vamos até o campo. Quando os dois estavam no campo, Caim atacou Abel, o seu irmão, e o matou". (Gênesis 4:1-8 NTLH)


O relato da história de Caim e Abel mostra o embate entre dois irmãos e dois modos de vida: de um lado temos o agricultor e de outro o pastor. A história dos dois irmãos personificam a fratura da "imago Dei" e a consequente alienação humana, em sua diversidade, distanciamento do Criador, alienação psicológica, sociológica e ecológica.


Quando nasce Caim, Eva feliz diz: alcancei do Senhor um homem. Que é um trocadilho com o verbo "qanah", adquirir, que vai dar a palavra Qayn. Em relação a Abel, alguns rabinos consideram que o nome vem da palavra "hevel", que significa suspiro, vão, no sentido de que teve vida curta e não deixou filhos.


A história do choque entre os dois irmãos, entre duas espiritualidades, conta que o Eterno recebeu de bom grado a oferenda de Abel porque ele "ofereceu as melhores partes ao Senhor". Enquanto Caim "um dia pegou alguns produtos da terra", ou seja, ofereceu com descuido, o que não lhe deu trabalho, o que tinha de sobra. 


O Eterno valoriza a sinceridade dos sentimentos que gera a oferta e não o contrário, por isso ele disse "odeio, eu detesto as suas festas religiosas; não tolero as suas reuniões solenes. Não aceito animais que são queimados em sacrifício, nem as ofertas de cereais, nem os animais gordos que vocês oferecem como sacrifícios de paz. Parem com o barulho das suas canções religiosas; não quero mais ouvir a música de harpas. Em vez disso, quero que haja tanta justiça como as águas de uma enchente e que a honestidade seja como um rio que não para de correr". (Amós 5:21-24).


Assim a história dos dois irmãos apresentam a metáfora da fratura psicológica, social, ecológica e espiritual da humanidade.


1. Ao nível psicológico, Qayn e Abel apontem para o conflito entre o certo e o errado, entre realizar os desejos na natureza humana e viver a vontade de Deus. E neste conflito, quando a natureza humana é vitoriosa o embate resulta em morte, em fracionamento, em cisão do humano que somos.


Ao matar Abel, Qayn se torna um pária de si mesmo, um nômade marcado pela falta daquilo que constitui a vida plena, a personalidade livre da culpa. Passa a ser uma pessoa que constrói e avança distante de sua integralidade como ser humano. É ser dividido, fraturado.


2. Ao nível social, Qayn e Abel simbolizam duas humanidades, divididas, que se confrontam no correr da história.


É conflito permanente entre uma humanidade, simbolizada por Qayn, que se rebela, mata o irmão e através da violência assenhoreia-se da natureza, levando-a ao desequilíbrio e destruição; e outra humanidade, simbolizada por Abel, que procura a comunhão com seu Criador, com seus irmãos, e com a própria natureza.


3. Ao nível espiritual, e este é o principal centro do relato, Qayn e Abel apontam para uma fratura na alma humana em sua forma de se relacionar com o Deus Eterno.


Uma dualidade que definiu dois tipos de busca -- uma formal, padronizada por ações estereotipadas em valores próprios, e outra de sujeição e observância da vontade do Deus Eterno.


Espiritualmente, há uma divisão no âmago da alma humana, no relato do conflito entre  Qayn e Abel. É uma parábola do ser humano que sacrifica uma parte de seu ser. Qayn de agricultor passa a andarilho para depois se tornar um construtor de cidades. E Abel de pastor torna-se símbolo de humildade e submissão e, num contexto espiritual, de mártir da entrega a Deus, da fé.


Caim é a metáfora de uma humanidade que mata dentro de si o Abel da entrega e da vida plena em sintonia com a vontade de Deus. E para não viver como andarilho, na solidão de si mesmo, Qayn funda uma cidade. É sua forma de dizer não à vontade de Deus, que considera injusta.


E por isso, podemos dizer: Abel, humilde e submisso, o primeiro mártir espiritual da humanidade, aponta para Cristo.


"Jesus foi com os discípulos para um lugar chamado Getsêmani e lhes disse: — Sentem-se aqui, enquanto eu vou ali orar. Então Jesus foi, levando consigo Pedro e os dois filhos de Zebedeu. Aí ele começou a sentir uma grande tristeza e aflição e disse a eles: — A tristeza que estou sentindo é tão grande, que é capaz de me matar. Fiquem aqui vigiando comigo. Ele foi um pouco mais adiante, ajoelhou-se, encostou o rosto no chão e orou: — Meu Pai, se é possível, afasta de mim este cálice de sofrimento! Porém que não seja feito o que eu quero, mas o que tu queres". (Mateus 26:36-39 NTLH)


"Ele tinha a natureza de Deus, mas não tentou ficar igual a Deus. Pelo contrário, ele abriu mão de tudo o que era seu e tomou a natureza de servo, tornando-se assim igual aos seres humanos. E, vivendo a vida comum de um ser humano, ele foi humilde e obedeceu a Deus até a morte — morte de cruz". (Filipenses 2:6-8 NTLH)


Eis o desafio. Seguir o caminho aberto por Abel -- humildade e submissão à vontade do Deus Eterno. 


Eis o desafio. Seguir o caminho de Jesus -- abrindo mão de tudo para tomar a natureza de servo. E poder dizer: não se faça o que quero, mas o que tu queres. 

Dès le XIème siècle -- Une fresque sur les murs de l’église abbatiale de Saint Savin dans la Vienne.

Saint Savin. Les deux offrandes

Dieu avec la figure du Christ est descendu lui-même sur terre et se tient debout entre les deux frères. A gauche, Abel s’est agenouillé pour lui offrir son agnelle. Dieu se penche vers lui et le bénit des deux premiers doigts de la main. Tandis qu’à droite, un Caïn barbu se morfond en attendant que Dieu daigne s’intéresser à lui. En vain.

Fonte:
Itinéraire iconographique, Jacques de Chalendar. WordPress.com. 


mercredi 27 novembre 2024

Mitologias que ameaçam a fé

Mitologias que ameaçam a fé

Prof. Dr. Jorge Pinheiro

Pastor e executivo da Croix Huguenote na França


Uma introdução


No cristianismo, a ligação entre religião e política foi consolidada na Idade Média, quando a Igreja Católica e os Estados europeus em formação se uniam, com reis e imperadores afirmando que seu poder vinha de Deus, algo conhecido como direito divino dos reis. Isso tornava a figura do monarca sagrada e questioná-la era uma heresia. Com o tempo, líderes e movimentos reformadores, entre as quais a Reforma Protestante, surgiram em resposta a essa manipulação, criticando abusos e corrupção dentro da Igreja e dos Estados.


Na Modernidade, essas leituras, que se posicionam fora do chamado ao Reino de Deus, manipula homens e mulheres para fins políticos, utilizando símbolos e discursos religiosos para atrair apoio, a partir de temas sociais polarizados como aborto, casamento, ou identidade de gênero.


Hoje a globalização exclui e é mitologia que consome o mundo. É importante entender que mitologia não é mentira, mas o conjunto de narrativas que integram a cultura e identidade de um povo. O termo deriva do grego mythos (relato, história, fábula) e logos (discurso, estudo). Os mitos explicam fenômenos naturais, origens da humanidade, os ciclos da vida e da morte. E diante da globalização que exclui e da mitologia que engana, devemos fazer o mesmo que fizeram os cristãos dos primeiros séculos: assumir a comissão que nos foi entregue. É necessário proferir um Não ao tempo presente e um Sim ao Reino de Deus. 


