samedi 21 juin 2025

ÉTICA E CRÍTICA PROTESTANTE


ÉTICA E CRÍTICA PROTESTANTE

por
JORGE PINHEIRO DOS SANTOS








 

ÉTICA E CRÍTICA PROTESTANTE
por
JORGE PINHEIRO DOS SANTOS

 














para
Naira
e igualmente
Paloma, Patrícia, Marcela
pelo amor
e esperança que unem
nossos corações e mentes.
... a Deus que se fez humano e amigo.
 


















Todas as questões convergem para uma mesma resposta: a humanidade deve ter origem nas profundezas de um novo conteúdo, onde será superada a oposição entre massa e personalidade. Onde um novo conteúdo será produto da graça e do destino.
(Paul Tillich)









INTRODUÇÃO 11

 






 


 





INTRODUÇÃO


A academia no Brasil tem analisado a realidade política e social contemporânea a partir de perspectivas sociológicas, políticas, históricas, etc. e algumas vezes sob perspectivas interdisciplinares. O que não é ruim, ao contrário, é necessário. Nesta obra, porém, o que se pretende é analisar um momento especial da política brasileira a partir de uma perspectiva teológica.

Assim será feito porque a teologia tem algo a dizer sobre a realidade brasileira. Uma palavra especial, que deve estar ao lado de outras abordagens, como vértice de uma leitura transdisciplinar. É preciso, no entanto, deixar claro que esta obra tem um objeto e uma definida metodologia de análise deste objeto.

O objeto da obra é o pensamento político da Convergência Socialista, conforme expresso no jornal Versus em sua fase socialista. O material de pesquisa consiste das matérias jornalísticas, reportagens, entrevistas, artigos e editoriais publicados no Versus. Dessa maneira, não faremos apreciações ou comentários sobre a Convergência Socialista, sua história, direção, etc. baseando-nos em documentação que não seja o jornal Versus.
 
A metodologia da obra tem por base os escritos socialistas de Paul Tillich, amparados em conceitos que foram por ele construídos no correr de sua vida. A idéia-chave para o trabalho é a ética social protestante em Paul Tillich, mas utilizaremos conceitos como crítica protestante, situação-limite, kairós, entre outros. 

Paul Tillich e nossa abordagem metodológica: podemos dizer que Paul Tillich, ao analisar a questão socialista e sua ética abre caminho para a compreensão da história e dos movimentos políticos, sociais e ideológicos do século 20. Falar de ética social protestante, no entanto, remete ao princípio do protesto protestante contra toda e qualquer forma de idolatria, que teologicamente se traduz enquanto chamada para um posicionamento transcendente, capaz de julgar e transformar a realidade idolátrica. Tal resistência ao impacto da catástrofe histórica é, logicamente, tarefa da Igreja, que deve elaborar uma mensagem crítica contra o mundo da exclusão. Tal mensagem não pode ser ilusória, mas consciente e cheia de esperança. Nesse contexto, Tillich definirá o ser humano do século 20 como autônomo, mas inseguro dentro de sua liberdade. Isto leva, muitas vezes, a Igreja à tentativa de emancipá-lo desta autonomia através da submissão à  hierarquia e à tradição. Mas não podemos esquecer que na liberdade esse homem já experimentou algo, aprendeu a protestar. 

O conceito de situação-limite, que traduz realidades e momentos de ameaça à existência, de seguranças questionadas, é outra idéia-chave que Tillich utiliza na construção do princípio protestante. Chega a esse conceito a partir de sua compreensão da justificação pela fé. A vida em liberdade, para ele, significa a aceitação da exigência incondicional de realizar a verdade e fazer o bem. Por isso, é tão difícil separar princípio protestante e ética. Assim, Tillich vê diferença no reconhecimento da existência da situação-limite por parte daqueles que clamam a favor da hierarquia e da tradição e o princípio protestante. 

Em sua abordagem sobre o poder formativo do protestantismo, apresenta quatro princípios que balizariam a ética do protesto contra a idolatria: o religioso deve se relacionar com o secular; o que é eterno deve ser expresso em relação à presente situação; a realidade da graça deve ser expressa com ousadia e risco; e o poder formativo do protestantismo deve expressar o radicalismo da fé. 

Nesta obra, fomos buscar nos textos socialistas de Tillich o material necessário para definir sua metodologia de trabalho. Esses textos em sua grande maioria foram escritos entre 1919 e 1931, época em que o socialismo teve um papel relevante na história da Alemanha. Paul Tillich, socialista e teólogo, viu-se colocado diante do desafio de pensar a realidade vivida. Por ser este o grande momento da produção teológica de Tillich sobre socialismo e ética, em tais textos encontramos a base metodológica para nossa análise. Convém notar que esses textos não se encontram traduzidos em português e, por isso, utilizamos traduções francesas. Textos de maturidade também foram utilizados na composição metodológica do projeto. 

Na definição da metodologia analisamos a relação entre teologia e socialismo, focalizando questões como a ética do amor, ética e crítica social, ética e socialismo. Metodologicamente, nossa intenção foi compreender a relação que Tillich construiu entre ética social protestante e conceitos como crítica protestante, liberdade e o papel das massas na transformação social.

A partir daí, a pesquisa entrou objetivamente na realidade do final dos anos 70, quando setores não-religiosos, que traduziam a radicalidade da juventude, levantaram o discurso da ética social protestante propondo o julgamento e a transformação da sociedade brasileira, então sob regime militar. Viveu-se um movimento crescente, que num determinado momento envolveu parte da sociedade civil, com greves, manifestações públicas, organização das entidades de classe e participação nas eleições. Ao expor publicamente tal protesto, os líderes visíveis desses movimentos colocaram-se na situação-limite, correndo os riscos advindos de tal postura. O Versus, jornal independente que indiretamente traduzia o pensamento do movimento de Convergência Socialista, levantou-se a favor da melhoria do nível de vida dos trabalhadores, traduziu o sentimento de muitos brasileiros ao julgar a ditadura como responsável pela opressão política e social, propondo a democratização do país e a formação de um partido político para os trabalhadores. Versus optou por proclamar a liberdade e o bem, julgar o arbítrio e propor a transformação da realidade, combinando anseios e ideais com a construção de um partido que mais tarde seria conhecido como o dos trabalhadores.

A produção editorial do jornal Versus na sua fase socialista não traduziu o pensamento político-partidário do Partido Socialista dos Trabalhadores, PST, e sim de um movimento de amplos contornos que se tornou conhecido como Convergência Socialista. A leitura do jornal Versus nos oferece uma visão do pensamento socialista democrático e pluralista que caracterizou um espectro da esquerda brasileira no final dos anos 70. Mas a leitura do jornal possibilita também a compreensão de um fenômeno maior: a relação entre teologia e socialismo no pensamento da Convergência Socialista, conforme se pode traduzir do material editorial do jornal Versus.

Tomando por base a metodologia utilizada por Paul Tillich  em seus escritos socialistas, foi possível analisar como a Convergência Socialista via esses movimentos sociais e suas tendências, como se aproximou das massas e proferiu uma palavra crítica contra a situação-limite. O jornal Versus publicou em sua fase socialista, que vai do início de 1978 a meados de 1979, entrevistas e reportagens com personalidades as mais expressivas do universo político da esquerda brasileira. Embora as entrevistas com essas pessoas traduzissem opiniões próprias, elas em seu conjunto apontavam para a posição do jornal em relação a muitas questões, como igreja e sociedade, negritude e racismo, organização partidária e eleições, entre outras.

Todas as questões analisadas pelo Versus, no entanto, traduziam preocupações éticas dirigidas à reconstrução da sociedade brasileira. Dessa maneira, Versus foi sempre opinativo, mesmo quando parecia meramente informativo. Nesse sentido, nossa tarefa consistiu em analisar três grupos de assuntos: a relação socialismo e cristianismo; a situação-limite durante aquela fase do governo militar; e a relação entre a intelectualidade de esquerda e a formação do partido dos trabalhadores.

Para levantar a opinião do Versus sobre a relação socialismo e cristianismo, analisamos matérias sobre líderes revolucionários cristãos, com sacerdotes católicos e cientistas da religião, assim como artigos opinativos sobre as tendências da Igreja Católica no Brasil. Para levantar a opinião do jornal sobre a situação-limite no Brasil, pesquisamos matérias sobre a situação das crianças pobres no país, racismo e mortalidade infantil, as greves no ABC e em João Monlevade (MG), e a prisão de jovens ativistas da Convergência Socialista. E, por fim, para levantar a opinião do Versus sobre a relação entre a intelectualidade de esquerda e a formação do Partido dos Trabalhadores, analisamos entrevistas e artigos como alguns dos mais conhecidos políticos de esquerda na época. Alguns deles, por exemplo, como foi o caso do ex-governador Leonel Brizola, se encontravam no exílio e tiveram no Versus o primeiro veículo da imprensa brasileira a lhes dar voz. A análise que se fez do Versus foi descritiva, pois o que se pretendeu era acompanhar o pensamento político da Convergência Socialista. Procuramos descrever passos, a partir da periodização demarcada, conforme os balizamentos padrões de sua história política. Estes marcos representam momentos da vida do próprio jornal. A descrição que se procedeu, no entanto, não foi meramente cronológica, mas seguiu problemas e hipóteses.

Considerou importante fazer citações às vezes longas, já que Versus trabalhou com material jornalístico e por isso é interessante que se conheçam as histórias e seus contextos. E ao invés de fazer uma análise extensa de cada capítulo, no que se refere à documentação levantada, consideramos melhor fazer uma análise profunda por bloco. Dessa maneira, o leitor primeiro tem acesso às pesquisas, toma conhecimento delas através das citações e, posteriormente, toma conhecimento da análise tillichiana que o pesquisador faz. Por estar trabalhando com documentação histórica de difícil acesso, optamos também por transcrever na íntegra, em anexos, as matérias citadas no correr da obra. Tal opção permite aos leitores conferir o contexto dos textos utilizados na pesquisa.   
 






TEOLOGIA E ética social protestante


Em Christianisme et Socialisme (1919-1931), Écrits socialistes allemands, o teólogo alemão Paul Tillich fornece roteiro e bases teóricas para a leitura teológica da ética social protestante. Uma dessas bases teóricas é o conceito de situação-limite, que explica desde um ponto de vista teológico como realidades e estruturas colocam em risco a existência humana, e como diante dessa ameaça é necessária a proclamação da vida. A este protesto contra tudo aquilo que, por ser idolátrico, fere a essência do ser, Tillich chama princípio protestante.

Para Paul Tillich, o protestantismo existe onde quer que se proclame o poder do novo ser, e onde se prega a situação-limite. É aí que se encontra o protestantismo e em nenhum outro lugar. É possível que o protestantismo sobreviva nas religiões organizadas, mas não depende delas. Talvez, a maioria das pessoas experimente a situação-limite fora das igrejas, por isso o princípio protestante pode ser proclamado por movimentos pertencentes tanto ao domínio secular, sem qualquer filiação eclesiástica, assim como por pessoas e grupos que por meio de símbolos protestantes expressam a situação humana em face do incondicional. Se nessas situações proclama-se com mais autoridade o princípio protestante do que nas igrejas, então é aí e não nas igrejas que o protestantismo se torna vivo no mundo atual.  Tomando-se por base tal conceito, documentados em Christianisme et Socialisme (1919-1931), Écrits socialistes allemands, temos ferramentas em que nos basear para desenvolver o trabalho proposto. E mais do que isso, levando em conta a riqueza do momento histórico vivido pelo Brasil no final dos anos 70, tanto em relação à consolidação da democracia, quanto em relação às perspectivas de construção de futuro, aquele foi um momento especial, de tempo bom, especial e favorável para a construção de propostas e alternativas sociais. Foi um tempo carregado de tensão, de possibilidades, qualitativo e rico de conteúdo, mas nem tudo é possível sempre, nem tudo é verdade em todos os tempos, nem tudo é exigido em todo momento. Isto porque, diferentes poderes reinam em tempos diferentes. É nessa consciência da história que está enraizada a idéia de kairós e é a partir dela que deve ser elaborado o conceito de uma filosofia consciente da história. 

Ao analisar o surgimento do socialismo, Tillich leva em conta aspectos históricos, assim como os grandes movimentos ideológicos que se estruturam a partir da Reforma. Tal metodologia é relevante para a compreensão do contexto a partir do qual constrói a sua ética social protestante. A chamada para um posicionamento transcendente, de resistência ao impacto da catástrofe histórica, como foi o nazi-fascismo, deveria sempre levar a Igreja a elaborar uma mensagem para o mundo simples. Mensagem de esperança. Muitas vezes, a igreja que não aprendeu a protestar, é tentada a emancipar  o ser humano moderno, livre, mas inseguro na sua autonomia, através da submissão à antiga substância de vida: à hierarquia e à tradição. Mas na autonomia já foi experimentado algo e esta é uma experiência que une aquele que protesta àqueles com autonomia secular.

O conceito de situação-limite se traduz enquanto ameaça a tudo aquilo que dá sentido final à existência,  e este o diferencial do protestantismo. Essa expressão nasceu em torno da justificação pela fé.  A vida em liberdade significa a aceitação da exigência incondicional de se realizar a verdade e se fazer o bem. Assim, o reconhecimento da existência da situação-limite deve traduzir-se em juízo e transformação, realçar a diferença entre qualquer cristianismo que faça a defesa da hierarquia e da tradição e o princípio protestante. A justificação pela fé é, então, entendida a partir da situação-limite. Por isso, sem uma relação universal com o mundo ético essencial a noção de vocação individual não é a medida correta para se construir uma ética. Ou seja, não se funda uma ética protestante apenas sobre o terreno da pessoalidade.  Mas é importante entender que não existe uma interpretação absoluta do mundo da essência, fonte de toda ética, já que essa essência não é uma grandeza estática, mas se realiza de forma dinâmica na existência. Por isso, não se pode subscrever nem a construção tomista de uma ética social absoluta, nem uma construção de tipo racionalista. Toda compreensão real da essência e como conseqüência toda ética real são concretas. Essa essência se situa no kairós, naquele momento temporal determinado, pleno. Sua universalidade comporta riscos concretos. Ela não se move num universal abstrato, separado do tempo e da situação atual, o que é válido tanto para a pessoa, quanto para a consciência ética geral de um grupo social. Exatamente por isso, toda realidade essencial comporta dois aspectos, aquele a traz de volta à sua origem, “ao fundamento e abismo de todo ser; e um outro que indica seu caráter particular, sua inserção na finitude”. 

Assim, a realização da essência deve se orientar em direção a ela própria, na medida em que essa manifestação de sua origem criativa remete ao que é eterno. Ela exprime o que lhe próprio, suas solidariedades no plano formal e sua finitude. Por isso, toda ética transporta ao transcendente e ao mundo, que em última instância são o bem decisivo de nossa existência concreta. Ao nos posicionarmos por uma ética que parte da essência nos posicionamos por uma ética da vida. E tal compreensão leva-nos a estudar o desenvolvimento criativo desta essência enquanto vida que irrompe na história, criadora do novo.

É a partir daí podemos afirmar que o cristianismo em sua essência é uma experiência transcendente ao nível da materialidade humana, uma experiência que acontece em todos os tempos e em todas as situações e é em si mesma independente de formas sociais e econômicas.  Nesse sentido, o cristianismo não pode ser identificado com um tipo determinado de organização social, em detrimento de seu caráter transcendente e universal. Mas, ao mesmo tempo, o cristianismo é portador de poder e oferece às pessoas uma mensagem de vida, de conhecimento e de verdade, tanto para a pessoa como particularidade, como para a sociedade como um todo.  Exatamente por isso, apresenta-se capenga toda forma de cristianismo que se fecha na pura interioridade. Também não se pode dizer, conforme expõe Tillich, que o cristianismo é um movimento que mecanicamente parte da interioridade em direção à exterioridade, apropriando-se de formas culturais ou simplesmente passando ao largo delas. Na verdade, ele dá forma às expressões culturais e, concomitantemente, toma novas formas a partir delas. Dessa maneira, o cristianismo foi e é interpenetrado pela consciência filosófica, experiência estética, ideal ético de pessoalidade e, logicamente, pelos modelos sociais e econômicos.  

É verdade, que o cristianismo tem mais afinidades com determinadas formas de organização social, já que a ética do amor/ágape  leva o cristianismo a ter uma postura crítica diante da ordem social que se apóia na opressão e na exclusão social. Nesse sentido, nos anos 70, o cristianismo foi desafiado a fazer a crítica do capitalismo e do militarismo na América Latina. Essa a ética do amor/ágape faz a crítica da ordem social que está erigida sobre o egoísmo político/econômico, e clama pela necessidade de uma ordem na qual o sentido de comunidade seja o fundamento da organização social. 

A ética do amor/ágape denuncia o egoísmo da economia das multinacionais e dos governos que servam a elas, que levam à expropriação de muitos em benefícios de poucos, e propõe uma economia solidária onde a alegria não seja fruto do ganho, mas do próprio trabalho. E condena o egoísmo de classe, onde cada qual procura se enriquecer através da exploração de seu próximo e as conseqüências desse processo, como o privilégio da educação para uma elite. Mas a ética do amor/ágape nega também a afirmação do princípio da luta de classes e propõe a supressão das classes, o fim dos privilégios na educação e a supressão da exploração de determinados setores profissionais por outros. 

A ética do amor/ágape condena também o egoísmo internacional da força e do comércio, que justifica a violência e a guerra sobre continentes, nações e povos. Assim, a ética do amor prega a submissão dos povos, sejam ricos ou  pobres, à idéia do direito, e à construção de uma consciência comunitária, soldada sobre a paz, que leve a um internacionalismo real entre as nacionalidades. 

Muitos dirão que eliminar o egoísmo como forma de estímulo econômico diminuirá o desenvolvimento e reduzirá a produção. No entanto, a partir do amor/ágape vemos que o ser humano não foi criado para a produção, mas a produção para suprir necessidades humanas e que por isso o objetivo da ética na economia não é a produção da maior quantidade possível de bens para uma classe em particular, e sim a produção de bens necessários à vida para o maior número de pessoas.  

Para Tillich, na história, uma ruptura espiritual vem sempre associada a uma ruptura econômica, da mesma maneira que um processo de unidade espiritual vem associado a um processo de unidade econômica,  ispto porque a alma da unidade espiritual é a religião. O fracionamento espiritual característico de determinadas épocas traduz fracionamento econômico, distanciamento e choque entre classes. E naquelas épocas em que temos um processo cultural de unidade temos também uma nova base de unidade e solidariedade social e econômica. Nesse sentido, há um processo de desenvolvimento que se realiza de forma desigual na história, mas que combina mudanças espirituais e transformações econômicas e sociais. Diante de tais circunstâncias, o cristianismo está eticamente obrigado a fazer uma escolha, ou participa do processo, atuando a favor desse desenvolvimento ou entra em processo de caducidade, ao afastar-se da vida real das comunidades nas quais está inserido. 

Seja qual for a opinião ética sobre a relação entre cristianismo, capitalismo e socialismo, um fato deve ser ressaltado: é possível e necessário para o cristianismo manter um relacionamento com todas as formações econômicas e sociais, “em especial com o socialismo, já que a rejeição do princípio socialista em nome do cristianismo contradiz a universalidade do cristianismo”.  E se o cristianismo não somente pode, mas deve manter um relacionamento com o socialismo, devemos nos perguntar se o contrário da premissa é verdadeiro: pode o socialismo ter um relacionamento construtivo com o cristianismo? Para muitos, a concepção materialista da história nega a possibilidade dessa aproximação, mas devemos ver que em Marx tal concepção não é materialista, mas econômica, porque de fato o que mostra é uma relação de causalidade entre fundamento econômico e organização da cultura.  E, ao contrário, tal fundamento dá a todas as ciências uma possibilidade metodológica que não tem nada a ver com ateísmo. 

Quanto às organizações socialistas, é necessário ver que têm atitudes diferentes em relação ao cristianismo e em relação às estruturas hierárquicas da Igreja.  A história da Igreja no passado e no presente é passível de muitas críticas. Suas opções fizeram como que dificultasse seu relacionamento com parte da população excluída de bens e possibilidades. Tal situação facilitou a pregação do materialismo. Mas, ao contrário do que pode parecer, não podemos dizer que o ateísmo seja um fenômeno constitutivo do socialismo. Antes, é uma herança da cultura burguesa.  Essa herança foi adotada pelo socialismo sob a crença de que ajudaria a extirpar a idéia de opressão e abriria o caminho para a construção de um mundo mais justo e digno. 

Embora, haja razões históricas para criticar a Igreja, o socialismo erra quando nega a existência da base solidária do ideal cristão, tal como pode ser percebida na pregação do Jesus apresentado nos Evangelhos. Quer dizer, há setores do socialismo que são hostil ao cristianismo. Hostilidade esta que fere a ética social protestante, tão próxima daquela proposta pelas comunidades cristãs dos primeiros séculos. Assim, se as idéias socialistas não traduzem nenhuma oposição essencial, de princípio, ao cristianismo e à Igreja que vive o princípio protestante, os cristãos podem ter uma atitude positiva em relação ao socialismo.  Atitude positiva deve ser entendida como a realização do princípio do amor cristão, que entende a necessidade de eliminar as condições que geram miséria e exclusão. Tal atitude traduz a urgência de combater os fundamentos do egoísmo econômico e de ações para a construção de uma outra ordem social, que sem deixar de ser mundial, inclua periféricos e excluídos. Isto  porque o socialismo não é só necessidade de operários e trabalhadores, mas um ideal ético que traduz anseios e esperanças dos mais variados setores da sociedade. 

Conforme explica Tillich em artigo publicado em Das neue Deutschland , em 1919, o socialismo é o produto de um desenvolvimento espiritual e econômico que foi lentamente preparado e que se impôs com a Renascença, a Reforma e com o surgimento do capitalismo. Foi uma resposta ao autoritarismo e sedimentou suas bases nos últimos séculos.  O socialismo só pode ser compreendido a partir desse desenvolvimento e sua permanência está ligada a essa evolução. 

A organização espiritual e econômica da Idade Média estava fundada sobre um sistema de centralização da autoridade que ancorado no sobrenatural associava a natureza e o divino numa unidade , à qual os povos estavam sujeitos. A Reforma, sustentada pela visão humanista que surgiu com a Renascença, golpeou o sistema de autoridade, trouxe a fé para o plano formal ao recorrer à autoridade das Escrituras e no plano material valorizou a subjetividade da consciência pessoal. 

Apoiado formalmente sobre as Escrituras, o protestantismo institucional levou a novas contradições, mas o sistema centralizado de autoridade já estava em frangalhos. Coube, assim, ao indivíduo decidir a que grupo ele queria ligar-se.  Mas, por causa das guerras religiosas, essa realidade entrou em marcha lenta, transmitindo a cada lado a esperança de que poderia chegar a uma vitória exclusiva. Mas com o fim dos combates o que se viu foi que as oposições às confissões se tornaram permanentes. Dessa maneira, constata Tillich, brotou o espírito autônomo nos mais variados campos, e a consciência européia ocidental se tornou independente, atacando o autoritarismo das confissões. 

No campo do pensamento, Descartes golpeou o autoritarismo eclesiástico ao afirmar que a certeza que eu tenho de mim é o princípio de toda certeza objetiva. E que embora não possa me livrar da dúvida, é em mim mesmo que se enraíza a certeza.  E como consequência, o Iluminismo entendeu que toda e qualquer tradição deve ser submetida à crítica. A partir do Iluminismo, no domínio espiritual, político, econômico, não sobrou nada que não tenha sido pensado, confrontado com a consciência. Os sistemas de fé, as formas de Estado, as definições econômicas sofreram o assalto da autonomia, que não teve nenhum respeito pelas autoridades humanas ou religiosas.  É claro que muitos lamentaram a perda do sistema de autoridade, enquanto outros a festejaram, mas o certo é que tal acontecimento levou a Europa em direção à maturidade cultural. Deu-se assim o reconhecimento de que a vida cultural não pode ser pensada sem liberdade. Líderes e camponeses tiveram sentimento semelhante e buscaram arrancar a liberdade das mãos do autoritarismo, fosse ele imanente ou transcendente. Este é o primeiro fato que o cristianismo deve levar em conta,  afirma Tillich.

Do lado positivo, a autonomia significa o reinado da razão.  Pela primeira vez,  depois de um milênio e meio, a razão humana não via limites para seu poder. Através da análise ela penetrava as profundezas da vida cultural e social e apresentava de novos sistemas. Depois de séculos de arbítrio, os seres humanos foram possuídos por uma vontade de dar forma ao mundo de maneira racional.  E a vida econômica também foi formulada racionalmente. Não era mais o prazer de certas pessoas ou povos que deveria fazer a lei, mas a humanidade inteira, sujeito e objeto dos processos econômicos, é quem deveria fazê-lo a partir de critérios racionais.  A mesma liberdade que substituiu a autoridade, a partir da razão precisava construir um mundo sem arbítrio. Eis o segundo fato que o cristianismo deve levar em conta. 

Mas, explica Tillich, sem dúvida foi Marx quem introduziu o pensamento histórico objetivo do idealismo alemão no socialismo, ao dizer que a razão precisa ser separada da decisão humana e colocada ao nível das necessidades objetivas. O processo dialético é racional e a fé nele é uma fé na razão: uma fé que adquire força graças à sua amarração metafísica objetiva, que acabou se tornando um dogma para milhões de pessoas.  Foi o processo da própria história, então, que fez o mundo conformar-se à razão e levou este combate a tornar-se vitorioso, dando origem ao mundo que conhecemos como moderno. Essa fé na razão está fundamentada sobre os resultados conquistados pelas ciências da natureza. Mas atrás das ciências da natureza veio a cultura moderna, preparada de várias maneiras a partir do fim da Idade Média. Ela surgiu com força na Renascença e conduziu a uma afirmação do mundo, antes desdenhado por um outro mundo, místico e supersticioso.  Então, os outros mundos empalideceram diante da validade universal das leis da natureza, diante da beleza redescoberta na arte, diante da consciência de unidade do finito e do infinito na filosofia da natureza.  É assim que a imanência ressoa no humanismo e na filosofia das Luzes, da mesma maneira que o socialismo se une à consciência da autonomia e à fé do poder formador da razão na construção de um sentimento unitário da vida. Este é o terceiro fato que o cristianismo deve levar em conta. 

Se o socialismo é uma herança da cultura européia, ele tem, no entanto, uma originalidade que não se restringe aos conceitos, mas à experiência vivida. O conceito de humanidade que manifesta a vitória da idéia de fraternidade não teve no desenvolvimento da burguesia mais que uma realização acidental. A consciência de humanidade foi neutralizada pela consciência de classe.  A humanidade acabou por colocar-se no campo das confissões, contrárias a idéia de uma transformação racional do mundo. Foi pela pressão dos trabalhadores nos primeiros decênios do moderno capitalismo que nasceu uma consciência solidária, no coração do qual está presente o sentimento universal de humanidade, que se opõe àquele que vê no ser humano um meio e não um fim.  O combate contra o feudalismo e o capitalismo constitui a expressão negativa da consciência incondicional de humanidade, que derruba barreiras e reconhece o humano em cada ser. Este é o quarto fato que o cristianismo deve levar em conta,  conclui Tillich. 

O que fica claro é que autonomia e socialismo são processos históricos que se complementam, mas que não são idênticos. O processo de autonomia vivido pela sociedade européia no período que se abre a partir do Iluminismo e que põe em xeque a tradição e o autoritarismo servirá de base para a ação socialista. A autonomia é o momento supremo da imanência e é a partir daí que o socialismo vai construir um sentimento unitário da vida, embora sua originalidade não se limite aos conceitos, mas à experiência. A luta dos trabalhadores contra a alienação e exclusão social vai gerar consciência solidária e sentimento universal de humanidade. Mas, ainda assim, ao se limitar ao campo da autonomia, sem uma atitude que permita à incondicionalidade apoderar-se da própria autonomia, o socialismo deixa aberto o caminho para o autoritarismo e o arbítrio.  

Assim os elementos formadores do movimento socialista são fundamentais para a compreensão das relações entre cristianismo e socialismo. Eles abrem a possibilidade para um diálogo construtivo entre as duas correntes de pensamento. 

No entanto, sistemas religiosos erigidos sobre o princípio da autoridade centralizada só podem se opor a um movimento autônomo como o socialismo,  pois são opostos na medida em que tal sistema se afirma enquanto sistema de autoridade. Eles se colocam como opostos mesmo quando tal sistema aceita as exigências do socialismo em matéria de economia política. Para as correntes hegemônicas do catolicismo, representados pelo pensamento anterior ao Concílio Vaticano II, continua a ser determinante a ética social do tomismo, estabelecida de maneira autoritária, em estreita relação com a dogmática. Ela permite uma ampla margem de manobra, mas a unidade desse catolicismo impõe limites bem definidos, que uma doutrina econômica autônoma não pode jamais reconhecer.  Já o protestantismo quebrou o sistema de autoridade em seu princípio-base e deu voz à autonomia. De todas as maneiras, é um erro considerar de forma heterônoma as palavras de Jesus ou dizer que o comportamento da comunidade de Jerusalém em Atos dos Apóstolos conduz a uma política econômica socialista.  Do ponto de vista histórico, os fatos não são assim tão simples, porque Jesus não levantou um programa de reforma social, mas convencido da irrupção iminente do reino de Deus apresentou a seus discípulos as conseqüências éticas do mandamento do amor.  

Fazendo uma abstração histórica deve-se reconhecer que no terreno da autonomia, a justiça de uma ética social, ou a verdade de uma doutrina, não depende de sua conformidade à Escritura,  mesmo quando aparentemente são apresentadas sob a autoridade das palavras de Jesus. Assim, o socialismo pode ter por base, num determinado contexto, um sólido apoio psicológico a seu favor, enquanto convicção pessoal, que não nasce da autoridade imposta.  Mas, quando os laços do cristianismo e do socialismo estão fundamentados de maneira heterônoma sobre as palavras da Escritura não há um protestantismo autêntico, mas uma legalidade sectária, isto porque o protestantismo como essência é autônomo.  A compreensão protestante das fórmulas “pela graça somente” e “pela fé somente” transportam vida ao domínio do conhecimento e rejeitam o legalismo da posse da verdade absoluta e de querer impor tal verdade aos outros. A religião e o espírito autônomo podem tornar-se um quando a autonomia se vê livre do arbítrio. 

Diante da decomposição da cultura burguesa, o socialismo propôs criar uma nova vida cultural e social unida sobre a base de uma economia unificada, mas isso só será possível se a autonomia caminhar em direção a uma teonomia, ou seja, uma atitude que permita à incondicionalidade apoderar-se de todas as coisas. Este é um ponto sobre o qual cristianismo e socialismo devem se colocar de acordo.  A idéia de dar forma racional ao mundo fez oposição à concepção do cristianismo que vê o mundo como antidivino, a razão corrompida , a redenção como ação que dá feitio ao mundo e o conhecimento não como razão, mas como revelação. Por isso, nesses últimos séculos, a teologia protestante propôs-se a superar essa oposição entre razão e revelação através da idéia de uma história universal da revelação, ao mesmo tempo humana e imanente ao espírito, ou seja, enquanto história do espírito em geral e da religião em particular.  Essa concepção ética-religiosa elaborada pela cultura protestante considerou que a pessoalidade livre e ética é impossível sem o fundamento natural de sua individualidade psíquica e corporal, com suas particularidades lógicas, fisiológicas e biológicas e que o valor da pessoalidade consiste em ir além, elevar-se acima dessa naturalidade. Assim, o protestantismo traduz uma vontade de dar forma ao mundo de maneira imanente: o reino de Deus vem ao mundo, mas ao mesmo tempo tal concepção apresenta limitações, pois o dar feitio está situado no âmbito da técnica, não no da ética, no âmbito da categoria de meio e de fim e não dos juízos e do mérito.  Fazer é técnica, mas a técnica não é o fim em si, não é um fim último. Mesmo que toda economia fosse uma produção racional, a organização jurídica englobasse todos os povos, a vida material estivesse livre do imprevisível, restaria ainda o mérito da pessoalidade, a revelação do espírito e a idéia criativa que traduzem graça e brotam das profundezas do fazer.  Por isso, é importante que o olhar lançado “nas profundezas não seja turvado, que a fé enquanto experiência da incondicionalidade apóie a vontade de dar forma ao mundo e a livre do vazio de uma simples tecnificação do mundo”.  Este é o segundo ponto sobre o qual cristianismo e socialismo devem se colocar em acordo, segundo Tillich.

É com a experiência da imanência que surge mais claramente a oposição entre o socialismo e o cristianismo, já que o cristianismo está comprometido com o lá em cima, e o socialismo voltado para o aqui embaixo. Mas esta oposição é aparente,  pois lá onde se vive a profundidade última  da experiência religiosa, onde a experiência da incondicionalidade com o Sim e o Não é pronunciada sobre todas as coisas e sobre todos os méritos, é onde acontece a supressão da oposição entre o em cima absoluto, perfeito, e o embaixo relativo. O Sim e o Não são pronunciados sobre o aqui embaixo, sobre a única realidade. É no coração das pessoas que acontece a separação, o julgamento paradoxal que torna tudo absoluto e relativo, perfeitas e vãs, eternas e terrestres.  É assim que devemos entender a teologia do “somente pela fé”, que não admite nem perfeição absoluta, nem conhecimento absoluto, mas que vê o absoluto brotar  em todo relativo. Temos então o fundamento da compreensão que o cristianismo nos dá sobre a questão da imanência. Mas também o cristianismo deve oferecer ao socialismo alguma coisa sem a qual ele não pode existir: a experiência vitoriosa da incondicionalidade em tudo que está condicionado, imanente, na totalidade do real. 

Existe uma atitude profana e uma atitude religiosa no olhar o mundo.  Essas atitudes se tornam nulas num estado puro, exclusivo. Num, a primeira predomina fortemente, noutra, a segunda. Pode-se conceber um fazer profano, a ciência, a arte, a moralidade, a vida jurídica e econômica, a política nacional e exterior e se pode concebê-las de maneira religiosa. Pode-se vê-las como atividades agradáveis, necessárias e desagradáveis,  mas pode-se ver o espírito agir nelas e ver a vida se revelar nelas, o que nos levaria a aproximarmo-nos de tais coisas com respeito sagrado. Ou seja, o espírito religioso está vivo no movimento socialista: é uma vibração religiosa que circula através das massas. Mas há também inumeráveis presenças profanas no movimento, mesmo entre seus líderes. A santificação da vida cultural no geral e no socialismo em particular, esta é a marca deixada pelo cristianismo no socialismo. Este é o terceiro ponto sobre o qual cristianismo e socialismo devem entrar em acordo,  diz Tillich.

A santificação da vida cultural, não será possível sem uma reunião dos elementos religiosos expressivos da cultura e da sociedade, sem a constituição de comunidades que estejam imbuídas em transmitir a experiência religiosa às gerações futuras.  É para isso que servem as idéias expressivas e as instituições, que existem com toda a sua riqueza no seio das confissões, e que a partir da força de uma tradição provada aliam o vigor popular em oposição à uma interconfessionalidade artificial.  Mas, apesar da aparência de que estamos apresentando um novo confessionalismo, diz Tillich, com suas formas absolutas que suprimem a comunhão com os fiéis de outras crenças, insistimos na necessidade de um quarto ponto: a experiência humana universal.  Esta experiência tem seu fundamento no próprio cristianismo, já que na cruz de Cristo podemos ver a negação do judaísmo, mas também do cristianismo, quando se absolutiza enquanto confissão.  As igrejas cristãs não podem deixar essa consciência tomar-se efetiva, pois é sobre este terreno que se deram as condições para as sangrentas guerras religiosas. Em relação a isso o espírito deve ser livre. O caminho da cultura cristã é entender esta consciência como elemento agregador de todas as culturas e todas as confissões, sem aboli-las, inspirando um sentimento de comunhão mais profundo que todas as barreiras concebíveis. O cristianismo confere assim seu próprio conteúdo à experiência humana do socialismo, pois a solidariedade nascida da pressão exterior deixa de existir quando a pressão cessa.  Os fatos confirmam isso. O socialismo falha em relação ao sentimento de comunidade que suscita a unidade a partir das profundezas últimas do humano, lá onde o incondicionado desperta a alma. Este é o quarto ponto sobre o qual o cristianismo e o socialismo devem se colocar de acordo.  

Para Tillich, não devemos entender o cristianismo como confissão exclusiva, mas como irrupção da fé absoluta, única incondicionalidade, que vê uma só humanidade, sem as barreiras internas e externas que caracterizam as comunidades. Esta fé não se mostra hostil a não ser com os domínios econômicos, políticos e religiosos, que se colocam eles próprios contra os outros  .

