mercredi 27 novembre 2024

Mitologias que ameaçam a fé

Mitologias que ameaçam a fé

Prof. Dr. Jorge Pinheiro

Pastor e executivo da Croix Huguenote na França


Uma introdução


No cristianismo, a ligação entre religião e política foi consolidada na Idade Média, quando a Igreja Católica e os Estados europeus em formação se uniam, com reis e imperadores afirmando que seu poder vinha de Deus, algo conhecido como direito divino dos reis. Isso tornava a figura do monarca sagrada e questioná-la era uma heresia. Com o tempo, líderes e movimentos reformadores, entre as quais a Reforma Protestante, surgiram em resposta a essa manipulação, criticando abusos e corrupção dentro da Igreja e dos Estados.


Na Modernidade, essas leituras, que se posicionam fora do chamado ao Reino de Deus, manipula homens e mulheres para fins políticos, utilizando símbolos e discursos religiosos para atrair apoio, a partir de temas sociais polarizados como aborto, casamento, ou identidade de gênero.


Hoje a globalização exclui e é mitologia que consome o mundo. É importante entender que mitologia não é mentira, mas o conjunto de narrativas que integram a cultura e identidade de um povo. O termo deriva do grego mythos (relato, história, fábula) e logos (discurso, estudo). Os mitos explicam fenômenos naturais, origens da humanidade, os ciclos da vida e da morte. E diante da globalização que exclui e da mitologia que engana, devemos fazer o mesmo que fizeram os cristãos dos primeiros séculos: assumir a comissão que nos foi entregue. É necessário proferir um Não ao tempo presente e um Sim ao Reino de Deus. 


E nessa crítica, neste Não, o fundamental é envolver-se na situação histórica concreta, ter a coragem de decidir e colocar-se sob julgamento, ao nível do particular. O cristão deve olhar o mundo com atenção. E a luta dos povos excluídos deve nos sensibilizar, pois estamos vivendo uma era de kairós, de tempo oportuno, de momento certo, da dimensão qualitativa do tempo, do instante ideal, que nos exige ser profetas. 


Assim, o clamor dos povos excluídos, em diáspora, por condições de vida dignos, são parte do clamor contra a opressão que caracteriza este início de milênio. Não é correto classificar os clamores dos povos em diáspora como simples conflito racial e religioso, ou como problema localizado em regiões distantes do globo. Ao contrário, hoje estamos vendo um clamor global dos desterrados e excluídos. Os clamores por liberdade dos povos em diáspora não se resumem em revoltas raciais e religiosas, se estivermos interessados em viver uma teologia da vida, que pratica a fraternidade cristã. 


Essas manipulações causam conflitos éticos, pois levantam a questão: a fé deve promover agendas políticas? Distorcem as mensagens das Escrituras. Além disso, essas práticas promovem divisões na comunidade, criando um clima de “nós contra eles”, desencadeando conflitos e intolerância.


  1. Por uma teologia da vida


Aqui devemos explicar o que entendemos por teologia e em que medida ela pode ser um instrumental para nosso desenvolvimento pessoal, assim como da sociedade. 


A teologia relaciona polos, a mensagem cristã e a interpretação dessa mensagem, que deve levar em conta a situação presente daqueles a quem se destina. Quando dizemos situação presente, estamos nos referindo as expressões científicas e artísticas, econômicas, políticas e éticas, através das quais as pessoas e grupos exprimem as suas interpretações da existência. 


Nesse sentido, a teologia deve dar respostas às perguntas implícitas na situação, não enquanto soluções definitivas, mas no sentido de procurar sínteses. Para isso, utilizamos o método da correlação, ou seja, a análise da situação humana por um lado, de forma que venham à tona perguntas; e as leituras que surgem a partir da Revelação da mensagem cristã, possibilitando respostas correlatas às perguntas colocadas pela própria existência.


  1. Que sentido tem a história? 


A princípio não aceitamos o fundamentalismo que vê a história desde um olhar negativo, nem a leitura otimista da história, presente no Iluminismo e no Marxismo. O cristianismo nos entrega uma promessa, a do Reino de Deus, que deve ser interpretado como dimensão histórica, mas também aquela dimensão que vai além da história. Dessa maneira, o sentido da história está na manifestação do Reino de Deus, enquanto reino da salvação em contraposição à história do mundo, quer enquanto diretrizes e movimento em direção à plenitude da história, que em sua dimensão além da história, transcendente, é a vida eterna.


