Hevel e Qayn
Jorge Pinheiro
"Adão teve relações com Eva, a sua mulher, e ela ficou grávida. Eva deu à luz um filho e disse: — Com a ajuda de Deus, o Senhor, tive um filho homem. E ela pôs nele o nome de Caim. Depois teve outro filho, chamado Abel, irmão de Caim. Abel era pastor de ovelhas, e Caim era agricultor. O tempo passou. Um dia Caim pegou alguns produtos da terra e os ofereceu a Deus, o Senhor. Abel, por sua vez, pegou o primeiro carneirinho nascido no seu rebanho, matou-o e ofereceu as melhores partes ao Senhor. O Senhor ficou contente com Abel e com a sua oferta, mas rejeitou Caim e a sua oferta. Caim ficou furioso e fechou a cara. Então o Senhor disse: — Por que você está com raiva? Por que anda carrancudo? Se tivesse feito o que é certo, você estaria sorrindo; mas você agiu mal, e por isso o pecado está na porta, à sua espera. Ele quer dominá-lo, mas você precisa vencê-lo. Aí Caim disse a Abel, o seu irmão: — Vamos até o campo. Quando os dois estavam no campo, Caim atacou Abel, o seu irmão, e o matou". (Gênesis 4:1-8 NTLH)
O relato da história de Caim e Abel mostra o embate entre dois irmãos e dois modos de vida: de um lado temos o agricultor e de outro o pastor. A história dos dois irmãos personificam a fratura da "imago Dei" e a consequente alienação humana, em sua diversidade, distanciamento do Criador, alienação psicológica, sociológica e ecológica.
Quando nasce Caim, Eva feliz diz: alcancei do Senhor um homem. Que é um trocadilho com o verbo "qanah", adquirir, que vai dar a palavra Qayn. Em relação a Abel, alguns rabinos consideram que o nome vem da palavra "hevel", que significa suspiro, vão, no sentido de que teve vida curta e não deixou filhos.
A história do choque entre os dois irmãos, entre duas espiritualidades, conta que o Eterno recebeu de bom grado a oferenda de Abel porque ele "ofereceu as melhores partes ao Senhor". Enquanto Caim "um dia pegou alguns produtos da terra", ou seja, ofereceu com descuido, o que não lhe deu trabalho, o que tinha de sobra.
O Eterno valoriza a sinceridade dos sentimentos que gera a oferta e não o contrário, por isso ele disse "odeio, eu detesto as suas festas religiosas; não tolero as suas reuniões solenes. Não aceito animais que são queimados em sacrifício, nem as ofertas de cereais, nem os animais gordos que vocês oferecem como sacrifícios de paz. Parem com o barulho das suas canções religiosas; não quero mais ouvir a música de harpas. Em vez disso, quero que haja tanta justiça como as águas de uma enchente e que a honestidade seja como um rio que não para de correr". (Amós 5:21-24).
Assim a história dos dois irmãos apresentam a metáfora da fratura psicológica, social, ecológica e espiritual da humanidade.
1. Ao nível psicológico, Qayn e Abel apontem para o conflito entre o certo e o errado, entre realizar os desejos na natureza humana e viver a vontade de Deus. E neste conflito, quando a natureza humana é vitoriosa o embate resulta em morte, em fracionamento, em cisão do humano que somos.
Ao matar Abel, Qayn se torna um pária de si mesmo, um nômade marcado pela falta daquilo que constitui a vida plena, a personalidade livre da culpa. Passa a ser uma pessoa que constrói e avança distante de sua integralidade como ser humano. É ser dividido, fraturado.
2. Ao nível social, Qayn e Abel simbolizam duas humanidades, divididas, que se confrontam no correr da história.
É conflito permanente entre uma humanidade, simbolizada por Qayn, que se rebela, mata o irmão e através da violência assenhoreia-se da natureza, levando-a ao desequilíbrio e destruição; e outra humanidade, simbolizada por Abel, que procura a comunhão com seu Criador, com seus irmãos, e com a própria natureza.
3. Ao nível espiritual, e este é o principal centro do relato, Qayn e Abel apontam para uma fratura na alma humana em sua forma de se relacionar com o Deus Eterno.
Uma dualidade que definiu dois tipos de busca -- uma formal, padronizada por ações estereotipadas em valores próprios, e outra de sujeição e observância da vontade do Deus Eterno.
Espiritualmente, há uma divisão no âmago da alma humana, no relato do conflito entre Qayn e Abel. É uma parábola do ser humano que sacrifica uma parte de seu ser. Qayn de agricultor passa a andarilho para depois se tornar um construtor de cidades. E Abel de pastor torna-se símbolo de humildade e submissão e, num contexto espiritual, de mártir da entrega a Deus, da fé.
Caim é a metáfora de uma humanidade que mata dentro de si o Abel da entrega e da vida plena em sintonia com a vontade de Deus. E para não viver como andarilho, na solidão de si mesmo, Qayn funda uma cidade. É sua forma de dizer não à vontade de Deus, que considera injusta.
E por isso, podemos dizer: Abel, humilde e submisso, o primeiro mártir espiritual da humanidade, aponta para Cristo.
"Jesus foi com os discípulos para um lugar chamado Getsêmani e lhes disse: — Sentem-se aqui, enquanto eu vou ali orar. Então Jesus foi, levando consigo Pedro e os dois filhos de Zebedeu. Aí ele começou a sentir uma grande tristeza e aflição e disse a eles: — A tristeza que estou sentindo é tão grande, que é capaz de me matar. Fiquem aqui vigiando comigo. Ele foi um pouco mais adiante, ajoelhou-se, encostou o rosto no chão e orou: — Meu Pai, se é possível, afasta de mim este cálice de sofrimento! Porém que não seja feito o que eu quero, mas o que tu queres". (Mateus 26:36-39 NTLH)
"Ele tinha a natureza de Deus, mas não tentou ficar igual a Deus. Pelo contrário, ele abriu mão de tudo o que era seu e tomou a natureza de servo, tornando-se assim igual aos seres humanos. E, vivendo a vida comum de um ser humano, ele foi humilde e obedeceu a Deus até a morte — morte de cruz". (Filipenses 2:6-8 NTLH)
Eis o desafio. Seguir o caminho aberto por Abel -- humildade e submissão à vontade do Deus Eterno.
Eis o desafio. Seguir o caminho de Jesus -- abrindo mão de tudo para tomar a natureza de servo. E poder dizer: não se faça o que quero, mas o que tu queres.
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