Nesse sentido, é a teonomia, que traduz a experiência da profundidade última, a incondicionalidade do Sim e do Não sobre todas as coisas e méritos, e a supressão entre o em cima absoluto e o embaixo relativo, que pode levar transcendência ao socialismo.

O espírito religioso que existe no socialismo, enquanto vibração de graça e fé que circula nas massas, não deve ser negado, nem execrado pelo cristianismo. Ao contrário, é o cristianismo que pode fecundar a autonomia socialista.  

Estes são os fundamentos de uma unidade entre o cristianismo e o socialismo, conclui Tillich, que deve ser mais que uma associação, que traduz um desenvolvimento de ambos através de uma nova forma de fé e vida. E qual é o papel das igrejas e dos partidos socialistas neste desenvolvimento?  

Essa é uma questão em aberto. Versus, enquanto jornal socialista, procurou chamar ao diálogo aqueles cristãos que enfrentaram conscientemente a situação-limite do governo militar brasileiro. Publicou reportagens sobre a luta da igreja latino-americana e apresentou como heróis do socialismo mártires cristãos como Martin Luther King Jr. e Camilo Torres. Homens que entenderam o tempo presente e levantaram uma palavra profética contra o arbítrio e a idolatria dos domínios. 


1.4. Tempo presente e crítica protestante


Mas, afinal, que relação existe entre o tempo presente e o crítica protestante? Para responder a esta questão é necessário antes que nada entender como Tillich vê o tempo presente. Em seu artigo Idées à propos de la situation spirituelle du temps présent, publicado em 1926 como obra coletiva , Tillich diz que falar da situação espiritual do tempo presente pode significar duas coisas. Pode querer dizer que vamos de uma situação contingente em direção a um ponto de vista superior. O tempo presente seria, então, parte de uma situação mais geral. O momento presente estaria enquadrado no caminhar do processo histórico. 

E para fazer a leitura desse tempo presente pode-se recorrer à análise histórica, à avaliação crítica ou à construção filosófica. Algumas vezes, porém, algum desses elementos falha. Por isso, não basta observar o tempo presente. Estamos excessivamente ligados a ele, o que nos pode levar a escorregar para um julgamento do ser enquanto aqui e agora e esquecer que devemos estar voltados para o futuro.

O momento é importante, mas transformar o exame da situação espiritual do tempo presente em apreciação subjetiva é realizar uma redução, é ver a situação como totalidade e permanência. Olhando assim colocamos a situação num patamar elevado e a perspectiva que temos é aparentemente ampla e global, apesar de seu caráter individual e limitado.

Tal análise do momento pode levar a uma ampla aprovação e tocar emocionalmente setores expressivos da sociedade e comunidades inteiras. Tillich cita como exemplo o trabalho de Spengler, A decadência do Ocidente, onde o filósofo alemão parte da profunda crise de seu país no primeiro pós-guerra e conclui que a cultura ocidental chegou ao fim.

Esta é uma maneira de ver. Ela pode ser qualificada como irresponsável, mesmo quando apresenta análises de conjuntura e perspectivas para o futuro. Mas por que então irresponsável? Por não aceitar suas responsabilidades. Por não reconhecer os limites daquele que observa, assim como de seu próprio horizonte . 

Mas se existe um nível mais elevado, mais amplo do que este analisado pelo observador, somos, explica Tillich, levados a falar da situação espiritual do tempo presente, possibilidade que pode ser qualificada de responsável. E é possível chegar a tal patamar de observação?  

Caso exista um ponto de vista mais elevado, a partir do qual se posicione um atalaia do tempo presente, como deve ser este mirante? Para Tillich, deve estar numa altura absoluta, inacessível a qualquer comparação. Só o absolutamente inacessível, incomparável, incondicionado, livre das amarras do historicismo, pode ser de fato responsável.

Partindo dessa realidade, pode-se dizer que existiram homens que interpretaram a situação espiritual de uma época dada. Eis aqui o ponto de intersecção entre o tempo presente e a crítica protestante. Seguindo a trilha aberta por Tillich, que cita a paixão de Troeltsch no combate ao historicismo, e que terá seus estudos sobre profetismo reconhecidos inclusive por estudiosos judeus , é possível afirmar que o princípio profético traduz inquietude e descontentamento em relação aos acontecimentos sociais e religiosos concretos. 

Há uma semelhante busca ética de respostas entre aquele que encarna a crítica protestante e a ação consciente do intelectual orgânico . Ambos representam determinada comunidade, têm função superestrutural e, apesar de sua organicidade, precisam exercer autonomia em relação às pressões sociais que sofrem. É dessa postura que nasce a força crítica e a compreensão de que diante da realidade há alternativas diferentes daquelas expressas pelo poder. 

Embora o profetismo bíblico não responda às necessidades atuais de análise de situações-limite, mostra que não basta o exame da situação espiritual do tempo presente como totalidade e permanência, ao contrário, mostra que é necessário compreender as exigências colocadas pelo absolutamente inacessível, mostra que é preciso estar livre das amarras do historicismo. Tal compreensão, que faz parte do princípio profético, expressão humana e verbal do incondicionado, é encontrada no profetismo bíblico , que possuía uma concepção unitária do fato e procurava a síntese entre política e ética.
(...) eram ao mesmo tempo revolucionários voltados para o passado e conservadores impulsionados pela paixão do porvir, (...) os profetas nada fazem sem invocar a tradição, no entanto, sua grande mensagem são os novos tempos. (...) os profetas sabiam servir-se do passado para as necessidades do presente. (...) Todos parecem ter algo em comum: uma atitude realista. Abominam o palavreado inútil, a eloqüência abstrata. Ao contrário dos falsos profetas, interessam-se pelo concreto e procuram não viver envoltos em véu de ilusões. A pregação do futuro não constitui o essencial de suas prédicas; é antes, o fruto e o resultado final de conhecimento aprofundado no mundo adjacente  , da atualidade e do passado.  

Mas isso não basta. Para Tillich, a crítica protestante no tempo presente não pode ser apreendido a partir da leitura dos profetas bíblicos, nem do Novo Testamento, e nem mesmo de Lutero  ou de Nietzsche. Porque se procuramos um lugar que não possa ser abalado, essa interpretação não pode estar pousada sobre experiência própria e nem mesmo da Igreja.

Para fazer a leitura desta crítica protestante no tempo presente, Tillich analisa o século 19 e constata: a crítica protestante aflorou em Karl Marx e Friedrich Nietzsche, no signo da luta contra o cristianismo. Em Marx o espírito da profecia hebréia se manifestou através das palavras e da ação e em Nietzsche aflorou a crítica protestante de Lutero  .

Ambos se levantaram contra o Deus da sociedade burguesa. Marx   levanta a bandeira da justiça e Nietzsche da vida criativa. A influência de Marx se fará sentir na filosofia da história, no combate contra o ethos burguês, contra o capitalismo e contra o imperialismo, e também na idéia da cultura comunitária e na tensão apaixonada pelo futuro.

Já Nietzsche, por outro lado, influencia a filosofia da vida, a literatura, a arte expressionista, os movimentos de juventude, a luta contra as convenções burguesas e a valorização da disciplina aristocrática  .

Mas um terceiro elemento intervém: a tendência dialética da teologia protestante, que se expressa de forma paradoxal, ao fazer a crítica de pontos de vista estabelecidos. Crítica do movimento socialista, ainda em seus primórdios, e crítica da tentativa de limitar a profecia a um ponto de vista particular  .

Submetido a este tribunal, o espírito do tempo presente ganhou em pureza e  profundidade. E esta negação do tempo a partir da eternidade teve uma conseqüência fatal  . Recusou-se a ser um simples ponto de vista. Considerou que tudo depende, então, do grau de proximidade existente entre uma profecia e o que acontece no mais íntimo de uma época. 
Tudo depende do grau de concretude e do tipo de força em seu interior disposto a anunciar o sentido do tempo presente  .

Quando analisamos a crítica protestante a partir desta problemática, vamos constatar que ele não testemunha em benefício do presente, diferentemente da profecia clássica dos hebreus. Ele profere um não ao tempo presente. Um não abstrato, amplo, já que não critica o tempo presente em concreto, de forma particular, pelo simples fato de que não aceitar os símbolos das forças demoníacas de nosso tempo, como o fizeram os antigos profetas, o cristianismo primitivo, Lutero, Marx e Nietzsche  . 

Ao renunciar a um não concreto à situação presente, apresenta um sim a esta situação. O não abstrato torna profanas todas as oposições e as rebaixa de tal modo que deixam de ter importância última. E por isso a santa paixão profética perde sua razão de ser  . 

O individualismo religioso e o criticismo na filosofia são, quando consideramos a situação do tempo presente, movimentos reacionários . E é terrível ver que, muitas vezes, ambos estão sob a proteção de um falso profetismo, cuja essência e mensagem consistem em congregar tudo sob o mesmo não. Assim, o combate profético concreto perde forças e fica amarrado diante das forças demoníacas da época. 

Ao contrário, agrega Tillich, q crítica protestante está envolvido na situação histórica concreta, tem a coragem de decidir e colocar-se sob julgamento, ao nível do particular. Sem esquecer que sua 
relação aponta ao incondicionado, e que o ponto mais elevado que é possível alcançar no tempo está submetido ao não. Mas não deverá, por temer o não, perder a audácia do não e do sim concretos  . 

E é a partir dessa compreensão do que significa o espírito de profecia no tempo presente, que voltamos ao kairós, mas agora com novos conteúdos, construído enquanto responsabilidade inetulável  . 

Kairós significa tempo concluído, o instante concreto e, no sentido profético, a plenitude do tempo, a irrupção do eterno no tempo. Kairós não é um qualquer momento pleno, uma parte ou outra do curso temporal: kairós é o tempo onde se completa aquilo que é absolutamente significativo, é o tempo do destino. Considerar uma época como um kairós, considerar o tempo como aquele de uma decisão inevitável, de uma responsabilidade inelutável, é considerá-lo enquanto espírito da profecia.       

Diante dessa responsabilidade inelutável existem, para Tillich, três posições distintas, que se definem na sua compreensão do tempo presente. Vamos analisar duas: a concepção conservadora e a concepção progressista, que se apresentam com variáveis e modulações. 

A concepção conservadora admite o surgimento do eterno no tempo, que repousa no passado. Por essa razão nega toda mudança, presente ou futura . A força dessa concepção repousa no fato de que considera o eterno como dado e não como resultado da ação cultural e religiosa do ser humano. 

A concepção conservadora também reconhece o kairós, mas o situa no passado. Desconsidera que se aconteceu no passado como acontecimento único, não é ele quem se revela em todos os sim e não do passado, do presente e futuro. Sob tal visão repousam os conservadorismos. Perderam o sentido supratemporal do kairós  .

A concepção progressista considera o eterno um alvo infinito, existente em cada época, mas que não se apresenta enquanto irrupção. Assim, os tempos tornam-se vazios, sem decisão, sem responsabilidade. Na concepção progressista existe uma tensão diante do que foi. Mas a consciência de que o alvo é inacessível a debilita e produz um compromisso continuado com o passado. A concepção progressista não oferece nenhuma opção ao que está dado. Transforma-se em progresso mitigado, em crítica pontual desprovida de tensão, onde não há nenhuma responsabilidade última  .  

Este progressismo mitigado é a atitude característica da sociedade burguesa. É um perigo que ameaça constantemente, é a supressão do não e do sim incondicionados, a supressão do anúncio da plenitude dos tempos. É o verdadeiro adversário dq crítica protestante  .

Mas ao contrário de negar o conservadorismo e o progressismo, Tillich mostra que reação e progresso estão entrelaçados na consciência do kairós. E é esse entrelaçamento que leva a um terceiro caminho.

E o terceiro caminho é a utopia. Sem o espírito utópico não há protesto, nem espírito profético. 
Isto é exato na medida em que cada tensão orientada para adiante comporta uma representação daquilo que deve vir e de como se entende a realização desse ideal. Eis porque o espírito da utopia está presente em todo agir incondicionalmente decidido, em todo agir orientado à transformação do presente  .

Para Tillich, a utopia quer realizar a eternidade no tempo, mas esquece que o eterno abala o tempo e todos seus conteúdos. É por isso que a utopia leva, necessariamente, à decepção. Progresso mitigado é o resultado da utopia revolucionária desencantada.

A idéia do kairós, explica Tillich, nasce da discussão com a utopia. O kairós comporta a irrupção da eternidade no tempo, o caráter absolutamente decisivo deste instante histórico enquanto destino, mas tem a consciência de que não pode existir um estado de eternidade no tempo, a consciência de que o eterno é, em sua essência, aquele que faz a irrupção no tempo, sem contudo fixar-se nele.

Assim, a realização da visão profética se encontra além do tempo, lá onde a utopia desaparece, mas não a sua ação . 

Metodologicamente, Tillich mostra que toda mudança, toda transformação exige uma compreensão do momento vivido que vá além do meramente histórico, do aqui e agora. Deve projetar-se no futuro, deve entender que há nq crítica protestante da responsabilidade inelutável um choque entre este kairós e a utopia, que pensa poder fixar a eternidade no tempo presente. Tal desafio, para Tillich, não pode ser resolvido por um homem, por mais que encarne o espírito da profecia. O sujeito da transformação será, em última instância, a massa.


1.5. Massa, imediaticidade e amplificação


Para Paul Tillich em Masse et Esprit, Études de philosophie de la masse  , a palavra massa transformou-se em slogan político e social. Expressão esta que conota superioridade e idolatria. Por isso, quando se deseja discutir seriamente o conceito massa é necessário definir seus contornos e esfriar um pouco a fervura do slogan  .

Segundo Tillich, 
há dois conceitos de massa, um formal e outro material, o primeiro de ordem psicológica e sociológica e o segundo de ordem histórica e social  .
Em termos formais, a massa consiste numa associação de pessoas que, na associação, deixam de ser indivíduos. Sua individualidade se perde e ele se submete à coletividade. A pessoa se torna um átomo, desprovido de suas qualidades, seu movimento próprio, e se transforma em pura quantidade subordinada ao movimento da massa.
Através da psicologia das massas pode-se ver como a alma perde sua forma individualizada uma vez que toma a forma da massa e como o indivíduo entra em contradição com ele próprio, já que é um átomo da massa ou um ser bem singularizado.  

Tillich considera que no movimento psíquico da massa alguns elementos se separam e se isolam, adquirindo eficiências por eles próprios. Isto porque um indivíduo é o resultado de uma longa evolução interior e sua alma está ligada a milhares de liames à vida da alma em sua totalidade, que assim torna-se autônoma  . Na massa, as forças de inibição, de reflexão e de matizações caducam. Tudo se transforma. 

Assim, podemos resumir essas transformações em duas leis.

A lei da imediaticidade, segundo 
a qual a massa não reflete, mas é. Ela tem uma existência objetiva, não subjetiva como afirmou Hegel, ela é em si, não para si  . 

A massa não sabe porque ela faz aquilo que faz. Quando acede a ela própria é sempre através de certos indivíduos, um orador ou chefe. A massa é imediata, vive inteiramente o presente, sem ligações com o passado ou o futuro, sem lembranças ou reflexões. Suas motivações são irracionais.

Mas para Tillich, a lei da imediaticidade explica o desabrochar dos instintos biológicos imediatos, que estavam inibidos. Também mostra a existência de um princípio espiritual imediato que se faz presente, que pode ser traduzido como o abandono ao instinto do momento em direção à disponibilidade da revelação espiritual do presente, revelação de uma espiritualidade subjetiva impura  . Ou seja, a irracionalidade das motivações pode dirigir ao irracional de baixo, à demência, ou ao irracional de cima, à novidade criadora. 

A outra lei da psicologia das massas, segundo Tillich, é a lei da amplificação. Se a vida espiritual do indivíduo perde suas inibições, se tal fato se repete em cada indivíduo presente, como num alternador, o vivido por um, suscita em outro experiência idêntica, porque a massa vivencia ela própria o ser massa. 

Essa lei nos leva a dois aspectos da vida da alma, o aspecto emocional e o aspecto intelectual. Em todo movimento da massa podemos observar a força do entusiasmo, a amplificação das paixões, da coragem, que podem levar ao seu sacrifício e destruição. Do lado intelectual, a lei da amplificação age de forma mais discreta, porque o processo de reflexão não convém à massa por causa de sua complexidade .

De certo ponto de vista, explica Tillich, o indivíduo está mais alerta que a massa, mas a massa pode se elevar bem acima das consciências subjetivas, com suas intuições mais simples, mas também maiores e também com sua clarividência disso, que prepara o espírito objetivo no momento presente  .
A amplificação pode levar ao monumental e ao heroísmo, mas também ao demoníaco e à destruição. E as intuições da massa podem se conformar ao espírito ou lhe ser refratário.  

As leis da psicologia das massas são leis naturais, afirma Tillich. Elas são sempre válidas e necessárias onde uma pluralidade se encontra reunida. Elas têm valor para todos os estamentos sociais, para um grupo de marginais, assim como para uma assembléia de nobres. Com ironia superior, elas regem uma reunião de convencidos individualistas, assim como explicam o sentimento de superioridade existente na palavra massa, quando usado como slogan   .

Segundo Paul Tillich, no conceito material de massa, a essência de um grupo de homens determinado é ser essencialmente formado conforme a psicologia das massas . Por isso, no sentido histórico do termo, a massa, quer sejam classes ou ordens, raças ou círculos, partilha do destino de ser excluído de toda formação espiritual individual.

Vemos, então, que para Tillich a imediaticidade da massa faz com que desabroche nela instintos biológicos que estavam inibidos no indivíduo, o que traz à tona um princípio espiritual imediato: a disponibilidade à revelação espiritual do momento presente. Essa imediaticidade é o que leva a massa ao irracional de baixo, à demência, ou ao irracional de cima, à novidade criadora. 

Ao lado da imediaticidade, os aspectos emocional e intelectual são amplificados. As forças do entusiasmo e da coragem são amplificadas de tal modo que podem levá-la ao sacrifício e destruição. Assim, a massa se eleva acima das consciências individuais com intuições simples, mas com clarividência disso. Este processo prepara o espírito objetivo  no momento presente.

Quando objetivamente a massa vive esse processo de espiritualização, nela,  religião e cultura se misturam. A esse primeiro momento de evolução da massa Tillich chama de massa mística.


1.5.1. Da massa mística à massa dinâmica


No contexto geral de uma análise da ética social protestante, não se pode deixar de levar em conta que a evolução histórica dá nascimento a diferentes tipos de massa, conforme o modelo de desenvolvimento das relações entre religião e cultura.  

O primeiro estado, conforme explica Richard, consiste em uma unidade onde os dois ainda não se distinguem. Uma segunda etapa é marcada pela autonomia da cultura: assim, ela se diferencia mais e mais da religião, a ponto de gerar a secularidade moderna.

Mas esta ruptura e separação são catastróficas tanto para a cultura como para a religião. E serão então superadas pela etapa final da teonomia, caracterizada pela presença de conteúdo religioso em todas as formas autônomas da cultura  .

Podemos facilmente reconhecer os elementos desse esquema na descrição que Tillich faz dos diferentes tipos de massa, diz Richard. 

A massa mística corresponde à religião de origem: é a fusão dos indivíduos numa única comunidade que engloba tudo. Vem em seguida a etapa da autonomia, onde os indivíduos se diferenciam cada vez mais da comunidade de origem, até tornarem-se completamente independentes e separados. Mas ainda é massa sem forma e cultura, que não se colocou em movimento e caminhou para um estado de individualização. Essa é o estado de massa técnica ou mecânica, característico da moderna sociedade industrializada . 

A partir daí surge a perspectiva de uma etapa final onde a massa e a individualidade pessoal formarão uma nova união, uma síntese nova, chamada massa orgânica, que corresponderá ao ideal da teonomia. Logicamente, nem sempre se caminhará em direção a este ideal: mas o tempo histórico que orienta nessa direção é o da massa dinâmica  . 

Dessa maneira, para Tillich, 
a massa dinâmica é sempre revolucionária, não unicamente no sentido político do termo – inclusive este é o sentido menos freqüente --, mas sempre em um sentido de fé espiritual e social. É necessário que ela seja revolucionária, porque o sentido de seu movimento é precisamente ir além do estado de massa e todas as formas que são responsáveis por este regulamento  .

Assim, explica Richard, para Tillich o movimento da massa dinâmica parte da massa mecânica e é essencialmente um movimento de libertação: o movimento da massa dinâmica parte da massa mecânica, já existente ou em perigo de aparecer, e visa a supressão da massa, visa à massa orgânica, não importando que esse começo seja ou não atendido. 

Vemos aqui que Tillich tem uma compreensão diferente daquela de Gramsci, que entende a vanguarda enquanto intelectualidade orgânica, mas não vê a massa em processo dinâmico que pode levar ao surgimento de uma massa orgânica. Sem desejar nesta obra – já que este não é seu objetivo – fazer um confronto entre os dois pensadores, tocamos apenas no ponto que metodologicamente nos interessa: o espírito de profecia, conforme vimos, não se limita ao profeta ou ao intelectual, é um processo maior que tem na massa orgânica uma dupla ação, de liderança da sociedade e de transformação da situação-limite.  


1.5.2. Massa orgânica e socialismo 


Na perspectiva da ética social protestante, Tillich não se limita à consideração da massa orgânica socialista. Para ele, a passagem da heteronomia à autonomia e posteriormente à teonomia, que fazem parte da estrutura de sua teologia, constituem ciclos que se encontram em diversas épocas. 

Assim, os movimentos de massa dinâmica são encontrados 
no movimento religioso da época do cristianismo primitivo helenístico, no movimento político e racial da migração dos povos, no movimento espiritual e religioso da Reforma, no movimento econômico do socialismo  .

Embora esses movimentos possam ser encontrados em diversas épocas, também o são em diferentes esferas da cultura. Mas  sempre são movimentos de libertação: 
ele é parteira de escravos oprimidos, de povos bárbaros excluídos, de leigos passivos, ou desses escravos livres que são os trabalhadores assalariados, sempre que a mecanização real ou ameaçadora da massa deu lugar a uma dinâmica de massa que transbordou a história.   

Uma tal visão abre perspectivas interessantes na compreensão da ética social protestante e na análise de diferentes situações históricas, em especial do momento vivido pelo jornal Versus e a Convergência Socialista no final dos anos 70 no Brasil. A questão da transformação da sociedade, a luta pela democratização e a formação do Partido dos Trabalhadores, por exemplo, podem ser compreendidos melhor através do caminho metodológico construído por Paul Tillich em seus escritos socialista. E como ele próprio afirmou, em declaração ética e cheia de esperança, todas as questões convergem para uma mesma resposta: a humanidade deve ter origem nas profundezas de um novo conteúdo, onde será superada a oposição entre massa e personalidade. Onde um novo conteúdo será produto da graça e do destino.  
     






2. O VERSUS SOCIALISTA


2.1. O Versus socialista como fonte


Segundo Bernardo Kucinski  , o jornal Versus era um mensário de inspiração cultural-existencial, com uma proposta de ação através de uma cultura de resistência, mas foi reelaborado com uma linguagem mítica, adotando como referência toda a América Latina. Marcou uma época, junto com outros jornais e revistas da imprensa alternativa, nos anos 70. Nele encontramos presente o pensamento latino-americano, as expressões das artes e da cultura enquanto resistência e a realidade política da época. São informações diretas, que não passaram pelo crivo da censura, e por isso traduzem toda a riqueza do pensar cultural e da oposição da época. 

O primeiro número de Versus saiu em outubro de 1975. Tinha um original imaginário de esquerda, latino-americano, não doutrinário, e a cultura como forma de resistência ao arbítrio do regime militar. 

...Versus nasceu de um delírio que eu tive em Cuiabá... eu havia ido ao Mato Grosso fazer uma matéria para o JT e conheci o Juruna... Cuiabá é o centro geodésico da América do Sul, o pôr-do-sol me encheu de emoção; me apaixonei pela idéia de um jornal que falasse de índios, da América Latina, que tivesse aquele pôr-do-sol. Sonhei com um jornal que contasse a história dos povos da América Latina... que fosse realidade e ficção, de grandes histórias, narradas como histórias, e havia o fascismo na América Latina, havia Chile, eu queria um jornal que contasse a história da resistência na América Latina...  

Com a linguagem da cultura, Versus viveu a política sob novas perspectivas. Passou, por exemplo, a editar um caderno dedicado à questão negra, Afro-Latino-América, que se tornou um espaço de aglutinação de militantes do movimento negro. Tornou-se também uma embaixada de exilados latino-americanos, que chegavam atraídos pela preocupação de resistência latino-americana do jornal. Além disso era grande o seu prestígio entre artistas e intelectuais. Nomes como Milton Nascimento, Chico Buarque, MPB 4, Simone e o grupo Taracón participaram de um show de apoio ao jornal, com a presença de 15 mil pessoas, transmitido por sistemas de som para outras 20 mil no congresso alternativo da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência, no segundo semestre de 1977, em São Paulo.

Em janeiro de 1978, o jornalista Jorge Pinheiro, recém chegado de seu segundo exílio, depois de passar um ano na Europa observando e participando da organização dos partidos socialistas na Espanha e Portugal, entra para o jornal. Em março Versus assume o discurso político socialista. Mais tarde, Ênio Bucchioni e Omar de Barros Filho, vão explicar como se deu o surgimento do Versus socialista. 

Nascia o ano de 1978 e, com ele, uma indagação para nossa equipe. Mais que isso, um desafio. Sabíamos que a hora não era apenas das denúncias, mas da discussão das perspectivas. Assim, abrimos a polêmica interna e externamente, e publicamos Chico Pinto, José Álvaro Moisés e Fernando Henrique Cardoso. Era a primeira edição do ano, e o tema da discussão era a questão dos novos partidos. Natural que voltássemos ao passado para rever criticamente o velho PTB e o fenômeno do populismo. E essa foi nossa conclusão:
Ao movimento popular de 1964 faltaram lideranças. Fragilmente organizado na base, recebendo grande parte de sua inspiração ideológica de cima. Eis que se vê abandonado, sem um esboço de reação de seus líderes. Entre as lideranças faltosas com os milhões de trabalhadores a quem tudo se prometera e que permaneceram na miséria, na doença...sobressai-se a figura esquálida do ex-presidente, exasperante nas suas pequenas astúcias, nas suas jogadas íntimas...
Versus mudou? Foi a pergunta que fizemos em fevereiro. A resposta foi positiva, e aí nasceram nossas principais transformações. Versus que inicialmente estava voltado quase completamente para o que chamávamos de cultura como forma de ação assumiu o discurso político. E passou não só a discutir profundamente a conjuntura nacional, como também a se identificar com as correntes que entendiam que a construção de uma democracia, no país, passava necessariamente pela legalização de todos os partidos operários. Partimos para a construção de um partido socialista. Foi uma decisão importante, no início de nosso terceiro ano de vida. A decisão, consagrada por ampla maioria de nossa equipe, foi reafirmada em nosso editorial: 
Versus pensou dois anos as lutas dos índios, a questão da Universidade e do Poder. O movimento estudantil, a vida dos trabalhadores, imperialismo cultural... mas nós tínhamos clareza de que ao nível de nosso país, as tarefas de Versus eram frustrantes. 

Ênio Bucchioni e Omar de Barros Filho deixam claro que, de fato, o Versus se transformara. Continuava estampando em suas páginas o universo das lutas políticas e culturais da América Latina, mas 

também a luta por uma alternativa política independente no Brasil. A luta pelo PS crescia. E buscamos as opiniões de Almiro Affonso, Edmundo Moniz, Plínio de Arruda Sampaio, a Tendência Socialista do MDB, no Rio Grande do Sul.
No ímpeto da busca de uma resposta prática, que materializasse nossa perspectiva política optamos por um caminho. No próprio mês de fevereiro, participamos de uma breve convenção, a que criava a Convergência Socialista. Juntamente com 25 entidades estudantis e de trabalhadores passávamos a refletir o ardor diário da construção de um futuro PS. Já não éramos mais espectadores e críticos da realidade social e política hostil que nos circundava, mas nos sentíamos parcela integrante de um movimento ativo no sentido de transformar. O corolário desta opção política foi o surgimento de críticas de companheiros com que, de uma forma ou de outra, marchamos juntos contra o regime militar, nosso opressor comum. O pretexto era que dividíamos a oposição. 

Essa crítica foi respondida por Omar de Barros Filho, um dos editores de Versus. Dizia ele na edição de março-abril de 1978:

Entre críticas pela direita e pela esquerda nós, socialistas, continuamos com a construção da Convergência Socialista, movimento amplo, pela unidade... Pensamos que o MDB, onde os “liberais” detêm a hegemonia, não esgota todas as correntes de oposição ao regime... mas não podemos esquecer que uma frente (opositora ao regime militar) é formada por contrários não antagônicos, e que é no debate e na ação que  a frente se dinamiza e avança em direção aos seus objetivos.  

Em agosto de 1978, o movimento de Convergência Socialista prepara o congresso de criação do Partido Socialista e no final desse mês a direção do jornal é presa e Jorge Pinheiro entra para a clandestinidade. Apesar da dificuldade do momento, já que parte de seus jornalistas estava presa ou clandestina, Versus informa aos seus leitores que pretende integrar três linguagens como forma de ação, a da cultura, a reflexão sociológica e a discussão da instância diretamente política.
 
Aos leitores, que nos acompanharam nesta trajetória, principalmente aos cinco mil novos que nos conheceram a partir do segundo semestre, deixamos registrado neste editorial a nossa transformação durante 78 e a relação dela com a dinâmica das lutas sociais e políticas. 
Versus se dispõe a integrar estas três linguagens: a da cultura como forma de ação, a reflexão sociológica, e a discussão da instância diretamente política. Em São Paulo, Rio, Brasília e Porto Alegre, o dilema se coloca nos meios oposicionistas: qual a forma de construir uma oposição com um programa político, social, cultural novo?  

Essa presença na vida política e cultural de milhares de brasileiros, principalmente daqueles envolvidos com a democratização do país, fará do jornal um bastião avançado nas lutas pelas liberdades democráticas. E assim ele será reconhecido. Sua produção jornalística remete o leitor ao pensamento da intelectualidade socialista da época, homens e mulheres de expressão na cultura brasileira, que sem participarem da Convergência Socialista ou mesmo serem filiados a ela, viam no jornal o espaço democrático e socialista para a expressão de suas idéias. O debate aberto dessas idéias traduzia a força do jornal e formava um dos pólos da riqueza ideológica da Convergência Socialista: o ideal do convergir sem diluir-se em pesadas estruturas burocráticas. Entendido esse processo, consideramos Versus fonte imprescindível para a compreensão do pensamento socialista da época e da Convergência Socialista em particular.


2.2. O Versus e a Convergência Socialista


Em meados de 1978, após a saída de Marcos Faerman, muitos leitores do jornal desejaram saber qual era de fato a relação entre o Versus e a Convergência Socialista. Afinal, como contam Ênio Bucchioni e Omar de Barros Filho, 

alguns boatos corriam nas mesas dos botequins de São Paulo. Entre um suspiro e outro se comentava: o pessoal do Versus recebeu dinheiro da social-democracia européia, há uma fita gravada que comprova tudo...  . 

Por isso, buscando esclarecer a opinião pública e, em particular os democratas, Júlio Tavares, da Coordenação Nacional de Convergência Socialista, informava que
 
dos 11 signatários da carta endereçada ao Versus, em que assinalam rompimento com a Convergência Socialista e o jornal, alguns nunca foram membros do nosso movimento. Outros já tinham se afastado anteriormente. 

E explica que 

Versus não é e nunca foi uma publicação do nosso movimento, mas apenas um jornal, formado por companheiros socialistas e democratas que nos apóiam. Contudo, esse fato não significa que sempre haja concordância entre as posições da Convergência Socialista e as da redação do jornal.  

Segundo seu coordenador nacional, a proposta política da Convergência Socialista se expressava clara e abertamente em todas as suas publicações e objetivava 

a construção de um amplo e democrático Partido Socialista no Brasil, usando, para isso, mesmo as leis vigentes no país, que consideramos restritivas, não democráticas e antipopulares. Lutamos para que esse partido seja construído através de uma ampla e livre discussão interna, que integre todos os que se reclamam socialistas, organizando núcleos de base por locais de trabalho.  

Nesse seu arrazoado público, Júlio Tavares explicava que a Convergência não estava lutando por mais um partido popular, como aqueles que tinham existido no passado, porque isso, segundo acreditava a Convergência Socialista, seria abrir as portas para a união com falsos socialistas e populistas.

E agregava que de fato não tinham conseguido unificar todos os setores que diziam querer a construção de um Partido Socialista. 

A nossa proposta foi e continua sendo a da unidade. E, se não conseguimos unir todos os grupos, isso não invalida nossa proposta e nossos métodos. No entanto, não estamos isolados. Não está isolado um movimento que tem hoje o apoio de milhares de pessoas na maioria dos Estados do Brasil.  

Assim, para a Convergência Socialista, não podia estar isolado um movimento que congregava 

operários, camponeses, bancários, professores, estudantes, donas de casa, padres, e as mais diversas categorias sindicais. Nossa dinâmica aponta para o crescimento da Convergência como um todo. Nossa proposta se amplia pelas mãos de negros e de brancos, de religiosos e de não-religiosos, de operários e de estudantes 

--  e, numa agulhada àqueles que tinham deixado o Versus, afirmava -- e por poucas mãos de ‘intelectuais’. 

E assim, convencida de que estava no caminho certo, a Convergência Socialista faz sua profissão de fé: 

Ela se amplia pelas mãos dos nossos companheiros que foram presos em Brasília pela polícia política. Ela se renova pelas mãos dos companheiros que foram presos distribuindo convocatórias para a nossa convenção, no ABC. Talvez não tenhamos entre nós “grandes personalidades”, e sim, homens do povo, anônimos, que não tem nome em jornais, que não ganham grandes e confortáveis salários. São trabalhadores. E para nós, da Convergência Socialista, são os trabalhadores os únicos capazes de construir sua própria emancipação, uma alternativa socialista em liberdade. 



2.3. O Versus e os desafios do tempo presente


Em janeiro de 1979, Ênio Bucchioni e Omar de Barros Filho, analisando o ano que chegara ao fim, afirmavam: 
A cultura como forma de ação era insuficiente para acompanhar as transformações registradas na sociedade brasileira durante 1978. Versus assumiu o discurso político. Mais que isso, buscou encontrar os caminhos para a construção de um novo programa político, social e cultural. Divulgamos o pensamento de inúmeros líderes políticos, desde os remanescentes do PTB aos socialistas. Acompanhamos as lutas, os impasses e o desenvolvimento dos trabalhadores e suas lideranças, desde a Scania, no ABC, às eleições e a perspectiva da criação de seu Partido. (...) Estivemos na linha de frente na campanha pela Anistia e pelas liberdades democráticas, reclamadas pela população brasileira. Fomos duramente atingidos pelos vários organismos repressivos do regime, inclusive com as prisões de alguns companheiros da redação, administração e colaboradores. Fomos sufocados financeiramente, e houve momentos em que a sobrevivência material diária ficou em mãos de nossos amigos e companheiros. No entanto, permanecemos e nos transformamos, nesse terceiro ano de vida, o mais agitado, sem dúvida. Ousamos nos entranhar na realidade social e política, e nos definimos. Acreditamos na profundidade de nossos ideais e estamos convencidos de rumar no mesmo sentido da história, sendo uma de suas parcelas vivas e atuantes. 

Na verdade, bastaria uma rápida olhada nas manchetes dos jornais daquele ano para se ver que fora diferente. Em janeiro de 1978, quando o general Ernesto Geisel definiu que o general João Baptista Figueiredo iria sucedê-lo, o então chefe do Gabinete Militar, general Hugo Abreu manifestou publicamente seu desacordo e foi demitido. Acusou um grupo palaciano de ter tramado a candidatura do general Figueiredo e acabou preso.

A oposição permitida, representada pelo Movimento Democrático Brasileiro -- MDB, tentou uma candidatura alternativa com o general Euler Bentes Monteiro, mas não conseguiu nenhum apoio dentro das Forças Armadas.

Mas a novidade, de fato, foram as greves dos metalúrgicos do ABC paulista, que começaram em maio e rapidamente se espalharam. Assim, o Versus analisou essas mudanças na conjuntura do país.