E nessa crítica, neste Não, o fundamental é envolver-se na situação histórica concreta, ter a coragem de decidir e colocar-se sob julgamento, ao nível do particular. O cristão deve olhar o mundo com atenção. E a luta dos povos excluídos deve nos sensibilizar, pois estamos vivendo uma era de kairós, de tempo oportuno, de momento certo, da dimensão qualitativa do tempo, do instante ideal, que nos exige ser profetas. 


Assim, o clamor dos povos excluídos, em diáspora, por condições de vida dignos, são parte do clamor contra a opressão que caracteriza este início de milênio. Não é correto classificar os clamores dos povos em diáspora como simples conflito racial e religioso, ou como problema localizado em regiões distantes do globo. Ao contrário, hoje estamos vendo um clamor global dos desterrados e excluídos. Os clamores por liberdade dos povos em diáspora não se resumem em revoltas raciais e religiosas, se estivermos interessados em viver uma teologia da vida, que pratica a fraternidade cristã. 


Essas manipulações causam conflitos éticos, pois levantam a questão: a fé deve promover agendas políticas? Distorcem as mensagens das Escrituras. Além disso, essas práticas promovem divisões na comunidade, criando um clima de “nós contra eles”, desencadeando conflitos e intolerância.


  1. Por uma teologia da vida


Aqui devemos explicar o que entendemos por teologia e em que medida ela pode ser um instrumental para nosso desenvolvimento pessoal, assim como da sociedade. 


A teologia relaciona polos, a mensagem cristã e a interpretação dessa mensagem, que deve levar em conta a situação presente daqueles a quem se destina. Quando dizemos situação presente, estamos nos referindo as expressões científicas e artísticas, econômicas, políticas e éticas, através das quais as pessoas e grupos exprimem as suas interpretações da existência. 


Nesse sentido, a teologia deve dar respostas às perguntas implícitas na situação, não enquanto soluções definitivas, mas no sentido de procurar sínteses. Para isso, utilizamos o método da correlação, ou seja, a análise da situação humana por um lado, de forma que venham à tona perguntas; e as leituras que surgem a partir da Revelação da mensagem cristã, possibilitando respostas correlatas às perguntas colocadas pela própria existência.


  1. Que sentido tem a história? 


A princípio não aceitamos o fundamentalismo que vê a história desde um olhar negativo, nem a leitura otimista da história, presente no Iluminismo e no Marxismo. O cristianismo nos entrega uma promessa, a do Reino de Deus, que deve ser interpretado como dimensão histórica, mas também aquela dimensão que vai além da história. Dessa maneira, o sentido da história está na manifestação do Reino de Deus, enquanto reino da salvação em contraposição à história do mundo, quer enquanto diretrizes e movimento em direção à plenitude da história, que em sua dimensão além da história, transcendente, é a vida eterna.


Perguntas acerca das situações e respostas teológicas estão ligadas à existência. Por isso, construimos uma teologia onde seu referencial primeiro é o ser. Nesse sentido, fazemos uma fenomenologia política quando analisamos questões como o ser, a origem do pensamento político enquanto mito, e a partir daí procuramos trazer à tona os elementos não reflexivos do pensamento político.


Mas, para que a teologia direcione é necessário descobrir o sentido do presente histórico. E esse desvelar o sentido do presente histórico chama-se profecia, que etimologicamente, em grego, significa falar diante. Mas falar diante de quem? Ou como nos diz Dussel, falar "diante do povo, diante da assembleia dos cidadãos". Profecia é isso: falar ao povo da fé cristã real, quotidiana, falar do sentido dos acontecimentos presentes e apontar para o Reino de Deus. 


Mas devemos entender que a vida sempre nos coloca diante de situações-limite, ou seja, de ameaças à própria existência. Enfrentar as situações-limite é o diferencial do protestantismo. Esse posicionamento nasce em torno da justificação pela fé. A vida em liberdade significa a aceitação da exigência incondicional de realizar a verdade e fazer o bem. Quando reconhecemos a existência de situações-limite, devemos entender que somos chamados a julgar e transformar. E essa é a diferença entre um cristianismo  que vai às raízes e propõe a construção de uma teologia da vida, que não aceita aquela religião, dita cristã, que faz a defesa da hierarquia e do mito excludente. 


Aqui, devemos entender que a teologia da vida reflete teologicamente sobre o significado da vida humana. Ela articula a vida como valor fundante, que deve ser vivida com plenitude, em conformidade com os princípios éticos da Revelação.


Porém, pregou-se, por muito tempo, um cristianismo vazio de fraternidade, que não significava mais que o desejo de que os povos aceitassem passivamente o seu destino colonial. As nações industriais do Ocidente subjugaram culturas, nações e povos por razões econômicas. Essas ações de saques internacionais golpearam os continentes e são os responsáveis pelo baixo padrão de vida que prevalece em todo o mundo chamado subdesenvolvido. 


Nossa comissão, deve partir do programa de Jesus, base primeira para uma teologia da vida. Em Lucas 4 lemos "chegando a Nazaré, onde fora criado, entrou num dia de sábado, segundo o seu costume, na sinagoga, e levantou-se para ler. E foi-lhe dado o livro do profeta Isaías; e, quando abriu o livro, achou o lugar em que estava escrito: O Espírito do Senhor é sobre mim, Pois que me ungiu para evangelizar os pobres. Enviou-me a curar os quebrantados de coração, a pregar liberdade aos cativos, e restauração da vista aos cegos, a pôr em liberdade os oprimidos, a anunciar o ano aceitável do Senhor".


Assim, a teologia da vida tem como fundamentos a plenitude da vida, a vida como dom e vocação, a interconexão indivíduo e comunidade, a justiça e a dignidade, levantando um Não concreto a tudo que ameaça tais fundamentos e um Sim à promessa do Reino de Deus.


Aqui, na construção de uma teologia da vida, dentro da visão do apóstolo Paulo em sua carta aos Romanos, (8.31-39; e 9), devemos traduzir o pensamento cristão palestino de destino, ou seja, de estar proposto para algo sublime, no sentido de que os limites estão dados de antemão, da lei transcendente na qual está imbricada o conceito de liberdade. Assim, estar predestinado implica numa trindade de conceitos: o estar predestinado está sujeito à liberdade; estar predestinado significa que a liberdade está sujeita à lei; estar predestinado significa que liberdade e lei são interdependentes e complementares.


Analisando o conceito cristão palestino de destino ou estar predestinado, exposto por Paulo, na epístola aos Romanos, podemos dizer que a liberdade humana está ligada às leis universais, de tal forma que liberdade e leis se encontram intrinsecamente entrelaçadas. Aqui Paulo trabalha com um conceito judaico, de que lei é imposição de limites, que faz parte da Revelação, que se expressa pela primeira vez como criação de Deus. Mas para Paulo, se a consciência do bem e do mal nasce da correlação lei/graça, o julgamento é inerente a tudo na criação, mas também a liberdade.


Assim, a certeza de que o estar predestinado, ter um destino, é divino e não demoníaco e tem um significado realizador e não destruidor, é peça-chave do pensamento joanino e paulino, que coloca o Logos1 acima do destino. Ao fazer isso, Paulo, em sua carta aos Romanos, está dizendo que a compreensão do estar predestinado não está ao alcance do ser humano, nem pode ser submetido aos processos do pensamento humano. Mas esse Logos eterno se reflete através de nossos pensamentos, embora não exista um ato do pensamento sem a secreta premissa de sua verdade incondicional. Mas a verdade incondicional não está ao nosso alcance. Em nós humanos há sempre um elemento de aventura e risco em cada enunciado da verdade. Mas, mesmo assim, devemos correr este risco, sabendo que este é o único modo que a verdade pode ser revelada a seres finitos e históricos.