Perguntas acerca das situações e respostas teológicas estão ligadas à existência. Por isso, construimos uma teologia onde seu referencial primeiro é o ser. Nesse sentido, fazemos uma fenomenologia política quando analisamos questões como o ser, a origem do pensamento político enquanto mito, e a partir daí procuramos trazer à tona os elementos não reflexivos do pensamento político.


Mas, para que a teologia direcione é necessário descobrir o sentido do presente histórico. E esse desvelar o sentido do presente histórico chama-se profecia, que etimologicamente, em grego, significa falar diante. Mas falar diante de quem? Ou como nos diz Dussel, falar "diante do povo, diante da assembleia dos cidadãos". Profecia é isso: falar ao povo da fé cristã real, quotidiana, falar do sentido dos acontecimentos presentes e apontar para o Reino de Deus. 


Mas devemos entender que a vida sempre nos coloca diante de situações-limite, ou seja, de ameaças à própria existência. Enfrentar as situações-limite é o diferencial do protestantismo. Esse posicionamento nasce em torno da justificação pela fé. A vida em liberdade significa a aceitação da exigência incondicional de realizar a verdade e fazer o bem. Quando reconhecemos a existência de situações-limite, devemos entender que somos chamados a julgar e transformar. E essa é a diferença entre um cristianismo  que vai às raízes e propõe a construção de uma teologia da vida, que não aceita aquela religião, dita cristã, que faz a defesa da hierarquia e do mito excludente. 


Aqui, devemos entender que a teologia da vida reflete teologicamente sobre o significado da vida humana. Ela articula a vida como valor fundante, que deve ser vivida com plenitude, em conformidade com os princípios éticos da Revelação.


Porém, pregou-se, por muito tempo, um cristianismo vazio de fraternidade, que não significava mais que o desejo de que os povos aceitassem passivamente o seu destino colonial. As nações industriais do Ocidente subjugaram culturas, nações e povos por razões econômicas. Essas ações de saques internacionais golpearam os continentes e são os responsáveis pelo baixo padrão de vida que prevalece em todo o mundo chamado subdesenvolvido. 


Nossa comissão, deve partir do programa de Jesus, base primeira para uma teologia da vida. Em Lucas 4 lemos "chegando a Nazaré, onde fora criado, entrou num dia de sábado, segundo o seu costume, na sinagoga, e levantou-se para ler. E foi-lhe dado o livro do profeta Isaías; e, quando abriu o livro, achou o lugar em que estava escrito: O Espírito do Senhor é sobre mim, Pois que me ungiu para evangelizar os pobres. Enviou-me a curar os quebrantados de coração, a pregar liberdade aos cativos, e restauração da vista aos cegos, a pôr em liberdade os oprimidos, a anunciar o ano aceitável do Senhor".


Assim, a teologia da vida tem como fundamentos a plenitude da vida, a vida como dom e vocação, a interconexão indivíduo e comunidade, a justiça e a dignidade, levantando um Não concreto a tudo que ameaça tais fundamentos e um Sim à promessa do Reino de Deus.


Aqui, na construção de uma teologia da vida, dentro da visão do apóstolo Paulo em sua carta aos Romanos, (8.31-39; e 9), devemos traduzir o pensamento cristão palestino de destino, ou seja, de estar proposto para algo sublime, no sentido de que os limites estão dados de antemão, da lei transcendente na qual está imbricada o conceito de liberdade. Assim, estar predestinado implica numa trindade de conceitos: o estar predestinado está sujeito à liberdade; estar predestinado significa que a liberdade está sujeita à lei; estar predestinado significa que liberdade e lei são interdependentes e complementares.


Analisando o conceito cristão palestino de destino ou estar predestinado, exposto por Paulo, na epístola aos Romanos, podemos dizer que a liberdade humana está ligada às leis universais, de tal forma que liberdade e leis se encontram intrinsecamente entrelaçadas. Aqui Paulo trabalha com um conceito judaico, de que lei é imposição de limites, que faz parte da Revelação, que se expressa pela primeira vez como criação de Deus. Mas para Paulo, se a consciência do bem e do mal nasce da correlação lei/graça, o julgamento é inerente a tudo na criação, mas também a liberdade.