As greves no ABC estouravam, quando ganhamos um novo colaborador. Seu nome: Santiago. Sua profissão: operário metalúrgico. Estávamos na rua com a edição de junho. Santiago entrava em campo. “A posição destacada, assumida pelas direções sindicais de São Bernardo, Santo André, Santos, na luta pela reposição salarial, dando exemplo para todas as categorias profissionais, recoloca nossa classe metalúrgica na vanguarda no operariado brasileiro, no que diz respeito à prática sindical, e marca profundamente níveis de comportamento que rompem com um passado de quase estagnação das lutas reivindicativas. Não será mais possível voltar atrás...”. Santiago tinha razão. As greves repercutiam intensamente no país inteiro. Trabalhávamos como doidos na redação (praticamente sem recursos, comendo pouco, e dormindo menos ainda) para acompanhar os acontecimentos no ABC paulista. Tiramos duas edições extras, dirigidas para os sindicatos e fábricas. Impactados pelos fatos, transformamos um pouco as feições de nossa publicação. Buscávamos um mergulho mais fundo. Jorge Pinheiro, edição de junho-julho, notava: “A greve no ABC começou a abrir os olhos dos trabalhadores para o que são o governo e suas leis. Os operários, é claro, quando iniciaram a greve, não entendiam nada de leis, mas quando as fábricas foram se enchendo de fiscais, inspetores, e até mesmo de policiais, então aprenderam muita coisa. Aprenderam que estavam violando a lei, que era ilegal pedir de forma unitária um aumento de 20 por cento. E, nesse momento, algumas abstrações como Governo Militar, AI-5, Anistia, etc... começaram a ficar mais claras...” No entanto outro fato de intensa significação política marcou o mês de agosto. Ainda que embrionário, detectamos sua importância e sua possível evolução: a oposição sindical surgida no V Congresso Nacional dos Trabalhadores industriários. Enio Bucchioni, nosso editor nacional, assinalava então que a oposição Sindical, surgida do movimento grevista, consolidada programaticamente numa Carta de Princípios, e estruturada nos principais sindicatos do país era o fenômeno superestrutural e político mais importante registrado desde 1964. “É ela uma alternativa? Ainda não, mas em processo de se transformar. Para isso terá de se estender horizontalmente junto às suas bases, e verticalmente, consolidando seu raio de ação com os demais sindicatos que a ela se incorporarem buscando a adesão de novos companheiros”.  

Assim, como diria Tillich, era necessário proferir um não ao tempo presente. Mas um não abstrato, amplo, que não criticasse o tempo presente em concreto, de forma particular, pelo simples fato de que não aceitar os símbolos das forças demoníacas daquele tempo. E nessa crítica, Marx e outros teóricos do socialismo poderiam ajudar pouco, pois o fundamental era envolver-se na situação histórica concreta, ter a coragem de decidir e colocar-se sob julgamento, ao nível do particular. 


2.4. O Versus socialista e os deserdados da terra
 

Maio de 1968 tinha ficado para trás. Os Estados Unidos perderam a guerra do Vietnã (27/01/1973). No lado comunista, no porto de Gdansk, na Polônia, um sindicalista católico, Lech Walesa, se levanta contra o establishment. Com ele e a partir da primeira central sindical independente do mundo comunista, o Solidariedade, jovens de todo o mundo começam a repensar a política. 

Mas no Brasil o AI-5 tinha fraturado o ano de 1968, que no dizer do jornalista Zuenir Ventura foi o ano que não acabou. Tal situação de forte repressão, censura à imprensa e restrições das liberdades, fez com que o ano de 68 ressurgisse dez anos depois, quando o governo militar, já em declínio, vê-se obrigado a aceitar uma abertura política que ele pretendia lenta e gradual. 

Assim, combinando os ventos novos da situação internacional com a ressurreição dos sonhos de 68, sindicalistas e jovens falam de um socialismo onde a liberdade da pessoa seja uma realidade. 


2.4.1. A consciência afro-americana
 

O Versus olha o mundo com curiosidade. A luta dos afro-americanos sensibilizará os intelectuais negros que fazem parte do corpo editorial do jornal. E um revolucionário negro será citado e terá textos publicados no Versus: Malcolm X.

Estamos vivendo numa era de revolução, e a revolta do negro americano é parte da rebelião contra a opressão e o colonialismo que caracteriza esta era. Não é correto classificar a revolta do negro como simplesmente um conflito racial dos negros contra os brancos, ou como simplesmente num problema americano. Ao contrário, hoje estávamos vendo uma rebelião global do oprimido contra o opressor, do explorado contra o explorador. A revolução negra não é uma revolta racial. Estamos interessados em praticar a fraternidade com qualquer um que esteja realmente interessado em viver de acordo com isso. Porém, o homem branco pregou, por muito tempo,a doutrina vazia da fraternidade, que não significa mais do que o negro aceitar passivamente o seu destino...
As nações industriais do Oeste têm deliberadamente subjugado o negro por razões econômicas. Esses criminosos internacionais saquearam o continente africano para alimentar suas fábricas,  e são os verdadeiros responsáveis pelo baixo padrão de vida que prevalece por toda África. 

A empatia de Versus pela lutas dos irmãos afro-americanos traduzia sua compreensão de que devia apresentar a seus leitores uma mensagem de vida tanto ao nível da pessoa como particularidade, como da sociedade como um todo. Assim, essas reportagens não traduziam apenas solidariedade, no sentido de um movimento preocupado com a pessoalidade dos excluídos, mas a compreensão de conhecimento que deve nortear a luta daqueles que se encontram em situações semelhantes. Nesse sentido, solidariedade e clamor profético contra a exclusão eram entendidos como práxis socialista.  Ou, como disse o próprio jornal, em editorial:
Versus se dispõe a integrar estas três linguagens: a da cultura como forma de ação, a reflexão sociológica, e a discussão da instância diretamente política.  


2.4.2. A consciência dos povos indígenas


Mas, corações e mentes serão sensibilizados por uma outra luta, que uma década antes era praticamente desconhecida da esquerda brasileira, a luta dos povos indígenas por soberania e direitos civis. E é assim que Versus desembarca em Nova York e entrevista Waubun Niwi-Nini. 

Sou membro da nação indígena Ojibwa. Os invasores colonialistas nos chamam de Chipawawas. Meu nome é Waubun Niwi-Nini, sou também conhecido pelos colonizadores pelo nome Vernon Bellcourt. Sou representante do American India Movement (AIM) e um dos representantes do Internacional Indiana Treaty (IIT) que é o nosso braço internacional trabalhando nas Nações Unidas e outros foros internacionais para levar ao conhecimento da população mundial a nossa luta pela sobrevivência dos indígenas “Das ilhas da Tartaruga Sagrada” conhecida pelos invasores como América do Norte.
Tanto na América do Norte quanto na do Sul não houve modificações na relação entre o índio e o branco. Sempre fomos vítimas da dominação colonial da exploração e da repressão. Somos vítimas da guerra colonial mais longa da história dos Estados Unidos. Pode ser que tivemos boas relações com os brancos enquanto pessoas, mas a política oficial do governo sempre foi para nos dominar e nos guardar em reserva. Aqui eles chamam esses lugares para confinamento de reservas, na África do Sul eles chamam Bantustan. 

A entrevista de Versus com o líder indígena norte-americano mostra que há cem anos a cavalaria era a grande responsável pelos massacres, mas que agora o arbítrio e a exclusão se faz através da sofisticação da CIA e do FBI, da Agência de Segurança Nacional e da Inteligência do Exército. 

Nesses últimos cem anos os brancos roubaram as terras indígenas em 110 milhões de acres, que foram tomadas pelas companhias de minérios, petróleo, madeira e agropecuária. E o governo federal fechou os olhos para essa exploração sem limites. Nos 50 milhões de acres de terra que restaram, estão 85% das reservas de urânio dos EUA, e também 30% do carvão que o governo necessita para ser independente nesse setor de energia. Estão ainda 3% de todo o gás natural das reservas de petróleo. Eis um problema complicado, não resolvido, pois afirma a entrevista que nenhum tostão dessa riqueza foi para os índios.

Para Waubun Niwi-Nini, o movimento socialista está crescendo em todo o mundo e ele  não tem dúvidas de que a América do Norte e do Sul seguirão este caminho. Crê que o futuro será socialista e por isso seu desejo de formar alianças com os movimentos socialistas. Deixa claro, no entanto, que quer o respeito à integridade dos  territórios indígenas, às nossas diferenças culturais, nossa terra e nossos recursos. 


2.4.3. A economia da fome



Mas outros temas, amplamente discutidos na Europa, chegam aos socialistas brasileiros a partir de Versus. Uma dessas discussões é colocada por Ernest Mandel, socialista belga e professor de Economia na Universidade de Gant, ao publicar em Versus um artigo analisando as causas da fome no mundo.

A fome de 1974 já foi esquecida. A colheita do ano passado no Hemisfério Norte – exceto na URSS – foi excelente. De 1972-73 a 1976-77, a produção mundial de todos os tipos de cereais em grão cresceram de 1270 para 1477 milhões de toneladas; em outras palavras, cresceu mais de 16%. A produção de trigo cresceu 23% indo de 337 para 416 milhões de toneladas.
Você pode pensar que, em face da péssima situação da economia mundial, haja no mínimo alguma razão para este brilhante lugar da economia internacional. Mas não deve ter levado em conta a obstinada lógica da economia de mercado. Porque para a economia de mercado, “superprodução” – até mesmo de gêneros alimentícios num mundo, onde a metade de sua população não ganha o suficiente para comer, é uma má notícia. É um desastre para os produtores de alimento, seja de larga ou pequena escala. Isso causa uma decaída nos preços.
Então, o negócio “lógico” acontece: a produção é destruída a fim de “proteger” preços. Em 12 de agosto de 1977, o diretor adjunto do U.S. Department of Agriculture disse numa conferência da Casa Branca que a administração de Carter havia decidido pedir aos produtores americanos de trigo para deixar 20% de suas terras produtivas descultivadas, se eles quisessem obter vantagens de medidas administrativas para manter os preços altos. Houve uma redução de 10% em terras utilizadas para forragem, e sementes foram dadas para animais domésticos.

Para Mandel, a lógica da produção para a economia privada é inevitável. Pois, quando se pode ganhar muito mais dinheiro criando gado de corte para ser vendido à Europa, do que produzindo alimentos para a população local, então esta é a direção que a agricultura seguirá. E cita como exemplo Mali, quando dezenas de milhares de crianças morreram de fome durante a grande carestia que devastou o Sahel em 1974, mas a exportação de amendoim e óleo não deixaram de crescer.

A “revolução verde” produz muito menos resultados positivos em termos de plano nutricionais do que se deveria supor. Somando-se as desastrosas conseqüências ecológicas decorrentes do uso intensivo de fertilizantes químicos em terras irrigadas, existe até mesmo terríveis efeitos sociais.
A “revolução verde” tem acima de tudo o significado da introdução da agricultura capitalista em regiões já anteriormente oprimidas, dominadas pela lavoura de subsistência. A transformação deste tipo de lavoura em agricultura capitalista significa uma inevitável polarização social entre a população, um contínuo acréscimo no acesso a terra pelos lavradores pobres, um êxodo massivo das zonas rurais, e a progressiva substituição da força de trabalho humano pela maquinaria agrícola.
E desde que não haja uma expansão paralela na industria, todo este processo significa que uma crescente proporção de camponeses será empurrada para a periferia da sociedade, tanto nas zonas rurais como nas favelas das grandes cidades. E a maior parte dessa população miserável é impedida de ter acesso direto à terra, sofre a mais séria desnutrição, até mesmo se ganha um pouco de dinheiro (a princípio através de um trabalho ocasional num serviço de setor, forma escamoteada de desemprego). 

Assim, Versus afirma que seria melhor dar uma solução imediata ao problema da fome e da subnutrição através de uma racionalização da organização econômica e social do que concentrar numa explosão populacional imaginária as causas da falta de alimentos. Dessa maneira, posiciona-se por uma ética do amor, denunciando o egoísmo da economia das multinacionais e dos governos que a elas servem, que levam à fome e a morte para muitos em benefícios de poucos. E propõe em nome de ética do amor uma economia racional e solidária. 


2.5. A busca de novos conteúdos


Mas, nem tudo estava claro. As questões pesquisadas neste bloco – a saída do jornalista Marcus Faerman do jornal, a busca de um modelo alternativo ao comunismo, as greves operárias, a consciência de latino-americanos e indígenas, a fome no mundo -- mostram que a Convergência e, por extensão, o Versus, passam a enfrentar uma séria discussão acerca da visão socialista de mundo e dos conceitos que deveriam utilizar para analisar a realidade. Assim, a própria realidade, internacional e brasileira, obrigava a Convergência Socialista a procurar novos conteúdos para velhos conceitos.

Aceitar novos conteúdos, dirá Tillich, não é repousar nos antigos, nem procurar as origens de onde um conceito pode nascer. Aceitar novos conteúdos é antes de tudo demonstrar a força de um conceito e através dessa força demonstrar que ele é capaz de lançar fora todas as ameaças de esclerose.  

Não existe conceito que não seja ameaçado pela esclerose, porque todo processo de vida tem tendência a envelhecer. Por isso, são as tensões que desafiam os processos a se superarem e manterem-se vivos. Estar vivo é isso, é superar-se, é ir além de si-mesmo. E isso se dá em todas as esferas da vida, do menor dos organismos às maiores figuras da história. Onde há vida, há a tensão entre ser-um-comigo e ser-separado-de-mim.  

Versus teve a sensibilidade de intuir o perigo da esclerose ao dizer não ao velho projeto do jornal, que temia encher de novos conteúdos velhos conceitos. A tensão era grande e acabou por fracionar o jornal.

Mas como explica Tillich, quem não conhece esta tensão, que é apenas um-consigo-mesmo, caminha para a morte. E um movimento histórico está morto se ele está apenas consigo-mesmo, quando não pode se separar de si-mesmo, nem ir além de si-mesmo. Qualquer movimento que deseje se exprimir através de novos conceitos, que deseje dar novos conteúdos a velhos conceitos e antigas formas de vida, enfrenta um momento de negação: deve superar-se a si mesmo. Deve negar seu direito de fazer parte do processo de vida, porque se tornou um ídolo, que rouba a vida, se opõe a ela, um ídolo que ninguém pode tocar.

Antes da ruptura, Versus era um ídolo. Satisfazia-se a si-mesmo, tinha prestígio entre a intelectualidade. E como alerta Tillich, a hierarquia sacerdotal fará de tudo para preservar o poder. Mas, quando seu poder interior está ferido, e qualquer um se toma de coragem para ousar tocá-lo, a impotência deste ídolo se tornou manifesta. O ídolo é uma abstração da vida original que se colocou acima da vida  , que refreia e inibe a vida, que não traduz a vida presente.

Para Tillich, os domínios são a obra de tal movimento que se esclerosou, que traduz a morte, que quer transformar em ídolos as formas antes vivas do movimento socialista. Essa cúpula sacerdotal idólatra, estes domínios desejam conferir uma durabilidade atemporal à uma única imagem do socialismo, e considera sacrilégio quando a vida procura ela própria novas formas e novos conceitos.

E onde se localizavam os desafios que Versus enfrentava? Não somente na ortodoxia, entre os velhos jornalistas, que bravamente resistiram durante tantos anos à ditadura, mas também entre os jovens, que viam no combate frontal a melhor forma de enfrentar o governo militar.

De certa forma, como afirma Tillich, ambos se mostram velhos frente à realidade. Não é somente a ortodoxia que envelhece, também os grupos radicais que fazem a crítica idolátrica, para manter assim suas próprias posições de domínio pontifical. E no que se refere ao pensamento formal a escola marxista também segue esse caminho.  

Mas é por obra de velhos crentes que os homens querem o novo, apesar do risco, apesar da ameaça de que pode dar em nada. Os velhos crentes, essa cúpula sacerdotal, conduzem ao endurecimento e às idolatrias. Mas aquele que conhece esta crença compreende o que se trama por trás da ortodoxia. Esta questão deve ser levada em conta, tanto quanto as discussões ao redor dos planos para a economia, como para o político.

Assim, para Tillich, quem não obtém do real mais que uma imagem deformada pela propaganda está cometendo um erro perigoso. Compreender a ortodoxia, mesmo a ortodoxia socialista, nos leva a fazer julgamentos, isentos de um radicalismo irresponsável. 

Para a ortodoxia não se pode aceitar o perigo, mesmo quando ele representa aquilo que é profundo. Mas, o medo ao perigo é a porta de entrada de todo endurecimento, de todas as violências e de toda caducidade. É certo que se deve superar o perigo e a perda, apesar dos riscos, sem esquecer, no entanto, que no socialismo o novo pressupõe risco. O risco nunca deixa de existir, porque viver é avançar no indeterminado.

Assim, foi o não à ortodoxia que possibilitou o surgimento do Versus socialista. E como muitos conheciam o que propunham os velhos, optaram pelo risco do novo.

O risco, explica Tillich, é o contrário da adaptação oportunista. Com efeito, a adaptação jamais quer colocar em jogo o que ela possui. Ela quer conservar, ela não quer o novo. Ela sente que necessita do novo, mas não tem a coragem de arriscar. E isso acontece porque deixou que o velho coagulasse em seu interior. 

Esta é a maneira mais comum e a mais terrível de não ir além de si-mesmo, porque  favorece a aparência, ilude a realidade. Isto jamais deveria acontecer na política, que deve lutar para realizar as possibilidades do momento, que concernem mais que nada à atitude interior.

No radicalismo o risco é bem diferente, declara Tillich. O radicalismo é uma idolatria de signo contrário. Nega a tradição e deseja arriscar porque acredita que no risco está a realização daquilo que espera. Esquecem que é também sob os impulsos das tensões e das dúvidas interiores provocados pelos conceitos transmitidos pela tradição que somos lançados aos novos conceitos, que levam às soluções e nos fazem avançar. 

Por isso Tillich diz que quem aceita os riscos do socialismo deve também colocar em risco os conceitos. A ortodoxia assim como a ciência e a política têm a aprender e a arriscar no que se refere aos conceitos. A ortodoxia se prende aos conceitos porque procura aquele lugar onde a mobilidade é menor. O marxismo vai contra esse endurecimento porque acredita estar o pensamento ligado às situações sociais de transformação. O espírito do marxismo vai à luta para conquistar novos conceitos e para tirar novos conteúdos de antigos conceitos. 

Aqui dois perigos são inevitáveis: o ficar no si-mesmo e o separar-se de si-mesmo. O conceito, se ele é vivo, deve reunir nele as duas tendências. Toda mudança deve incluir o ficar em si-mesmo, pois esse em si-mesmo é a sua origem. Quem arrisca um conceito, quem tira proveito das tensões engendradas por uma certa forma de pensamento, deve se lançar às coisas novas sem esquecer o fundamento de seus conceitos.  

Isto não é socialismo, dirão alguns. Ou, dirão outros, isso é o velho socialismo, explica Tillich. Mas o certo é que aquele que aceita o risco do socialismo deve saber navegar entre essas duas acusações. Não se pode de antemão saber se essas acusações são corretas ou não. Se soubermos que elas são certas ou erradas, então não há risco. Em certos momentos não se pode decidir, definir uma hierarquia ou uma democracia espiritual ou mundana. 

Pra Tillich, só se decide o poder que tem um conceito de estruturar e de reestruturar o real quando ele mesmo já é esta realidade. É a esta decisão que nós submetemos os conceitos do socialismo, quando anunciamos o risco e pedimos ajuda àqueles que conosco querem se lançar sobre aquilo que vem, sem tentar fugir da realidade presente.   

Porque falar de socialismo como risco, pergunta Tillich. E ele próprio responde: 
Porque acreditamos que a despeito de todas as ameaças que podem pesar sobre a ortodoxia e sobre o radicalismo, o socialismo é algo vivo, que tem força para se projetar por ele próprio sem se perder. E também porque acreditamos que o socialismo tem a vitalidade suficiente para ser o fundamento, a força e o objeto de uma transformação do presente orientada para o futuro.  

E Tillich diz que acredita na força do socialismo, mas não sobre a base de uma opinião científica ou política concernente à situação presente, mas em razão do seqüestro incondicionado por parte daqueles que tem o socialismo como objetivo, em razão da indissolúvel aliança interior daqueles que colocam na fé socialista o sentido de sua existência, de uma existência espoliada de sentido.

Uma fé assim fundada, considera Tillich, tem suas raízes num conhecimento muito mais profundo do que aquele enraizado na ciência, mas que ao longo do tempo pode se transformar num ídolo. Esta fé unida à ação e à decisão (e essa é a novidade conforme entendia Marx) é ela própria um risco.

A fé na força do socialismo está enraizada no fato de ser percebida incondicionalmente naquilo que no socialismo é ultimate concern . Esse ultimate concern é o que procuram exprimir todos os conceitos do socialismo e que, em última instância, não pode ser apreendido por nenhum deles.   

Eis porque, considera Tillich, todos os conceitos últimos nos quais o socialismo tem depositado seu sentido são símbolos – e não representações científicas, demonstráveis ou refutáveis. Apesar de Marx falar de uma sociedade sem classes ou da história do gênero humano a partir da pré-história, ou ainda na questão da justiça, da liberdade ou da comunidade futura, são símbolos daquilo que é ultimate concern e que não se pode exprimir diretamente.

Assim, alguns desses conceitos vão além daquilo que enunciam diretamente. O conteúdo de um conceito muda e deve mudar com a situação social e espiritual onde está sendo aplicado. Aquilo que é visto como um fim, inacessível, não muda nunca. E se não muda, esclerosa.

E Tillich conta como surgiu a idéia de “socialismo religioso”. Porque essa situação também acontece com os conceitos religiosos, originais e autênticos -- diz ele -- que são deformados ideológica ou racionalmente, alguns de nossos colaboradores, que trabalhavam com esses conceitos, reuniram-se, depois de alguns anos, sob o nome de “socialismo religioso”.  

Mas para ele, esse nome leva a um duplo mal-entendido, aparentemente insolúvel. Do lado religioso, tem de ser combatido porque traduz a idéia de uma tentativa de dissolver a religião no socialismo. E do lado socialista, se tem associado a palavra “religião” às igrejas, o que leva à recusa de ligar religião e socialismo.

Ora, socialismo religioso não significa nenhuma das duas coisas, explica Tillich. O que ele procura é compreender e estruturar o socialismo do ponto de vista daquilo é que ultimate concern, e assim, sobre essa base realizar a religião de maneira nova e concreta. Nós, quer dizer aqueles entre nós que se contam como socialistas religiosos, aceitamos a alcunha para não produzir outros mal-entendidos.  

Um movimento que não tem a profundidade suficiente para apresentar uma resposta à questão última e incondicional do sentido da vida não poderá obter o nosso Sim incondicional. Nós acreditamos, continua Tillich, que o socialismo pode apresentar uma tal resposta, e trabalhamos para que essa resposta não se torne prisioneira do provisório e do não-último, mais direcione ao que é ultimate concern, ao religioso no socialismo.

Em lugar de falar de justiça, de liberdade ou de comunidade, pode-se falar da exigência de uma sociedade onde será possível a cada indivíduo e a cada grupo satisfazer o sentido da vida, ou falar da exigência de que a sociedade se encha de sentido.

A questão do sentido da vida se faz mais presente em todas as esferas da sociedade atual, principalmente em relação ao proletariado. É a questão mais profunda e ao mesmo tempo a mais global: todos estão inseridos nela. E responde da mesma maneira a todas as questões particulares. Ela se refere também ao fundamento econômico, material, à vida psíquica e às formas de expressão do espírito.  

Quando se fala de liberdade, damos mais importância ao indivíduo, quando se fala de comunidade, damos mais importância ao grupo, mas o sentido da vida inclui o indivíduo e o grupo. Por isso, para Tillich, falar do sentido da vida não é ser utópico, porque fala somente da possibilidade do sentido que a vida deve ter. Da mesma maneira, não é uma postura ideológica, porque coloca a questão do sentido da vida sobre a base das tensões concretas do presente.

Também não pode ser uma postura reacionária, porque o sentido da vida jamais se completa, está sempre para se cumprir. E, portanto, não é um ideal vago, é a realidade viva, aquilo que faz a vida possível.

O socialismo que nós queremos é aquele que coloca na teoria e na prática a questão da possibilidade que a vida tenha sentido para todos os indivíduos da sociedade e que se esforce para responder a esta questão no plano da realidade e do pensamento. Um tal socialismo não é apenas um movimento político, é mais que um movimento proletário. É um movimento que procura apreender cada aspecto da vida e cada grupo da sociedade. 

Assim, para Tillich, a busca do sentido da vida é um desejo universal, do qual ninguém está excluído. Quando percebemos a sua profundidade, percebemos também sua universalidade. Por isso, deve tornar-se o fundamento da ação de transformação espiritual e política socialista.

Sem conhecer o pensamento de Tillich, mas chegando a ele por vias transversas, como veremos mais à frente, Versus parte em busca do sentido da vida, levantando bandeiras que chocam ortodoxos e radicais no amplo espectro do socialismo brasileiro.



 






3. SOCIALISMO E CRISTIANISMO


3.1. Heróis cristãos para o socialismo


O Versus socialista tem uma clara e expressa empatia com o cristianismo. Vê como seus heróis e heróis dos excluídos aqueles homens e mulheres de fé que se posicionaram ao lado dos deserdados do capital.

E essa constatação é clara e definitiva ao lermos as matérias de estudiosos do cristianismo e entrevistas com líderes cristãos. Sem dúvida, Versus expressa essa empatia principalmente pela expressão maior do cristianismo latino-americano, o catolicismo da Teologia da Libertação, mas sem nenhum sectarismo encontra na vida do Dr. Martin Luther King Jr. um exemplo digno de ser seguido.  


3.1.1. Negro, pastor, batista


Em abril de 1979, o Versus afirmava que há 11 anos Martin Luther King foi assassinado. Sua morte deve ser lembrada pelos 270 milhões de negros espalhados pelo mundo como um marco de resistência e de força à dominação e exploração branca. E conta para seus leitores a história de Rosa Parks e de como liderados pelo jovem pastor batista Martin Luther King Jr. os negros de Montgomery se rebelaram.

1955. Uma costureira negra, dirigindo-se do trabalho para casa em Montgomery, Alabama, recebeu ordens de um motorista branco para que se transferisse para a parte de trás do ônibus. Rosa Parks estava sentada, em um dos bancos da frente, e simplesmente recusou-se a mudar de lugar. Foi presa por violação às leis de segregação do Alabama. A comunidade negra enfureceu-se. Os negros disseram que já vinham sendo insultados há demasiado tempo por motoristas de ônibus brancos, e declararam que não tomariam mais qualquer ônibus até que a segregação fosse eliminada e certo número de motoristas negros fosse admitido.
Liderados pelo jovem ministro batista Martin Luther King, os negros de Montgomery simplesmente boicotaram os ônibus até que a empresa, quase á bancarrota, submeteu-se ás exigências. Em breve, os negros de muitas cidades do Sul recorreram à técnica do boicote para conseguir melhor tratamento nas lojas e outras casas comerciais, e para assegurar melhor emprego para sua gente. Se os autores do boicote usavam a não-violência, eram ao mesmo tempo militantes e obstinados. Certamente, tiveram importância na obtenção de certas mudanças que o Sul dos Estados Unidos, com sua veemente resistência a toda e qualquer transformação, consideraria revolucionária.

Treze anos mais tarde, continua o Versus, exatamente no dia 4 de abril de 1968, o pastor King preparava uma marcha dos negros na cidade de Memphis, Tennessee, quando foi  atingido por tiros. 

Martin Luther King, formado em Filosofia e Teologia em Boston, premiado com o Nobel da paz em 1964, reconhecido por todos os negros, inclusive pelo líder do Black Muslim, o inflexível Malcom X, estava morto. Ele que havia pregado e lutado pela não-violência, era uma de suas vítimas mais trágicas.
Desde a época em que chefiou o boicote dos ônibus em Montgomery, inúmeras foram as ameaças à sua vida. Foi publicamente denunciado e alvo de abjetos epítetos. O próprio clima tornou-se tão carregado que, considerando-se agora as coisas, percebe-se que um fim violento para o grande líder negro era inevitável. Todavia, a América branca não podia antecipar a reação da América negra ao assassinato a sangue frio de um de seus líderes mais poderosos. Vários dias de desordens, incêndios e pilhagens em muitas cidades foram a louca manifestação de um amargo desespero e frustração. Mesmo os que prantearam a morte de Martin Luther King sem qualquer mostra exterior de emoção revelaram-se tão sensíveis no apreço de seu significado quanto aqueles cuja reação foi violenta. Descanse em paz, Dr. Martin Luther King!  

No dia 15 abril de 1955, Martin Luther King Jr. finalizou sua obra sobre A Comparison of the Conceptions of God in the Thinking of Paul Tillich and Henry Nelson Wieman . Luther King conhecia o pensamento de Tillich e, por isso, o pesquisador foi levado a aceitar que a ação desse combatente pelos direitos civis deve muito às suas leituras do teólogo em questão. 

Tanto para Luther King  como para Tillich, o poder último, autêntico, é a verdade. Entretanto, esta verdade não é uma norma abstrata que se impõe à realidade e a modifica, mas é sobretudo a expressão concreta da tendência última do real. A verdade só tem poder se ela é verdade real, se é uma tendência de vida, se é a verdade de uma sociedade, a verdade de um grupo que detém, interiormente, na sociedade, o poder.  

Tanto para Tillich como para Luther King, a conquista violenta dos instrumentos de poder social não decide a vitória de uma revolução. Isso só acontece quando se estabelece uma nova estrutura de poder, amplamente reconhecida. É um erro pensar, afirma Tillich, que amparar a revolução no aparelho do poder garante a vitória. O aparelho do poder deve ser renovado constantemente a partir das forças da sociedade, forças pessoais, materiais e ideais. Caso contrário, a revolução ruirá... mesmo quando os meios técnicos permitem que se imponha por tempo maior àquele que era possível em épocas não desenvolvidas.  

Mas do que palavras, a ação política de Martin Luther King Jr. traduziu a compreensão de que há uma dialética de ferro entre verdade e poder. E que o poder verdadeiro nasce da verdade última, aquela que transcende o momento presente e permanece no coração e mente dos excluídos. Essa compreensão, mesmo quando não é corretamente traduzida pelo grupo que chega ao poder, continua a marcar o horizonte último da ética social protestante. 

Sem conhecer Tillich, Versus via o discurso de Luther King no Monumento a Lincoln, em Washington, a 28 de agosto de 1963, com um manifesto dos excluídos. E em nenhum momento considerou velho socialismo a bandeira da não-violência levantada pelo pastor batista. 

Ao contrário, comentando os incêndios e pilhagens em muitas cidades norte-americanas após seu assassinato, afirmou que mesmo os que prantearam a morte de Martin Luther King sem qualquer mostra exterior de emoção revelaram-se tão sensíveis no apreço de seu significado quanto aqueles cuja reação foi violenta.


3.1.2. In memoriam de Camilo Torres


O jornal Versus considerava a guerrilha latino-americana uma tática errada para o continente. Mas, apesar dessa posição, reconhecia no padre Camilo Torres um cristão que soube combinar cristianismo com seu ideal socialista.

Um dos editores do Versus, Ênio Bucchioni relata de forma generosa sua experiência de exilado e o significado de Camilo Torres para sua geração. E para que a posição de Versus diante da guerrilha fique clara, faz a defesa do papel das massas como agente transformador da história.

Camilo Torres foi um símbolo da minha geração, da nossa Latino-América, influenciada pelo êxito da revolução cubana. Camilo foi também um marco no desenvolvimento da Igreja dos oprimidos, a que nasce com Medellin. Recordo ainda dos meus dias no exílio em Santiago, vários anos após a morte de Camilo: sua lenda permanecia, e também ainda sobreviviam as idéias que o levaram até a militância num grupo armado guerrilheiro no  interior da Colômbia marginalizada. E recordo um pierrot le fou chileno, membro de uma organização militarista, que preso por um cinturão de bananas de dinamite, atirou-se contra uma delegacia de polícia. Explodiu como o personagem de Godard. Foi em Santiago que, naqueles anos, li o primeiro documento produzido por exilados brasileiros, que fazia uma profunda crítica dos métodos guerrilheiros no continente. O texto era claro, era uma volta ao marxismo clássico, uma análise que recolocava no seu verdadeiro lugar o papel das massas como agente transformador da história. Ao mesmo tempo, o documento negava toda uma teoria levada a prática pela esquerda tradicional em toda a América Latina, a mesma que levou a derrocada da revolução chinesa na década de vinte, ao massacre de Jacarta, e a débâcle de Allende. Além de tentar resolver sem as massas e pelas armas a questão do poder, a guerrilha nascia com a tarefa da negação da triste herança que recebemos nos últimos 50 anos. Foi incapaz disso. Não era um simples acaso: éramos milhares de exilados, de várias nacionalidades em busca de uma alternativa...  

E numa reportagem investigativa, Versus procurou reconstruir a história da morte do líder guerrilheiro.

Após mais de 10 anos de morte do padre e sociólogo Camilo Torres, membro ativo do grupo guerrilheiro ELN (Ejército de Liberación Nacional), o povo colombiano ainda duvida das versões oficiais que à época descreveram o encontro dos guerrilheiros com as tropas regulares, no lugar conhecido como Patio Cemento. 

Para Versus, o padre Camilo Torres mostrou que seu cristianismo não somente podia, mas devia manter um relacionamento frutífero com o socialismo. Mas, mostrou também que o contrário da premissa era verdadeiro: seu socialismo podia e devia ter um relacionamento construtivo com o cristianismo.

Muitos de seus contemporâneos não viram assim. Consideravam que a concepção materialista da história negava a possibilidade dessa aproximação. Tillich já havia afirmado que essas pessoas não entenderam Marx, sua concepção não era materialista, mas econômica, e que mostrava uma relação de causalidade entre fundamento econômico e organização espiritual da cultura. 

E que, ao contrário, tal fundamento dá a todas as ciências do espírito uma possibilidade metodológica extremamente fecunda, que não tem nada a ver com ateísmo ou materialismo.


3.1.3. Sacerdote, poeta, combatente


Mas, da experiência cristã militante, ninguém foi tão amado pelo Versus como Ernesto Cardenal. Integrante da Frente Sandinista de Libertação Nacional, teve poesias publicadas pelo jornal, e foi entrevistado mais de uma vez pelos jornalistas de Versus. 

Fazia muito sol naquela manhã. Às oito e meia, e depois de uma curta e compreensiva espera, chegou a hora de conversar com Ernesto Cardenal. Ele e mais dois integrantes da Frente Sandinista de Libertação Nacional ocupavam a mesa em que se serviriam do último desjejum em Quito. Os diários informavam sobre as negociações entre a Frente Ampla de Oposição, os mediadores da OEA, e a ditadura somozista. Ernesto Cardenal chegou a Quito na qualidade de chanceler da Frente. Hoje, sua tarefa é a de buscar a solidariedade “moral e efetiva” que os povos do mundo tem para oferecer ao povo da Nicarágua. Eu sempre quis fazer a Cardenal duas perguntas. Isto porque dois dos assuntos mais debatidos na América Latina são a posição da igreja frente ao processo de libertação dos povos e o compromisso do intelectual com essa luta. Em Cardenal, sacerdote, poeta e combatente, estão as respostas.  

Mas como -- quer saber o jornal -- o sacerdote chegou à compreensão de que era necessário lutar pela libertação da Nicarágua? 

Meu compromisso com Deus tinha que ser um compromisso com o povo, e eu nunca estive longe disso. Quando fundei a comunidade de Solentiname, estava sempre preocupado com os acontecimentos do país, e nossa principal tarefa era conscientizar os camponeses e prepará-los para a revolução. Já contei outras vezes como o que mais nos radicalizou foi o Evangelho que líamos e comentávamos com os camponeses na missa, todos os domingos. E esses comentários foram sempre de uma grande profundidade teológica.  

As palavras de Cardenal traduzem o pensamento de Tillich, naquele momento histórico, para a realidade nicaragüense. O cristianismo está eticamente obrigado a fazer uma escolha: ou participa do processo, inspirando e atuando a favor desse desenvolvimento ou se retrai e entra em processo de caducidade, ao afastar-se da vida real das comunidades nas quais está inserido. Assim, tal processo de desenvolvimento, que se realiza de forma desigual na história, combina mudanças espirituais e transformações econômicas e sociais. 

Cardenal tinha consciência dessa realidade e, por isso, Versus faz dele seu ícone cristão para o socialismo. 


3.2. O pecado se chama capitalismo


Mas o exemplo cristão não chega só de além-fronteiras. No Brasil ele é contundente. E Versus explica porque.