Quando mantemos relação com o Logos eterno e deixamos de temer a ameaça do destino demoníaco, aceitamos o lugar que cabe ao estar predestinado em nosso pensamento. Podemos reconhecer que desde o princípio esteve submetido ao estar predestinado e que o nosso pensamento sempre desejou livrar-se dele, mas nunca conseguiu. Tarefa teológica da maior importância, na análise cristã do estar predestinado é saber relacionar Logos e kairós. O Logos deve envolver e dominar as leis universais, a plenitude do tempo, a verdade e o estar predestinado da existência. A separação entre Logos e existência chegou ao fim. O Logos alcançou a existência, penetrou no tempo e no destino. E isso aconteceu não como algo extrínseco a ele próprio, mas porque é a expressão de seu próprio caráter intrínseco, sua liberdade.


É necessário, porém, entender que tanto a existência como o conhecimento humano estão submetidos ao destino e que o imutável e eterno reino da verdade só é acessível ao conhecimento liberto do destino: a Revelação. Dessa maneira, ao contrário do que pensavam os gregos, todo ser humano possui uma potencialidade própria, enquanto ser, para realizar seu estar predestinado. Quanto maior a potencialidade do ser – que cresce à medida que é envolvido e dominado pelo Logos – mais profundamente está implicado seu conhecimento no estar predestinado.


Nosso destino, que aqui deve ser entendido como missão, é servir ao Logos, num novo kairós, que emerge das crises e desafios de nossos dias. Quanto mais profundamente entendermos nosso destino, no sentido de prokeimai (em grego estar colocado, ser proposto) e o de nossa sociedade, tanto mais livres seremos. Então, nosso trabalho será pleno de força e verdade.


  1. Levar a graça de Cristo


Diante da mitologia da globalização que exclui, nossa comissão permanece a mesmo dos primeiros cristãos: levar a graça de Cristo a um mundo em crise, imerso em culpa e destino trágico. 

 

Dentro da exposição que fizemos do mito grego não se pode falar em mitologia cristã, e sim de simbologia, principalmente nas parábolas e em livros como o Apocalipse.


A mitologia é fenômeno sócio-cultural. Não é um erro ou uma farsa. Quem é que conhece ou define sua vida pelo Santo Graal? Esse assunto deve ser situado no campo da ficção. 


O cristianismo é uma fé racional e objetiva que brota do caráter e das promessas do Deus eterno. E devemos entender isso diante de uma mitologia que se diz teologia. A fé é uma confiança racional, porque nasce da reflexão e leva à constatação de que o Deus eterno é digno de crédito. Mas, de maneira nenhuma, lança fora a vontade, a afetividade, a personalidade, as ações, as obras e experiências humanas enquanto componentes e realidades da fé.


Teologicamente, conhecimento é fé (Hebreus 11.1). Ela depende de uma opção da pessoa e é um estado do coração. Vejamos por que: tomando por base alguns textos (Romanos 10.9-10; 1 João 5.1; João 5. 38-40, 42, 44; 2Tessalonicenses 2.10; Atos 8. 37) podemos dizer que a fé (1) é um dever e, portanto, a vontade está incluída; (2) que é uma graça entregue pelo Espírito Santo (1Coríntios 13), e sendo graça não está limitada ao intelecto; (3) que dá glória ao Deus eterno e não se dá glória a Deus só com a razão, já que envolve toda a personalidade humana; (4) expressa-se em termos de afeto (2Tessalonicenses 2.10). Ora receber inclui afeto, implica assim em engajamento de afetividades (Romanos 10.9-10); (5) a falta de fé está ligada a uma disposição moral (João 5; João 8.33+; Hebreus 3; Efésios 4.17). A incredulidade é um estado do coração, não é um erro enquanto abordagem meramente racional.


Se não houver arrependimento não há fé verdadeira. João, o batista, pregava o batismo do arrependimento. E sem regeneração também não há fé. Os textos que nos levam a pensar assim são 1Coríntios 2.10-16, 1Coríntios 12.3; a experiência de Nicodemos (João 3) e Romanos 8.7.


Assim, a ideia de que o cristianismo tem base mítica nasce do desconhecimento do que significa a fé ou Revelação, enquanto processo que inclui coração e mente, arrependimento e regeneração. O processo de conhecimento da Revelação está ligado à obediência, que em última instância é disposição positiva do coração, enquanto totalidade da personalidade humana, arrependimento e regeneração de vida. E isto está longe da mitologia. 


A comunidade protestante se coloca sob o caráter incondicional do Deus eterno, mas situa-se na realidade da situação histórica. Por isso, as teologias que não entendem o chamado a serem proféticas, não podem ser levadas a sério. Então, é o caso de perguntar: que princípios formam o protestantismo? De que maneira o julgar e o transformar devem se unir? O protestantismo, enquanto princípio, deve viver na realidade da graça, e a luta dos reformadores não faria sentido se começassem a falar em estruturas sagradas da realidade. A hierarquia não pode se apoderar do direito à graça, levando os cristãos a se submeterem à autoridade na busca pela salvação. A fé é humana, mas não vem do humano, embora se realize no humano. A graça é pregada e assim vem a fé. Ter fé significa ser tomado e transformado pela graça.


Quatro princípios são determinantes para o protestantismo: (1) no protestantismo, o elemento religioso deve se relacionar com o elemento secular e se deixar relacionar com ele; (2) no protestantismo, o elemento eterno deve ser expresso em relação a situação presente, (3) no protestantismo, a realidade da graça deve ser expressa com ousadia e risco; (4) e, por fim, no protestantismo se expressa a atitude do realismo da fé. Por isso, o protestantismo entende as coisas e os eventos na relação que têm com o transcendente, isto significa falar a respeito do Deus eterno de tal maneira que não pareça mero objeto acima dos outros, mas realmente real. O poder formativo do protestantismo age quando a realidade é interpretada em relação com seu fundamento e seu sentido último. A justificação pela fé é, então, entendida a partir das situações-limite que a existência nos coloca.


A partir do que vimos, podemos dizer que tanto a mitologia da prosperidade quanto a mitologia da libertação têm sido utilizadas para fins políticos, mas de formas distintas e com objetivos muitas vezes opostos, devido às suas ênfases ideológicas e contextos sociais.


A mitologia da prosperidade não profere um Não à situação presente, ao contrário, faz o caminho do neoliberalismo e diz que a fé e as contribuições financeiras feitas à igreja levam à prosperidade material e ao sucesso pessoal. Essa visão promove uma relação direta entre fé e bem-estar econômico, ao afirmar que o shalom do Deus eterno se manifesta em riqueza e saúde. Ou seja, profere um Sim à situação presente.


Politicamente, a mitologia da prosperidade é usada para mobilizar uma base de seguidores que veem o sucesso pessoal e a prosperidade como resultado da intervenção divina e da própria fé. Líderes políticos associados a essa corrente religiosa tendem a atrair eleitores com promessas de crescimento econômico e de uma política que valorize o mérito individual. Esse discurso pode ser especialmente atrativo em contextos de desigualdade social, onde as pessoas buscam alternativas para melhorar sua situação econômica. Além disso, a ênfase na doação financeira pode levar a um apoio financeiro direto para campanhas ou lideranças políticas, tornando-se uma base de apoio eleitoral e econômico poderosa.