Assim, a certeza de que o estar predestinado, ter um destino, é divino e não demoníaco e tem um significado realizador e não destruidor, é peça-chave do pensamento joanino e paulino, que coloca o Logos1 acima do destino. Ao fazer isso, Paulo, em sua carta aos Romanos, está dizendo que a compreensão do estar predestinado não está ao alcance do ser humano, nem pode ser submetido aos processos do pensamento humano. Mas esse Logos eterno se reflete através de nossos pensamentos, embora não exista um ato do pensamento sem a secreta premissa de sua verdade incondicional. Mas a verdade incondicional não está ao nosso alcance. Em nós humanos há sempre um elemento de aventura e risco em cada enunciado da verdade. Mas, mesmo assim, devemos correr este risco, sabendo que este é o único modo que a verdade pode ser revelada a seres finitos e históricos.


Quando mantemos relação com o Logos eterno e deixamos de temer a ameaça do destino demoníaco, aceitamos o lugar que cabe ao estar predestinado em nosso pensamento. Podemos reconhecer que desde o princípio esteve submetido ao estar predestinado e que o nosso pensamento sempre desejou livrar-se dele, mas nunca conseguiu. Tarefa teológica da maior importância, na análise cristã do estar predestinado é saber relacionar Logos e kairós. O Logos deve envolver e dominar as leis universais, a plenitude do tempo, a verdade e o estar predestinado da existência. A separação entre Logos e existência chegou ao fim. O Logos alcançou a existência, penetrou no tempo e no destino. E isso aconteceu não como algo extrínseco a ele próprio, mas porque é a expressão de seu próprio caráter intrínseco, sua liberdade.


É necessário, porém, entender que tanto a existência como o conhecimento humano estão submetidos ao destino e que o imutável e eterno reino da verdade só é acessível ao conhecimento liberto do destino: a Revelação. Dessa maneira, ao contrário do que pensavam os gregos, todo ser humano possui uma potencialidade própria, enquanto ser, para realizar seu estar predestinado. Quanto maior a potencialidade do ser – que cresce à medida que é envolvido e dominado pelo Logos – mais profundamente está implicado seu conhecimento no estar predestinado.


Nosso destino, que aqui deve ser entendido como missão, é servir ao Logos, num novo kairós, que emerge das crises e desafios de nossos dias. Quanto mais profundamente entendermos nosso destino, no sentido de prokeimai (em grego estar colocado, ser proposto) e o de nossa sociedade, tanto mais livres seremos. Então, nosso trabalho será pleno de força e verdade.


  1. Levar a graça de Cristo


Diante da mitologia da globalização que exclui, nossa comissão permanece a mesmo dos primeiros cristãos: levar a graça de Cristo a um mundo em crise, imerso em culpa e destino trágico. 

 

Dentro da exposição que fizemos do mito grego não se pode falar em mitologia cristã, e sim de simbologia, principalmente nas parábolas e em livros como o Apocalipse.


A mitologia é fenômeno sócio-cultural. Não é um erro ou uma farsa. Quem é que conhece ou define sua vida pelo Santo Graal? Esse assunto deve ser situado no campo da ficção. 


O cristianismo é uma fé racional e objetiva que brota do caráter e das promessas do Deus eterno. E devemos entender isso diante de uma mitologia que se diz teologia. A fé é uma confiança racional, porque nasce da reflexão e leva à constatação de que o Deus eterno é digno de crédito. Mas, de maneira nenhuma, lança fora a vontade, a afetividade, a personalidade, as ações, as obras e experiências humanas enquanto componentes e realidades da fé.


Teologicamente, conhecimento é fé (Hebreus 11.1). Ela depende de uma opção da pessoa e é um estado do coração. Vejamos por que: tomando por base alguns textos (Romanos 10.9-10; 1 João 5.1; João 5. 38-40, 42, 44; 2Tessalonicenses 2.10; Atos 8. 37) podemos dizer que a fé (1) é um dever e, portanto, a vontade está incluída; (2) que é uma graça entregue pelo Espírito Santo (1Coríntios 13), e sendo graça não está limitada ao intelecto; (3) que dá glória ao Deus eterno e não se dá glória a Deus só com a razão, já que envolve toda a personalidade humana; (4) expressa-se em termos de afeto (2Tessalonicenses 2.10). Ora receber inclui afeto, implica assim em engajamento de afetividades (Romanos 10.9-10); (5) a falta de fé está ligada a uma disposição moral (João 5; João 8.33+; Hebreus 3; Efésios 4.17). A incredulidade é um estado do coração, não é um erro enquanto abordagem meramente racional.