Hoje são quase 50 mil Comunidades Eclesiais de Base, organizando cerca de um milhão e quinhentas mil pessoas, no Brasil. Elas identificam o pecado-raiz de toda a opressão: “...esse grande pecado é agora social e se chama sistema capitalista”, concluiu o III Encontro Intereclesial de Comunidades de Base, em julho de 78 na Paraíba. Já não se contam mais nos dedos as Comissões Diocesanas de Justiça e Paz. A Igreja Católica foi, talvez, o primeiro setor organizado, com peso efetivo na sociedade brasileira, a empunhar a bandeira de luta pelos direitos humanos. Ligada às parcelas mais exploradas do povo, sofrendo a perda de padres e freiras perseguidos e mortos, a Igreja se organizou para combater as ameaças à Justiça e à Paz. Deixa, enfim, o regaço dos poderosos, não sem contradições e conflitos dentro de sua própria estrutura.  

E para entender os caminhos da catolicidade, o jornal entrevistou D. Adriano Hipólito, bispo de Nova Iguaçu. Mas, explica Versus, 
qualquer que seja o resultado da reunião, a luta entre as tendências conservadoras da Igreja e os setores progressistas vai continuar. Ela não é um fenômeno apenas superestrutural, ela reflete um processo mais amplo de lutas sociais, e faz parte da movimentação política das massas latino-americanas, hoje num processo irreversível de construção de sua própria história.

Nova Iguaçu era àquela altura, modelo brasileiro de cidade dos pobres e excluídos: 
(...) oitavo município mais populoso do país, ali faltam esgotos, escolas, hospitais, transportes, segurança pessoal (reina o esquadrão da morte). Região de  operários, funcionários mal remunerados, comerciários, subempregados, que já não podem esperar soluções senão de si próprios.

Diante da desconfiança de muitos socialistas ao engajamento da igreja na luta pelos direitos dos oprimidos, por causa de sua tradição heteronômica, Versus argumenta que 
se os homens são aquilo que fazem, a Igreja está sendo aquilo que seus sacerdotes têm praticado. E essa prática de discussão e organização das bases de nossa sociedade nós precisamos compreender e avaliar. 

Assim, qual o espírito que orienta o atual trabalho comunitário da Igreja Católica no Brasil? E dom Adriano Hipólito responde:
A Igreja, na sua essência, é comunidade de fé, de esperança e de amor. Sua maior eficiência, fermentadora e renovadora da comunidade humana, sempre dependeu de seu comportamento e de sua atuação com comunidades. Sem dimensão comunitária a Igreja não é Igreja. Sem abertura para os problemas da comunidade/sociedade, a Igreja não está em condições de realizar sua missão, ser continuação da ação libertadora de Jesus Cristo, ser sinal de esperança para o homem angustiado e sofredor. 

Mas, Versus quer saber mais: o que são as CEBs, como funcionam, quem as integra? E Dom Hipólito responde:
Comunidade: as pessoas se aproximam livremente, se sentem responsáveis, descobrem e atuam nos mais diversos elementos de interesse comum. Eclesial: o ponto de partida e de chegada, os elementos formadores e aglutinadores, os métodos de ação, etc, são os mesmos da Igreja. Base: a comunidade de base tem como princípio fundamental o relacionamento primário das pessoas: pessoas que se conhecem, que se estimam, se complementam, se ajudam mutuamente. Todos atuamos em nível de base. A CEB, embora não seja constituída para fazer política, tem de se preocupar com os problemas políticos e tem parte ativa no processo político. Tem a preocupação de integrar as pessoas da base no processo social, como direito/dever da pessoa humana, e de levá-la à participação consciente e crítica. 

Como jornal socialista, envolvido com a organização dos trabalhadores ao nível sindical e político, Versus quer conhecer o pensamento de seu aliado cristão. E Dom Hipólito esclarece sua posição.

Para participar do processo social, o Povo precisa de instrumentos válidos e eficientes. Entre esses instrumentos estão, por exemplo, os sindicatos e os partidos políticos. Os sindicatos devem ser órgãos de participação eficiente na defesa dos direitos dos seus sindicalizados. Estão a serviço dos trabalhadores como comunidade de trabalho que constrói a Pátria, e não a serviço de grupos do poder, de demagogos e pelegos. O Estado onipotente conseguiu, também no Brasil, corromper a filosofia dos sindicatos, reduzindo-os a instituições de beneficência e lazer.
Um partido trabalhista que corresponde realmente a uma grande corrente do pensamento popular, na classe dos trabalhadores será, mais cedo, ou mais tarde, uma necessidade imperiosa. (...) Mas um Partido Trabalhista que esteja entregue a liderança dos trabalhadores, e não seja manipulado por uma elite burguesa que deseja apenas conquistar o poder.  

E já no final da entrevista, Versus faz uma pergunta que traduz não apenas reflexão sociológica, mas também teológica, com profundas implicações políticas para o momento. 
Como o senhor vê o possível relacionamento entre Cristianismo e Socialismo diante das necessidades dos trabalhadores? 

Sem disfarçar as divergências em pontos fundamentais, podemos admitir uma luta comum por uma causa comum: a justiça social. Quero crer que sem o Cristianismo como pano de fundo, o Socialismo não se explica suficientemente. Muitos elementos do Socialismo são de fato cristãos. 

Para dom Hipólito, assim como para Versus, a história da Igreja é passível de muitas críticas. Muitas vezes, suas opções e alianças com os grupos de poder fizeram com que se afastasse e dificultasse seu relacionamento com parte da população excluída de bens e possibilidades.

Tal situação facilitou e potencializou a pregação do ateísmo e do materialismo. Mas, como explica Tillich, não podemos dizer que o ateísmo materialista seja um fenômeno constitutivo do socialismo. Para ele, é uma herança da cultura burguesa, crítica e cética. Essa herança foi adotada pelo socialismo sob a crença de que ajudaria a extirpar a idéia de opressão e abriria o caminho para a construção de um novo mundo, mais justo e digno.

Assim, embora haja razões históricas para criticar a Igreja, o socialismo erra quando nega a existência da base solidária e comunitária do ideal cristão. Versus evita esse erro, quando esclarece aos seus leitores de que se os homens são aquilo que fazem, a Igreja está sendo aquilo que seus sacerdotes têm praticado. E essa prática de discussão e organização das bases de nossa sociedade nós precisamos compreender e avaliar.  


3.3. As correntes contrárias


Ao comentar, numa de suas entrevistas, que o III CELAM, Conferência do Episcopado Latino-Americano, terminou sem levantar dúvidas sobre seu desfecho, Versus resgatou as análises que viam a Igreja católica num crescente comprometimento com os excluídos do continente, apesar das forças contrárias que  se organizavam.

(...) se analisarmos o caminho da Igreja através de todos os seus documentos e o nível do seu comprometimento histórico, desde a encíclica “Rerum Novarum” do Papa Leão XIII, promulgada em l981, até o discurso do Papa João Paulo II em Monterey, na sua chegada do continente para a abertura da Conferência. Porém, até onde o comprometimento da  Igreja chegou, não era possível acreditar numa meia-volta, e num retorno às omissões cúmplices com as classes  dominantes. Daí que as interpretações, que viam em Puebla um plebiscito para a “teologia da libertação”,  falharam totalmente. Há, sem dúvida, no interior da Igreja, a corrente simpática a um alinhamento  direto com as classes dominantes, mas a grande maioria do episcopado presente no México sabe que as decisões do Medellin foram demasiadamente profundas para serem abolidas por um ato de vontade.  

Para analisar tais variáveis, Versus entrevistou Paulo J. Krischke, exilado brasileiro que lecionava na Universidade Autônoma do México e era integrante do Latin American Research Unit, organismo que reunia alguns dos mais sérios intelectuais do Terceiro Mundo. 

Uma das perguntas feitas na entrevista remete a um futuro possível, totalmente indesejado pelos socialistas e por aqueles que se colocavam sob a bandeira da teologia da libertação: existe a possibilidade dos setores centristas da hierarquia eclesiástica tentarem despolitizar as bases da igreja? 

Sim, na medida em que o período atual de transição e conflitos abertos com o governo tiver sido superado. Porém, se tal superação realmente se concretizar, com a “volta dos militares aos quartéis, dificilmente se poderia exigir das bases da igreja mobilizadas politicamente, uma “volta dos cristãos à Igreja”, ou seja, unicamente para suas atividades religiosas... Como vimos em Gramsci, “uma concepção ativa do mundo” (ao contrário do fanatismo sectário de uma doutrina de segurança nacional) conduz necessariamente a uma expressão partidária e ao questionamento do poder, sempre que seja essa uma “religião historicamente necessária”, quer dizer, que corresponda ao desenvolvimento orgânico da sociedade. Além disso, o exercício das atividades internas da igreja não é incompatível com sua expressão exterior face a uma prática política pluralista. Antes, talvez, ao contrário, elas se reforcem mutuamente. Já vai longe o tempo em que a igreja podia aspirar uma unidade monolítica, ou o controle disciplinar da maioria da instituição eclesiástica. Assim, o surgimento de setores religiosos sensibilizados politicamente gera um potencial de atuação partidária, que pode ser canalizado tanto por orientações de esquerda, como de direita ou de centro, porém, principalmente por tendências terceiristas ou centristas, dadas as características da ideologia social-cristã e sua forte penetração recente entre a liderança e as bases da Igreja.  

A partir de tais informações, que não somente circulavam, mas eram analisadas e discutidas dentro do jornal, Jorge Pinheiro vai  expressar em análise de conjuntura, que até agora os cardeais e bispos brasileiros têm-se pronunciado contra a formação de um partido ligado à Igreja. E há razões para isso. Primeiro porque a Igreja no Brasil não está coesa ideologicamente A corrente democrata-cristã vai desde um Franco Montoro até a um Nei Braga, desde um dom Paulo Arns ou um dom Hélder Câmara até a um dom Sigaud. E juntar tudo isso num único partido seria problemático. Além disso, há a experiência internacional, naqueles lugares onde a Igreja lançou partidos políticos e estes fracassaram cai também o prestígio da Igreja. O exemplo mais complicado dessa situação é a própria Itália, onde a Santa Sé não sabe como se livrar do peso que é o Partido Democrata Cristão. Por isso, a tendência maior é que a Igreja jogue no seu papel atemporal, e tenha elementos nos mais diferentes partidos. Aliás, é o que tem feito desde 1945: apresentar uma cara antiditatorial e democrática, sem lançar-se como opção política definida.  


3.4. O lugar do proletariado

Mas por que falar de socialismo e não falar de ação transformadora em geral, pergunta Tillich. Porque o movimento socialista é o lugar onde a experiência da falta de sentido da existência tem uma expressão decisiva para o presente. De fato, por trás do movimento socialista está o destino do proletariado. E no destino do proletariado se encontra o mais profundo dos destinos humanos. 

Para Tillich, é na situação proletária que a questão do sentido está colocada concretamente, porque em cada um de seus momentos, a vida proletária típica se vê confrontada com a falta de sentido. Na maior parte das outras classes sociais, as possessões espirituais ou materiais, a execução de empreitadas providas de sentido ou ainda de propósitos atraentes dissimulam a ausência de sentido.

Mas o proletariado não tem nenhum meio de dissimular a falta de sentido da existência. Mesmo as realizações mais simples da alma, como o amor, a família, os prazeres, estão na maioria das vezes privadas de forma ou desfiguradas. 

É uma tolice querer comparar o socialismo proletário com qualquer outro tipo de socialismo não proletário, afirma Tillich. O proletariado e o socialismo estão juntos e permanecem unidos, mesmo quando o movimento socialista não conta em suas fileiras com nenhum representante do proletariado, e também quando grupos não proletários adotam o socialismo.

Por impulsos concretos, a paixão e a abnegação natural a favor do socialismo nascem lá onde a existência está destituída de sentido, no proletariado.

O proletariado pode desarrolhar a situação presente, porque pode dar a sociedade uma estrutura com sentido. Lá onde é possível empreender uma transformação significativa no domínio do espírito e na política, é onde se encontra uma relação estreita com o proletariado.

Mas Tillich não idolatra o proletariado. Para ele, não necessariamente o proletariado é o mais apto para indicar o caminho da transformação, na verdade freqüentemente é o contrário que se produz. Mas seu papel está definido porque ele ocupa o lugar onde a estruturação espiritual e social tem uma exigência real.

Colocar os problemas a partir do lugar onde a ausência de sentido se faz maior, não é necessariamente procurar a resposta neste próprio lugar, não é fazer do proletariado o vencedor da falta de sentido e o portador do novo sentido. Não se pode erigir o proletariado em messias ou ainda fazer positivamente da situação proletária o lugar de onde sairá a solução para o problema do sentido. 

Aqui está a questão mais difícil do socialismo atual, explica Tillich. Não se pode afirmar que uma revolução proletária será bem sucedida na condução de uma sociedade plena de sentido. Pensar que uma reviravolta política pode transformar a ausência de sentido em sentido é acreditar em milagres. Não queremos dizer com isso que negamos a revolução proletária. Ela pode ser uma via para construir uma sociedade nova há tempos em gestação. Tudo depende daquilo que é realizado. E a situação proletária não diz o que realizar. 

Para Tillich, existe uma coisa que o proletariado deve aprender: ele deve estar integrado a uma sociedade provida de sentido. É o proletariado mesmo que deve procurar se integrar, porque é somente na luta que ele manifesta e ao mesmo tempo desenvolve o poder que brota, um poder que lhe é possível conquistar e conservar.

Se essa integração cair do céu, explica Tillich, ele a perderá logo em seguida, porque não será fundada interiormente. Assim, na medida em que não pode existir uma sociedade com sentido se o proletariado não está integrado nela e provido de direitos e responsabilidades, a luta proletária representa a condição necessária para que a questão do sentido tenha resposta.

Nessa medida, o proletariado é não somente o lugar da questão socialista, mas também o portador da resposta socialista. Sem a luta proletária não há socialismo, sem a vitória proletária não há resposta para a questão de uma sociedade plena de sentido. 

O socialismo que nós temos em mente, afirma Tillich, é um socialismo transformado. O primeiro período do socialismo, o período heróico, terminou. O segundo, aquele da ação transformadora, é exteriormente mais fácil, mas interiormente mais difícil. Ele deve colocar de lado coisas que convinham ao primeiro período e deve iniciar, elaborar e realizar um número infinito de coisas novas em cada domínio. Cuidar para que uma tal elaboração tenha por base o ultimate concern e que seja o mais universal possível.

E Tillich completa: o socialismo não deve ser um programa, mas um risco que autoriza o ultimate concern e que mantém aquilo que é humano em toda sua amplitude. Este é o socialismo que nós servimos, que é o fundamento, a força e o propósito da estruturação plena de sentido daquilo que vem.





 






4. DIANTE DA SITUAÇÃO-LIMITE


4.1. A defesa da vida


Mas é impossível buscar o sentido da vida sem fazer a defesa da vida. A denúncia permanente da ameaça à vida sempre foi considerada uma tarefa prioritária do Versus. Em abril de 1979, o jornal publicou uma longa matéria sobre a mortalidade infantil no Brasil. Dizia:

Em 1979, nascerão 4,5 milhões de crianças, mas 450 mil estão condenados à morte antes de fazerem o primeiro aniversário. Ou seja, de cada mil brasileiros que nascem, cem morrem antes de completar o primeiro ano de vida. Segundo o Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF) morre no Brasil uma criança por minuto com idade abaixo de um ano. Os índices oficiais e oficiosos, embora conflitem em décimos percentuais, são os maiores e os mais exorbitantes do mundo. Segundo o professor João Yunes, do Centro de Estudos de Dinâmica Populacional a Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo, em 1970, estima-se que morreram 108,6 por mil nascimentos. Relativamente a países com o mesmo nível de desenvolvimento do Brasil, de acordo com o Anuário Estatístico da Organização das Nações Unidas (ONU) morrem na Tailândia 21,8 crianças por mil nascimentos; Sri Lanka 45,1; Iraque 27,5; Grécia 24,1; Portugal 38,6; e Argentina 59 por mil.  

Ao lado da crítica social, que tem por base a ética do amor, Versus faz a defesa de uma atitude positiva que entende a necessidade de eliminar as condições que geram miséria e exclusão. Tal atitude, conforme expõe Tillich, traduz a urgência de combater os fundamentos do egoísmo econômico, mas também de gerar ações para a construção de uma outra ordem social, que inclua periféricos e excluídos. Isto  porque o socialismo não é só tarefa e necessidade de operários e trabalhadores fabris, mas um ideal ético que traduz anseios e esperanças dos mais variados setores da sociedade. E para Versus, que traduzia um slogan do presidente chileno, o socialista Salvador Allende, as crianças devem ser os únicos privilegiados.


4.1.1.  A criança e a ética do amor


Versus conta que as crianças brasileiras, pobres, defrontam-se ainda com uma luta maior, pois aos sete anos ou menos dependem somente de suas forças. 

Segundo a revista norte-americana Time, de 11 de setembro de 1978, existem no Brasil, 16 milhões de crianças abandonadas e carentes. Na matéria intitulada “Brazil’s World Generation” (A geração perdida do Brasil), o Governo gasta CR$ 760 milhões com o “bem estar do menor”, porém só 11,8 por cento das cidades brasileiras recebem alguma ajuda. No Nordeste brasileiro, estão 10 por cento dos estabelecimentos federais para amparo ao menor, devido ao alto índice de natalidade. Acrescenta ainda a “Weekly Magazine” que num orfanato em São Paulo, o QI (quociente de inteligência) oscila entre 50 e 70, o que seria diagnosticado nos Estados Unidos como “retardamento mental”. Mais ainda, segundo a Time existem para cada dez mil crianças um estabelecimento governamental, e que a verba destinada, por exemplo à Febem, de São Paulo, não ultrapassa Cr$ 58 milhões, sabendo-se que o custo mensal de uma criança é de Cr$ 2.800, e que são recolhidos por noite 25 menores. Apesar do mal estar dos órgãos responsáveis e a aplicação dos serviços de segurança para saber quem passou às informações à revista, Roberto Cavalcante, diretor da Funabem do Distrito  Federal, diz que Time fora até Brasília, e ele fornecera os dados requeridos. Confirmando os dados do semanário, Cavalcante lembrou a Comissão parlamentar de Inquérito do Menor de 1975, que registrava as infrações cometidas por menores: furto, 83 por cento; tentativas ou homicídios consumados, 29,02 por cento; delitos sexuais, 46,16 por cento, outros, 49,67 por cento. Numa entrevista ao jornal O Globo, o Juiz de Menores, Alírio Cavalieri, afirmou que a delinqüência juvenil entre 1970 e 1977 subiu 300 por cento, segundo o conhecimento policial, não levando em consideração a delinqüência real, que não chega aos livros de ocorrências policiais. Todos estes números confirmam uma única coisa: os menores brasileiros roubam e matam por uma única razão, muito bem sintetizada na CPI do Menor de 1975: a pobreza é a causa preponderante da marginalização menor em 90,26 por cento dos municípios brasileiros.  

A preocupação com a pobreza e o abandono de milhões de crianças pode ser entendida como uma preocupação apenas legalista, técnica, que visa responder aos princípios da lei natural presentes na Constituição brasileira. 

Versus não via assim. Fazia parte de sua ética social protestante a defesa da vida, e o amor não se colocava fora de suas perspectivas, mesmo quando recorria à legislação vigente para defender os direitos das crianças abandonadas pelo sistema.
 
Para Tillich, o amor está acima da lei, tanto da lei natural do estoicismo, como da lei natural de qualquer heteronomia. Para ele, a ética do amor tem um caráter ambíguo, porque se por um lado é um mandamento incondicional, por outro é o poder que está por detrás de todos os mandamentos. 

Para Tillich, é precisamente este caráter ambíguo do amor que possibilita a solução da ética num mundo em transformação. Assim, até mesmo os princípios da lei natural expressos em determinada Constituição se traduzem enquanto concretização do princípio do amor em dada situação, representam o amor ao estabelecer a liberdade e os direitos iguais para todos contra as arbitrariedades, repressões e a destruição da dignidade dos seres humanos. 

Mas, em última instância, afirma Tillich, a resposta à necessidade de uma ética num mundo em transformação deverá ser determinada pelo kairós, mas somente o amor consegue aparecer nos momentos de kairós. O amor, ao realizar-se de um kairós a outro, cria uma ética além da alternativa entre ética absoluta e a relativa. 


4.1.2. Racismo, mortalidade infantil e justiça


O Brasil necessitava de uma ética, mas aparentemente estava longe dela. Na busca de soluções, Versus pergunta: quais as razões da mortalidade infantil e da criminalidade infanto-juvenil? Este é um problema muito discutido hoje, mas em 1979 Versus procurava respostas. E acaba por relacionar entre suas causas uma catastrófica distribuição de renda, miséria endêmica e racismo.

Em agosto de 1978, a assistente social Maria Benedita Salgado Arcas, já denunciava: “O problema não é o menor abandonado, mas as famílias abandonadas. O verdadeiro problema é a carência das famílias”. Funcionária lotada na Febem do Tatuapé, Maria Benedita tocara com profunda acuidade o cerne do problema, a má distribuição da renda regional e a péssima distribuição da renda individual.
Muitos juízes de menores, inclusive o ex-presidente da FEBEM, João Benedito de Azevedo Marques, acabaram afirmando então que era necessária uma “transformação da estrutura sócio-brasileira”.  

Versus analisa, então, até que ponto o racismo é um sério entrave para uma política social. 

Mas ao colocar a questão racial na adoção das crianças, Paulo Rui deixou aberta a porta de um raciocínio mais abrangente. Voltemos a alguns dados acima. A população baiana tem um índice de mortalidade que triplica o índice de Angola, mesmo considerando a sua densidade demográfica. Os maiores índices de mortalidade infantil ocorrem nos estados de maioria negra, ao contrário dos estados do Sul e Sudeste. Todos os números apresentados, de desnutrição, doenças, retardamento mental dizem respeito muito mais aos negros destes estados que ao número de brancos, em sua maioria situados abaixo do Trópico de Capricórnio. As unidades de “bem estar social” são guetos estruturalmente construídos com um capricho superior ao das prisões, mas não lhes fica devendo nada em relação ao tratamento dispensado.
No Brasil vê-se a questão do racismo individual, quando este é uma versão cuja conseqüência brutal é institucional, gerando o desemprego, a criminalidade e a morte de milhões de negros. O sonho de “embranquecimento” do Brasil, vai, enquanto isto, à todo vapor, pois aliado a imperiosidade de miscigenação, vai se diluindo a população negra no Brasil.  

A análise da situação das crianças abandonadas levou o Versus a enfrentar-se com a realidade da discriminação racial no Brasil. Mais uma vez, tal questão poderia ter sido encarada apenas como mera questão técnica. Mas aqui o amor tem uma outra tradução: justiça.

Para Tillich, quando tomamos o conceito de justiça, concretamente, significa a lei e as instituições portadoras do amor em situações especiais. Para o socialismo, a justiça deve representar, na sociedade futura, plena de sentido de vida, o sistema de leis e formas capaz de manter e de desenvolver a segurança necessária para todas as pessoas . Por ora, por não existir tal sociedade, a justiça, mesmo como princípio secundário, que traduz um momento do amor, deve ser buscada.

Fica, no entanto, uma constatação colocada por Tillich: o amor é a própria vida em sua unidade concreta. As formas e estruturas do amor são as formas e as estruturas que possibilitam a vida, nas quais as forças destrutivas são superadas. Este é o sentido da ética: expressar as diferentes maneiras da concretização do amor e da manutenção e salvação da vida. 


4.2. As greves – uma busca de sentido


A luta operária que acontecia nas fábricas e sindicatos traduzia essa busca de sentido. Uma vanguarda operária começava a surgir e novos nomes até então desconhecidos pela população passaram a ter destaque nos noticiários. O nome de Lula, líder sindical metalúrgico, começou a ser conhecido no país no dia 12 de maio de 1978, a partir da cidade de São Bernardo do Campo, em São Paulo. Mas o surgimento desse sindicalista traduzia um fenômeno maior, um quase levante dos trabalhadores do ABC paulista, que na seqüência dos dois anos seguintes vão destroçar a legislação antigreve do governo militar e abrir caminho para o fim do governo militar.

Versus de outubro de 1978 afirmava que depois de muito tempo, 14 anos, os trabalhadores conquistam um direito que sempre foi seu: a greve.

Para que isso acontecesse foi preciso muita coragem e operários decididos que iniciassem um movimento que toma caráter nacional. A explosão das greves por reivindicações salariais iniciadas no ABC se estende a novas categorias de trabalhadores, a novas cidades e estados.  

Os metalúrgicos da Belgo Mineira, em João Monlevade, iniciaram o mês de setembro em greve, reivindicando melhores condições de trabalho e de salários, afirma Versus.

Naquele número do jornal, quatro líderes sindicais mineiros falaram sobre as greves em São Paulo, seu significado, a repercussão que tiveram em Minas e as perspectivas do movimento. Na seqüência veremos o que pensavam e o que queriam, já que esses homens traduziam as aspirações de milhões de trabalhadores. 


4.2.1. “A terra tem sede”


O ensinamento fundamental da greve do ABC, na sua significação social, de organização, é o marco histórico que ela assinala, o da divisão entre os trabalhadores e os grupos imperialistas que centraram sua atuação em São Paulo.
A política econômica exportadora, seguida do arrocho salarial e conjugada com a falta de representatividade dos sindicatos, já se tornou insuportável. O empobrecimento dos assalariados no Brasil é tal que hoje já não se pode nem mesmo falar em classe média. Daí que o movimento grevista, que prossegue, foi uma revolução contra a fome, uma rebelião contra a negação de um dos mais elementares direitos da pessoa humana, que é o de comer. 

O discurso de Dídimo a favor de um direito de greve pleno, que por extensão pode e deve ser entendido como pensamento político e sindical do jornal Versus e da Convergência Socialista, nos remete a Tillich, pois naquele momento os trabalhadores começavam a fazer história.

Para Tillich, história é quando nós determinamos em liberdade, mas é também onde somos determinados pelo destino em oposição à liberdade.  Mas, em determinadas épocas, o estabelecimento do poder de ditadores faz predominar as necessidades, como conseqüência da catastrófica destruição do sistema liberal de vida.

Nesses momentos, em que a vida humana perde seu valor e prevalece a falta de sentido, o socialismo é chamado a fazer história. É uma postura ética, um desafio à situação-limite, quando a vida humana se vê confrontada pela mais tremenda ameaça.

O relato de Dídimo, assim como de seus companheiros, traduz a aceitação desse desafio: o de colocar-se na brecha, a aceitação do risco da opção socialista.


4.2.2. “Somos pára-raios”

E por haver trabalhadores e socialistas, mesmo nos mais negros períodos do regime militar, sempre houve uma ação contra o regime, pois como Tillich explica, o ser humano está sempre agindo, mesmo que o conteúdo de sua ação seja a inatividade. É o que explica João Paulo Pires Vasconcelos:

O movimento sindical não morreu ao longo desses 14 anos da política salarial, de Fundo de Garantia por Tempo de Serviço, de administração coercitiva e autocrática. Ele estava em hibernação, e agora o problema salarial, as condições sociais do operário, chegaram a um ponto de saturação. A manifestação em São Paulo é o extravasamento de tudo que estava reprimido, por sufoco.
As lideranças sindicais surgidas lá no ABC, principalmente, foram fruto de uma conscientização de base. Realmente existia o espírito de classe, e uma identidade entre as direções e as bases. A espontaneidade do movimento existia dentro do sindicato, porque os homens que ocupam o sindicato saíram da fábrica com essa mentalidade.
Os frutos que se colheu disso, como muito bem disse o companheiro Lula, é que as reformas que o trabalhador pretender ele terá que fazê-las. Não se pode esperar, como nos tempos passados, que se faça gratuitamente as reformas para nós. Essa greve vem mostrar que é o momento do trabalhador se conscientizar da importância histórica da sua posição, de acabar com esse atrelamento das entidades sindicais ao Ministério do Trabalho, e de iniciar realmente a contratação coletiva de trabalho – aproveitando a experiência dos companheiros, de sucesso absoluto através da greve. 

Qual a importância dessas greves? Em que sentido apontavam para algo novo? Tanto para Tillich, como para os socialistas, o protesto operário nas suas várias manifestações está ligado à luta de classes. Para Tillich, tal luta está fundada nas leis naturais da economia liberal e todos os indivíduos se encontram metidos nela, sejam proletários ou não.  

E porque a luta de classes é uma realidade estrutural do capitalismo, os juízos morais sobre ela na maioria das vezes vêem-se transbordados por abordagens ideológicas. Mas para Tillich é impossível fechar os olhos diante de sua existência, porque a luta de classes é uma realidade, uma realidade sem dúvida demoníaca, uma tendência destrutiva do sistema.

Por isso, não é possível, afirma Tillich, exigir um socialismo sem luta de classes, pois significaria trair a situação real do proletariado. É, em última instância, favorecer à utopia, que pode até ser legitimada religiosamente, mas nem por isso será melhor.  

Para Versus, as greves eram parte da luta dos trabalhadores, que permitiam experiências de organização e solidariedade, que fortaleciam e preparavam esses mesmo trabalhadores para novos enfrentamentos. Daí o entusiasmo visível nas reportagens sobre as greves vitoriosas e as análises solidárias diante daquelas que foram derrotadas.  


4.2.3. “Rebelião da fome”


Para Tillich, cada luta particular do proletariado, seja ao nível político ou salarial, busca em última instância levar à plenitude do ser e ao sentido da vida. Assim, visa superar o demoníaco que se revela ao proletariado através de seu poder destrutivo. E através dessa luta, a vida do proletariado adquire sentido.

Vê-se isso no relato de Joaquim José de Oliveira:  

O significado da greve de São Paulo, para a gente aqui em Minas, foi grande sabendo-se que nossa condição é bem pior que a de São Paulo.
Infelizmente, as nossas autoridades alegam que o salário do trabalhador é fator inflação. Mas eu discordo das nossas autoridades. O salário do trabalhador não é fator inflação, mas sim desenvolvimento. Nenhum trabalhador tem dinheiro pra botar a juros ou fazer qualquer outro negócio: o dinheiro do trabalhador entra num bolso e sai no outro. (...)
Em Minas, parece que as autoridades que controlavam os preços das coisas abriram mão do setor açougue, e o operário não pode mais chegar em porta de açougue. A carne que eu comprava no ano passado a catorze cruzeiros, agora está custando quarenta e quatro... Os meus filhos não sabem o que é tomar leite. No dia em que levo, por acaso, um litro de leite, me perguntam se existe alguém doente – porque não é costume, o meu salário não dá. Mas eu apelo pra sardinha de quatro e quinhentos, essas coisas – ossos que são vendidos para tratar de cachorro... mas a gente é obrigada a comprar pra levar para casa. Então acontece que, na conjuntura que se está vivendo, a gente tem que pensar no que vai se fazer porque chegamos num ponto que não tem mais pra onde apelar. Como um trabalhador vai revigorar as energias se ele não tem condição de comprar aquelas matérias como ovos, leite e outras coisas que ele precisa para se alimentar?
Se todo mundo estiver sofrendo como eu a situação de custo de vida, será impossível continuar da maneira que estamos. Porque estamos fechados, encurralados de maneira que não tem mais pra onde escapulir.
Acho, então, que é preciso realmente nós olharmos para os companheiros de São Paulo, e ver que têm razão quando sentiram o problema e resolveram unir suas forças e mostrar que realmente as leis que nos rodeiam não são capazes de dominar as nossas necessidades. Que muitas vezes a fome suplanta qualquer lei.
É o que a gente tem que pensar: que o trabalhador, a única coisa que ele tem nas mãos é a sua união. Porque, se somos o pivô da riqueza do país, também somos o pára-raios: porque todo o custo de vida que se produz no país cai nas costas do trabalhador. Qualquer coisa que acontece dentro do Brasil, qualquer prejuízo, é descontado nas costas do trabalhador. O trabalhador unido, dentro dos princípios democráticos e cristãos, resolve os seus problemas. Como o pivô da riqueza tem que ser reconhecido como pessoa humana, que deve viver condignamente que deve se alimentar, e as autoridades devem olhar e pensar na justiça social porque nós somos aqueles que produzimos, nossa mão-de-obra e o capital pesam igual na balança porque o valor do dinheiro é o mesmo da mão-de-obra.  

É muito interessante ver que Joaquim José de Oliveira, socialista, considera que os trabalhadores devem estar unidos dentro dos princípios democráticos e cristãos. O que nos remete a Tillich, quando afirma que através da luta, o proletariado se sente um combatente do reino de Deus, se sente investido de uma condição messiânica, para ele e para a sociedade de conjunto. 

Na luta, o proletariado perde a insegurança e não considera a situação como sem saída. Em meio a ausência de sentido, passa a ver um sentido: ele é o instrumento da luta contra uma situação que rouba ao homem todo sentido humano.


4.2.4. “Romper os diques”


Para muita gente, as lutas salariais eram questões sindicais que não tinham relação com os problemas políticos que a sociedade brasileira enfrentava. Versus discordava disso. E Tillich, também vê assim. Para ele, a política é o real. Ela está no mundo. Por isso, quando o proletariado luta, combate politicamente. E realiza esta luta animado por uma fé na sociedade sem classes, no reinado da justiça, no reino de Deus. 

Por isso, é fácil entender porque Arlindo José Ramos em sua entrevista extrapola o meramente salarial e sindical e diz que os trabalhadores colocaram de lado os códigos impostos pelas classes políticas dominantes.

A greve representa a volta do sindicalismo ao seu leito normal. O sindicalismo que brotava no Brasil até a década de 20 foi colado dentro de uma represa; a Legislação da CLT que lhe deu os contornos que as classes dominantes vencedoras da revolução de 30 entenderam ser os limites permissíveis para a organização da classe operária.
Esse represamento foi repetido depois de 64, mas as águas da represa já estão transbordando. Os trabalhadores redescobriram que as soluções para os seus problemas sairão das suas próprias cabeças e mãos, da força da sua união. Resolveram romper esses diques e desconhecer a lei de greve, a legislação salarial, a decisão dos tribunais. Puseram de lado os códigos impostos pelas classes políticas dominantes, que são ao mesmo tempo as classes econômicas dominantes. E souberam se portar maduramente e com grandeza nesse episódio, captando o reconhecimento de toda a nação.
O movimento de São Paulo faz com que os trabalhadores voltem a confiar em si mesmos e se disponham a seguir o seu exemplo, que é uma lição para todo o movimento operário do país. Aqui em Minas Gerais, por ocasião das campanhas que encetarem, sindicatos e trabalhadores perceberão na prática a resposta que darão daqui para frente as suas reivindicações, tendo em vista os êxitos alcançados em São Paulo.
É hora dos trabalhadores ocuparem todo o espaço que se abrir dentro da sociedade brasileira, espaço que sempre lhes pertenceu, mas não era por eles ocupado. E não deixar sempre de dar um passo adiante, quando a hora seja de avançar.  

Assim para Versus, essa relação entre a questão salarial e a democrática permitiria entender a aquela vanguarda classista que surgiu com as mobilizações, a partir de maio de 1978. Esta vanguarda classista estava a surgir mais como necessidade do que como consciência. 

É a passagem da questão democrática à política, só que fica no meio. Explicando: a necessidade de unificar as lutas, de dar respostas democráticas, de conseguir vitórias salariais, está levando um setor da vanguarda a tentar uma resposta política para o país, mas esta resposta não está surgindo da consciência de que o problema do país é político e de que só um partido dos trabalhadores é a solução. Para a maioria dos trabalhadores esta situação não está clara, nem mesmo para um setor de vanguarda. Eles entendem, empiricamente, que é necessário criar algo que permita o avançar das lutas, e que este algo não é o MDB. Assim, a vanguarda classista é de fato a mediação entre a questão salarial/democrática e a questão política.  

Aqui, Versus faz a ponte entre as lutas salariais e democráticas e a questão política, mostrando que os trabalhadores devem se organizar em partido para enfrentar politicamente o regime militar. É certo que apenas as lideranças sindicais classistas começavam a ter consciência dessa necessidade, mas a cada greve, a cada experiência nova diante da luta de classes, os trabalhadores brasileiros foram entendendo o papel que lhes cabia na democratização da sociedade.


4.3. O regime militar no banco dos réus


Mas o julgamento do regime militar não apareceu no Versus apenas pela boca de civis. Um dos mais conhecidos historiadores do país, Nélson Werneck Sodré, ex-militar, analisou no jornal o impasse que o conjunto das Forças Armadas vivia naquele momento.