Por isso, estamos diante de uma mitologia do mercado da fé, ou seja de uma mitologia que se baseia na mercantilização da fé, enfatizando uma abordagem que condiciona a fé à obtenção de benefícios materiais.


Já a mitologia da libertação, desenvolvida principalmente na América Latina nas décadas de 1960 e 1970, relacionou a mensagem cristã com a justiça social e a defesa dos pobres e oprimidos. Nesse sentido, apresentou um Não à situação presente, mas não levantou o Sim do Reino de Deus. Dissolveu este Sim na ideologia que via o cristianismo como um chamado para a transformação social, onde a missão da Igreja passou a ser lutar por uma sociedade mais justa.


Politicamente, a mitologia da libertação tem sido associada a movimentos de esquerda e a políticas que buscam diminuir a desigualdade e promover direitos sociais. Essa mitologia foi fortemente utilizada por movimentos populares e governos que se voltaram para políticas de bem-estar social, reforma agrária e outras iniciativas em favor das classes mais desfavorecidas. Durante ditaduras militares na América Latina, muitos líderes religiosos ligados à mitologia da libertação acabaram sofrendo perseguições e se tornando figuras de resistência política, o que fortaleceu sua imagem e mensagem.


Assim, podemos dizer que estamos diante de uma mitologia que parte de aspectos ideológicos e políticos na interpretação e prática da fé, focando questões econômicas e sociais como fundamentos de sua missão cristã.


Tais mitologias podem ser politicamente mobilizadoras, mas servem a diferentes projetos. A mitologia da prosperidade tende a reforçar valores de mérito individual e busca de prosperidade pessoal, enquanto a mitologia da libertação promove uma visão coletiva e social, enfatizando a necessidade de transformações estruturais. Em ambos os casos, tais mensagens não são teológicas, porque não são proféticas, ao contrário, são adaptadas e manipuladas para sustentar plataformas políticas, que se beneficiam da influência e do apelo emocional que a fé cristã exerce sobre as comunidades. 


Algumas considerações finais


Quando a teologia não é vida, no sentido de ir às raízes das situações do momento atual, quando não é profética, sem o Não e Sim do clamor profético, ela se restringe a mero olhar humano, e nesse sentido é mitologia.


Temos, então, a mitologia enquanto manipulação, a serviço de fins políticos. E esse é um fenômeno antigo, onde líderes ou grupos utilizaram crenças e narrativas quase cristãs para fortalecer seu poder, legitimar suas ações ou mobilizar seguidores. Esse tipo de uso manipulado da teologia enquanto pensamento meramente humano tem sido uma prática constante ao longo da história e é perceptível em diferentes contextos culturais e políticos.


Para finalizar, gostaria de dizer que o cristianismo, e aqui realço o protestantismo, é em sua essência uma experiência transcendente ao nível da materialidade humana, uma experiência que acontece em todos os tempos e em todas as situações e é em si mesmo independente de formas sociais e econômicas. 


Nesse sentido, o cristianismo não pode ser identificado com um tipo determinado de organização social, em detrimento de seu caráter transcendente e universal. Mas, ao mesmo tempo, o cristianismo é portador de poder e oferece à humanidade uma mensagem de vida, de conhecimento e de verdade, tanto para a pessoa como particularidade, como para a sociedade como um todo. 


Exatamente por isso, apresenta-se capenga toda forma de cristianismo, e por extensão toda teologia, que se fecha na pura interioridade. Também não se pode dizer que o cristianismo é um movimento que mecanicamente parte da interioridade em direção à exterioridade, apropriando-se de formas culturais ou simplesmente passando ao largo delas. Na verdade, ele dá forma às expressões culturais e, concomitantemente, toma novas formas a partir delas. Dessa maneira, o cristianismo está ligado à interpenetração de formas de consciência filosófica, à experiência estética e ao ideal ético de pessoalidade e, logicamente, aos grandes modelos sociais e econômicos. 


Por isso, todas as questões políticas convergem para uma mesma questão: a humanidade deve ter origem nas profundezas de um novo conteúdo, o Novo Ser, Jesus o Cristo, onde será superada a oposição entre pessoa e comunidade. Onde um novo conteúdo, no mais além da história, será produto do kairós e da graça. 


Montpellier, 27 de novembro de 2024


Notas

Enrique Dussel, Interpretação histórico-teológica, in Caminhos da libertação latino-americana, vol. I, São Paulo, Paulinas, 1985, p. 15.

2. Ἐν ἀρχῇ ἦν ὁ λόγος, καὶ ὁ λόγος ἦν πρὸς τὸν θεόν, καὶ θεὸς ἦν ὁ λόγος. No princípio era o Logos, o Logos estava com Deus, e Deus era o Logos. Evangelho de João 1.1.




mardi 26 novembre 2024

Política e espiritualidade

Política e espiritualidade 
A justiça enquanto mediação do amor e do poder

Jorge Pinheiro 

Em 1977, morei a metade do ano em Lisboa. Era o terceiro ano da revolução dos cravos e o país vivia o caos. Em meio daquela confusão de partidos e propostas políticas, o humor e a criatividade dos anarquistas portugueses era um caso à parte. E entre as histórias que divulgavam, havia uma que pode servir de introdução ao tema de nossa conferência. Contavam eles que certa vez uma criança perguntou ao pai: • Papai, o que é a política? Ao que o pai respondeu: • Eu trago o dinheiro para casa, por isso sou o capitalismo. A tua mãe controla o dinheiro, portanto é o governo. O vovô quer que tudo funcione a contento, por isso é o sindicato. Nossa empregada é a classe operária. E como estamos preocupados com você, para que esteja bem, você é o povo. E o teu irmãozinho é o futuro. Entendeu? O garoto pensou e disse ao pai que precisa pensar um pouco mais. E foi para a cama dormir. Durante a noite, acordou com o choro do irmão que estava com a fralda suja. Foi ao quarto do avô, que roncava a sono solto. Como não sabia o que fazer foi ao quarto dos pais. Viu a mãe, que dormia profundamente... Dirigiu-se, então, ao quarto da empregada e viu seu pai com ela. Eles, porém, não se deram conta da presença do menino. Frustrado porque não conseguiu falar com ninguém, o garoto voltou para a sua cama. Na manhã seguinte, o pai perguntou se ele já sabia explicar o que era política. Revista Eletrônica Correlatio n. 6 - Novembro de 2004 Política e espiritualidade: a justiça enquanto mediação do amor e do poder 191 • 

Sim, responde o menino: o capitalismo aproveita-se da classe operária, o sindicato não vê nada, o governo dorme, o povo é ignorado e o futuro fica na merda. Sem dúvida, esta leitura anarquista será avaliada no final desta conferência, mas agora precisamos entender de forma mais acadêmica o que significa política. A palavra política nos leva a quatro conceitos distintos: a doutrina do direito e da moral, a teoria do Estado, a arte de governar e o estudo dos comportamentos intersubjetivos. Na abordagem que estamos fazendo, ao analisar as imbricações entre espiritualidade e política, nos interessa abordar a política enquanto doutrina do direito e da moral, pois a partir daí temos elementos para entender, também, a política sob as demais perspectivas. O conceito de política enquanto doutrina do direito e da moral foi exposto por Aristóteles na Ética. Para o filósofo grego, a investigação daquilo que deve ser o bem pertence a mais arquitetônica das ciências. Pois, a política determina quais são as ciências necessárias nas cidades, quais as que cada cidadão deve aprender e até que ponto. [1] 