Se não houver arrependimento não há fé verdadeira. João, o batista, pregava o batismo do arrependimento. E sem regeneração também não há fé. Os textos que nos levam a pensar assim são 1Coríntios 2.10-16, 1Coríntios 12.3; a experiência de Nicodemos (João 3) e Romanos 8.7.


Assim, a ideia de que o cristianismo tem base mítica nasce do desconhecimento do que significa a fé ou Revelação, enquanto processo que inclui coração e mente, arrependimento e regeneração. O processo de conhecimento da Revelação está ligado à obediência, que em última instância é disposição positiva do coração, enquanto totalidade da personalidade humana, arrependimento e regeneração de vida. E isto está longe da mitologia. 


A comunidade protestante se coloca sob o caráter incondicional do Deus eterno, mas situa-se na realidade da situação histórica. Por isso, as teologias que não entendem o chamado a serem proféticas, não podem ser levadas a sério. Então, é o caso de perguntar: que princípios formam o protestantismo? De que maneira o julgar e o transformar devem se unir? O protestantismo, enquanto princípio, deve viver na realidade da graça, e a luta dos reformadores não faria sentido se começassem a falar em estruturas sagradas da realidade. A hierarquia não pode se apoderar do direito à graça, levando os cristãos a se submeterem à autoridade na busca pela salvação. A fé é humana, mas não vem do humano, embora se realize no humano. A graça é pregada e assim vem a fé. Ter fé significa ser tomado e transformado pela graça.


Quatro princípios são determinantes para o protestantismo: (1) no protestantismo, o elemento religioso deve se relacionar com o elemento secular e se deixar relacionar com ele; (2) no protestantismo, o elemento eterno deve ser expresso em relação a situação presente, (3) no protestantismo, a realidade da graça deve ser expressa com ousadia e risco; (4) e, por fim, no protestantismo se expressa a atitude do realismo da fé. Por isso, o protestantismo entende as coisas e os eventos na relação que têm com o transcendente, isto significa falar a respeito do Deus eterno de tal maneira que não pareça mero objeto acima dos outros, mas realmente real. O poder formativo do protestantismo age quando a realidade é interpretada em relação com seu fundamento e seu sentido último. A justificação pela fé é, então, entendida a partir das situações-limite que a existência nos coloca.


A partir do que vimos, podemos dizer que tanto a mitologia da prosperidade quanto a mitologia da libertação têm sido utilizadas para fins políticos, mas de formas distintas e com objetivos muitas vezes opostos, devido às suas ênfases ideológicas e contextos sociais.


A mitologia da prosperidade não profere um Não à situação presente, ao contrário, faz o caminho do neoliberalismo e diz que a fé e as contribuições financeiras feitas à igreja levam à prosperidade material e ao sucesso pessoal. Essa visão promove uma relação direta entre fé e bem-estar econômico, ao afirmar que o shalom do Deus eterno se manifesta em riqueza e saúde. Ou seja, profere um Sim à situação presente.


Politicamente, a mitologia da prosperidade é usada para mobilizar uma base de seguidores que veem o sucesso pessoal e a prosperidade como resultado da intervenção divina e da própria fé. Líderes políticos associados a essa corrente religiosa tendem a atrair eleitores com promessas de crescimento econômico e de uma política que valorize o mérito individual. Esse discurso pode ser especialmente atrativo em contextos de desigualdade social, onde as pessoas buscam alternativas para melhorar sua situação econômica. Além disso, a ênfase na doação financeira pode levar a um apoio financeiro direto para campanhas ou lideranças políticas, tornando-se uma base de apoio eleitoral e econômico poderosa.


Por isso, estamos diante de uma mitologia do mercado da fé, ou seja de uma mitologia que se baseia na mercantilização da fé, enfatizando uma abordagem que condiciona a fé à obtenção de benefícios materiais.