O golpe de 64 foi de qualidade diferente, algo novo no terreno das intervenções militares brasileiras e o novo custou a aflorar. O próprio presidente Castelo Branco diria em seus pronunciamentos que aquilo era transitório: tratava-se de fazer uma nova Constituição, fazer um novo sucessor e estaria terminado o movimento. O regime tem três etapas ao meu ver. A primeira de 64 a 68. Em 68, o regime adquire sua fisionomia definitiva, e tem o seu apogeu no período 68 a 74. Em 74 começa a declinar. De 68 a 74 o regime tem um caráter completamente diferente de outros regimes presididos por militares nesse País, mais especificamente o chamado Estado Novo que foi uma ditadura militar exercida por um civil. De que decorre essa diferença? Justamente das contradições sociais apresentarem-se hoje no Brasil com muito mais força do que antes. Inclusive a classe operária, uma classe relativamente recente em nossa história, começa a aparecer no palco político, e pretende ocupar um certo espaço, disputar direitos, como o direito de se organizar, e chegar a esse tipo de organização centralizada que é o Comando Geral dos Trabalhadores, ou algo dessa natureza. Os militares vêm sendo doutrinados violentamente para encarar essa pretensão como uma arma contra a humanidade quanto é uma coisa perfeitamente normal. Mas a doutrinação no processo da luta ideológica consiste justamente em apresentar a indivíduos ou a instituições como uma verdadeira heresia aquilo que é normal. É o processo de lavagem cerebral. Este processo é exercido através do que se chama doutrina de Segurança Nacional. Esta doutrina é inoculada nos militares individualmente, e não só nos militares, porque hoje ela abrange o País todo, todas as atividades, todas as classes, todas as profissões, para que encarem como uma ameaça séria ao próprio País as formas de organização operária, estudantis e religiosas, mas, particularmente, as operárias. Então, o novo é que fez com que surgisse uma forma nova de intervenção militar, uma forma nova de regime militar. As contradições da sociedade brasileira se aprofundaram e não vão desaparecer por causa disso, nem vão deixar de se aprofundar, vão resistir, vão achar que a coisa é anormal por algum tempo. A própria realidade vai mostrar para eles que não é anormal, que é uma exigência da própria sociedade. Espero que algum dia se convençam disso.
O processo histórico se caracteriza por um fato que é muito pouco estudado que se chama ritmo. Às vezes o ritmo é lento, ás vezes é acelerado. Vive-se, em um período curto, mudanças significativas. Espero que esta mudança para uma visão mais justa do processo social resulte de um ritmo mais rápido. De qualquer forma, a realidade é mais forte do que qualquer organização militar.  

Assim, o regime militar, com suas deformações e promessas, foi julgado por parcelas  do movimento socialista e dos trabalhadores brasileiros. E desse julgamento nasceu uma ação transformadora, da qual o jornal Versus e a Convergência Socialista, assim como outros grupos, foram tradutores e partícipes.


4.4. Jovens na brecha


Dezenas de ativistas da Convergência Socialista eram operários, trabalhavam nas fábricas do ABC e atuavam nos sindicatos. Isso faz com que o jornal Versus sofra uma visível mudança com o surgimento das greves do ABC. Deixa de ser um jornal que reflete uma realidade distante para ser, também, um porta-voz de parcela da militância sindical.

Jovens sindicalistas, heróis dos sonhos socialistas, passam a freqüentar a redação do jornal, transformando-se em articulistas e correspondentes do Versus no front das greves operárias.


4.4.1. “Um arrepio na espinha”


Quando a repressão se fez sentir sobre a Convergência Socialista, muitos jovens foram presos. Justino Lemos Pinheiro conta sua experiência. 

A trepidação do ônibus, monótona, a luz amarelada, fraca, aumentavam a  sonolência. Fechei o jornal. Fechei os olhos e soltei o pensamento. A Convenção – os punhos erguidos, as conversas sobre o PS, aqueles mortos marcados pela exploração capitalista, a bonita garçonete que me servia no restaurante da esquina, passavam e voltavam a mente.
Abri os olhos. Era perto de 23 horas de 22 de agosto. O ônibus Santo André via Prosperidade, contorna a praça da Riqueza e segue pela rua Eldorado. Passa o primeiro ponto, pego minha sacola e dou sinal. O ônibus pára na esquina da rua dos Mármores. Desço. Espero que se vá. A rua deserta. Apenas um Volks azul velho estacionado ao longo. Atravesso a rua pensando em tomar um banho e cair na cama.
Repentinamente ouço ronco forte de motor de automóvel. Viro-me e vejo o Volks velho vindo em minha direção a toda velocidade. Imagino um seqüestro. Esboço uma fuga. Sinto quatro mãos fortes e violentas me agarrarem. Começo a gritar por socorro, na esperança de que surjam testemunhas. Surgem pessoas nas janelas, assustadas, continuo a gritar. Mas quatro mãos juntam-se às anteriores e são suficientes para me dominar, imobilizando pernas, braços – o grito não passa mais pela pesada mão que comprime minha boca. Segurado pelo paletó – que se rompe – e pela calça – que se rasga – jogam-me no banco traseiro do Volks. Sou encapuzado e algemado. O carro arranca em grande velocidade.
- Grita agora seu filho-da-puta!
- Vamos descarregar esta máquina nele... tá cheinho de bala, neném.
- Não, agora não! Vamo levá ele prá Praia Grande beber um pouco de água salgada... depois...
As frases berradas eram entrecortadas por socos na cabeça e nas costas. Andamos por uns dois minutos.
Atenção base! Estamos estacionados em Avenida de mão dupla. Manda alguém para recolher ele.
O rádio do carro funcionava insistentemente. Algum tempo depois chega um outro carro.
- Tirem o capuz...
- Mas chefe...
- Podem tirar, não tem importância.
Retiraram o capuz e as algemas e me levam para outro carro, que se põe em marcha.
- O que houve meu filho? Foi assaltado
- Como? Fui seqüestrado!
- Ah! Estes policiais de hoje!
- Pra onde estão me levando?
- Para o DEOPS! LSN, meu filho!
Desci do carro. Olhei em toda a sua sinistra imponência, o Batalhão Tobias da Aguiar. Um arrepio percorreu minha espinha.
Entramos. Escadas  e mais escadas, sempre subindo.
Levaram-me para uma sala com algumas poltronas.
O ambiente apesar de fúnebre, era de uma atividade febril, homens correndo por todo o canto, berrando ordens, vez ou outra se dirigindo a mim com grosserias.
Não tardou para que percebesse logo o motivo de toda a agitação. Comecei a ver companheiros da Convergência Socialista por todo o lado. O ambiente era de uma opressão indescritível.
(...)
Quando desci à cela, soube que havia ocorrido uma assembléia na PUC, com dois mil estudantes que haviam deliberado um ato público para nossa libertação. Soubemos por entre as grades, espalhamos a notícia e os gritos de “Viva” encheram o corredor sombrio que dá acesso às celas.
O ânimo, a confiança no movimento de massas, a certeza da transitoriedade daqueles momentos nos davam forças para suportarmos com dignidade os intermináveis interrogatórios. A greve de fome, deflagrada na quinta-feira de manhã, reivindicando melhores condições carcerárias e quebra da incomunicabilidade para advogados e familiares, seguia com muita confiança.
(...)
No sábado o DEOPS não parecia o mesmo. Começaram a nos tratar com muita delicadeza, procurando nos oferecer o máximo conforto! Não tínhamos confirmação das manifestações, mas conosco, por apenas observar as atividades dos policias, estava a certeza que o movimento de massas havia dado um trabalho aos repressores e estava pressionando forte.
(...)
No domingo, às 10hs me levaram para o cartório, de lá saí às 16hs, voltando para a carceragem. Como não tinha nenhum objeto meu na cela, não permitiram que pra lá voltasse para me despedir dos companheiros. Na sala de identificação, enquanto colocava mais dados em dezenas de fichas, encontrei Bernardo, que fazia o mesmo e lhe avisei que estava saindo.
Dali para o DEIC, para exame de corpo de delito no IML. Lá o médico perguntou se havia sido torturado, ao que respondi que não, carimbou a ficha e me despachou. Voltamos ao DEOPS e lá o delegado de plantão disse que eu estava livre. As portas do Batalhão Tobias de Aguiar se fecharam ás minhas costas.
Olhei para cima. Olhei para as pessoas passando e que não sabiam de nada. Senti o cheiro de liberdade entrar forte em meu peito. Senti que a luta vale, que os objetivos são certos e honestos. E que o caminho é este mesmo: um grande Partido Socialista, que lute pela emancipação definitiva dos trabalhadores.  

Começaram a nos tratar com muita delicadeza, contou Justino. Depois da opressão e da tortura, delicadeza. Delicadeza, humanidade? O conceito de humanidade, afirma Tillich, que traduz a idéia de tolerância, não teve na evolução da burguesia mais do que uma realização acidental. Na verdade, essa consciência de humanidade foi neutralizada pela consciência de classe no poder, pela educação para uma elite e pela dependência nacional. Por isso, para Tillich, se o socialismo é uma herança da cultura universal, tem uma originalidade que não se restringe aos conceitos, mas à experiência vivida. E é através dessa experiência que a idéia de tolerância ainda se mantém viva. Justino estava vivendo a sua situação-limite.


4.4.2. “A certeza do pesadelo”



A presença das mulheres sempre foi forte e marcante no Versus e na Convergência Socialista. E seria um erro imaginar que a participação delas era secundária ou de menor importância. Ao contrário, em vários momentos foram líderes e direção do movimento. Hilda Machado conta sua prisão.

Aonde estão as armas? Onde vocês esconderam?
A princípio a impressão de irrealidade. Depois a certeza de que o pesadelo não estava no meu sono, mas fora dele. Estava sendo arrancada da cama, às 7:00 da manhã para ser jogada no meio de um delírio. Dois homens dentro do quarto. Um deles com uma arma encostada na minha cabeça. O outro me empurrava com o pé – Vamos levanta, levanta!
Levantei e vi a companheira que estava dormindo no outro quarto sendo trazida por outros dois. Nos levaram para a cozinha e nos fizeram sentar. A casa em alvoroço. Eram seis homens armados, falavam muito pelos rádios transmissores, reviravam a casa e nós escutávamos suas vozes irritadas. – Nessa casa não tem nada! Eles queimaram tudo!
Continuamos presas na cozinha até 13:30 quando fomos levadas para o DEOPS. Entro numa sala e o delegado falou gritando, de grupos clandestinos – Fala logo, já sabemos tudo. Seu marido está preso desde ontem! Palavrões, ofensas, simulações – Essas merda é simpatizante! E no meio de tudo, eu lembrava das palavras de um companheiro durante a I Convenção da Convergência Socialista – “Eles têm medo do povo!”
Não sei quantas vezes fui interrogada, não lembro. Só sei que eram sempre grosseiros e cada vez mais irritados por que não sabia responder ao que queriam. Perguntaram porque eu achava que estava sendo presa. Falei que sou socialista, quero um partido dos trabalhadores, participo do movimento Convergência Socialista e estou trabalhando no Comitê Eleitoral de Benedito Marcílio. Num dos interrogatórios contei doze homens gritando na minha frente. As palavras saíam sujas com provocações.
Apesar de ter sido presa da mesma maneira ilegal de sempre e estar nas mãos de quem torturou e matou tantos outros, não sentia medo. Saí do primeiro interrogatório para uma sala. Maura estava lá. Nos olhamos mas fomos proibidas de falar. Ficamos sendo vigiadas durante horas e só muito tarde desci para a cela. Encontrei sete pessoas ainda perplexas. Achávamos que aqueles homens eram loucos, mas em nenhum momento tivemos dúvidas quanto a repercussão das nossas prisões. A primeira noite na cela quase congelamos. A temperatura estava muito baixa e não havia cobertores. No outro dia enviamos uma carta ao diretor e entregamos em greve de fome, exigindo melhores condições carcerárias e quebra de incomunicabilidade. Sabíamos que não seríamos torturados. Sabíamos que as greves de maio no ABC, vêm mostrando o caminho para o movimento de massas e sentimos que o tratamento começava a melhorar com as mobilizações dos diversos setores. Apesar de tudo eles não desistiram das pressões e chantagem até o último momento. Minha mãe passou dois dias esperando por mim na sala do DEOPS. Enquanto isso colocavam um telefone na frente e diziam: Fala com tua mãe agora, só que antes escreve, escreve com tua letra tudo do PST. Diz tudo, ao negar você só está se comprometendo. Escreve e você sai daqui agora. E eram tomados por acesso de cólera e agrediam verbalmente.
Quando voltei para casa, aí sim, senti vontade de chorar. Estava tudo completamente revirado. No primeiro momento percebi que estavam faltando livros, bônus de venda dos jornais e marcas de pés sujos de lama em cima da minha cama.  

No depoimento desses dois jovens, uma palavra nos vem a mente: fé. Fé política e social, que os impulsionaram para frente, certos de que criariam um Brasil socialista. Para Paul Tillich, diante da decomposição da cultura burguesa, o socialismo propõe criar uma nova vida cultural e social, mas isso só será possível se a autonomia caminhar em direção a uma teonomia, a uma atitude que permita à incondicionalidade apoderar-se incondicionalmente de todas as coisas. 


4.5. Espírito profético e marxismo – as semelhanças


Para Tillich, é importante que o olhar lançado nas profundezas não seja turvado, que a fé enquanto experiência da incondicionalidade apóie a vontade de dar forma ao mundo e a livre do vazio e do nada de uma simples tecnificação do mundo. O espírito religioso, explica Tillich, está vivo no movimento socialista: é uma vibração religiosa que circula através das massas. E essa santificação da vida cultural no socialismo é uma herança cristã, que lhe transmite coragem e vida.

Para Tillich, há uma razão para se fazer a crítica teológica do marxismo, e esta é exatamente a impressionante analogia estrutural existente entre a interpretação profética e a interpretação marxista da história.

O princípio profético e o marxismo partem de interpretações capazes de ver sentido na história. Para essas duas leituras da realidade, a história vai na direção de um alvo, cuja realização dará sentido a todos os eventos vividos.

E se a história tem um fim, tem também um começo e um centro, onde o sentido da vida se torna visível e possibilita a tarefa de interpretação, tanto do profeta como do militante marxista. Assim, para o profetismo e para o marxismo, o conteúdo básico da história encontra-se na luta entre o bem e o mal.

As forças do mal são identificadas como injustiça, mas podem e serão derrotadas. 

Esta interpretação cria nos dois casos certa atmosfera escatológica, visível na tensão da expectativa e no direcionamento para o futuro, coisa que falta completamente em todos os tipos de religião sacramental e mística. O profetismo e o marxismo atacam a ordem vigente da sociedade e a piedade pessoal como expressões do mal universal num período específico.  

Ora, há um desafio ético, apaixonado, como afirma Tillich, das formas concretas de injustiça, que levanta um protesto, o punho ameaçador, contra aqueles que são responsáveis por este estado de coisas. Assim, q crítica protestante e o marxismo colocam os grupos governantes sob o julgamento da história e proclamam a destruição desses grupos.

Tillich afirma que tanto o profetismo como o marxismo acreditam que a transição do atual estágio da história em direção a uma época de plena realização se dará através de uma série de eventos catastróficos, que culminará com o estabelecimento de um reino de paz e justiça. 

Dessa maneira, para Tillich, q crítica protestante e o marxismo são portadores do destino histórico da humanidade e agem como instrumento desse destino por meio de atos livres, já que a liberdade não contradiz o destino histórico.  

Mas para Tillich, a analogia estrutural entre q crítica protestante e o marxismo não se limita à interpretação histórica, mas se estendem à própria doutrina do homem. É uma semelhança, inclusive, que vai além de uma cosmovisão profética do homem, que se apresenta como doutrina cristã do homem.

O homem, para o marxismo, não é o que deveria ser, sua existência real contradiz seu ser essencial, explica Tillich. A idéia da queda está presente no marxismo. Já que se o homem não caiu de um estado de bondade original, caiu de um estado de inocência primária. Alienou-se de si mesmo, de sua humanidade. Transformou-se em objeto, instrumento de lucro e quantidade de força de trabalho.

Para o cristianismo, como sabemos, o ser humano alienou-se de seu destino divino, perdeu a dignidade de seu ser, separou-se de seus semelhantes, por causa do orgulho, da desesperança, do poder.

Para Tillich, o cristianismo e o marxismo concordam que é inviável determinar a existência humana de cima para baixo, por isso a existência histórica é determinante na construção da antropologia.

Mas a analogia entre cristianismo e marxismo vão mais longe ainda. Vêem o homem como ser social, e que por isso o bem e o mal praticados não estão separados de sua existência social.

O indivíduo não escapa dessa situação. Faz parte do mundo caído, não importando se a queda se expressa em termos religiosos ou sociológicos. Tem a possibilidade de fazer parte do novo mundo, não importando se o concebemos em termos de transformação supra-histórica ou infra-histórica. 

Dessa maneira, para Tillich, a idéia de verdade tanto no cristianismo como no marxismo vai além da separação entre teoria e prática. Ou seja, a verdade para ser conhecida deve ser feita. Vive-se a verdade.

Da mesma maneira, sem a transformação da realidade não se conhece a realidade. Donde a capacidade de conhecimento depende da situação de conhecimento em que se está. E apoiando-se no apóstolo Paulo, Tillich explica que só o “homem espiritual” consegue julgar todas as coisas, da mesma maneira aquele que participa da luta do “grupo eleito” contra a sociedade de classe consegue entender o verdadeiro caráter do ser. 

Assim, para Tillich, com a deformação da existência histórica, praticamente em todas as esferas, torna-se muito difícil a percepção da condição humana e do próprio ser, por isso a presença da igreja e do proletariado na luta é o lugar onde a verdade tem mais condições de ser aceita e vivida.

O auto-engano e a produção de ideologias surge como inevitáveis em nossas sociedades carentes de sentido, a não ser naqueles pequenos grupos que enfrentam suprema angústia, desespero e falta de sentido. A verdade então aparece e pode ser vivida, porque os véus ideológicos foram rasgados.

Mas, alerta Tillich, a verdade pode se transformar num instrumento de orgulho religioso ou de vontade de poder político. Em tudo isso o cristianismo e o marxismo estão juntos em oposição ao otimismo pelagiano ou de harmonia em relação à natureza humana. 

 






5. A INTELIGENTSIA E O PARTIDO DOS TRABALHADORES


Até meados de 1978, o Versus propunha a construção de um Partido Socialista. Mas a partir das greves do ABC, em São Paulo, acompanhando e participando das discussões  entre líderes sindicais, dos quais o mais reconhecido pelos trabalhadores era sem dúvida Luiz Inácio da Silva, o Lula, Versus passa a defender a formação de um Partido dos Trabalhadores, sem patrões. 

Sem dúvida, ao levantar essa proposta, Versus, assim como setores socialistas e parcelas do sindicalismo brasileiro, apostavam num tempo kairótico. Tempo este que não seria um momento qualquer, uma parte ou outra do curso temporal. Seria kairós, por ser o tempo onde se completaria aquilo que é absolutamente significativo: o tempo do destino. 

É natural e até compreensível que, por razões as mais diferentes, setores da intelectualidade se opusessem a tal proposta. Conhecendo esta realidade, Versus realizou entrevistas com políticos de expressão nacional para que expusessem suas opiniões. 


5.1. “O futuro político do Brasil, já”


Em outubro de 1978, Márcio Moreira Alves, que se encontrava no exílio, em Lisboa, participa da discussão. Sua preocupação naquele momento era mostrar que sem democracia, qualquer reorganização partidária favoreceria antes de tudo ao governo militar. 

É claro que temos de pensar o futuro político do Brasil já. É evidente que, esse pensamento, em um país onde metade do eleitorado tinha menos de 11 anos de idade em 1964, quando começaram a nos impor o arremedo de partidos que são a Arena e o MDB, não pode sair da cabeça do homem de mais de sessenta anos, os que estão no poder não fazem a figuração parlamentar. É evidente que existem, no seio do povo brasileiro, explícitas ou latentes, muitas correntes de pensamento que buscarão estruturar-se em partidos políticos. No futuro, essas correntes haverão de encontrar as suas formas institucionais, os seus programas, os seus líderes. No entanto, já uma condição prévia à colocação em prática destas organizações e à elaboração das suas plataformas – a reconquista da liberdade do povo brasileiro. Antes de serem abolidas as leis de exceção que nos impedem de discutir projetos alternativos para os modelos de organização econômica e social que nos é autoritariamente impingido, o que temos a fazer é consolidar as forças redemocratizadoras, que têm a sua expressão legal no MDB, agora engrossado por dissidências militares e civis da Arena. Aceitar uma reformulação partidária sem antes estarmos seguros de que os trabalhadores poderão organizar os seus sindicatos sem a interferência do Ministério do Trabalho e do DOPS; que os estudantes e os intelectuais poderão propor idéias novas sem serem presos; os posseiros poderão reivindicar os seus pedaços de chão sem serem caçados à bala por jagunços e policias, é fazer o jogo do autoritarismo, é perpetuar a ditadura.  


5.2. “Tenho muita simpatia pelo Lula”


Em fevereiro de 1979, Leonel Brizola, que tivera no tempo de João Goulart uma participação destacada no trabalhismo brasileiro, entra na discussão. Apesar de ver com interesse o surgimento de novos líderes sindicais, como Lula, Brizola afirma que o Brasil ainda não estava preparado para um partido de classe.

Olha, eu tenho pessoalmente muita simpatia pelo Lula, que eu não conheço pessoalmente. Como tenho muita simpatia por outros  personagens da vida do País, que surgiram, que atuaram durante esse tempo. Quer ver, por exemplo, um pelo qual eu tenho uma grande simpatia pessoal? É o senador Teotônio Vilela. Tenho realmente uma grande simpatia  por ele, embora pertença ele a Arena.
No caso do Lula ele está amadurecendo para a vida pública. E eu tenho esperanças nele, acho que ele, com o tempo, vai tomando conhecimento mais a fundo de certos elementos históricos, de todas as lutas sociais do passado... e irá ajustando a sua posição.
Quanto a esse movimento sindicalista, eu o vejo com grande simpatia, porque eu acho que uma das questões  fundamentais para o nosso País, para o seu desenvolvimento, é ter um movimento sindical consciente, livre, independente. Sobretudo consciente com as suas responsabilidades, não apenas com a sociedade em conjunto, mas especialmente com as classes e categorias que representam.
Eu acho que o setor sindical, no nosso caso que pretendemos nos empenhar pelo ressurgimento do PTB, é uma questão da maior importância. O trabalhismo é uma espécie de irmão gêmeo do sindicalismo. Nós somos como os irmãos siameses. Embora hoje muitas questões do relacionamento do partido com o sindicato precisam ser reconsideradas. Por exemplo: nós hoje vemos que é nosso dever promover o desenvolvimento  do sindicalismo independente, esclarecido, autêntico. Mas sem que os sindicatos sejam dependências do partido, sejam correias de transmissão do partido. Ao contrário. O partido deve ser mais dependente do sindicato que o sindicato do partido. Que os sindicatos sejam uma fonte  de informação para o partido  e não um elemento de proselitismo do partido.
Eu realmente, vejo com simpatia tudo que puder ser feito. Acho que o MDB como frente geral das oposições deveria realizar um grande trabalho promocional de revitalização do sindicalismo brasileiro, que sofreu muito durante este tempo.
Agora, na minha visão, no meu ponto-de-vista, eu não vejo condições, não vejo ambiente, não vejo que seria ajustado à nossa realidade a tese de um partido de classe. Acho que o problema brasileiro ele se enquadra muito dentro de uma visão terceiro-mundista.
Nós temos problemas muito sérios, como, por exemplo, a situação dos contingentes imensos da nossa população que são marginais. Então, antes de qualquer outra questão, nós precisamos reintegrar, integrar esses contingentes à vida do País, à comunhão nacional.
Sem a integração desses contingentes marginais, não existe classe alguma de assalariados que encontre solução verdadeiramente para os seus problemas. Porque as portas das fábricas sempre estarão cheias de gente oferecendo mão-de-obra desvalorizada. E assim por diante, só para argumentar.
Agora, no caso nosso do PTB, nós pretendemos abranger, numa visão global, o conjunto do País, dentro de uma perspectiva que vise, com sentido pluralista, desenvolver uma política popular. Evidentemente que as classes assalariadas, os trabalhadores, serão uma espécie de fonte de inspiração, serão uma espécie de espinha dorsal desse movimento.  


5.3. “A possibilidade de criação de novos partidos é muito pequena”


As eleições estavam às portas. Assim, a discussão promovida pelo Versus sobre a viabilidade da formação de um Partido dos Trabalhadores, para muitos, esbarrava numa questão de conjuntura. Fernando Henrique Cardoso, candidato ao Senado pelo MDB, defendia essa posição. Para ele, a vitória do MDB nas eleições era condição necessária para a criação desse novo partido.

Pela lei a possibilidade de criação de novos partidos é muito pequena. Na prática eu acho que já está se constituindo o que chamo de um partido dos assalariados. Um partido não comprometido com o capital, mas com o trabalho. Dentro do MDB já existe uma enorme corrente que tem essa perspectiva é a tendência a aumentar. Sou contra partidos sectários. Acho que nos precisamos saber conviver e tolerar divergências frente aos inimigos principais. E acho que isso já está posto na realidade. A gente não deve precipitar as coisas. Não adianta criar um partido que tenha um nome bonito, e uma ideologia perfeita, mas que não tenha apoio do povo. Temos que criar partidos que sejam enraizados no povo, que tenham símbolos culturais e acho que o MDB é um partido que hoje têm apoio do povo. Como eu acho que o novo nasce do velho é partir daí para no futuro criar um novo partido. Se o MDB não for capaz disso então cria-se um outro. E sou otimista, moderadamente, em relação a essa possibilidade. Acho que já está sendo criada. Não no sentido conspiratório, um grupinho ali, outro aqui. Não, nisso eu não acredito. Isso são ilusões. Já um movimento social nessa direção que vai englobar esses vários grupos.
Os trabalhadores hoje estão conscientes de que é preciso um partido no qual eles influam, um parido que seja constituído com a presença ativa das lideranças sindicais mais combativas como a oposição sindical à CNTI. Já existe uma liderança sindical competente e o apelo de autonomia por parte dos trabalhadores, primeiro a nível sindical mas também ao nível político. Não endosso nenhum grupo, não pertenço a nenhum segmento limitado, mas sim pertenço claramente ao conjunto da sociedade que quer fazer uma transformação com a criação de um partido desse tipo, mais amplo. Não é segredo para ninguém, nem mesmo para a direção do MDB. Eu não estou levantando essa questão, não é próprio para um candidato ao senado pelo MDB começar a discutir outros partidos. Temos que discutir a vitória do MDB daqui há 40 dias. Eu acho que a vitória do MDB é a condição necessária para criação desse partido.  


 5.4. “O embrião do verdadeiro partido socialista está nascendo” 


Já para Júlio Tavares, da Coordenação Nacional da Convergência Socialista, aquele era o momento de discutir a criação do Partido dos Trabalhadores.

Sim. E não só é o momento de falarmos mas também o de começarmos a organizar as  bases. E isto é o que estamos fazendo. Cremos que este partido vai surgindo pelo fortalecimento da Convergência Socialista, pelas lutas dos trabalhadores nacionalmente, pela compreensão da sua necessidade por parte de milhares de brasileiros e também pela luta da oposição sindical da CNTI. Vimos com profunda alegria o surgimento dessa oposição sindical e estamos acompanhando a trajetória de suas lideranças. A luta pela organização sindical independente e a organização do partido dos trabalhadores são dois momentos combinados para a independência da classe. Ao nosso ver fator fundamental para a existência da democracia em nosso país. Por tudo isso, cremos que o embrião do verdadeiro partido socialista está nascendo e nós estamos lutando com todas as nossas forças para que esse embrião cresça rapidamente e se transforme na verdadeira opção de democracia.  

A posição de Júlio Tavares, da Coordenação Nacional da Convergência Socialista, traduzia uma compreensão da realidade enquanto construção. Na linguagem de Tillich, o país vivia um momento onde massa e individualidade pessoal caminhavam para formar uma nova união, uma síntese, chamada massa orgânica, que viria a corresponder ao ideal da teonomia. 

Para Tillich, essa massa dinâmica é revolucionária, não apenas no sentido político do termo, mas no de fé espiritual e social. E ela é revolucionária, porque o sentido de seu movimento é precisamente ir além do estado de massa. Assim, tal movimento parte da massa mecânica e é essencialmente um movimento de libertação.


 5.5. Espírito profético e marxismo – as diferenças


Mas até que ponto essa libertação, essa conquista política dos trabalhadores brasileiros poderia dar pleno sentido à vida? Na verdade, o Versus não conseguiu dar uma resposta a essa pergunta. Por ser marxista não entendia que a corrupção estava também localizada nas profundezas do coração humano. E aqui o alerta de Tillich sobre as diferenças entre espírito profético e marxismo crescem em importância e devem ser ressaltadas.

O socialismo religioso, explica Tillich, acredita que a corrupção da situação humana tem raízes mais profundas do que as meras estruturas históricas e sociológicas. Estão encravadas nas profundezas do coração humano. 

Por isso Tillich considera que a regeneração da humanidade não é possível apenas mediante mudanças políticas, mas requer mudanças na atitude das pessoas em favor da vida.

Assim, para o socialismo religioso o momento decisivo da história não é o surgimento do proletariado, mas o aparecimento do novo sentido da vida na automanifestação divina. Essa diferença tem extrema importância, mas de nenhuma maneira – pensa Tillich -- chegam a impedir a inclusão de elementos básicos da doutrina marxista da história e do homem no cristianismo profético.

Não podemos, afirma Tillich, ver o marxismo como se fosse uma coisa do passado, quando aceitamos a crítica protestante enquanto socialistas religiosos. O socialismo religioso, se quiser continuar a ter sentido não pode se transformar numa justificativa ideológica das atuais democracias, nem num idealismo progressivo ou num sistema de harmonia autônoma. O socialismo religioso dentro do espírito do profetismo e com os métodos do marxismo é capaz de entender e transcender o mundo atual.   
 






6. VERSUS, ÉTICA SOCIAL PROTESTANTE E ESPÍRITO PROFÉTICO



Para Tillich, sem uma relação universal com o mundo ético essencial a noção de vocação individual não é a medida correta para se construir uma ética. Ou seja, não se pode fundar uma ética protestante apenas sobre o terreno da individualidade. 

Mas é importante entender que não existe uma interpretação absoluta do mundo da essência, fonte e razão de toda ética para Tillich, já que essa essência não é uma grandeza estática, mas se realiza de forma dinâmica na existência. Por isso, não se pode subscrever nem a construção tomista de uma ética social absoluta, nem uma construção de tipo racionalista.

Toda compreensão real da essência e como conseqüência toda ética real são concretas. Essa essência se situa no kairós, naquele momento temporal determinado, pleno. Sua universalidade comporta riscos concretos. Ela não se move num universal abstrato, separado do tempo e da situação atual. O que é válido tanto para o indivíduo, quanto para a consciência ética geral de um grupo social.

Exatamente por isso, para Tillich, toda realidade essencial comporta dois aspectos: aquele a traz de volta à sua origem, ao fundamento e abismo de todo ser; e um outro que indica seu caráter particular, sua inserção na finitude. 

Assim, a realização da essência deve se orientar em direção a ela própria, na medida em que essa manifestação de sua origem criativa remete ao que é eterno. Ela exprime o que lhe próprio, suas solidariedades no plano formal e sua finitude. Por isso, para Tillich, toda ética transporta a Deus e ao mundo, que em última instância são o bem decisivo de nossa existência concreta.

Dessa maneira, ao se posicionar por uma ética que parte da essência, Tillich se posiciona por uma ética da vida. E tal compreensão leva-o a estudar o desenvolvimento criativo e estratégico desta essência enquanto vida irrompante na história, criadora do novo.

Tal postura explica porque Tillich, ao analisar o surgimento do socialismo, leva em conta aspectos históricos, assim como os grandes movimentos ideológicos que se estruturam a partir da Reforma. Tal metodologia é relevante para a compreensão do contexto a partir do qual ele constrói a sua ética social protestante.

A chamada a um posicionamento transcendente, capaz de julgar e transformar, de resistência ao impacto da catástrofe histórica, deveria sempre levar a Igreja à necessidade de elaborar uma mensagem para o mundo simples. Mensagem que não fosse ilusória, mas de esperança.

Nesse contexto, Tillich define o homem moderno como autônomo, mas inseguro na sua autonomia. Isto leva a ecclesia não-protestante à tentativa de emancipá-lo desta autonomia através da submissão à hierarquia e à tradição. Mas não podemos esquecer que na autonomia já foi experimentado algo, e esta é uma experiência viva que une aquele que protesta àqueles com autonomia secular.

O conceito tillichiano de situação-limite, que se traduz como ameaça final à existência, é o diferencial do protestantismo. Esse conceito nasce em torno da leitura que faz da justificação pela fé, já que para ele a vida em liberdade significa a aceitação da exigência incondicional de realizar a verdade e fazer o bem. Assim, Tillich vê no reconhecimento da existência da situação-limite a diferença entre qualquer cristianismo que profetize a favor da hierarquia e da tradição e o princípio protestante. A justificação pela fé é, então, entendida a partir da situação-limite.

Para Tillich, o cristianismo tem mais afinidades com determinadas formas de organização social. A ética do amor, analisada por ele, leva o cristianismo a ter uma postura crítica diante da ordem social que se apóia na opressão e na exclusão social, criando uma afinidade real e necessária com a ética social protestante. Nesse sentido, nos anos 70, o cristianismo foi desafiado a fazer a crítica do capitalismo selvagem e do militarismo que grassou na América Latina.

A ética do amor cristão, segundo Tillich, condena o egoísmo internacional da força e do comércio, que justifica a violência e a guerra sobre continentes, nações e povos. Assim, a ética do amor prega a submissão dos povos, sejam ricos ou  pobres, à idéia do direito, e à construção de uma consciência comunitária, soldada sobre a paz, que leve a um internacionalismo real entre as nacionalidades.

Muitos dirão que eliminar o egoísmo como forma de estímulo econômico, afirma Tillich, diminuirá o desenvolvimento e reduzirá a produção. No entanto, para ele, a partir do amor cristão, vemos que o homem não foi criado para a produção, mas a produção para suprir necessidades humanas e que por isso o objetivo da ética na economia não é a produção da maior quantidade possível de bens para uma classe em particular, mas a produção de bens necessários à vida para o maior número de pessoas .

Quanto às organizações socialistas, é necessário ver a atitude que têm em relação ao cristianismo e uma outra em relação às estruturas hierárquicas da Igreja, explica Tillich. A história da Igreja tanto no passado, como no presente, é passível de muitas críticas. Suas opções e alianças fizeram como que se afastasse e dificultasse seu relacionamento com parte da população excluída de bens e possibilidades.

Tal situação facilita e potencializa a pregação do ateísmo e do materialismo. Mas, ao contrário do que pode parecer, não se pode dizer que o ateísmo seja um fenômeno constitutivo do socialismo. Para Tillich, é uma herança da cultura burguesa, crítica e cética. Essa herança foi adotada pelo socialismo porque acreditou que ajudaria a extirpar a idéia de opressão e abriria o caminho para a construção de um mundo mais justo e digno.

Assim, embora haja razões históricas para criticar a Igreja, o socialismo erra quando nega a existência da base solidária do ideal cristão, tal como pode ser percebida na pregação do Jesus apresentado nos Evangelhos. Quer dizer, ainda há em setores socialistas uma hostilidade contra o cristianismo. Hostilidade esta que fere a ética social protestante, tão próxima daquela proposta pelas comunidades cristãs dos primeiros séculos.

Ora, argumenta Tillich, se as idéias socialistas não traduzem nenhuma oposição essencial com o cristianismo e com a Igreja que vive o princípio protestante, os cristãos podem sem nenhum temor ter uma atitude positiva em relação ao socialismo.

Atitude positiva deve ser entendida como a realização do princípio do amor cristão, que entende a necessidade de eliminar as condições que geram miséria e exclusão. Tal atitude traduz a urgência de combater os fundamentos do egoísmo econômico e de ações para a construção de uma outra ordem social, que sem deixar de ser globalizada, inclua periféricos e excluídos. Isto  porque o socialismo não é só tarefa e necessidade de operários e trabalhadores fabris, mas um ideal ético que traduz anseios e esperanças dos mais variados setores da sociedade.