Outro filósofo que desejamos utilizar nesta exposição, conscientes de que estamos deixando de lado muitos outros que analisaram a questão, é Spinoza. Em seu prefácio à quinta parte da sua Ética, onde trata da liberdade humana, Spinoza afirmou que sua preocupação era a potência da razão e a liberdade de alma ou beatitude. Nesse sentido, em Spinoza não podemos separar política e ética, ou como diz em seu Tratado teológico-político, “a justiça e todos os preceitos de razão, inclusive o amor ao próximo, somente pelos direitos de dominação recebem força das leis e ordenanças, ou seja, do decreto daqueles que possuem o direito de reger”. [2] 

A partir de Aristóteles e de Spinoza podemos dizer que a política, enquanto conhecimento que trata dos aspectos práticos da ética, e que se apóia na antropologia filosófica ou teológica, por necessitar definir uma concepção de ser humano, remete a questões como a natureza e alcance da liberdade, os diversos tipos de liberdade e a natureza e formas de justiça. Temas como estrutura e forma de governo, legitimidade do poder, fontes do poder, direitos e deveres dos membros de uma comunidade, Revista Eletrônica Correlatio n. 6 - Novembro de 2004 192 Jorge Pinheiro assim como as relações entre os indivíduos e o Estado não podem ser entendidos e conscientemente vividos sem a compreensão das questões éticas e morais que aí estão presentes. Assim, entendemos que a política deve responder de forma prática à pergunta pelo bem dos membros de determinada comunidade, traduzindo esta ação nas questões do poder e das estruturas de governo. Mas e a espiritualidade, tem algo a dizer à política? De forma abrangente podemos dizer que espiritualidade é aquela relação do ser com a transcendência, que dá sentido à vida. O ser humano, unidade multiforme, tem em seu espírito não uma dimensão parcial da vida, mas como afirmava Lossky, irredutível. [3] 

Nesse sentido, o espírito é a totalidade da vida. Nas situações de perda, falta de sentido e de ameaça à vida também há experiência com a transcendência, pois mesmo na negação dela há um sentido transcendente. Quando assistimos, por exemplo, a um filme como Gandhi, [4] constatamos que o ser humano, não importando credo religioso, tem atributos potenciais para a espiritualidade. Nas religiões ditas primitivas, onde a distinção entre sagrado e profano é menos nítida, embora exista, é mais difícil para o cientista da religião delimitar e definir nessas comunidades o conceito de espiritualidade. Mas nas sociedades mais complexas, naquelas religiões onde o espaço e o tempo do sagrado e profano são mais bem definidos, envolvendo escolha, disciplina e prática levam a experiências avançadas de espiritualidade. Rudolf Otto, no seu livro O Sagrado classifica a experiência religiosa como algo intenso e profundo, misterium tremendum, já que traduz o numinoso para a realidade do crente, que diante daquilo que o esmaga desenvolve senso de temor. [5] 

Esse temor é um medo qualitativo, motivo para reflexão e energia que transformado em poder faz dele um adorador. Tais experiências com o sagrado encorajam e incorporam no adorador aquilo que lhe é distinto. Mas, apesar dessa relação de aparente intimidade, de relacionamento, permanece sempre o abismo entre adorador e sagrado. Dessa maneira, este desejo de saltar sobre o abismo que separa humano e sagrado é em última instância o móvel que dará origem à espiritualidade, embora não seja propriamente espiritualida- Revista Eletrônica Correlatio n. 6 - Novembro de 2004 Política e espiritualidade: a justiça enquanto mediação do amor e do poder 193 de, pois se faz presente na busca do artista, no amor do filósofo pela sabedoria e, porque não, nos anseios da juventude. A busca frenética de bens e posses materiais, tão característica da sociedade ocidental no século 20, favorece a redescoberta da espiritualidade como experiência de vida coerente e recomendável. 

Logicamente, dentro do próprio cristianismo, antigas correntes heterodoxas, como o gnosticismo, o mitraísmo e o maniqueísmo, herdeiras do pensamento oriental, assim como aquelas que buscavam a regeneração do mundo, herdeiras das religiões helênicas de mistério, ganharam popularidade por suas práticas ascéticas. E influenciaram, posteriormente, ainda que indiretamente, a espiritualidade dos pais do deserto e o monasticismo erudito dos capadócios, e de seus três grandes expoentes, Basílio, Gregório de Nissa e Gregório de Nazianzo. 

Esse processo, que a partir dos pais do deserto e dos capadócios vinha sofrendo uma mutação fundamental, a passagem da espiritualidade enquanto experiência pessoal e exclusiva a experiência comunitária e de piedade cristã, será expandido e ocidentalizado por Jerônimo, com a defesa do estudo histórico das Escrituras, Tertuliano, com seu olhar de jurista romano e, sobretudo, com Agostinho ao desenvolver na Cidade de Deus, nos livros 13 e 14, a idéia da participação no crente na vida divina através da graça. Mas será com Gregório Magno (540-604), pai da espiritualidade medieval, que sistematizou o monasticismo ocidental e defendeu que a busca da visão de Deus implica em pureza de coração, humildade e serviço, que a espiritualidade, embora aparentemente enclausurada, transpõe os marcos da individualidade e passa a olhar para as comunidades ao redor. Assim, lectio, meditatio, oratio e intento nortearão os caminhos da espiritualidade na expansão do cristianismo no mundo bárbaro. A partir desse momento em que a espiritualidade torna-se também prática e o caminho para Deus passa pelo serviço ao próximo, a espiritualidade tem algo a dizer à política. 

Nesse sentido, a espiritualidade dá sentido à vida cotidiana, torna-se além de mística e profética, política. Com a queda do governo militar brasileiro ressurgiu entre os evangélicos brasileiros a discussão sobre a responsabilidade política da comunidade cristã. Foi e é importante para o cristianismo brasileiro que tal discussão se faça, mas ainda faltam aos pronunciamentos evangélicos Revista Eletrônica Correlatio n. 6 - Novembro de 2004 194 Jorge Pinheiro consciência e maturidade da responsabilidade política que devem ter. A comunidade evangélica ainda tem que ultrapassar a espiritualidade privatizada em direção ao compromisso social efetivo e prático. Paul Tillich em seu trabalho Amor, Poder e Justiça [6] pode nos ajudar a entender o caminho a percorrer na construção desse diálogo da espiritualidade com a política. Para ele, toda e qualquer política tem sempre uma mesma essência, que é o uso do poder. [7] “L’être, c’est le pouvoir de l’être. Mais même dans son emploi métaphorique, le pouvoir suppose um objet sur lequel il peut exercer et démontrer son pouvoir”. [8] 

Por isso, o poder determina os caminhos da sociedade. E que será chamado de poder político porque recorre à autoridade social instituída e possibilita ao Estado exercer coerção em nome do direito dos cidadãos. As convicções pessoais acerca da soberania de Deus e do Cristo, que conquista principados e potestades, têm profundas implicações no modo em que pensamos a política. Assim, a espiritualidade privatizada ofusca o caminho a seguir e mascara práticas imorais através de atitudes aparentemente piedosas. De novo, voltemos a afirmação de Tillich, que de certa forma já tinha sido exposta por Spinoza: não há política sem o uso de poder. Embora tal afirmação seja quase óbvia, é comum encontrarmos cristãos que apresentam propostas sobre o reino de Deus e políticas que buscam uma ordem política onde o amor sem poder possa superar o poder sem amor. Ao analisar tais propostas, que ressuscitaram no século 20 a teoria social anabatista, que contrapõe as políticas de poder ao amor cristão, vemos que para esses evangélicos é impossível aceitar tais políticas e viver o estilo de vida do Jesus crucificado. Chamam à igreja a criar uma comunidade nova e a rejeitar qualquer forma de violência, representada na ordem econômica e política sob o poder do Estado. Mas ao rejeitarem as políticas de poder da sociedade, de fato estavam aceitando qualquer uso do poder, pois não defenderam uma retirada do mundo ou um abandono da missão da igreja no mundo. Neste sentido, Revista Eletrônica Correlatio n. 6 - Novembro de 2004 Política e espiritualidade: a justiça enquanto mediação do amor e do poder 195 diferiam dos fundamentalismos separatistas. 