Já a mitologia da libertação, desenvolvida principalmente na América Latina nas décadas de 1960 e 1970, relacionou a mensagem cristã com a justiça social e a defesa dos pobres e oprimidos. Nesse sentido, apresentou um Não à situação presente, mas não levantou o Sim do Reino de Deus. Dissolveu este Sim na ideologia que via o cristianismo como um chamado para a transformação social, onde a missão da Igreja passou a ser lutar por uma sociedade mais justa.


Politicamente, a mitologia da libertação tem sido associada a movimentos de esquerda e a políticas que buscam diminuir a desigualdade e promover direitos sociais. Essa mitologia foi fortemente utilizada por movimentos populares e governos que se voltaram para políticas de bem-estar social, reforma agrária e outras iniciativas em favor das classes mais desfavorecidas. Durante ditaduras militares na América Latina, muitos líderes religiosos ligados à mitologia da libertação acabaram sofrendo perseguições e se tornando figuras de resistência política, o que fortaleceu sua imagem e mensagem.


Assim, podemos dizer que estamos diante de uma mitologia que parte de aspectos ideológicos e políticos na interpretação e prática da fé, focando questões econômicas e sociais como fundamentos de sua missão cristã.


Tais mitologias podem ser politicamente mobilizadoras, mas servem a diferentes projetos. A mitologia da prosperidade tende a reforçar valores de mérito individual e busca de prosperidade pessoal, enquanto a mitologia da libertação promove uma visão coletiva e social, enfatizando a necessidade de transformações estruturais. Em ambos os casos, tais mensagens não são teológicas, porque não são proféticas, ao contrário, são adaptadas e manipuladas para sustentar plataformas políticas, que se beneficiam da influência e do apelo emocional que a fé cristã exerce sobre as comunidades. 


Algumas considerações finais


Quando a teologia não é vida, no sentido de ir às raízes das situações do momento atual, quando não é profética, sem o Não e Sim do clamor profético, ela se restringe a mero olhar humano, e nesse sentido é mitologia.


Temos, então, a mitologia enquanto manipulação, a serviço de fins políticos. E esse é um fenômeno antigo, onde líderes ou grupos utilizaram crenças e narrativas quase cristãs para fortalecer seu poder, legitimar suas ações ou mobilizar seguidores. Esse tipo de uso manipulado da teologia enquanto pensamento meramente humano tem sido uma prática constante ao longo da história e é perceptível em diferentes contextos culturais e políticos.


Para finalizar, gostaria de dizer que o cristianismo, e aqui realço o protestantismo, é em sua essência uma experiência transcendente ao nível da materialidade humana, uma experiência que acontece em todos os tempos e em todas as situações e é em si mesmo independente de formas sociais e econômicas. 


Nesse sentido, o cristianismo não pode ser identificado com um tipo determinado de organização social, em detrimento de seu caráter transcendente e universal. Mas, ao mesmo tempo, o cristianismo é portador de poder e oferece à humanidade uma mensagem de vida, de conhecimento e de verdade, tanto para a pessoa como particularidade, como para a sociedade como um todo. 


Exatamente por isso, apresenta-se capenga toda forma de cristianismo, e por extensão toda teologia, que se fecha na pura interioridade. Também não se pode dizer que o cristianismo é um movimento que mecanicamente parte da interioridade em direção à exterioridade, apropriando-se de formas culturais ou simplesmente passando ao largo delas. Na verdade, ele dá forma às expressões culturais e, concomitantemente, toma novas formas a partir delas. Dessa maneira, o cristianismo está ligado à interpenetração de formas de consciência filosófica, à experiência estética e ao ideal ético de pessoalidade e, logicamente, aos grandes modelos sociais e econômicos. 


Por isso, todas as questões políticas convergem para uma mesma questão: a humanidade deve ter origem nas profundezas de um novo conteúdo, o Novo Ser, Jesus o Cristo, onde será superada a oposição entre pessoa e comunidade. Onde um novo conteúdo, no mais além da história, será produto do kairós e da graça. 


Montpellier, 27 de novembro de 2024


Notas

Enrique Dussel, Interpretação histórico-teológica, in Caminhos da libertação latino-americana, vol. I, São Paulo, Paulinas, 1985, p. 15.

2. Ἐν ἀρχῇ ἦν ὁ λόγος, καὶ ὁ λόγος ἦν πρὸς τὸν θεόν, καὶ θεὸς ἦν ὁ λόγος. No princípio era o Logos, o Logos estava com Deus, e Deus era o Logos. Evangelho de João 1.1.




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