Por causa das guerras religiosas, essa realidade viveu um processo lento transmitindo a cada lado a esperança de que poderia chegar a uma vitória exclusiva. Mas com o fim dos combates o que se viu foi que as oposições às confissões se tornaram permanentes. Dessa maneira, constata Tillich, brotou o espírito autônomo nos mais variados campos, a consciência européia ocidental se tornou adulta, atacou as muralhas autoritárias das confissões e não deixou subsistir sob o solo protestante nada mais que os destroços do constrangimento autoritário.

Assim, princípio protestante traduz transcendência não limitada ao sujeito, mas que se realiza no grupo e, em última instância, na massa orgânica. É a partir desse ponto de vista universal, da essência mesma do ser, que remete ao ilimitado, mas também ao finito, que se operam o protesto e a transformação. 

Para Tillich, foi Descartes quem deu um golpe decisivo no autoritarismo ao afirmar que a certeza que eu tenho de mim mesmo é o princípio de toda certeza objetiva. A autoridade não pode me livrar da dúvida, pois é em mim, somente, que se enraíza a certeza. E dessa formulação cartesiana o Iluminismo tirou suas conclusões: toda tradição deve ser submetida à crítica.

O combate ao feudalismo e ao capitalismo constituiu a expressão negativa da consciência incondicional de humanidade, que derrubou barreiras e reconheceu o homem em cada homem, conclui Tillich. 

O que fica claro em Tillich é que autonomia e socialismo são processos históricos que se complementam, mas que não são idênticos. O processo de autonomia vivido pela sociedade européia no período que se abre a partir do Iluminismo e que põe em xeque a tradição e o autoritarismo, servirá de base para a ação socialista.

A autonomia é o momento supremo da razão e da imanência, e é a partir daí que o socialismo vai construir um sentimento unitário da vida e do mundo, embora sua originalidade não se limite aos conceitos, mas à experiência vivida. A luta dos trabalhadores contra a alienação e a exclusão social vai gerar consciência solidária e sentimento universal de humanidade. Mas, ainda assim, ao se limitar ao campo da autonomia, sem uma atitude que permita à incondicionalidade apoderar-se da própria autonomia, o socialismo deixa aberto o caminho para o autoritarismo e o arbítrio.  

Para Tillich, não devemos entender o cristianismo como confissão exclusiva, mas como irrupção da fé absoluta, única incondicionalidade, que vê uma só humanidade, sem as barreiras internas e externas que caracterizam as comunidades. Esta fé não se mostra hostil a não ser com os domínios econômicos, políticos e religiosos, que se colocam eles próprios contra os outros.

Nesse sentido, é a teonomia, que traduz a experiência da profundidade última, a incondicionalidade do Sim e do Não sobre todas as coisas e méritos, e a supressão entre o em cima absoluto e o embaixo relativo, que pode levar transcendência ao socialismo.

O espírito religioso que existe no socialismo, enquanto vibração de graça e fé que circula nas massas, não deve ser negado, nem execrado pelo cristianismo. Ao contrário, é o cristianismo que pode fecundar a autonomia socialista.  

Estes são os fundamentos de uma unidade entre o cristianismo e o socialismo, conclui Tillich, que deve ser mais que uma associação, que traduz um desenvolvimento de ambos através de uma nova forma de fé e vida. 

Versus, enquanto jornal socialista, procurou chamar ao diálogo aqueles cristãos que enfrentaram conscientemente a situação-limite do governo militar brasileiro. Publicou reportagens sobre a luta da igreja latino-americana e apresentou como heróis do socialismo mártires cristãos como Martin Luther King Jr. e Camilo Torres. Homens que entenderam o tempo presente e levantaram uma palavra profética contra o arbítrio e a idolatria dos domínios. 

Mas Tillich reconhecia as limitações da utopia socialista. A utopia quer realizar a eternidade no tempo, mas esquece que o eterno abala o tempo e todos seus conteúdos. É por isso que a utopia leva, necessariamente, à decepção. O neoliberalismo no terceiro mundo, em grande parte, é o resultado da utopia socialista desencantada.

É aí que entra o kairós, enquanto idéia que nasce da discussão com a utopia. O kairós comporta a irrupção da eternidade no tempo, o caráter absolutamente decisivo deste instante histórico enquanto destino, mas tem a consciência de que não pode existir um estado de eternidade no tempo, a consciência de que o eterno é, em sua essência, aquele que faz a irrupção no tempo, sem contudo fixar-se nele.

Assim, a realização da visão profética se encontra além do tempo, lá onde a utopia desaparece, mas não a sua ação. 

A resistência ao impacto da catástrofe histórica é tarefa profética, que deve elaborar uma mensagem consciente, de esperança. Nesse contexto, o princípio profético envolve um julgamento e relaciona este julgamento com a situação humana inteira, não deixando de lado nenhum aspecto da existência. Nesse sentido, o espírito da profecia leva, sob o capitalismo, ao princípio protestante. O que fica óbvio, segundo Tillich, em situações-limite, que ameaçam a vida. Para ele, a situação do proletariado não é algo opcional, que podemos considerar ou não. Afirma que devemos nos perguntar se 
o socialismo não representa certo tipo religioso especial, originado no profetismo judaico que transcende o mundo dado e vive na expectativa de uma ‘nova terra’—simbolizada na sociedade sem classes, numa época de justiça e paz (..). Também deve (mos) indagar, a luz do princípio protestante, se o movimento proletário não representa certo tipo de movimento leigo que, embora distante de qualquer expressão teológica, dá testemunho da situação humana com suas deformações e promessas.  

A cultura no jornal Versus, nos seus vários aspectos, artísticos, defesa de uma visão afro-latino-americana da realidade e ação socialista, deve ser vista enquanto tradução do princípio da autonomia. Há uma ruptura dos princípios controladores da cultura individual e social. Mas nessa aparente restrição às relações finitas, há uma dialética que inclui a teonomia, já que o caminho da autonomia tinha que ser percorrido até o fim, até o momento da irrupção de um novo kairós. Assim, mais uma vez, o que parece relativo, particular e frágil, torna-se veículo do absoluto, embora nada relativo possa se transformar em absoluto. 

Metodologicamente, Tillich mostra que toda mudança, toda transformação exige uma compreensão do momento vivido que vá além do meramente histórico, do aqui e agora. Deve projetar-se no futuro, deve entender que há na crítica protestante da responsabilidade inelutável um choque entre este kairós e a utopia. Tal desafio não pode ser resolvido por um homem, por mais que encarne o espírito da profecia. O sujeito da transformação será, em última instância, a massa.

Vemos, então, que para Tillich a imediaticidade da massa faz com que desabroche nela instintos biológicos que estavam inibidos no indivíduo, o que traz à tona um princípio espiritual imediato: a disponibilidade à revelação espiritual do momento presente. Essa imediaticidade é o que leva a massa ao irracional de baixo, à demência, ou ao irracional de cima, à novidade criadora. 

Ao lado da imediaticidade, os aspectos emocional e intelectual são amplificados. As forças do entusiasmo e da coragem são amplificadas de tal modo que podem levá-la ao sacrifício e à destruição. Assim, a massa se eleva acima das consciências individuais com intuições simples, mas com clarividência. Este processo prepara o espírito objetivo  no momento presente.

Quando a massa vive esse processo de espiritualização, nela, religião e cultura se misturam. A esse momento de evolução da massa Tillich chama de massa mística.

Assim, para Tillich o movimento da massa torna-se dinâmico, indo da mecanicidade da industrialização em direção à transformação da sociedade, em direção à sua própria libertação. Assim, o movimento dinâmico da massa  parte da massa mecânica, já existente ou em perigo de aparecer, e visa a supressão da massa, visa à massa orgânica.

Vemos aqui que Tillich tem uma compreensão diferente daquela de Gramsci, que entende a vanguarda enquanto intelectualidade orgânica, mas não vê a massa em processo dinâmico que pode levar ao surgimento de uma massa orgânica. Sem desejar nesta obra – já que este não é seu objetivo – fazer um confronto entre os dois pensadores, tocamos apenas no ponto que metodologicamente nos interessa: a crítica protestante, conforme vimos, não se limita ao profeta ou ao intelectual, é um processo maior que tem na massa orgânica uma tripla ação, de protesto contra o arbítrio e a opressão, de liderança social e de transformação da situação-limite.  

Ao lado da desconfiança e da resistência há um desejo de governar de outro modo, que se situa na atitude protestante. Temos como pontos de ancoragem, no caso da Convergência Socialista, o retorno aos clássicos do socialismo, a invocação do direito contra a presença do arbítrio, e o raciocínio científico contra o peso da autoridade. É certo que esse protesto faz prevalecer um universal contra um sistema de exclusão particular, mas o faz no interior de um dispositivo que liga estreitamente tempo presente e kairós. 

O protestar e o clamor do profeta não são vida, mas visam restaurar a vida sob ameaça na situação-limite. A luta contra o arbítrio localiza-se nas fronteiras desse próprio arbítrio. Assim, a ética social protestante se constrói no nível material do tempo presente, no confronto das relações de domínio e pessoalidades. 

A partir dessas relações de domínio se dá a passagem do campo estratégico de forças sem sujeitos em direção à razão transformadora da massa orgânica.

Versus retoma uma velha questão, insistentemente discutida a partir das barricadas de maio de 1968. Será que a transformação social, que se dá como síntese de uma ação violenta, num primeiro momento, para depois passar a ação construtiva, tem um componente que não é instrumental, mas mediações de nível prático?

Se a estratégia proposta pela Convergência Socialista, de formação de um partido socialista de massas, visa chegar a um fim exitoso é preciso perguntar se esse fim é uma mediação ou um fim. Ou, em outras palavras, quem é este sujeito das transformações e como se articula o intelectual com este sujeito histórico? 

A visão da Convergência Socialista, de apresentar a formação de um partido socialista de massas como estratégico, apoiou-se na fórmula proposta por Rosa Luxemburgo de que o socialismo não está ligado à organização dos trabalhadores, mas é ele próprio movimento da classe operária.

Assim, o sujeito do socialismo é a massa orgânica de Tillich ou consciência ilustrada, o povo filósofo do jovem Marx. 

Para a Convergência Socialista, o intelectual por vir de uma classe estranha ao proletariado, adere ao socialismo não por sentimentos de classe, mas por superação. Por isso, está mais exposto às oscilações oportunistas do que a massa orgânica, o proletariado ilustrado, elite e vanguarda do proletariado. Essa massa orgânica não perde o vínculo com o chão materno e encontra em seu instinto de classe um apoio mais seguro.

Ora, a massa orgânica não é apenas uma massa que protesta, que simplesmente procura realizar os fins que as táticas e as circunstâncias impõem. Seu êxito é uma possibilidade, mas sempre traduz a ética social protestante proposta. Assim, quando se trata de libertar os excluídos, o êxito dependerá de suas condições de possibilidade, ou seja, será impossível separar kairós e utopia.

A ética social protestante deve integrar os princípios enunciados na escolha de fins, a estratégia; os meios, a tática; os métodos, os modos de organização, que devem levar ao princípio do protesto histórico de transformação. 

Para Versus, o regime militar estava chegando ao fim semeando prisões, fome e morte. O autoritarismo se realizava como fetiche, já que a ditadura se erguia como critério de verdade, destruindo vidas humanas, e a dignidade de milhões de brasileiros. 

É por isso que o Versus se esforça para apresentar um princípio universal: o dever da construção de alternativas políticas próprias aos excluídos. Princípio este que é objetiva e subjetivamente negado pelo regime militar e pelo arbítrio.

No ABC paulista a abertura lenta e gradual proposta pelo governo militar fez água. Em março de 1979, 180 mil metalúrgicos entraram em greve quando mal tinha chegado à presidência o general Figueiredo. O governo decretou a intervenção nos sindicatos e destituiu seus dirigentes. Algumas semanas depois, voltou atrás e revogou a intervenção. Em 1980, nova greve, só que agora 300 mil metalúrgicos cruzam os braços. A greve foi derrotada. Lula cumpriu 31 dias de prisão e foi enquadrado na Lei de Segurança Nacional. Os operários tiveram 41 dias descontados de seus salários e centenas de trabalhadores foram demitidos. Derrota? Ao contrário, as manifestações operárias mostraram ao país que o processo de abertura era irreversível e, aos operários, que o Partido dos Trabalhadores tinha uma direção aguerrida.

Assim, chegamos ao sujeito histórico de Versus, a massa orgânica, a liderança sindical que surgia das lutas do ABC paulista e em João Monlevade, que podia dirigir esse processo de transformação da sociedade não apenas mudando o sistema, mas apresentando à sociedade uma nova ética, a ética do direito à produção e reprodução da vida.

Donde é natural que o Versus tenha se feito a pergunta: o que é o Partido dos Trabalhadores? Afinal, para Versus, na resposta correta a essa pergunta estava a centralidade de seu pensamento socialista para aquele momento histórico. E Versus responde assim:

Antes que nada ele [o Partido dos Trabalhadores] parte de um elemento, o desenvolvimento econômico e social dos últimos vinte anos, que geraram duas novas classes, uma classe operária industrial, altamente concentrada nos grandes centros urbanos e uma classe média assalariada moderna. Desde 1978, tanto os operários como esta classe média estão num processo de mobilização.
Essa combinação de fatores, o surgimento de estratos novos na sociedade e o conjuntural – um ano de mobilização – levam ao surgimento (ou condicionam o surgimento) de fenômenos novos na sociedade.(...)
A idéia do PT surge então de quatro fatores: (1) de uma nova realidade social; (2) das mobilizações e lutas que estão se dando há mais de um ano e que geram uma nova experiência, não somente sindical, mas democráticas e política; (3) a não existência de alternativas para esta nova vanguarda, que necessita expressar-se politicamente; e (4) de que esta necessidade se expressou através de algumas direções sindicais e através da Convergência Socialista, que cumpriu um papel mais ideológico.
De toda a maneira, o Partido dos Trabalhadores não estava nos planos do governo. Sua intenção é de que todos os dirigentes sindicais classistas e autênticos, assim com o ativismo, estejam controlados pelo PTB ou o MDB. Esta é a única garantia para a burguesia, enquadrá-los e vencer o movimento de massas através de uma saída democrática controlada, entrilhando seu descontentamento para a luta estritamente parlamentar.
Na verdade a construção do PT passa por grandes dificuldades. Como os dirigentes sindicais chegaram à questão do PT através do classismo, como mediação entre a questão democrática e política, por uma necessidade, e não exatamente por um salto de consciência, o Partido dos Trabalhadores passa a ser de difícil concretização. Os dirigentes sindicais estão procurando um partido, algo que possa cumprir uma necessidade que têm. Como antes o projeto do PTB estava distante, eles começaram a baralhar a hipótese do PT, mas na medida em que o PTB venha a concretizar-se, aumenta  a possibilidade de que os classistas aceitem esta alternativa. Já que á  mais fácil entrar numa partido do que construir um. 

Se entendermos o conceito de massa em Paul Tillich enquanto movimento que caminha através do princípio da palavra reveladora e da ação transformadora, é fácil ver que chegado um determinado momento os trabalhadores reivindicariam a formação de um partido próprio. 

É o que Tillich chama de dinamismo revolucionário, esclarecendo que o entusiasmo dessa massa dinâmica faz dela veículo do destino. Por isso, o golpe perpetrado contra a Convergência Socialista e o jornal Versus, em agosto de 1978, impossibilitando a conclusão do congresso de formação do Partido Socialista, através da prisão de sindicalistas e jornalistas, se por um lado fraturou a utopia, por outro mostrou a esses mesmos jornalistas e sindicalistas, ligados ao movimento dos trabalhadores do ABC paulista, que o kairós apontava para a formação de algo inteiramente novo no cenário político brasileiro: o Partido dos Trabalhadores.

E onde entra aí a questão da revolução? Para a Convergência Socialista, conforme pudemos constatar na leitura de Versus, o discurso ético socialista era o elemento fundamente da transformação prática, isso levaria, no sentido estrito, a uma ética de transformação não reformista, à transformação plena.

Mas Versus considerava que a transformação caminhava sempre sobre o fio da navalha: de um lado estava o anarquismo contrário à unidade da massa orgânica e de outro o reformismo pró-integração. Por isso, estratégia e tática deviam partir de critérios definidos e de um princípio ético geral que possibilitassem cumprir às mediações existentes.

Os fins estratégicos para Versus deviam ser enquadrados dentro desses princípios éticos gerais, a fim de que, com factibilidade, se pudesse negar as causas da negação dos excluídos. Esse seria um momento negativo do protesto, onde os meios deveriam ser proporcionais àqueles contra os quais o protesto era feito.

Mas se por um lado o protesto traduzia uma ação desconstrutiva, por outro promoveria transformações construtivas. Levaria a uma nova ordem com base num programa planejado que seria realizado progressivamente, mas nunca totalmente. O kairós confrontaria a utopia e a fecundaria, transformando-a em utopia possível.

Podemos dizer que o pensamento da Convergência Socialista, no que se refere à sua luta contra o regime militar e à organização dos trabalhadores, tinha por base uma ética social protestante, onde a autonomia se vê fecundada pela ética cristã. 

Exemplo disso, é que Versus fez uma leitura teológica-libertadora dos clássicos socialistas e uma apropriação da ética vivida e pregada pelos modernos mártires do cristianismo. Há também uma ruptura com as posições marxistas clássicas, favoráveis ao papel hegemônico do intelectual orgânico dentro da organização política, e a defesa de que as vanguardas classistas, a massa orgânica, seriam realmente a direção política e social do movimento real de transformação da sociedade brasileira.

Assim, para Versus, cabia ao intelectual enquanto individualidade levantar a ética social protestante como protesto negativo diante de uma sociedade que vivia uma situação-limite. A esse intelectual cabia a co-responsabilidade solidária, que parte do critério vida Versus morte.

Sem dúvida, o intelectual era desafiado a caminhar com dignidade na senda fronteiriça, entre os abismos da cínica irresponsabilidade ética diante dos excluídos e da paranóia fundamentalista.

Uma tal visão abre perspectivas interessantes na compreensão da ética social protestante e na análise de diferentes situações históricas, em especial do momento vivido pelo jornal Versus e pela Convergência Socialista no final dos anos 70 no Brasil. A questão da transformação da sociedade, a luta pela democratização e a formação do Partido dos Trabalhadores, por exemplo, podem ser compreendidos melhor através do caminho metodológico construído por Paul Tillich em seus escritos socialista. E como ele próprio afirmou, em declaração ética cheia de esperança, todas as questões convergem para uma mesma resposta: a humanidade deve ter origem nas profundezas de um novo conteúdo, onde será superada a oposição entre massa e personalidade. Onde um novo conteúdo será produto da graça e do destino.  

 






CONCLUSÃO



A partir da metodologia utilizada nesta obra, que teve por base os escritos socialistas de Paul Tillich e conceitos construídos por ele no correr de sua vida, e da pesquisa e análise qualitativa realizadas no jornal Versus, apresentamos algumas considerações:

A Convergência Socialista traduziu no período estudado, a partir da leitura que o pesquisador fez no jornal VERSUS, a visão de que o socialismo tinha como tarefa propiciar a formação de um partido de massas, socialista, que apoiasse a luta dos trabalhadores por melhores condições de vida e pela democracia; 

O jornal VERSUS expôs através de seus editoriais, reportagens, entrevistas e artigos a realização de reformas políticas e de estrutura na sociedade, a organização política dos trabalhadores, de suas entidades de classe, a participação dos trabalhadores nas eleições enquanto classe, e legalização de um partido próprio dos trabalhadores. E que foi a partir do jornal, que se tornou porta-voz de parcela dos socialistas brasileiros, que ativistas da Convergência Socialista levaram estas propostas às suas frentes de atuação: às fábricas do ABC, aos sindicatos e às entidades de estudantis, principalmente.

O jornal VERSUS propiciou através de sua atuação, que traduziu informalmente o pensamento político do movimento de Convergência Socialista, em aliança com grupos de trabalhadores do ABC, a formação do Partido dos Trabalhadores, num primeiro momento visto como Partido Socialista.

Assim, como fruto de um momento especial, onde teonomia -- substância e sentido da história -- se combina com o princípio dinâmico e prático da autonomia, surgiu o Partido dos Trabalhadores. 

Seu surgimento partiu de um elemento, o desenvolvimento econômico e social das décadas de 60 e 70, que geraram duas novas classes, uma classe operária industrial, altamente concentrada nos grandes centros urbanos e uma classe média assalariada moderna. Desde 1978, tanto os operários como esta classe média estavam num processo de mobilização. Versus explica:

Todo o processo novo que se dá a partir de maio de 1978 é muito rico porque combina e interliga muitas coisas, como o fato de que setores do movimento de massas se mobilizem a partir do sindical, mas também combinam o democrático e o político e geram uma importante vanguarda, mas se dá de forma desigual e combinada, mais ainda, não é um fenômeno ideológico, mas concreto.
Assim, diríamos que se dão, misturados, três níveis de consciência. Um primeiro mais amplo, que é o sindical-classista e que se traduz no surgimento de uma nova vanguarda classista, em sindicatos autênticos, chapas classistas de oposição, vencedoras, etc.
O segundo nível de consciência é o classista-político, o mais heterogêneo, que se traduz na compreensão empírica, vacilante e não claramente definida ainda, da necessidade de um partido sem patrões, que expresse as necessidades mais gerais da classe trabalhadora. Isto é laborismo.
E o terceiro nível de consciência seria o da consciência revolucionária, daqueles que entendem a necessidade de um partido socialista para a transformação da sociedade.
Sem entender que existem níveis diferentes de consciência e desigualdades não entenderemos o processo vivido pelo PT. A construção do Partido dos Trabalhadores depende dos próprios trabalhadores. A participação dos socialistas nesta construção pode ser fundamental, mas ainda assim é secundária. De todas as maneiras, caso se concretize o PT será talvez o maior salto que a classe operária brasileira já deu no processo de consolidação de sua consciência-para-si. E, um rombo efetivo nos planos de Figueiredo. Dezesseis de junho de mil novecentos e setenta e nove. Anno domini.  

Diante desse momento histórico, desaparece o jornal Versus. E aí nos perguntamos e respondemos como Tillich: 
É possível que a mensagem do kairós esteja errada? A resposta não é difícil. A mensagem está sempre errada; percebe algo imediatamente iminente que, considerado seu aspecto ideal, jamais se tornará real e que, considerado seu aspecto real, só poderá se realizar depois de longos períodos de tempo. Contudo, por outro lado, a mensagem do kairós nunca estará errada; pois onde quer que o kairós seja pregado como mensagem profética, já se fará presente; pois é impossível que venha ser proclamado com poder sem ter possuído aqueles que o proclamam.   

 






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4. CONVERGÊNCIA SOCIALISTA (documentos internos)


Documento da Convergência apresentado ao Congresso dos Metalúrgicos de São Bernardo do Campo, datilografado, 12 páginas, outubro de 1978.
O equilíbrio fracionado, datilografado, 16 páginas, 12 de novembro de 1978.
As reformas, uma necessidade, datilografado,13 páginas,  12 de novembro de 1978.
As eleições e a conjuntura, datilografado, 25 páginas, 19 de dezembro de 1978. 
A construção da Convergência, datilografado, 20 páginas, 8 de maio de 1979.
Boletim de campanha internacional, mimeografado, 27 de junho de 1979.
Os operários e a classe média, datilografado, 9 páginas, 27 de junho de 1978.
Circular Estadual I, Comitê Eleitoral Estadual, Síntese do Eixo Estadual, mimeografado, 1 páginas, s/d.
Por que necessitamos da quarta tendência?, datilografado, 3 páginas, 18 de julho de 1979. 
Os tristes anos da diáspora negra, 12 páginas, 29 de julho de 1979.
A questão racial e o movimento negro, 5 páginas, incompleto, s/d.
A economia brasileira nas duas últimas décadas, datilografado, 22 páginas, 1979. 
O método, por que um documento CS/PT?, datilografado, 13 páginas, 27 de outubro de 1979. 
CS, classismo e PT, datilografado, 23 páginas, 25 de novembro de 1979.
Teses de Campevas, datilografado, 18 páginas, s/d, possivelmente novembro de 1979.



5. JORNAIS E NOTAS DE SINDICATOS


DEOPS prende jornalistas da Convergência, Jornal do Comércio, Recife, 31.10.78
Grevistas já iniciaram as negociações, Folha de S. Paulo, 2.9.78.
Marcos de Farias é libertado pelo DOPS, Folha de S. Paulo, 2.9.78.
STF não recebe defesa de Wagner, Folha de S. Paulo, 2.9.78.
Protesto do IAB contra prisões de estudantes, Folha de S. Paulo, 28.8.78.
Para compreender a repressão, Folha de S. Paulo, 29.8.78.
Ato público reúne 3 mil pessoas, Folha de S. Paulo, 29.8.78.
Repúdio à repressão marca o iniçio da manifestação, Folha de S. Paulo, 29.8.78.
Candidato do MDB é preso e agredido, Folha de S. Paulo, 29.8.78.
Os presos, Folha de S. Paulo, 29.8.78.
Desde as 16h o largo foi todo cercado, Folha de S. Paulo, 29.8.78.
DEOPS liberta 5 dos 13 reféns dos acusados, Folha de S. Paulo, 29.8.78.
Um grupo provocou o tumulto na Sé, Folha de São Paulo, 29.8.78.
Libertadas 3 pessoas da Convergência socialista, Folha de S. Paulo, 29.8.78.
Vigília no Rio, Folha de S. Paulo, 29.8.78.
Em Campinas, 600, Folha de S. Paulo, 29.8.78.
Ato público no Rio reúne 500 estudantes, Folha de S. Paulo, 30.8.78.
DEOPS volta a acusar presos da Convergência e mantém as 13 prisões, Folha de S. Paulo, 31.8.78.
Querem jogar militares contra os trabalhadores, Folha de S. Paulo, 26.9.78.
Trabalhador deve fazer frente popular eleitoral, Folha de S. Paulo, 27.9.78.
Ninguém está segurando a corrupção no Brasil, Folha de S. Paulo, 28.9.78.
DOPS informa que não soltou militantes da Convergência, Jornal do Brasil, 31.8.78.
Pedida em Lisboa a libertação de preso pelo DOPS, Estado de S. Paulo, 31.8.78.
DCE explica solidariedade, Jornal do Brasil, 31.8.78.
Senador pede para os presos no DEOPS, Folha de S. Paulo, 6.9.78.
Convergência Socialista, o bode expiatório da reordenação partidária, Em Tempo, agosto de 1978.
Só a nossa união nos garante contra a repressão, libertem nossos presos, União Estadual dos Estudantes de São Paulo, 24.8.78.
Nota de solidariedade aos presos políticos, Oposição Metalúrgica de São Paulo, s/d.
Nota à imprensa e à população em geral, Centro de Luta Afro Latino América do MNUCER, s/d.
Convocatória à população, Noite de vigília pela libertação imediata dos operários presos do ABC e SP, Comissão de Direitos Humanos do Sindicato dos Metalúrgicos de S. André, s/d.
À população brasileira, Associação Paulista de Cineastas, Associação Brasileira de Documentaristas, Sindicato dos Artistas e Técnicos em Espetáculos de Diversões no Estado de São Paulo, s/d.
Nem um passo atrás, União Estadual dos Estudantes, s/d.
 






ANEXOS
 




Sobre gaviões e passarinhos
E O NOSSO EDITOR CHEFE SE FOI...


Versus nasceu há três anos. Trazia uma proposta nova. Carregava uma perspectiva ampla. Viveu, pelo esforço de jornalistas, intelectuais e leitores. E afirmou-se como uma publicação respeitada.

Teimosamente, Versus defendeu o continente contra a opressão. Divulgou culturas desconhecidas. Publicou autores que o circuito editorial dos “best sellers” e do academicismo universitário ignorava.

Rompeu com a linguagem do jornalismo de encomenda. Lutou contra o que era burocrático e estéril. Desde o primeiro momento, entendemos que a cultura rebelde passava pelas veias do povo. Índios, negros, trabalhadores, personagens ignorados pela cultura oficial, o Versus que fizemos eram os protagonistas.

Naturalmente, os espíritos colonizados, que têm um olho em Paris e outro em Nova York, atacaram nosso trabalho. Isto fazia parte da luta. Não era risco. Era a gratificação.

E nesta luta também se inclua pressão do oficialismo, o boicote dos anunciantes, os telefonemas suspeitos, as ameaças frontais, os interrogatórios de praxe. Tudo fazia parte do jogo.

E o cenário se transforma. Pela luta de tantos, pelas divisões do poder, a expectativa democrática se amplia. E é na busca de uma definição maior diante do drama do cotidiano, de uma nação sufocada, que chegamos a um “programa”, há cerca de meio ano, no qual, além das lutas gerais democráticas, vislumbramos a necessidade de um partido socialista, democrático, legal, que unisse amplos setores do nosso povo.

Passaram-se meses. Nós entendemos que a luta pelo PS, através da chamada que a luta pelo PS, através da chamada Convergência Socialista, chegou a um impasse. Por que a Convergência não conseguiu ficar à altura de sua proposição?

Por que outros setores não aceitaram liminarmente (e nisto estavam errados) a proposta de construção de um PS?

Seja com for, o isolamento da Convergência é um dado concreto, que ninguém pode ignorar.

Mas, se a Convergência não consegue ser um pólo de união dos que anseiam por um amplo partido popular, ela, por outro lado, começa a pesar cada vez mais dentro do Versus. A tal ponto que, não importa se de uma forma inconsciente, torna-se um fardo a ser carregado.

Lutamos dentro de Versus para impedir que a definição por uma posição implicasse em um empobrecimento editorial, na diluição de nossa linguagem, na politização grosseira das questões, no grupismo, na exclusão de outros setores.

Mas, apesar deste esforço, entendemos que a intervenção de Versus, ao nível principalmente da questão da construção do partido popular, tornou-se repetitiva, monocórdica. Como se todo o impasse em que está a Convergência (seu isolamento) pudesse ser compensado pelas páginas do jornal. Esta é uma autocrítica diante de nossos amigos, de nossos leitores, dos companheiros jornalistas.

Ao mesmo tempo, entendemos que, ao nível de intervenção cultural e da proposta de latino-americanismo combativo, Versus manteve muito de sua riqueza editorial. Embora os que falam a suspeita linguagem da “cultura militante” tenham tentado reduzir a proposta cultural da publicação ao tom cansativo de muitos textos políticos.

Enfim: quem pode duvidar, a não ser os “convergentes” mais dogmáticos, que a estreiteza das bases política, teóricas e culturais da Convergência deveria se tornar em uma camisa de força para uma publicação tão indagativa e de vanguarda quanto Versus?

Em nome de tudo isto – e para assinalar uma ruptura com a proposta da Convergência – decidimos não lutar dentro de Versus, mas trabalhar com outros companheiros intelectuais, jornalista,s dirigentes políticos, religiosos (todos os que estejam empenhados em lutar contra a opressão instituída) pela criação de uma nova publicação. Não acreditamos em donos da verdade. Nem em propostas amplas que se transformam em propostas estreitas. Não é por aí que passa, de verdade, a construção de um “amplo partido socialista”. Nem de uma pátria justa.

Estamos na luta pela criação de uma nova revista, que será lançada nos próximos três meses. E já temos o apoio de muitos jornalistas e outros companheiros que acreditam neste projeto. Através da imprensa, manteremos todos os nossos amigos informados sobre os passos que estamos dando. Entendemos que estamos agindo assim de uma forma inteiramente coerente com o espírito deste jornal chamando Versus, para o qual dedicamos tanto de nossos esforços. E do qual, hoje, decididamente, DIVERGIMOS.

São Paulo, 13 de agosto de 1978.
Marcos Faerman, diretor responsável e editor chefe, Mario Augusto Jacobskind, chefe da sucursal rio, Vitor Vieira, editor-assistente, Cecília Thompson, colaboradora, Cláudio Willer, sub-editor, Isabel Rodriguez, colaboradora, Reinaldo Cabral sucursal Rio, Evaldo Dinis – sucursal Rio.

[E o nosso editor chefe se foi.., São Paulo, Versus no 24, setembro de 1978, p. 2]. 
 




ESCLARECEMOS


A carta de Marcos Faerman é bonita. Ele escreve bem sobretudo o primeiro parágrafo, depois desanda um pouco. Uma alma sensível, digna. E patriótica. Vejam como no curso mesmo de uma situação crítica é ainda na Pátria que pensa. A alma corajosa se retira, mas não é para abandonar a luta, é para levá-la em outra revista. Sim. Porque Marcos é um jornalista; antes de tudo um jornalista, se ele fizer um outro jornal “bom e bonito” estará salvo.

Na verdade o que estará salvo serão as aparências, porque só delas cuida o ex-diretor responsável do Versus. E a história que conta – tão dignamente – tem outra versão. Aparências. Das pessoas que assinam a carta de demissão só Faerman sabe porque abandona o Versus, os outros colaborados só ouviram a versão dele; não acompanharam a vida interna da redação paulista do Versus, não ouviram uma vez sequer o corpo editorial que Aquiles ofendido hoje abandona. Esta história precisa ser contada para além das aparências fabricadas na carta de demissão.

Há meses, a maior parte da redação sustentava que o jornal era lírico demais, épico demais, “continental” demais para a conjuntura que se abria. Apontávamos para as debilidades que o latino-americanismo de Versus encobria. Um jornal bonito, que sabia agradar, mas que não se engajava. Lírico, mas indefinido. Um pouco o ponto de vista de Sirius. Uma imagem que refletia bem o que Marcos é – sim, porque, ninguém há de tirar-lhe isso, o jornal era corpo e alma de Marcos – bem intencionado, progressista, sensível, bom jornalista, mas indefinido, eclético em seu marxismo cor-de-rosa desbotado. O sul-americanismo literário encobria bem essas debilidades; havia um toque de revolta e de protesto fazendo Versus um jornal de resistência e oposição. Porém o jornal não sujava as mãos, só se engajava na luta política brasileira indiretamente. Uma única desculpa para a redação: o cerco da repressão era grande e de algo valia essa forma de oposição: obrigava um pouco os leitores a lembrar a existência do resto da América Latina.

Segundo os companheiros, no entanto, a conjuntura permitia e exigia posicionamentos precisos, uma linha de ação definida. Propunham que o Versus apoiasse a luta pela formação de um partido socialista amplo já. A redação de conjunto discutiu e acabou aceitando os argumentos e a proposta; Marcos, tanto quanto o resto, entusiasta, persuadido. Um mês depois, Versus saía com a manchete. “O Partido Socialista está nascendo”. Tornara-se um jornal participante. Pretendia defender suas posições dentro da “Convergência Socialista” e leva a conhecimento público o trabalho e o projeto da Convergência. Nem por isso descuidaria do perigo de se tornar um jornal maçante. Nem por isso se tornaria, sobretudo, antidemocrático.

Estas questões, estes alertas, estiveram presentes em sua qualidade de editor chefe, função que sempre exerceu na sua plenitude, às vezes até com autoritarismo; o que saiu no Versus saiu com seu assentimento; divergências internas houve, a opinião de Marcos foi sempre, ou quase sempre, a última palavra.

Se os leitores consultarem os sete últimos números do jornal verão que todas as tendências se expressaram nele: no momento mesmo em que Versus assumia publicamente a defesa da construção do PS, numa fase portanto crítica de consolidação, dava a palavra a seus opositores e tendências divergentes.

Para o editor demissionário ter aceito a “virada socialista”, inevitavelmente, foi um erro. Não foi capaz de arregaçar as mangas, descer na arena, discutir. Do projeto do partido só sabe até hoje dizer que se queria um partido amplo, socialista, democrático. Nunca levou dentro do Versus a discussão política. Ele mesmo o diz, ele não gosta de política e tem raiva de quem o faz. Textual. Inconseqüente, portanto, a sua adesão à formação do PS, levianos no mínimo os seu pronunciamos em que, lágrimas nos olhos, dizia que tudo faria para evitar um novo jornal para o proletariado. Isto em lugar público. Nunca participou ostentamente das discussões da convergência, nunca soube dentro delas levar posições do Versus. Tudo isso advém de uma debilidade vaga, flutua em suas opiniões, decididamente ele não é feito para a luta política. Isto em si não é um crime. Mas que não construa aparências com frases singelamente compostas. Que não construa um personagem à custa dos outros.

Um jornal pode se posicionar e ser democrático. Há dezenas de exemplos disso no exterior e no Brasil. Um jornal pode ser participante, realmente engajado e jornalisticamente bom, literário e analítico. Esta tentativa – que continua sendo a do Versus – nem sempre foi sem dificuldades. Nem sempre foram claras para o Versus, em termos de linha editorial, as implicações de seu apoio à Convergência. São definições a que pouco a pouco se vem chegando. Dependem da própria evolução da Convergência, ainda muitas vezes insegura.