O que estavam propondo era a subordinação radical dos poderes do mundo ao Cristo. Acreditavam que o fracasso da política criaria as bases para a manifestação do poder de Deus através do testemunho da comunidade cristã, que enquanto agente profético apontava o caminho da redenção do mundo. Mas o que deve ser reconhecido é que tal pensamento faz crítica política, mas rejeita envolvimento e prática políticas como estratégia. O que em última instância significa uma estratégia apolítica que rejeita o poder, rejeitando também a política. Ora, se a comunidade evangélica tem uma moral política, deve exercer poder e utilizar os meios que possibilitem chegar aos fins que busca. Rejeitar o poder é rejeitar políticas. Tal rejeição pode até ser aceita, desde que seus agentes tenham clara a opção que estão fazendo. O problema é que fizeram uma opção pela renovação da consciência moral da comunidade evangélica, eles próprios rejeitaram a política como meio de viabilizar a opção social escolhida. 

Ora, enquanto a consciência evangélica acreditar que a omissão diante da política e do poder favorece à instalação do reino de Deus, teremos o apoliticismo como política evangélica, e isso só fortalece os grupos instalados no poder. E, ao contrário do que pretendem modernos fundamentalismos, não vai estabelecer neste mundo o reino do Cristo. Se não é possível falar de política, sem falar de poder, fica uma outra questão, que tem a ver com o pensamento cristão: amor e poder são compatíveis? A pergunta procede porque o cristão e a espiritualidade pós-gregoriana remetem à prática e ao serviço ao próximo. Mas, sabemos que em nome do amor, da espiritualidade e do serviço ao próximo muitos cristãos negam a possibilidade de todo e qualquer poder. “... pouvoir de l’être n’est pas une identité morte, mais lê processus dynamique dans lequel l’être n’est se separe de lui-même et retourne à lui-même. Le pouvoir,d’autre part, est d’autant plus grand, que la séparation vaincue a été plus grande.Lê processus par lequel est reuni ce qui était separe s’appelle l’amour. Plus il y d’amour réunificateur, plus il y a de non-être vaincu, et plus il a de pouvoir d’être. L’amour est la base, non la négation du puvoir”. [9] Revista Eletrônica Correlatio n. 6 - Novembro de 2004 196 Jorge Pinheiro Sabemos, como nos mostra Tillich, que o amor do qual estamos falando é um ato da vontade. Não se pode forçar uma pessoa a amar ninguém. Porém, atos de ordem política contêm elementos involuntários. 

Assim, porque o poder do Estado é associado com ações que vão ou estão fora de nossa vontade e o ato de amor associado com ações do querer, concluímos que a ação do Estado extrapola o amor porque este não pode ser forçado. Outro fato importante, é que o amor é algo que deve ser mediado pessoalmente. Como a natureza voluntária do amor necessita a existência de uma pessoa que o ative, o amor sempre é pessoal. O Estado, como qualquer outra ordem social instituída, tem uma existência objetiva e alcança seus fins indiscriminadamente. A relação do cidadão com o Estado é eu/instituição, em lugar da relação eu/você, que possibilita a mediação pessoal que ativa o amor. Além disso, o amor é sempre sacrificial. Ou seja, possibilita ações que a despeito dos meus interesses particulares, imediatos, responde ao bem-estar do outro. Conscientemente, é um perder para que outro ganhe. Sacrificamos direitos, sem estar forçados por obrigação legal, para que o outro seja beneficiado. Assim, por ser livremente determinado, o amor vai além de uma obrigação moral ordinária. Cumprir obrigação moral é responder à necessidade moral, é um ato de dever em lugar de um testemunho moral livre. É importante entender que esse processo de ir além da obrigação moral envolve, como paradoxo, uma vontade moral implícita. Resumindo, podemos dizer que o amor é voluntário e livremente entregue, que envolve volição moral, deve ser mediado pessoalmente, é sacrificial. 

E, finalmente, o amor vai além do dever ou da obrigação moral, embora implique, paradoxalmente, em obrigação moral ou realização de um dever de origem. Mas política, por outro lado, envolve servidão involuntária. Sua natureza implica no uso de coerção e força para alcançar seus fins. É organização formal e opera impessoalmente. Os políticos e aqueles que atuam ao nível do Estado se ocupam de ações que levam terceiros ao sacrifício, por isso a necessidade da força e da coerção e, em última instância, do próprio Estado. A maioria da população geralmente se considera satisfeita quando vive sob determinada ordem política que Revista Eletrônica Correlatio n. 6 - Novembro de 2004 Política e espiritualidade: a justiça enquanto mediação do amor e do poder 197 pelo menos responde às exigências de sua obrigação moral. E quando isso não acontece nos sentimos tentados à rebelião contra o Estado, a fim de exigir dele a realização daquilo que consideramos sua obrigação moral. 

Fazendo assim agimos no sentido de que não se torne totalitário, ou seja, negando os limites de seu poder de Estado ou passando por cima das obrigações que tem com os cidadãos. Por isso, usar o poder do Estado como meio de realizar o amor entre os cidadãos é um contra-senso, pois não podemos forçar ou coagir ninguém ao amor. Tal coesão destruiria também a obrigação moral do Estado, que baliza a diferença entre poder limitado e governo totalitário. Dado a dualidade entre poder e amor e o conflito aparente entre poder sem amor e amor sem poder, como nos situaremos frente à polí- tica? Colocada a questão nestes termos, de fato é muito difícil escolher entre ser um castrado político, mas cidadão do reino, e ser um político atuante à margem da salvação. Como então seguir o caminho do amor cristão sem rebaixar a nobreza do amor no altar do poder? Há um conceito, presente na teologia cristã, que nos leva a alternativas de reconciliação entre poder sem amor e amor sem poder. É o conceito de justiça. 

A recusa em reconhecer as reivindicações da justiça como universais e invioláveis, cobrou um alto preço, no correr da história, à política e à teologia em termos da própria integridade da igreja. Por exemplo, a teologia de Albrecht Ritschl sofreu deste erro. Ritschl contrapôs poder sem amor e amor sem poder. Fazendo assim, criou um sistema teológico que contrastou o Deus de poder do Antigo Testamento ao Deus de amor do Novo Testamento. No processo abandonou o conceito do julgamento de Deus e retribuição aos pecadores, adotou uma visão universalista de salvação e passou a ver na igreja um amor moral que nada de substantivo apresenta. Ao nível prático, o amor moral torna-se, então, irrelevante para as questões políticas porque, nas palavras de Reinhold Niebuhr, apresenta a lei de amor como solução simplória para qualquer problema da sociedade. [10] Por isso, o conceito de justiça passa a ter tanta relevância para o cristão quanto o conceito de amor. É necessário reconhecer que as reivindicações de justiça são universais, eternas e objetivas, e têm como fonte a própria pessoalidade do Revista Eletrônica Correlatio n. 6 - Novembro de 2004 198 Jorge Pinheiro Deus justo. 

Tal afirmação, se por um lado, traduz o fato teológico de que a justiça de Deus se faz manifesta nas ordenanças da criação, por outro nos leva a perguntar porque os elementos substantivos e características de justiça nunca foram consensuais para a humanidade? A definição mais aceita de justiça é o de dar a toda pessoa aquilo que por direito lhe pertence. Mas aí de novo temos um problema: o que por direito lhe pertence? Esta pergunta nos obriga, enquanto cristãos evangélicos, a analisar com atenção nosso conceito tradicional de justiça. “La justice est la forme dans lequelle lê pouvoir de l’être se réalise, la justice doit être en rapport avec la dynamique du pouvoir. Elle doit être capable de donner une forme aux rencontre de l’être avec un autre être. Le problème de la justice dans la recontre vient du fait qu’il est impossible de prédire comment s’organisera le rapport des forces au sein de telle rencontre. A chacun des moments, il existe de nombreuses possibilités. Et chacune de ces possibilités demande une forme particuliére”. [11] Assim, conforme Tillich, as reivindicações de justiça só podem ser operacionais numa comunidade política se forem definidas com um grau significante de particularidade. Justiça, nas palavras de Niebuhr, requer julgamentos distintos de reivindicações contraditórias. [12] 

Justiça como uma abstração não basta. É necessário trabalhar fora da compreensão de justiça no particular, para não cair na armadilha do moralismo político, quando não se tem nada a oferecer quando se fala de forma idêntica em tempos, espaços e situações particulares diferentes. Um exemplo clássico da questão está presente na Política de Aristóteles. Aristóteles diz que se faz justiça quando se dá a cada cidadão aquilo que lhe é por direito. Dois problemas nascem dessa afirmação: se todas as pessoas têm igualdade moral, então essa igualdade deve se estender a todo grupo social, às relações econômicas e políticas em que se fazem presentes. E se as pessoas são desiguais nas contribuições que fazem à sociedade, então essas desigualdades devem se traduzir nos grupos sociais e nas relações econômicas e políticas. Ambos os argumentos, sem dúvida, têm suas razões de ser. E, no século 20, fizeram parte do debates político de entre socialistas e liberais. Revista Eletrônica Correlatio n. 6 - Novembro de 2004 Política e espiritualidade: a justiça enquanto mediação do amor e do poder 199 

Por encontrar dificuldades na formulação prática do conceito de justiça, a teoria política evangélica contemporânea tem rejeitado o conceito de justiça universalmente conhecido como ordenança da criação, enquanto compreensão de que todas as pessoas são imagem de Deus e têm um conhecimento do bem. Donde, todas as pessoas compreendem a necessidade de justiça. E defendem um novo conceito, de ordenança da redenção. Para esses cristãos, devido à queda humana, não existe um conhecimento seguro de justiça fora da revelação. Na verdade, é muito difícil discutir quando se parte da natureza caída e da crença de que a justiça era perfeita antes da queda. Apesar dessa leitura soteriológica, acredito, assim como Tillich, que a melhor base para a compreensão da justiça ainda está no conceito da justiça que parte da ordenança da criação. Rejeitar a ordenança da criação como algo que está fora da razão, por não ser revelada, é um problema de epistemológico. Tal postura afirma que a razão não tem nada que dizer fora da revelação. Esta posição tem conseqüências práticas muito sérias para as estratégias de ação política, porque só a partir da fé e da revelação se pode falar com autoridade sobre justiça. Ou seja, os cristãos não podem, em política, se comunicar ou trabalhar com não-cristãos. Não pode haver nenhuma base secular no envolvimento político dos cristãos. Assim, quando nega o conhecimento natural do bem político, a única alternativa para o cristão é omitir-se, porque política é coisa mundana, caída, ou estabelecer uma política cristã sectária. 

A leitura da justiça a partir da universalidade da imago Dei responde aos questionamentos contemporâneos levantados pelos cristãos em relação à política, enquanto a leitura a partir das ordenanças da redenção isola, aliena e separa o cristão da prática política. O movimento evangélico fundamentalista buscou de forma acrítica impor normas a partir da revelação, definir caminhos de retidão para a sociedade, com a finalidade de atingir os não-crentes. Isto tem levado às cruzadas fundamentalistas norte-americanas que buscam fazer dos Estados Unidos uma nação cristã à força. E no Brasil levou à omissão que favoreceu a presença de políticas conservadoras e de direita dentro das igrejas. Outros pensadores evangélicos, neo-ortodoxos, procuraram substituir as ordenanças da redenção pelas ordenanças crísticas, com a Revista Eletrônica Correlatio n. 6 - Novembro de 2004 200 Jorge Pinheiro finalidade de trazer o amor moral de Jesus para as normas de justiça, que seriam assim emprenhadas pelo espírito de amor. E o fundamentalismo anabatista e batista substituiu as ordenanças da redenção por ordenanças escatológicas, buscando a partir da moral do reino futuro, fazer todas as coisas novas e conquistar os poderes caídos. Ora, a justiça deve estar baseada em reivindicações universais de direito. Estabelecer justiça em base de autoridade sectária é violentar a compreensão de que todas as pessoas são imagem de Deus e têm um conhecimento do bem. 

Donde, todas as pessoas compreendem a necessidade de justiça. Ora, assim, justiça deve ser definida dentro do contexto de uma determinada ordem social e deve ser aplicada em termos de particulares, pois fundamentar o argumento da justiça apenas na pessoa não é o bastante. Devido à universalidade das normas de justiça e à universalidade da consciência de justiça, uma pessoa pode ter procedimentos e práticas que aprofundem políticas e programas que favorecem a justiça. É exatamente isso que os direitos civis buscam trazer para as democracias constitucionais. É o reconhecimento de que os meios empregados não devem violentar os fins procurados. É necessário, ainda, reconhecer que as normas de justiça são objetivas e que elas existem independentemente de volição humana. Conseqüentemente, podem ser feitas reivindicações no nome de justiça e podem ser rejeitadas reivindicações no nome de justiça. Considerando que o amor deve ser volitivamente entregue, justiça exige reconhecimento independente da vontade humana. O Deus de amor também é um Deus de justiça, amor e justiça não podem ser contrapostas. O amor pode ir além da justiça, mas nunca pode buscar menos que a justiça. O amor pode inspirar reverência à justiça, mas nunca pode ser desculpa para esquecer as reivindicações da justiça. Se a justiça é uma qualidade objetiva que estabelece direitos e obrigações, projetos podem e devem ser desenvolvidos pelos indivíduos e sociedades para criar ações que sirvam as reivindicações de justiça. Dado o fato que nem todas as pessoas buscam a justiça de boa vontade, o poder pode ser usado legitimamente quando serve à causa de justiça. Revista Eletrônica Correlatio n. 6 - Novembro de 2004 Política e espiritualidade: a justiça enquanto mediação do amor e do poder 201 Dizemos que o amor não pode usar o poder para alcançar seus fins, mas que a justiça têm que usar o poder para alcançar seus fins. 

Tais distinções são necessárias porque não se pode dizer ao Estado que ame, porque suas ações têm por base o poder, e porque as reivindicações do amor estão arraigadas em reconhecimento pessoal e particular ao invés de normas universais de justiça. Como a igreja cristã proclama o Evangelho, sensibiliza a comunidade para as demandas da justiça. Conseqüentemente, permanece a justiça enquanto serviço de amor. Assim, usar o Estado como um instrumento de amor leva a um Estado sectário, quando não totalitário. Por causa disso, as normas distintivas da justiça são usadas para delimitar o que é meu e o que é teu. Negar a justiça em nome do amor é negar os direitos civis que são a base de qualquer governo constitucional. O conceito de justiça aliado aos de amor e poder apresenta as alternativas para o protestantismo evangélico ao pensar a ação política. A política, com base no poder, cumpre uma função legítima quando serve as reivindicações da justiça. Amar, sem rejeitar o poder, indo além dos direitos e deveres estabelecidos pela justiça possibilita um testemunho de justiça e uma motivação moral que coroam o ato justo. Amar, através da mediação pessoal, complementa a justiça em suas demandas objetivas. Essa exposição carece de ilustrações. 