É desses problemas que Marcos se omite, lava as mãos. Volta à sua indefinição, volta aos tempos das mãos limpas, volta à pureza do jornalismo; ao iluminismo esquerdista bem pensante e rentável. Que tenha bons ventos.

Gostaríamos de ter feito uma carta mais política, menos pessoal. Não foi possível porque esta saída retumbante não encobre a ruptura política de um grupo, encobre as idiossincrasias de um moço que não quer mais brincar.

Ademais é difícil levar a sério as considerações políticas do antigo companheiro. Acreditar nas mágoas que diz ressentir pelo mal que a Convergência estaria causando ao Versus. Ou, então, temos um caso de mutabilidade política exacerbada. Há um mês Marcos aceitava ser representante da Coordenação Nacional da Convergência, pelo jornal Versus, numa reunião aberta em Porto Alegre.

Em todas as reuniões de pauta, principalmente nas últimas, ele pedia a presença de representantes da Convergência. Contraditório demais, demasiado mutante. Não dá para contradizer quem a si próprio se contradiz.

[Esclarecemos, São Paulo, Versus no 24, setembro de 1978, p. 2]. 
 




EQUIPE VERSUS


Editores: Jorge Pinheiro, Omar de Barros Filho, Hamilton Bernardes Cardoso, Hélio Goldstejn. Editores Assistentes: Vanderlei José Maria, Percy Galimberti, Cristina Ribeiro, Roberval Goulart, Júlio Tavares, Mouzar Benedito, Ênio Buchioni. Arte: André Bocatto. Fotos: Rosa Gauditano (editora), Luiz Sérgio.  Ilustrações: João Zero, Marlene, Lucio Yutaka Kume, Ivone Couto, Carlos Vampré, Carlos Matuck, Tacus, Rico, Leib, Chico Caruso, Marco Antônio. Colaboradores: Roniwalter Jabotá, Fernando Kolleritz, Neusa Maria Pereira, Tatiana Petit, Celso Prudente, Wilson Prudente, Antonio Risério, Valdira, Souza Lopes, Antônio Carlos Moura, Dércio Marques, Fernando Peixoto, Ana Maria Sampaio, Francisco Weffort, Fernando Morais, João das Neves, Maria Dulce Pinheiro, José Adão de Oliveira, Antônio Rodrigues Filho, Carlos Alberto Monteiro. Rio de Janeiro (sucursal): H. Júnior (chefe), Renato Lemos, Tamar de Castro, Astrô Eurides, Rose. Rio Grande do Sul (sucursal): Eduardo Scaletsky (chefe), Paulo Barros, Paulo de Tarso, Renata Pinto, Ana Lucia Oliveira. Brasília (sucursal): Antonio Carlos Ramos (chefe), Beatriz Cleto, Glaúcia da Matta Machado, Tê Cruvinel, Luis Antonio da Mota Britto, J.P. Guimarães (fotos). Minas Gerais (sucursal): Cléber Cajazeira (chefe), Antonio Moreira, João Batista Jorge. Pernambuco: Maria das Graças Ferreira, Ivan Maurício. Exterior: Eduardo Galeano e Eric Nepomuceno (Espanha) Diana Belesse e Abrão Slavutsky, Alberto Villas (Paris) Niva Prado, Jim Green, Daniel Wishinska (México) Galo Khaifé (Equador) Luis Leiria (Portugal). Revisão: Maura Veiga, Suzete de Lourdes, Rosa Freitas. Diretor Responsável: Jorge Pinheiro. Administração: Maria José Lourenço, Esther Thunzer. Assinaturas: Lisete Barros. Departamento Jurídico: Luiz Eduardo Greenhalgh. Distribuição: Fernando Chinaglia. Past up: Jorge Patrício e Nelson dos Santos. Fotolito: Gilberto, Sergio e Reinaldo Ltda. Administração e redação à Rua Oscar Freire, 2271 – Pinheiros, SP, Capital, CEP 05409. Composto e impresso nas oficinas da Editora Jornalística AFA, Av. Liberdade, 704, São Paulo. Ano 3, número 24, setembro de 1978.
[Equipe Versus, São Paulo, Versus no 24, setembro de 1978, p. 2]. 
 




Os socialistas discutem os seus princípios
O IDEÁRIO SOCIALISTA


Em primeira mão publicamos a “Declaração de Princípios para ao Partido Socialista”, proposta pela Convergência. Acreditamos que o texto – embora ainda não tenha sido votado no momento em que fechávamos a edição – reflete bem a proposta socialista da Convergência. E por isso achamos por bem publicá-lo.

1 – O PS é a organização política dos brasileiros que procuram na democracia e no socialismo a solução dos problemas nacionais e as respostas às exigências históricas do nosso tempo.

2 – Herdeiro de toda uma tradição de luta das classes trabalhadoras pelo socialismo e pela liberdade, o PS propõe-se realizar a síntese das várias correntes que aspiram ao socialismo em liberdade. Só com o livre debate interno dessas correntes, reflexo das contradições presentes na própria sociedade, o PS poderá apresentar uma resposta precisa às necessidades imediatas e históricas dos trabalhadores.

3 – Criticamente atento às experiências internacionais do socialismo, o PS reivindica o marxismo como instrumento teórico e nunca concebido como um corpo dogmático.

4 – O PS combate o sistema capitalista. Recusa os métodos tecnocráticos e está certo de que, em parte alguma, o capitalismo conseguirá instaurar uma sociedade inspirada pelos ideais da igualdade social. O PS repudia aquelas enganadoras miragens de sociedade que só formalmente se apresentam como democráticas mas que, para manter o capitalismo, reforçam a desigualdade entre os homens.

5 – O PS repudia veementemente a teoria e os métodos totalitários e burocráticos de construção de uma sociedade que se diz socialista.

6 – PS repudia o caminho daqueles movimentos que, dizendo-se socialistas, acabaram por conservar as estruturas capitalistas e servir ao imperialismo.

7 – O PS é solidário com as lutas de todos os trabalhadores do mundo contra o fascismo, o colonialismo, e pela democracia socialista, contras as formas burocráticas que usurpam os direitos dos trabalhadores.

No próximo número publicaremos a declaração de princípios, o estatuto e o programa, na íntegra, aprovados na convenção nacional do Movimento de Convergência Socialista. [O ideário socialista, São Paulo, Versus no 24, setembro de 1978, p. 8]. 
 




Convergência Socialista explica
VERSUS E CONVERGÊNCIA SÃO A MESMA COISA? NÃO!


Buscando esclarecer a opinião pública e, em particular os democratas, declaramos que:

1. Dos 11 signatários da carta endereçada ao Versus, em que assinalam rompimento com a Convergência Socialista e o jornal, alguns nunca foram membros do nosso movimento. Outros já tinham se afastado anteriormente.

2. Versus não é e nunca foi uma publicação do nosso movimento, mas apenas um jornal, formado por companheiros socialistas e democratas que nos apóiam. Contudo, esse fato não significa que sempre haja concordância entre as posições da Convergência Socialista e as da redação do jornal.

3. A proposta política da Convergência, se expressa clara e abertamente em todas as suas publicações, objetiva sim a construção de um amplo e democrático. Partido Socialista no Brasil, usando, para isso, mesmo as leis vigentes no país, que consideramos restritivas, não democráticas e antipopulares. Lutamos para que esse partido seja construído através de uma ampla e livre discussão interna, que integre todos os que se reclamam socialistas, organizando núcleos de base por locais de trabalho. 

Desde o início declaramos que não estamos lutando apenas por mais um partido popular, mas por um partido socialista de massas. Combatemos, democraticamente e fraternalmente, as posições daqueles que mesmo se dizendo socialistas lutam por um partido popular, porque cremos que isso é abrir as portas para a união com centristas, pseudo-socialistas e populistas.

4. É o fato que não conseguimos unificar todos os setores que dizem querer a construção de um Partido Socialista. A nossa proposta foi e continua sendo a da unidade. E, se não conseguimos unir todos os grupos, isso não invalida nossa proposta e nossos métodos. No entanto, não estamos isolados. Não está isolado um movimento que tem hoje o apoio de milhares de pessoas na maioria dos Estados do Brasil. Não está isolado um movimento que congrega operários, camponeses, bancários, professores, estudantes, donas de casa, padres, e as mais diversas categorias sindicais. Nossa dinâmica aponta para o crescimento da Convergência como um todo. Nossa proposta se amplia pelas mãos de negros e de brancos, de religiosos e de não-religiosos, de operários e de estudantes, e por poucas mãos de “intelectuais”. 

Ela se amplia pelas mãos dos nossos companheiros que foram presos em Brasília pela polícia política. 

Ela se renova pelas mãos dos companheiros que foram presos distribuindo convocatórias para a nossa convenção, no ABC.

5. Talvez ao tenhamos entre nós “grandes personalidades”, e sim, homens do povo, anônimos, que não tem nome em jornais, que não ganham grandes e confortáveis salários. São trabalhadores. E para nós, da Convergência Socialista, são os trabalhadores os únicos capazes de construir sua própria emancipação, uma alternativa socialista em liberdade.

Júlio Tavares, da Coordenação Nacional de Convergência Socialista.

[Júlio Tavares, Convergência Socialista explica, São Paulo, Versus no 24, setembro de 1978, p. 8]. 

 




NA BOCA DA CHAMINÉ


Depois de muito tempo, 14 anos, os trabalhadores conquistam um direito que sempre foi seu: a greve.

Para que isso acontecesse foi preciso muita coragem e operários decididos que iniciassem um movimento que toma caráter nacional. A explosão das greves por reivindicações salariais iniciadas no ABC se estende a novas categorias de trabalhadores, a novas cidades e estados.

E esse movimento parece irreversível.

Agora chega a vez de Minas Gerais.

Os metalúrgicos da Belgo Mineira, em João Monlevade, iniciaram o mês de setembro em greve, reivindicando melhores condições de trabalho e de salários.

Sobre as greves em São Paulo, seu significado, a repercussão que tiveram em Minas e as perspectivas do movimento neste estado, falam quatro dos mais representativos líderes sindicais mineiros.

[Na boca da chaminé, São Paulo, Versus no 25, outubro de 1978, p. 8]. 
 




A TERRA TEM SEDE


DÍDIMO MIRANDA DE PAIVA, Jornalista profissional, iniciou sua participação na vida sindical em 1965, quando se elegeu suplente na diretoria do sindicato. Em 1975, atendendo a uma solicitação de quase trezentos jornalistas, encabeçou a chapa de oposição. Eleito, sua diretoria foi a primeira, desde 64, a “ignorar” as leis de exceção. Na sua opinião, os sindicalistas de 45 a 64 “eram piores que os atuais”, pois naqueles anos eles tinham relativa liberdade, mas preferiram entrar na linha populista de Getúlio, Jango, etc. Por isso, olha com desconfiança o “ressurgimento” de certos elementos que, tendo sido governo, nada fizeram para “quebrar” a estrutura corporativa-fascista da CLT.

O ensinamento fundamental da greve do ABC, na sua significação social, de organização, é o marco histórico que ela assinala, o da divisão entre os trabalhadores e os grupos imperialistas que centraram sua atuação em São Paulo.

A política econômica exportadora, seguida do arrocho salarial e conjugada com a falta de representatividade dos sindicatos, já se tornou insuportável. O empobrecimento dos assalariados no Brasil é tal que hoje já não se pode nem mesmo falar em classe média. Daí que o movimento grevista, que prossegue, foi uma revolução contra a fome, uma rebelião contra a negação de um dos mais elementares direitos da pessoa humana, que é o de comer.

Sua extensão aos demais estados  e as demais categorias vai depender da grande atividade das lideranças sindicais e da preparação das bases para esse tipo de movimento. E essa extensão é um a conseqüência lógica da reconquista democrática. Quando o povo brasileiro tiver liberdade de expressão do pensamento de reunião, de organização estudantil e sindical, e um mínimo de acesso aos meios de comunicação – rádios, jornais e televisão -, este povo terá condições de ele mesmo, pacificamente,, liquidar com este processo de exploração dominante no Brasil através do apelo à greve fraterna e pacífica como sua única arma.

E a greve é um direito legítimo do trabalhador, ela não pode ser regulada. Deve existir apenas como uma arma, como a última razão do trabalhador’, como disse o ministro Prado Kelly, autor da introdução do direito de greve na Constituição, na Constituinte de 46. E não existe direito de greve no Brasil de hoje, nem nunca existiu. O grande ensinamento que o sindicato do nosso grande amigo e líder Lula está dando ao Brasil é esse: nós vamos conquistar o direito de greve. Ainda que para essa conquista muitos morram nas prisões, muitos morram torturados.

[A terra tem sede, São Paulo, Versus no 25, outubro de 1978, p. 9]. 

 




“SOMOS PÁRA-RAIOS”


JOÃO PAULO PIRES VASCONCELOS. Já foi securitário, eletricista e desde 1960 e metalúrgico. “Em 1961 eu me sindicalizei, participe ativamente do movimento sindical em Monlevade tanto no período anterior a 64 como posteriormente”. Está a frente do Sindicato dos metalúrgicos de Monlevade desde 1972. Atuando na linha de frente dos sindicatos de metalúrgicos do país, João Paulo, ao lado de Lula, Marcílio e outros, teve importante participação no 5º Congresso da CNTI.

O movimento sindical não morreu ao longo desses 14 anos da política salarial, de Fundo de Garantia por Tempo de Serviço, de administração coercitiva e autocrática. Ele estava em hibernação, e agora o problema salarial, as condições sociais do operário, chegaram a um ponto de saturação. A manifestação em São Paulo é o extravasamento de tudo que estava reprimido, por sufoco.

As lideranças sindicais surgidas lá no ABC, principalmente, foram fruto de uma conscientização de base. Realmente existia o espírito de classe, e uma identidade entre as direções e as bases. A espontaneidade do movimento existia dentro do sindicato, porque os homens que ocupam o sindicato saíram da fábrica com essa mentalidade.

Os frutos que se colheu disso, como muito bem disse o companheiro Lula, é que as reformas que o trabalhador pretender ele terá que fazê-las. Não se pode esperar, como nos tempos passados, que se faça gratuitamente as reformas para nós. Essa greve vem mostrar que é o momento do trabalhador se conscientizar da importância histórica da sua posição, de acabar com esse atrelamento das entidades sindicais ao Ministério do Trabalho, e de iniciar realmente a contratação coletiva de trabalho – aproveitando a experiência dos companheiros, de sucesso absoluto através da greve.

Mesmo nos grandes centros industriais, grande parte dos trabalhadores ignora ainda hoje a extensão do movimento operário lá em São Paulo, pois a censura no rádio e na televisão impediram a nação de tomar conhecimento dele. No interior, o desconhecimento é quase total, a não ser que os sindicatos  cuidassem de divulgá-la, como em Monlevade, onde transcrevemos todas as notícias publicadas no jornal. Mas mesmo onde a notícia chegou sutilmente, os trabalhadores já estão dispostos a colocar fatos novos.

Teremos uma noção da amplitude dessa repercussão no momento de se discutir com as empresas o novo contrato de trabalho, as campanhas salariais. Em Minas Gerais, o momento da atitude firme dos trabalhadores exigindo melhorias salariais e de condições de trabalho, vai ocorrer de agora em diante, quando as grandes categorias vão começar a negociar com as empresas as condições do novo acordo. 

[“Somos pára-raios”, São Paulo, Versus no 25, outubro de 1978, p. 9]. 
 




REBELIÃO DA FOME


JOAQUIM JOSÉ DE OLIVEIRA, o seu Joaquim da Chapa 2 de Oposição, a atual diretoria do Sindicato dos Metalúrgicos de Belo Horizonte e Contagem, iniciou sua atuação sindical em 58. “Daí para frente eu prossegui nessa luta, sempre procurando orientar o trabalhador e fazer com que ele caminhasse para dentro do sindicato”. Membro da diretoria do Sindicato durante as greves de 68, seu Joaquim teve seu nome Impugnado, juntamente com o de outro companheiro, como  membro da chapa de oposição às eleições. Seu protesto; “Trabalho desde os dez anos de idade, nunca parei de trabalhar, até agora aos 66 anos. Meu crime no movimento sindical foi em 68 sindicalizar dois mil e tantos trabalhadores...”

O significado da greve de São Paulo, para a gente aqui em Minas, foi grande sabendo-se que nossa condição é bem pior que a de São Paulo.

Infelizmente, as nossas autoridades alegam que o salário do trabalhador é fato inflação. Mas eu discordo das nossas autoridades. O salário do trabalhador não é fato inflação, mas sim desenvolvimento. Nenhum trabalhador tem dinheiro pra botar a juros ou fazer qualquer outro negócio: o dinheiro do trabalhador entra num bolso e sai no outro. Quanto mais ele ganhar, mais desenvolverá a comprar o feijão pra vender no Brasil. Isso eu concordo que seja fator inflação. Nisso é que precisamos, nós brasileiros, tomar medidas, pensar muito.

Em Minas, parece que as autoridades que controlavam os preços das coisas abriram mão do setor açougue, e o operário não pode mais chegar em porta de açougue. A carne que eu comprava no ano passado a catorze cruzeiros, agora está custando quarenta e quatro... Os meus filhos não sabem o que é tomar leite. No dia em que levo, por acaso, um litro de leite, me perguntam se existe alguém doente – porque não é costume, o meu salário não dá. Mas eu apelo pra sardinha de quatro e quinhentos, essas coisas – ossos que são vendidos para tratar de cachorro... mas a gente é obrigada a comprar pra levar para casa. Então acontece que, na conjuntura que se está vivendo, a gente tem que pensar no que vai se fazer porque chegamos num ponto que não tem mais pra onde apelar. Como um trabalhador vai revigorar as energias se ele não tem condição de comprar aquelas matérias como ovos, leite e outras coisas que ele precisa para se alimentar?

Se todo mundo estiver sofrendo como eu a situação de custo de vida, será impossível continuar da maneira que estamos. Porque estamos fechados, encurralados de maneira que não tem mais pra onde escapulir.

Acho, então, que é preciso realmente nós olharmos para os companheiros de São Paulo, e ver que têm razão quando sentiram o problema e resolveram unir suas forças e mostrar que realmente as leis que nos rodeiam não são capazes de dominar as nossas necessidades. Que muitas vezes a fome suplanta qualquer lei.

É o que a gente tem que pensar: que o trabalhador, a única coisa que ele tem nas mãos é a sua união. Porque, se somos o pivô da riqueza do país, também somos o pára-raios: porque todo o custo de vida que se produz no país cai nas costas do trabalhador. Qualquer coisa que acontece dentro do Brasil, qualquer prejuízo, é descontado nas costas do trabalhador. O trabalhador unido, dentro dos princípios democráticos e cristãos, resolve os seus problemas. Como o pivô da riqueza tem que ser reconhecido como pessoa humana, que deve viver condignamente que deve se alimentar, e as autoridades devem olhar e pensar na justiça social porque nós somos aqueles que produzimos nossa mão-de-obra e o capital pesam igual na balança porque o valor do dinheiro é o mesmo da mão-de-obra.

[Rebelião da fome, São Paulo, Versus no 25, outubro de 1978, p. 9]. 
 




ROMPER OS DIQUES


ARLINDO JOSÉ RAMOS, foi reeleito para a presidência do Sindicato dos Bancários de Belo Horizonte. É bancário há 33 anos, dirigente sindical há 13. Segundo suas próprias palavras é uma pessoa que “sempre esteve dentro do sindicato, desde 46” e que “depois que entramos não pudemos mais sair”.

A greve representa a volta do sindicalismo ao seu leito normal. O sindicalismo que brotava no Brasil a´te a década de 209 foi colado dentro de uma represa; a Legislação da CLT que lhe deu os contornos que as classes dominantes vencedoras da revolução de 30 entenderam ser os limites permissíveis para a organização da classe operária.

Esse represamento foi repetido depois de 64, mas as águas da represa já estão transbordando. Os trabalhadores redescobriram que as soluções para os seus problemas sairão das suas próprias cabeças e mãos, da força da sua união. Resolveram romper esses diques e desconhecer a lei de greve, a legislação salarial, a decisão dos tribunais. Puseram de lado os códigos impostos pelas classes políticas dominantes, que são ao mesmo tempo as classes econômicas dominantes. E souberam se portar maduramente e com grandeza nesse episódio, captando o reconhecimento de toda a nação.

O movimento de São Paulo faz com que os trabalhadores voltem a confiar em si mesmos e se disponham a seguir o seu exemplo, que é uma lição para todo o movimento operário do país. Aqui em Minas Gerais, por ocasião das campanhas que encetarem, sindicatos e trabalhadores perceberão na prática a resposta que darão daqui para frente ás suas reivindicações, tendo em vista os êxitos alcançados em São Paulo.

É hora dos trabalhadores ocuparem todo o espaço que se abrir dentro da sociedade brasileira, espaço que sempre lhes pertenceu, mas não era por eles ocupado. E não deixar sempre de dar um passo adiante, quando a hora seja de avançar.

[Romper os diques, São Paulo, Versus no 25, outubro de 1978, p. 9]. 
 




TESTEMUNHO – I


Ação urgente

A trepidação do ônibus, monótona, a luz amarelada, fraca, aumentavam a  sonolência. Fechei o jornal. Fechei os olhos e soltei o pensamento. A Convenção – os punhos erguidos, as conversas sobre o PS, aqueles mortos marcados pela exploração capitalista, a bonita garçonete que me servia no restaurante da esquina, passavam e voltavam a mente.

Abri os olhos. Era perto de 23 horas de 22 de agosto. O ônibus Santo André vis Prosperidade, contorna a praça da Riqueza e segue pela rua Eldorado. Passa o primeiro ponto, pego minha sacola e dou sinal. O ônibus pára na esquina da rua dos Mármores. Desço. Espero que se vá. A rua deserta. Apenas um Volks azul velho estacionado ao longo. Atravesso a rua pensando em tomar um banho e cair na cama.

Repentinamente ouço ronco forte de motor de automóvel. Viro-me e vejo o Volks velho vindo em minha direção a toda velocidade. Imagino um seqüestro. Esboço uma fuga. Sinto quatro mãos fortes e violentas me agarrarem. Começo a gritar por socorro, na esperança de que surjam testemunhas. Surgem pessoas nas janelas, assustadas, continuo a gritar. Mas quatro mãos juntam-se às anteriores e são suficientes para me dominar, imobilizando pernas, braços – o grito não passa mais pela pesada mão que comprime minha boca. Segurado pelo paletó – que se rompe – e pela calça – que se rasga – jogam-me no banco traseiro do Volks. Sou encapuzado e algemado. O carro arranca em grande velocidade.

- Grita agora seu filho-da-puta!

- Vamos descarregar esta máquina nele... tá cheinho de bala, neném.

- Não, agora não! Vamo levá ele prá Praia Grande beber um pouco de água salgada... depois...

As frases berradas eram entrecortadas por socos na cabeça e nas costas. Andamos por uns dois minutos.

Atenção base! Estamos estacionados em Avenida de mão dupla. Manda alguém para recolher ele.

O rádio do carro funcionava insistentemente. Algum tempo depois chega um outro carro.

- Tirem o capuz...

- Mas chefe...

- Podem tirar, não tem importância.

Retiraram o capuz e as algemas e me levam para outro carro, que se põe em marcha.

- O que houve meu filho? Foi assaltado

- Como? Fui seqüestrado!

- Ah! Estes policiais de hoje!

- Pra onde estão me levando?

- Para o DEOPS! LSN, meu filho!

Desci do carro. Olhei em toda a sua sinistra imponência, o Batalhão Tobias da Aguiar. Um arrepio percorreu minha espinha.

Entramos. Escadas  e mais escadas, sempre subindo.

Levaram-me para uma sala com algumas poltronas.

O ambiente apesar de fúnebre, era de uma atividade febril, homens correndo por todo o canto, berrando ordens, vez ou outra se dirigindo a mim com grosserias.

Não tardou para que pe4rcebesse logo o motivo de toda a agitação. Comecei a ver companheiros da Convergência socialista por todo o lado. O ambiente era de uma opressão indescritível.

Às seis horas de quarta-feira foram me buscar. Descemos o elevador. Preparava me espírito para as torturas, pois sabia que as salas de temor da ditadura estavam no subsolo. Paramos na carceragem. Lá estavam os companheiros Bernardo e José Creton.

Levaram-me para a sala no 5. Lá estavam os companheiros Oscar e Waldo, juntos com quatro coreanos e um português presos por falta de documentação.

Deitei num pedaço de espuma de uns 80 cm, joguei meu casaco por cima dos ombros e adormeci. À noite deste mesmo dia me transferiram para a cela no 2. Lá encontre Arnaldo e João Carlos, juntos com cinco prisioneiros por assaltos a bancos.

Meu primeiro interrogatório foi na quinta-feira por volta das 17 h. Chamaram Waldo, José Maria, Hilda e eu. Subimos e fomos interrogados simultaneamente em salas separadas.

Recomendavam que eu falasse tudo o que sabia, pois eles conheciam toda a minha vida.

Foi um interrogatório cheio de pressões. A cada resposta minha que não estava de acordo com o que eles queriam ouvir era motivo de chacota pelos presentes (cerca de seis ou sete).

Perguntavam tudo sobre minha vida de 1974 até hoje, o que eu respondia com calma e devagar.

Quando desci à cela, soube que havia ocorrido uma assembléia na PUC, com dois mil estudantes que haviam deliberado um ato público para nossa libertação.

Soubemos por entre as grades, espalhamos a notícia e os gritos de “Viva” encheram o corredor sombrio que dá acesso às celas.

O ânimo, a confiança no movimento de massas, a certeza da transitoriedade daqueles momentos nos davam forças para suportarmos com dignidade os intermináveis interrogatórios.

A greve de fome, deflagrada na quinta-feira de manhã, reivindicando melhores condições carcerárias e quebra da incomunicabilidade para advogados e familiares, seguia com muita confiança.

Na sexta-feira à noite, um dos presos comuns que havia saído volta trêmulo:

- Tô cum medo de voltar pro choque.

- Por quê? 

Porque eles num tão acreditando no que eu falei. Mas eu não quero voltar, num faz nem uma semana que eu tive lá.

E no explico que a sala de choque ficava no fim do corredor, para o lado esquerdo de quem olhasse a porta da cela, por dentro. Tomou um pouco de água com açúcar e foi se acalmando.

No sábado o DEOPS não parecia o mesmo. Começaram a nos tratar com muita delicadeza, procurando nos oferecer o máximo conforto!

Não tínhamos confirmação das manifestações, mas conosco, por apenas observar as atividades dos policias, estava a certeza que o movimento de massas havia dado um trabalho aos repressores e estava pressionando forte.

Havíamos adendado às nossas reivindicações mais duas: que cessassem os maus tratos sofridos pela companheira Maria José (lhe deram alguns apertos nos ombros e que descesse para a cela o companheiro Ronaldo que sabíamos estar lá dentro, mas não estava conosco).

À noite do sábado, por volta das 23h, obtínhamos vitória total.

Suspendemos a greve e nos trouxeram muito pão e café. E mais um companheiro havia sido libertado. Pela primeira vez dormi tranqüilo, a sono solto.

No domingo, às 10hs me levaram para o cartório, de lá saí às 16hs, voltando para a carceragem. Como não tinha nenhum objeto meu na cela, não permitiram que pra lá voltasse para me despedir dos companheiros. Na sala de identificação, enquanto colocava mais dados em dezenas de fichas, encontrei Bernardo, que fazia o mesmo e lhe avisei que estava saindo.

Dali para o DEIC, para exame de corpo de delito no IML. 

Lá o médico perguntou se havia sido torturado, ao que respondi que não, carimbou a ficha e me despachou.

Voltamos ao DEOPS e lá o delegado de plantão disse que eu estava livre.

 As portas do Batalhão Tobias de Aguiar se fecharam ás minhas costas.

Olhei para cima. Olhei para as pessoas assando e que não sabiam de nada. Senti o cheiro de liberdade entrar forte em meu peito. Senti que a luta vale, que os objetivos são certos e honestos. E que o caminho é este mesmo: um grande Partido Socialista, que lute pela emancipação definitiva dos trabalhadores.

Minha prisão deixou marcada a fundo em meu peito a confiança no movimento de massas e a certeza de que o futuro a nós pertence.

VIVA O PARTIDO SOCIALISTA!
POR UM BRASIL OPERÁRIO E SOCIALISTA!
Justino Lemos Pinheiro
Sucursal ABC

[Justino Lemos Pinheiro, Testemunho I, São Paulo, Versus no 25, outubro de 1978, pp.12-13]. 

 




TESTEMUNHO – II


Aonde estão as armas? Onde vocês esconderam?

A princípio a impressão de irrealidade. Depois a certeza de que o pesadelo não estava no meu sono, mas fora dele. Estava sendo arrancada da cama, às 7:00 da manhã para ser jogada no meio de um delírio. Dois homens dentro do quarto. Um deles com uma arma encostada na minha cabeça. O outro me empurrava com o pé – Vamos levanta, levanta!

Levantei e vi a companheira que estava dormindo no outro quarto sendo trazida por outros dois. Nos levaram para a cozinha e nos fizeram sentar. A casa em alvoroço. Eram seis homens armados, falavam muito pelos rádios transmissores, reviravam a casa e nós escutávamos suas vozes irritadas. – Nessa casa não tem nada! Eles queimaram tudo!

Continuamos presas na cozinha até 13:30 quando fomos levadas para o Depois. Entro numa sala e o delegado falou gritando, de grupos clandestinos – Fala logo, já sabemos tudo. Seu marido está preso desde ontem! Palavrões, ofensas, simulações – Essas merda é simpatizante! E no meio de tudo, eu lembrava das palavras de um companheiro durante a I Convenção da Convergência Socialista – “Eles têm medo do povo!”

Não sei quantas vezes fui interrogada, não lembro. Só sei que eram sempre grosseiros e cada vez mais irritados por que não sabia responder ao que queriam. Perguntaram porque eu achava que estava sendo presa. Falei que sou socialista, quero um partido dos trabalhadores, participo do movimento Convergência Socialista e estou trabalhando no Comitê Eleitoral de Benedito Marcílio. Num dos interrogatórios contei doze homens gritando na minha frente. As palavras saíam sujas com provocações.

Apesar de ter sido presa da mesma maneira ilegal de sempre e estar nas mãos de quem torturou e matou tantos outros, não sentia medo. Saí do primeiro interrogatório para uma sala. Maura estava lá. Nos olhamos mas fomos proibidas de falar. Ficamos sendo vigiadas durante horas e só muito tarde desci para a cela. Encontrei sete pessoas ainda perplexas. Achávamos que aqueles homens eram loucos, mas em nenhum momento tivemos dúvidas quanto a repercussão das nossas prisões. A primeira noite na cela quase congelamos. A temperatura estava muito baixa e não havia cobertores. No outro dia enviamos uma carta ao diretor e entregamos em greve de fome, exigindo melhores condições carcerárias e quebra de incomunicabilidade. Sabíamos que não seríamos torturados. Sabíamos que as greves de maio no ABC, vêm mostrando o caminho para o movimento de massas e sentimos que o tratamento começava a melhorar com as mobilizações dos diversos setores. Apesar de tudo eles não desistiram das pressões e chantagem até o último momento. Minha mãe passou dois dias esperando por mim na sala do Deops. Enquanto isso colocavam um telefone na frente e diziam: Fala com tua mãe agora, só que antes escreve, escreve com tua letra tudo do PST. Diz tudo, ao negar você só está se comprometendo. Escreve e você sai daqui agora. E eram tomados por acesso de cólera e agrediam verbalmente.

Quando voltei para casa, aí sim, senti vontade de chorar. Estava tudo completamente revirado. No primeiro momento percebi que estavam faltando livros, bônus de venda dos jornais e marcas de pés sujos de lama em cima da minha cama.
Hilda Machado

[Hilda Machado, Testemunho II, São Paulo, Versus no 25, outubro de 1978, p.13]. 


 




ESCREVE MÁRCIO MOREIRA ALVES


É claro que temos de pensar o futuro político do Brasil já. É evidente que, esse pensamento, em um país onde metade do eleitorado tinha menos de 11 anos de idade em 1964, quando começaram a nos impor o arremedo de partidos que são a Arena e o MDB, não pode sair da cabeça do homem de mais de sessenta anos, os que estão no poder não fazem a figuração parlamentar. É evidente que existem, no seio do povo brasileiro, explícitas ou latentes, muitas correntes de pensamento que buscarão estruturar-se em partidos políticos. No futuro, essas correntes haverão de encontrar as suas formas institucionais, os seus programas, os seus líderes. No entanto, já uma condição prévia à colocação em prática destas organizações e à elaboração das suas plataformas – a reconquista da liberdade do povo brasileiro. Antes de serem abolidas as leis de exceção que nos impedem de discutir projetos alternativos para os modelos de organização econômica e social que nos é autoritariamente impingido, o que temos a fazer é consolidar as forças redemocratizadoras, que têm a sua expressão legal no MDB, agora engrossado por dissidências militares e civis da Arena. Aceitar uma reformulação partidária sem antes estarmos seguros de que os trabalhadores poderão organizar os seus sindicatos sem a interferência do Ministério do Trabalho e do DOPS: que os estudantes e os intelectuais poderão propor idéias novas sem serem presos; os posseiros poderão reivindicar os seus pedaços de chão sem serem caçados à bala por jagunços e policias, é fazer o jogo do autoritarismo, é perpetuar a ditadura.

Não há na História exemplo de ditadura que tenha decretado o seu próprio fim, seja de repente, seja gradualmente. Há exemplos, e vários, de ditaduras que procuraram permanecer no poder mudando de nome, improvisando máscaras que escondessem a sua cara verdadeira. É este, seguramente, o caminho que os assessores dos generais Geisel e Figueiredo procuram descobrir. Uma das hipóteses com que trabalham é a da dissolução da Arena e do MDB no dia 15 de novembro. Outra é a de oferecer à oposição o engodo de “reforminhas” que mantenham em suas mãos o poder ditatorial, sob nome de “salvaguarda”. É indispensável que todos tenham claro o sentido destas manobras e recusem a desunião enquanto ela não puder resultar em benefício do povo brasileiro, oferecendo-lhe verdadeiras alternativas de poder. É natural que o pequeno grupo que se encastelou no governo queira manter os seus privilégios. Não é natural a maioria da Nação aceitar a perpetuação de qualquer parcela desses privilégios, como se estivessem baseados em um Direito Divino. Afinal, a Monarquia absoluta só sobrevive hoje na Arábia Saudita, no Iran e em países do gênero do Império Centro-Africano e do Nepal, que não deveriam ser modelos para o Brasil. Como disse o ex-governador Miguel Arraes, em uma entrevista, quem reclama “salvaguardas” é quem teme o povo. Salvaguarda de quem não teme o povo é o próprio povo.

Espanha: Falso Exemplo

Tenho visto referências em favor da tal “redemocratização gradual” tomando como exemplo o caso da Espanha. Quem as faz, ouviu cantar o galo e não sabe onde. Não há nada  mais diferente do processo de redemocratização espanhol que a ditadura de terno novo que nos é proposta. O que houve na  Espanha foi uma redemocratização real e brusca, uma completa eliminação das instituições do franquismo e uma marginalização, através da consulta eleitoral, dos seus principais seguidores. Acontece, por uma dessas ironias da História que os homens que deram início a esse processo tinham feito as suas carreiras no interior do regime e o principal deles, o rei Don Juan Carlos, tinha sido acolhido por Franco para se o seu sucessor. A presença de um rei liberal, constitucionalistas, que via na sua própria identificação com as aspirações de liberdade do seu povo a única maneira de garantir a permanência da sua dinastia, permitiu que a mudança de regime acontecesse sem derramamento de sangue. E isto aconteceu apesar de persistirem as atividades terroristas da ETA e importantes focos de tensão nacionalista nas nações catalã, basca e galega. A lealdade ao Rei neutralizou a política militar e as Forças Armadas e permitiu o afastamento dos velhos oficiais fascistas, que tentaram conspirações e pronunciamentos. Com isso, a sociedade teve espaço para se estruturas, escolher o seu governo – conservador por sinal, - através de eleições, começar a fechar as feridas da Guerra Civil. Lucrou o povo e lucrou a burguesia, que já pode pleitear a sua integração no Mercado Comum Europeu.