Por isso, vamos ouvir um ex-ativista da Juventude Universitária Católica e ex-combatente da Ação Popular, Herbert de Souza, mais conhecido como Betinho. Em artigo publicado em 1993, Betinho afirmou que a “fome é exclusão. Da terra, da renda, do salário, da educação, da economia, da vida e da cidadania. Quando uma pessoa chega a não ter o que comer, é porque tudo o mais já lhe foi negado. É uma forma de cerceamento moderno ou de exílio. A morte em vida. E exílio da terra. A alma da fome é política”. [13] É interessante que o ativista cristão e ex-combatente marxista afirme: a alma da fome é a política. Mas que política? E ele explica: A história do Brasil pode ser vista de vários modos e sob muitos ângulos, mas para a maioria ela é a história da indústria da fome e da miséria. Um modo perverso de dividir o mundo em dois, produzindo um gigantesco apartheid. Nesse campo, fizemos alguns milagres de desenvolvimento. Revista Eletrônica Correlatio n. 6 - Novembro de 2004 202 Jorge Pinheiro Um dos maiores PIB do mundo junto com a pobreza e a miséria mais espantosa. Aqui não houve lugar para o acaso. Tudo foi produzido como obra calculada. Fria. O resultado está aí diante dos olhos de todos. Uma parte ostensiva, rica, branca, educada, motorizada, dolarizada. Outra parte imensa na sombra, negra, analfabeta, dando duro todos os dias, comendo o pão que o diabo amassou em cruzeiros, reais. Dois povos no mesmo país, na mesma cidade, muito próximos em geografia e infinitamente distante como experiência de humanidade. É gente que começa o dia sem o que comer e chega à noite sem nada. Pode-se imaginar o quadro que é o de todo dia para milhões de seres humanos: a fome de comida e de tudo. A essa altura da vida da humanidade é incrível que isso aconteça. 

Como morrer de fome ao lado de 70 milhões de toneladas de grãos, de 8,5 milhões de hectares de terra, se todos esses brasileiros miseráveis ficariam saciados só com os 20% do desperdício? O clamor de Betinho é um clamor para que a justiça dê sentido humano à política. E ele, já morto, acreditava nessa possibilidade, quando diz no artigo: É assustador perceber com que naturalidade fomos virando um país de miseráveis, com que rapidez fomos produzindo milhões de indigentes. Acabar com essa naturalidade, recuperar o sentido de indignação frente à degradação humana, reabsolutizar a pessoa como humana e eixo da vida da ação política é fundamental para transformar a luta no Brasil contra a fome e a miséria num imenso processo de reformulação do Brasil e de nossa própria dignidade. Por isso acabar com a fome não é só dar comida, e acabar com a pobreza não é só gerar emprego; é reconstruir radicalmente toda a sociedade, começando por incorporar agora 32 milhões de seres humanos ao mapa da cidadania. Por isso o ato de solidariedade, por menor que seja, é tão importante. É um primeiro movimento no sentido oposto a tudo o que se produziu até agora. Uma mudança de paradigma, de norte, de eixo, o começo de algo totalmente diferente. Como um olhar novo que mostra Revista Eletrônica Correlatio n. 6 - Novembro de 2004 Política e espiritualidade: a justiça enquanto mediação do amor e do poder 203 todas as relações, teorias, propostas, valores e práticas, restabelecendo as bases de uma reconstrução radical de toda a sociedade. Se a exclusão produziu a miséria, a união destruirá a produção da miséria, produzirá a cidadania plena, geral e irrestrita. Democrática. Isso foi dito há dez anos. Luciano Mendes de Almeida [14] contextualiza o clamor místico, profético e político de Betinho. Diz o pastor: Considero ainda mais grave a condição de quem não alcança ou perde o sentido da vida (...). Há um vazio ontológico pela falta de discernimento dos verdadeiros valores e pela solidão profunda de quem não se abre à presença e ao amor de Deus. 

O ensinamento de Jesus dissipa as trevas e dúvidas e anuncia a boa nova, valores, critérios e atitudes que dão pleno sentido à vida. A injustiça será vencida pelo reconhecimento da dignidade da pessoa a luz de Deus, convertendo-os à convivência fraterna e à partilha. O perdão do Evangelho é a única resposta definitiva contra a violência e inicia um processo de apreço, respeito e diálogo, superando toda exclusão social e aproximando-nos uns dos outros, como irmãos e irmãs, na concórdia e na paz. As palavras pastorais de Luciano Mendes de Almeida podem parecer, à primeira vista, que estão longe da ação política, mas na verdade iluminam a história anarquista contada no início dessa conferência. Apesar de seu humor e tom crítico, a leitura anarquista da política carece de algo fundamental: a busca do bem e a exigência de justiça. Ao negar a justiça, a política torna-se escrava do poder. Perde o eixo da vida da ação política, conforme afirmou Betinho. Ou, agora nas palavras de Luciano Mendes de Almeida, a injustiça será vencida pelo reconhecimento da dignidade da pessoa, e esta é uma tarefa política. Para conquistar tal dignidade, o poder deve ser exercido. Assim, as análises ontológicas de Tillich nos levam à compreensão de que a síntese deste diálogo pertinente entre política e espiritualidade é a justiça. 

Revista Eletrônica Correlatio n. 6 - Novembro de 2004 204 Jorge Pinheiro notas [1] Aristóteles, A Ética, São Paulo, Atena Editora, 1950, 1ª parte, Livro 1o, II, 2-4, pp. 15 e 16. [2] Benedict de Spinoza, Writings on Polital Philosophy, New York, Appleton Century Crofts Inc., p. 51. [3] Vladimir Lossky, A l’image et la ressemblance de Dieu, Paris, 1967, p. 118. [4] Gandhi, 1982, filme dirigido por Richard Attenborough, com Ben Kingsley e Candice Bergen. [5] Rudolf Otto, O Sagrado, Lisboa, Edições 70, 1992, pp. 21-22. [6] Paul Tillich, Amour, pouvoir et justice, Analyses ontologiques et applications éthiques, Revue d’Histoire et de Philosophie Religieuses, Paris, Presses Universitaires de France, 1963 et 1964, números 4 et 5. [7] Idem, op. cit., no. 4, p. 334. [8] Idem, op. cit., no. 4, p. 339. [9] Idem, op. cit., no. 4, pp. 355-356. [10] Reinhold Niebuhr, Políticas, ed. Harry R. Davis e Robert C. Good, Scribners, 1960, p. 163. [11] Idem, op. cit., no. 4, p. 360. [12] Reinhold Niebuhr, Amor e Justiça, ed. D. B. Robertson, World, 1967, p. 28. [13] Herbert de Souza e Carla Rodrigues, A Alma da Fome é Política, artigo publicado no Jornal do Brasil, 12 setembro de 1993, apud, Ética e cidadania, São Paulo, Moderna, 1995, pp.22-25. [14] Dom Luciano Mendes de Almeida, A quem iremos?, Folha de S. Paulo, 6/3/2004, p. 2.