O papel que o rei Juan Carlos representou na Espanha só pode ser representado no Brasil por um líder das Forças Armadas, uma espécie de general Costa Gomes nosso. Será ele o general Euler Bentes? Não tenho idéia. O que sei é que se não for o general Euler, será um outro, porque as Forças Armadas assumiram o governo na seqüência da decisão de alguns dos seus chefes e dele sairão quando outros oficiais ousarem dizer, como Caxias, que não são capitães de mato, que não estão dispostos a manter ninguém escravo, que pertencem a um povo maior de idade, capaz de escolher os seus governantes e decidir sobre o seu destino. A única referência histórica que temos é a de Góes Monteiro, em 1930, quando chefiou os tenentes que haviam passado quase uma década a lutar contra o voto de bico de pena e as convenções palacianas para a escolha dos governantes, do tipo das da Arena de hoje. Naquela época Góes Monteiro era major.

Os Novos Partidos

É tão idiota dizer que o bom para o Brasil é ter cinco partidos como dizer que o ideal é ter dois. O Brasil deve ter e terá tantos partidos e movimentos políticos quantos forem as correntes de opinião que existem no seio do povo. Umas poucas – três, quatro, não sei, serão suficientemente representativas para aspirarem ao poder nos Estados e na esfera federal. As outras, nem por isso deixarão de existir. Ninguém pode negar que existem brasileiros fascistas, comunistas, conservadores, socialistas, liberais, trabalhistas, maoístas, anarquistas, enfim, adeptos de quantos ideários políticos já surgiram no mundo. As suas áreas de influências são  diversas e todos devem ter o direito de apresentar os seus programas e pleitear a preferência do eleitorado. É claro que os comunistas terão mais influência nos sindicatos que os fascistas ou os conservadores, e menor, por exemplo, na política ou no empresariado. É difícil imaginar um operário de São Bernardo votando pela corrente de opinião representada pelo coronel Erasmo Dias, da mesma forma como é difícil acreditar que os adeptos dos métodos do delegado Sérgio Fleury votem em Luiz Carlos Prestes. No entanto, o operário de São Bernardo tem tanto direito a participar da organização de um partido e por ele votar como o coronel Erasmo ou o delegado Fleury. É isso o que ocorre em todos os países respeitadores do pluripartidarismo – na França, na Itália, na Europa do Norte e até nos Estados Unidos, onde embora só dois partidos contêm de verdade há, a cada eleição, dezenas de candidatos à Presidência da República e o Partido Comunista nunca foi declarado fora da lei.

Um Grande Partido Popular

Estabelecido o princípio da liberdade de organização partidária para todos os brasileiros, caberá às forças de origem popular e aos que, embora de outras origens, aspirem a construir um Brasil, socialmente mais justo, organizar um grande e verdadeiramente democrático partido dos trabalhadores. Trabalhadores, no caso, quer dizer todos os que vivem dos seus salários, que não são donos de bancos, de fábricas, de grandes extensões de terra, ou seja, as verdadeiras classes produtoras, cujos interesses se opõe aos dos que vivem da exploração do trabalho alheio. Democrático quer dizer uma estrutura capaz de recolher e transmitir as aspirações e opiniões de todos os seus membros, levando-as em conta no processo de tomada de decisões, ainda que sejam divergentes das opiniões dos líderes. Esse partido democrático e popular terá de ser um partido como nunca existiu no Brasil – que institua a liderança colegiada, que reprima o caudilhismo, o peleguismo e o oportunismo, que não só tolere como acolhe as tendências divergentes que em seu seio se manifestaram que possa constituir governos verdadeiramente populares, no sentido de serem a convergência das aspirações em torno do nome que um partido como nunca existiu no Brasil – que institua a liderança colegiada, que reprima o caudilhismo, o peleguismo e o oportunismo, que não só tolere como acolhe as tendências divergentes que em seu seio se manifestaram que possa constituir governos verdadeiramente populares, no sentido de serem a convergência das aspirações em torno do nome que um partido popular deverá ter – se PTB, se PS. A meu ver, essa é uma discussão puramente formal, que não leva a nada e que interessa a muito pouca gente. O PTB e o PS antigos são impossíveis de serem “reconstituídos”. Em primeiro lugar, porque nem um nem outro chegaram a ser partidos nacionais, com um ideário homogêneo e lideranças ideologicamente estruturadas. O PTB, que chegou a ter um peso importante na vida política, era uma coisa no Rio Grande do Sul e outra, muito diferente, em São Paulo, e Minas Gerais, para não falar de Pernambuco ou do Ceará. O Partido Socialista, nem isso. Em segundo lugar, porque muitas das chamadas “lideranças históricas” desapareceram, ou pela morte, como o Dr. João Goulart, ou por se terem acomodado ao banimento que lhes foi imposto, como a maioria dos trabalhistas do rio de Janeiro. Finalmente, porque nesses 14 anos mudou quase tudo no país e as pessoas mudaram também. Nem Leonel Brizola ou Miguel Arraes são os mesmos de 1964, nem Magalhães da ex-Banda de Música da UDN, desesperançados de conseguirem ministérios ou embaixadas, começam a rememorar os exemplos de Adauto Lucio Cardoso e Aliomar Baleeiro e a recordar, em discretos pareceres ou em palanques de dissidências, que um dia se disseram democratas.

O que interessa discutir é o programa do futuro partido popular e as formas organizacionais que lhe assegurarão a democracia interna, não o nome ou os donatários. A meu ver, do ponto de vista organizacional, esse partido terá de,  a um só tempo, incorporar as numerosíssimas organizações populares que se formaram nos últimos anos e preservar a sua independência. Ou seja: incorporar e manter independentes associações de amigos de bairro, oposições sindicais, comunidades de base, associações profissionais e estudantis, movimentos femininos, movimentos contra a discriminação racial, etc. Só isso já é uma grande tarefa gigantesca. Mas há mais, há o programa. Hoje, a peonada já não sai mais correndo atrás do chefe que dá o grito e levanta a lança, só porque é chefe. O general Geisel, que trabalha em área de espinha mole, está fazendo esse aprendizado às suas próprias custas. Na área popular, essa verdade é a inda mais forte. Sem se dizer ao que vem, ninguém consegue mobilizar o povo.

O Programa

No passado, nenhum partido político brasileiro respeitou o seu programa. Se formos examinar só o programa, o do PSD de Benedito Valadares era mais progressista que o do PTV de Alberto Pasqualini. E isso não chega a ser vício nacional: o Partido Socialista de Portugal afirma, no 1º parágrafo do seu programa, que se propõe a lutar por uma sociedade sem classes e pela propriedade social dos meios de produção e, na prática, trabalha em sentido inverso. O que não quer dizer que as afirmações programáticas sejam se importância. Ao contrário, principalmente em uma fase inicial, são extremamente importante para demarcar os campos de entendimento e as áreas de influência.

Pessoalmente, cheguei há bastante tempo à conclusão que a maneira mais justa de organizar o trabalho social é o socialismo. Para que todos os brasileiros comam todos os dias é preciso que alguns – eu, inclusive – comam menos. Não se trata de dieta, mas de leque salarial e de remuneração do fator trabalho. Assim, não teria dúvidas em conviver em um partido onde outros ainda acreditassem ser possível remendar para melhorar o capitalismo dependente sob o qual vivemos. É verdade que em nenhum país socialista há fome, qualquer que seja o seu nível de desenvolvimento, da mesma forma como a fome existe em todos os países capitalistas, inclusive os Estados Unidos. Mas ela não existe em alguns países de organização intermediária como os do Norte da Europa e se formos considerar absolutamente prioritário esse direito à manutenção d vida, essa convivência de socialistas e de não socialistas é perfeitamente justificável.

A meu ver, o programa do futuro partido popular deveria partir de aspirações extremamente concretas do povo. O direito a comer todos os dias é talvez, um bom ponto de partida. Se o examinarmos bem, veremos que mexe em muito mais coisas do que pode parecer à primeira vista. Comer todos os dias implica por exemplo, em multiplicar por dois ou por três o salário-mínimo e em reduzir drasticamente a diferença entre os salários mais baixos e os mais elevados. Em França, por exemplo, o funcionário público de maior salário é o presidente da EDF, a companhia de eletricidade do Estado, que ganha 25 vezes o salário mínimo. No Brasil foi preciso o escândalo das mordomias para que o Presidente da República baixasse um decreto limitando essa disparidade a 120 salários-mínimos. Implica também em aumentar muito a parte dos impostos diretos no financiamento governamental, que atualmente é baixíssimo, e em aumentar a parcela do produto nacional destinada a remunerar os trabalhadores, também muito baixa em relação à que remunera. O capital. Adotar essas medidas, que são as necessárias para corrigir a tal má distribuição da renda nacional, de que tanto se fala, significa reexaminar a política industrial do país. As indústrias que produzem bens de consumo de massa – alimentos, roupas, calçados, etc., - passariam a ter um mercado interno, as que produzem bens de equipamento cujo principal cliente é o Estado teriam o seu mercado ampliado e as que  produzem só para a exportação ou bens que só 10% da população podem comprar teriam os seus mercados reduzidos. As indústrias que só exportam seriam penalizadas porque baseiam-se no baixo custo da nossa mão-de-obra; as de bens de luxo sofreriam porque os impostos diretor reduziriam poder de compra dos mais ricos. Por outro lado, adotar uma política de salários mais altos obrigaria o futuro partido e o governo, que por acaso um dia constituir, a reexaminar a política de crédito, a atitude a adotar face ao capital estrangeiro e, em conseqüência, a sua política externa, a política educacional, a política de saúde pública, a política de habitação. Até mesmo a política do serviço militar obrigatório teria de ser revista, de vez que chegariam à maioridade um número muito maior de jovens em condições físicas de servir às Forças Armadas que hoje em dia.

O exemplo que dou da política salarial tem apenas o sentido de demonstrar como, a partir de uma aspiração popular que, na verdade, é um direito, se poderia elaborar todo um programa partidário. Não quer dizer que seja o único ponto de partida possível. O que sim quer dizer é que o ponto de partida tem de estar profundamente ancorado nas massas mais pobres do país e que é junto a elas, através das muitas organizações que conseguiu criar ao longo destes anos, que tem de ser buscado. Programa que preste, que sirva de ponto de encontro e de alicerce para um instrumento político que ultrapasse as pessoas e o tempo de vida dos seus líderes, não poderá nascer em laboratórios, mas sim da participação do povo. No fundo, o nome também nascerá do povo e o que maio ressonância popular tiver é o que estará certo.

Lisboa, 11 de junho de 1978
Márcio Moreira Alves  

[Márcio Moreira Alves, Escreve Márcio Moreira Alves, São Paulo, Versus no 25, outubro de 1978, pp.16-18]. 
 




MEU NOME É WAUBUN NIWI NINI
Por Hélio Goldsztejn


Esta entrevista foi feita em New York, Niwi Nini é um homem impressionante. Um verdadeiro líder indígena americano.

P – Qual é a base do movimento índio nos EUA? Qual a sua participação?

R – Primeiramente sou membro da nação indígena Ojibwa. Os invasores colonialistas nos chamam de Chipawawas. Meu nome é Waubun Niwi-Nini sou também conhecido pelos colonizadores pelo nome Vernon Bellcourt. Sou representante do American India Movement (AIM) e um dos representantes do Internacional Indiana Treaty (ITT) que é o nosso braço internacional trabalhando nas Nações Unidas e outros foros internacionais para levar ao conhecimento da população mundial a nossa luta pela sobrevivência dos indígenas “Das ilhas da Tartaruga Sagrada” conhecida pelos invasores como América do Norte.

Fui um participante ativo e um dos coordenadores nacionais da Longa Marcha que teve como objetivo a reunião do nosso povo a exemplo dos nossos antepassados quando eram obrigados a participar de várias marchas para a morte sob uma base espiritual para chamar a atenção nacional e internacional da nossa luta pela sobrevivência da população indígena.

P – Explique o que é o AIM, quais suas lutas principais e como surgiu a idéia da realização da Longa Marcha de protesto das nações indígenas dos EUA.

R – O American Indian Movement surgiu no fim de 1968 como uma organização de defesa da comunidade indígena urbana que se viram forçados a abandonar suas terras para morar nos guetos e favelas urbanas.

O AIM surgiu da necessidade de contra-atacar a brutalidade policial e os outros problemas que existem na cidade.

No início da década de 70 fomos para Washington para enfrentar a administração Nixon que sempre nos ignorou, pois estavam muito ocupados tentando colocar microfones em todos os lugares. Mais tarde, eles nos ignoraram, pois estavam muito ocupados tentando escapar das acusações de Watergate.

Em 1973, em Wounded Knee, nós encabeçamos uma luta de setenta e um dias contra o poder do governo. Mostramos a todo mundo a situação desumana em que estão submetidas as nações indígenas na maior “democracia” do ocidente.

Começamos a exigir nossos direitos básicos como o direito de caçar e pescar em nossas próprias terras. Obtivemos vitórias em várias cortes estaduais. Estes direitos foram estendidos depois para a maioria dos estados americanos.

P – Qual a reação da população americana durante o caminho? Que tipo de apoio vocês receberam?

R – A Marcha obteve a resposta favorável de vários setores da sociedade americana, e obteve apoio de todas as organizações tribais do país. Quando saímos da Califórnia tínhamos 600 pessoas 75% índios e 25% não índios. Íamos aumentando em cada estado, negros, brancos, asiáticos, mexicanos, apareceram e participaram. Chegamos a ter quase 20 mil pessoas participando, da Longa Marcha.

P – Qual o programa da AIM em defesa do povo indígena?

R – Primeiramente sabemos que o futuro está com os nossos filhos. Temos que mudar o sistema de educação da história americana. Na realidade o que se ensina não é a história mas sim mitos sobre a exploração colonial européia neste país.

Um cacique famoso, que se chama Sitting Bull disse que quando entregarmos a mentalidade dos nossos filhos seremos destruídos como nação. Outro ponto básico é terminar com a influência dos missionários da igreja que estão acabando com o povo indígena.

Entendemos que o movimento socialista esta crescendo em todo o mundo, não temos dúvidas que a América do Norte e do Sul seguirão este caminho. Sabemos que o futuro será socialista e queremos formar alianças com os movimentos socialistas, queremos que respeitem a integridade dos nossos territórios, nossas diferenças culturais, nossa terra e nossos recursos.

P – Nestes quinhentos anos como mudou a relação entre o branco e o índio?

R – Tanto na América do Norte quanto na do Sul não houve modificações na relação entre o índio e o branco. Sempre fomos vítimas da dominação colonial da exploração e da repressão. Somos vítimas da guerra colonial mais longa da história dos Estados Unidos. Pode ser que tivemos boas relações com os brancos enquanto pessoas, mas a política oficial do governa sempre foi para nos dominar e nos guardar em reserva. Aqui eles chamam esses lugares para confinamento de reservas, na África do Sul eles chamam Bantustan.

Há cem anos atrás era a cavalaria e os massacres, agora é a sofisticação da CIA e do FBI, Agência de Segurança Nacional e Inteligência do Exército. Agora sabemos que sempre fomos vítimas da operação Caos, da CIA e da Operação Cointelpro, do FBI.

Nos últimos cem anos eles roubaram as nossas terras em 110 milhões de acres. Tomadas pelas companhias de minérios, petróleo, madeira e agropecuária. O governo federal que deveria estar protegendo a nossa terra fechou os olhos para essa exploração sem limites. Nos 50 milhões de acres de terra que nos restaram, temos 85% das reservas de urânio dos EUA, e também 30% do carvão que o governo necessita para ser independente nesse setor de energia. Além de 3% de todo o gás natural das reservas de petróleo e nenhum tostão dessa riqueza foi para os índios.

Estamos organizando uma coalização de tribos que possuem recursos naturais, uma frente, unida contra a desapropriação dos nossos recursos. Também lutamos, para a formação de uma frente de liberação indígena, para organizar todos os povos da América contra a dominação colonial.

Eu gostaria de compartir com você uma profecia forte. Havia um homem que se chamava Tesumshe. Ele foi líder espiritual, profeta, curandeiro e homem sagrado. Também era um guerreiro, pois sabia lutar. Foi morto em combate em 1792, pela cavalaria dos Estados Unidos. Ele havia viajado pela costa Oeste, tentando organizar todas as tribos em uma frente unida que finalmente estamos conseguindo hoje. Quero mandar este pensamento dele para os meus irmãos e irmãs da América do Sul, pois acho muito importante o que ele disse:

“A cada ano estes intrusos brancos se tornam mais avarentos, usurpadores, requisitantes e dominantes. Miséria e opressão são o nosso destino. Nos tiram dia a dia o pouco que resta de nossas velhas liberdades. A menos que cada tribo unanimente se una para tentar parar as avarezas e a ambição dos brancos, eles nos conquistarão. Separados e desunidos nós seremos expulsos da nossa terra e espalhados como folhas de outono ao vento.”

Temos que aprender dele e construir desde Yukon, no Alasca, até o Chile uma grande federação indígena, e formar alianças por todo o mundo.

[Hélio Goldsztejn, Meu nome é Waubun Niwi Nini, São Paulo, Versus no 25, outubro de 1978, pp.36-37]. 

 




OS DÓLARES DA FOME
Por Ernest Mandel


A população do Terceiro Mundo tem sido condenada a morrer pela fome em nome da sagrada economia de mercado.

A fome de 1974 já foi esquecida. A colheita do ano passado no Hemisfério Norte – exceto na URSS – foi excelente. De 1972-73 a 1976-77, a produção mundial de todos os tipos de cereais em grão cresceram de 1270 para 1477 milhões de toneladas; em outras palavras cresceu mais de 16%. A produção de trigo cresceu 23% indo de 337 para 416 milhões de toneladas.

Você pode pensar que, em face da péssima situação da economia mundial, haja no mínimo alguma razão para este brilhante lugar da economia internacional. Mas não deve ser levado em conta a obstinada lógica da economia de mercado. Porque para a economia de mercado, “superprodução” – até mesmo de gêneros alimentícios num mundo, onde a metade de sua população não ganha o suficiente para comer, é uma má notícia. É um desastre para os produtores de alimento, seja de larga ou pequena escala. Isso causa uma decaída nos preços.

Então, o negócio “lógico” acontece: a produção é destruída a fim de “proteger” preços. Em 12 de agosto de 1977, o diretor adjunto do U.S. Department of Agriculture disse numa conferência da Casa Branca que a administração de Carter havia decidido pedir aos produtores americanos de trigo para deixar 20% de suas terras produtivas descultivadas, se eles quisessem obter vantagens de medidas administrativas para manter os preços altos. Houve uma redução de 10% em terras utilizadas para forragem, e sementes foram dadas para animais domésticos.

Política semelhante aplicada no final da década de 60, início dos anos 70, causou fome no Terceiro Mundo durante o período de 1972-1973. Assim, as medidas que estão sendo tomadas hoje para restringir a produção artificialmente, a fim de forçar a subida dos preços da semente, causarão nova fome até o final desta década. É como um carrossel debilitado. E nossos grandes estudiosos em economia e política ainda obstinadamente insistem que é melhor condenar milhões de fazendas à lucros incertos, flutuantes e geralmente inadequados, à condenar milhões de habitantes do Terceiro Mundo a viver permanentemente sob a sombra da fome, do que sacrificar o princípio da santíssima “economia de mercado”.

Oferta e Procura

Os preços de cereais no mundo são determinados pelas flutuações da oferta e procura dos excedentes agrícolas, produzidos nos grandes países exportadores (USA, Canadá, Argentina, Austrália e em menor grau a França). Esses preços mundiais em giro determinam a expansão cíclica e diminuição da quantidade de superfície de terras que é semeada e a dimensão da colheita. Obviamente você teria que ser um “subversivo” perverso e completamente utópico, para sugerir que seria melhor para o mundo todo se fossem garantidas às fazendas lucros iguais à média nacional (ou a média dos salários das indústrias), sob a condição de que eles aumentem suas produções a fim de manter a estabilidade, abaixar os preços dos alimentos e assegurar um excedente para ser distribuído livremente aos países pobres do Terceiro Mundo e imperialistas. O que há de mais estranho em tudo isso, na longa caminhada, é que esta solução “subversiva” e “utópica” operaria menor custo sob um ponto de vista “puramente” econômico.

Simplesmente não é verdade que a fome é causada por alguma inevitável teoria Malthusiana, na qual a população aumenta a mais rapidamente do que a produção de alimentos. No curso de 15 anos desde 1962 a produção mundial de cereais aumentou mais de 50% , muito mais rapidamente do que a população do nosso planeta. A taxa de crescimento populacional tem assinalado 1,9%; a taxa de aumento da produção de cereal, por outro lado, tem assinalado 2,9%.

O fato de que a fome continua a existir, jogando suas trevas sobre nações inteiras, é atribuível basicamente a três fatos: agudas flutuações anuais na produção, causada por surtis fraudes no mercado mundial de preços, quer dizer, nos lucros a serem ganhos; a crescente deficiência de cereais do Hemisfério Sul, o que é causado basicamente pelo aumento da penetração capitalista no campo e  a comercialização da agricultura primitiva; o problema de comprar o poder e os lucros, o que significa que a desnutrição, a carência de alimentos e a fome imediata podem aumentar até mesmo em face da superprodução.

Em outras palavras, se a fome continua a aumentar, não é pelo fato de nascer crianças demais. Isto se deve ao capitalismo, com sua série de conseqüências irracionais e desumanas.

A “Revolução Verde”

“O capitalismo nada tem a ver com isso”, dirão algumas pessoas com base na simples tese de que a deficiência de cereais no Terceiro Mundo é essencialmente o resultado do atraso da tecnologia agrícola, o que significa um insuficiente retorno por unidade de terra. Tecnologia, instrumentos e métodos de trabalho antiquados: isto é o âmago da questão. 

Obviamente há um ponto de verdade nisto. Uma modernização na produção agrícola em larga escala no Hemisfério Sul indubitavelmente dobraria ou triplicaria a produção, e então seria possível alimentar duas ou três vezes mais pessoas que lá vivem (com as conseqüências ecológicas ainda a ser estudadas).

A lógica da produção para a economia privada é inevitável. Quando você pode ganhar muito mais dinheiro criando gado de corte para ser vendido à Europa (eventualmente produzindo um excedente de leite e manteiga nos países do Mercado Comum) do que produzindo alimentos para a população local, então esta é a direção que a agricultura seguirá. Em Mali, por exemplo,enquanto dezenas de milhares de crianças forma lentamente morrendo de fome durante a grande carestia que devastou o Sahel em 1974, a exportação de amendoim e óleo cresceram.

A “revolução verde” produz muito menos resultados positivos em termos de plano nutricionais do que se deveria supor. Somando-se as desastrosas conseqüências ecológicas decorrentes do uso intensivo de fertilizantes químicos em terras irrigadas, existe até mesmo terríveis efeitos sociais.

A “revolução verde” tem acima de tudo o significado da introdução da agricultura capitalista em regiões já anteriormente oprimidas, dominadas pela lavoura d subsistência. A transformação deste tipo de lavoura em agricultura capitalista significa uma inevitável polarização social entre a população, um contínuo acréscimo no acesso a terra pelos lavradores pobres, um êxodo massivo das zonas rurais, e a progressiva substituição da força de trabalho humano pela maquinaria agrícola.

E desde que não haja uma expansão paralela na industria, todo este processo significa que uma crescente proporção de camponeses serão empurrados par a periferia da sociedade, tanto nas zonas rurais como nas favelas das grandes cidades. E a maior parte des população miserável é impedida de ter acesso direto à terra, sofre a mais séria desnutrição, até mesmo se ganha um pouco de dinheiro (a princípio através de um trabalho ocasional num serviço de setor, forma escamoteada de desemprego).

Não seria melhor dar uma solução imediata ao problema que existe hoje de fome e subnutrição através de uma forma mais racional de organização econômica e social do que concentrar numa explosão populacional imaginária as causas das terríveis deficiências... dentro de aproximadamente um século?

[Ernest Mandel, Os dólares da fome, São Paulo, Versus no 25, outubro de 1978, pp.26-27]. 


 




SOBRE AS DUAS MORTES DO PRÍNCIPE
Perguntamos


Contraditoriamente, cada passo que Figueiredo dá à frente, significa na verdade, dois atrás. O regime vai sofrer mais uma derrota nas eleições parlamentares de 15 de novembro. Será a derrota nas eleições parlamentares de 15 de novembro. Será a primeira “morte” de Figueiredo. A segunda será em março. A posse sacramenta a divisão interburguesa. Dividida a burguesia, rachado o exército, resta aos trabalhadores encontrar com suas próprias forças, o caminho de sua emancipação. É sobre isso nos que falam o candidato ao senado, sociólogo Fernando H.Cardoso; o metalúrgico e candidato a deputado federal, Benedito Marcílio; o deputado estadual Alberto Goldman, que busca a eleição para a Câmara; todos do MDB de São Paulo. A crise do regime também é analisada por Júlio Tavares, coordenador nacional da Convergência Socialista. Bem, o defunto está encomendado. Pede-se não enviar flores.

1. APROXIMA-SE A HORA DO VOTO. DE 15 DE NOVEMBRO? QUAL A IMPORTÂNCIA DAS ELEIÇÕES EM QUEM DEVEMOS VOTAR?

Fernando Henrique Cardoso -- Para mim a importância de 15 de novembro é decisiva e por isso eu acho que o MDB não está mobilizando do jeito que devia. Mobilizar os votos não precisa, pois já têm, mas mobilizar consciências para mostrar que é possível dar uma virada. E isso só se faz com posições firmes. E o MDB tem dado sinais de vacilação. Não MDB como tal, emedebistas tem dado esse sinal. O MDB tem que dizer porque queremos democracia. Levantar a questão social, a questão da independência nacional, a questão da dívida externa.

Temos que ver em quem votar no MDB. Tem muito político oportunista que usa a sigla do MDB para simplesmente ter voto e depois se comporta como arenoso. Eu prefiro os arenistas. O povo tem um sinal muito simples para saber em quem vota, pelo menos um sinal: aqueles com campanha cara, mesmo sendo do MDB, não vota que isso aí é fajuto. O povo deverá votar naqueles candidatos que pelo seu comportamento passado e presente tenham comprometimento popular, comprometimento mais sério com os trabalhadores...

Benedito Marcílio – As eleições de 15 de novembro são importantes porque darão oportunidade ao povo brasileiro expressar seu descontentamento com a política governamental e a sua decisão de conquistar as franquias democráticas. Os trabalhadores, por seu lado, já conquistaram a confiança de que podem impor o respeito aos seus direitos e interesses. E farão isso votando maciçamente nos candidatos autênticos da classe operária e naqueles que de fato defendam o seu direito à organização independente e a instauração em nosso país de uma verdadeira democracia. Por isso, é necessário que os trabalhadores se façam presentes no Congresso Nacional e nas Assembléias Legislativas com uma representação a maior possível fortalecendo dentro do MDB as forças dispostas a defender a convocação imediata de uma Assembléia Constituinte livre e soberana, uma Anistia ampla, geral e irrestrita liberdades sindicais, direito de greve e amplas liberdades democráticas que garantam aos trabalhadores o direito à organização sindical e política independente.

Alberto Goldman – 15 de novembro hoje representa uma possibilidade de se mobilizar, de se organizar, de se unir. Os trabalhadores em seu conjunto apesar de reconhecerem a deficiência do MDB ainda o vêem, eu acho corretamente, como um conduto não definitivo, não o desejável, mas o conduto não definitivo, não o desejável, mas o conduto possível para manifestar sua oposição ao regime. Agora é claro que eu entendo que o avanço maior ou menor que a oposição possa dar depender do fortalecimento dentro da oposição dos setores que mais e aproxima das teses e das necessidades populares. Isto significa que a luta deve ser no sentido da eleição de homens que estejam comprometidos claramente com o programa do partido. Eu entendo que essa luta que se faz internamente dentro da oposição essa luta que se faz internamente dentro da oposição ou essa hegemonia que se pretende ter não será obtida por decreto ou à priori. Nós não podemos entrar numa luta exigindo de cara que tenhamos hegemonia. Hegemonia se conquista. Ninguém vai dar hegemonia ou dar força à setores, mesmo que se digam populares. O fato de se dizer popular não identifica realmente o candidato popular. O fato de ter apenas um programa que interesse aos trabalhadores não identifica uma candidatura popular.

Candidatura popular, na minha opinião está ligada à conseqüência de sua ação prática. Ação prática de organização, de unidade, de discussão com a população dos maiores temas e de participação junto à população na luta por suas questões específicas, por suas questões menores.

É muito ruim viver acusando setores do MDB de não serem suficientemente autênticos, ou suficientemente defensores das teses da oposição, sem termos condições de junto ao povo nos credenciar pra termos uma liderança, uma hegemonia dentro dessa frente.

Júlio Tavares – Em 15 de novembro deveremos continuar a luta pelas liberdades democráticas, pela reorganização independente dos trabalhadores que passa necessariamente pela luta contra o governo militar 15 de novembro é um momento importante para a concretização de nossos objetivos. Participando da campanha eleitoral, tentaremos organizar uma corrente de trabalhadores socialistas, visando a construção do futuro Partido Socialista. Daí a política do pólo operário e socialista. Hoje, já não basta votar no MDB, mas em candidato que apontem em seu programa e compromissos, assumidos com os trabalhadores, para a democracia que queremos e para a classe que lutará por esta democracia. Nossa campanha não é apenas para eleger os companheiros que são candidatos, mas também e principalmente para impulsionar a opção dos trabalhadores independente da burguesia, tanto nacional quanto estrangeira. Agitaremos um programa com reivindicações democráticas como Anistia, Constituinte, Eleições diretas, Comando Geral dos Trabalhadores; mínimas como um salário mínimo de 5000 cruzeiros e melhores condições de vida, e propagandizaremos a necessidade do socialismo e de sua principal ferramenta; um partido dos trabalhadores.

2. AS REFORMAS SERVEM OU NÃO?

Fernando Henrique Cardoso -- As reformas são uma meia sola de um sapato que está com o couro todo furado, não adianta nada. Se estas reformas tivessem sido apresentadas há dois anos muita gente ficaria comovido pois instituíram o “habeas-corpus”, um avanço inegável. Mas hoje, quando toda a sociedade quer democracia, as reformas são uma camisa muito apertada. Vou dar só um exemplo: elas acabam com as leis de exceção a partir de 1º de janeiro, mas não com os efeitos das leis de exceção. Quem foi punido pelo AI-5 em 68 ou pelo AI – 2 em 67, era deputado e foi cassado, continua cassado e só em 79 é que vai deixar de ser cassado. E, mais importante, no mesmo momento em que o governo envia a lei antigreve. Um sinal bem explícito de que tipo de democracia essa gente tem na cabeça.

O espaço conquistado pelos trabalhadores não foi por causa das reformas. Foi aberto pelas greves, pela luta social geral, pelo clima política geral, pela vontade de todo o Brasil de ter liberdade. Ao contrário, as reformas permitem a intervenção nos sindicatos.

Quanto à reformulação partidária as reformas são um passo atrás. Elas dizem que para criar um novo partido é preciso ter 10% dos senadores e dos deputados. Eu acho isso completamente errado, um partido não se cria no Congresso. Isso é imaginação, é como se estivéssemos  na Inglaterra do século XVIII! As reformas só serviram mesmo para  os donos do poder. Quem são os donos do poder? Visivelmente os que estão aí articulando candidaturas para não sei o quê, tentando tapar o sol com a peneira. E sem ser visivelmente, aqueles que se beneficiam disso: as grandes empresas, os setores que detém o controle do capital nacional e internacional.

Benedito Marcílio -- As reformas políticas visam adequar as instituições políticas ao novo quadro da sociedade brasileira, caracterizado pela insatisfação popular ante o agravamento de suas condições de vida. O governo já não satisfaz os interesses de amplos setores da sociedade que não aceitam mais as soluções impostas arbitrariamente. Os trabalhadores não se conformam com os baixos salários e estão cansados de assistirem impunemente seus interesses contrariados em função de uma política que visa fundamentalmente garantir os lucros dos patrões. A partir das greves, iniciadas no ABC e que logo se generalizaram por todo o Estado, os trabalhadores tornaram inviável a manutenção dos atuais instrumentos políticos de dominação. Os empresários se dividem quanto às formas de enfrentar a crise visam dar formas “legais” aos atuais instrumentos de arbítrio – AI – 5. Lei de Segurança Nacional, Lei Anti-Greve. Quer incorporá-los à Constituição e dessa forma mascarar a sa essência anti-democrática. Quer fazer aberturas democráticas sem a consulta legítima aos trabalhadores. Ao contrário, procura-se a todo custo afastá-los de qualquer influência, como demonstraram as tentativas de impedir a presença de seus líderes em Brasília nos dias em que as Reformas estavam sendo submetidas à votação no Congresso Nacional. Ao mesmo  tempo em que se fala em “aberturas democráticas” se impõe à nação a farsa das eleições indiretas a figura ridícula do senador biônico, um Decreto-lei anti-greve que contraria fundamentalmente os interesses dos trabalhadores. O MDB, criado artificialmente, de cima para baixo, com limitações ao seu funcionamento impostas pelo regime de arbítrio que lhe deu origem, não pode representar os legítimos interesses dos trabalhadores. Em seu seio militam políticos que defendem interesses contrários aos nossos. Dessa forma, mesmo em plena campanha eleitoral assistimos vários parlamentares emedebistas se omitirem na votação de reformas de cunho claramente antioperário.

Alberto Goldman – As reformas políticas aprovadas são uma tentativa do regime em desafogar as pressões que estão se exercendo no sentido de uma real democratização da sociedade. Na medida em que o regime não quer e não pode, pois seus interesses são outros, realmente aceitar um processo de abertura total, ela muda apenas a roupagem. Troca a roupagem que dá não tem nenhuma credibilidade, a roupagem dos atos de exceção, por uma nova, a roupagem das salvaguardas de maneira que apenas a superfície seja transformada, mas no fundamental, no cerne, o regime se mantenha o mesmo. O cerne do regime é a política de exploração do trabalhador; é o desenvolvimento do país baseado na poupança forçada, arrancada do trabalho e da poupança vinda dos incentivos dados aos grandes capitais monopolistas internacionais. A base desse regime é a política de arrocho salarial, o impedimento da organização dos trabalhadores e do povo em geral.

Não podemos negar que essas reformas abriram algum espaço para os trabalhadores. Num certo aspecto porque as reformas já são conseqüência da própria pressão da sociedade, dos trabalhadores em particular, no sentido de um abertura política. Ao mesmo tempo, é também um espaço que interessa ao próprio regime já que nessa abertura é possível desafogar um pouco as próprias pressões. Claro está que aos setores marginalizados da sociedade brasileira em todos estes anos interessa muito mais do que isso. No entanto não deixa de ser um certo passo adiante. Nós diríamos que se tivéssemos que escolher entre nada e obter essas pequenas reformulações nos preferiríamos obter essas pequenas reformulações.

Em relação à reformulação partidária, dois itens foram fundamentalmente alterados: um deles abre a possibilidade dos deputados passarem de um partido para o outro a partir de 1º de janeiro no prazo de um ano. Ou seja, infidelidade provisória. O outro, a criação de novos partidos com a participação de 10% de senadores e deputados, isto é, 7 senadores e 42 deputados federais no mínimo. Conclui-se dessa forma o seguinte: o governo eliminando a fidelidade por um ano, abre as portas para depois das  eleições de 15 de novembro, na eventualidade de uma derrota, poder captar para si alguns deputados federais e alguns senadores, voltando a ter maioria no Congresso Nacional. Essa é a finalidade clara da abertura do prazo de um ano.

A possibilidade de criar novos partidos mostra que o regime se prepara para a hipótese de uma derrota mais ampla. Nesse caso ele poderia dissolver os dois partidos e impor uma reorganização não de baixo pra cima, mas de cima para baixo onde ele tivesse sem dúvida grande poder de manipulação e definição de quais serão os partidos. Dessa forma o poder do regime não perde as rédeas de todo o sistema e praticamente pode organizar ao seu bel prazer um sistema partidário que corresponda às suas necessidades de manter maioria.

De qualquer forma, qualquer modificação partidária não tem absolutamente nenhuma possibilidade de ser legítima. Os partidos nascerão de cima para baixo, com 49 caciques já para começar. Já começando muito mal, de forma absolutamente antidemocrática, com 49 homens decidindo o que é bom e o que não é.

Júlio Tavares – Elas fazem parte da estratégia continuísta do atual governo militar que visa a manutenção de um governo bonapartista embora já com algumas características democráticas – burguesas. Características essas que lhe foram dadas pela nova correlação de forças entre as classes que impulsionam e indicam as liberdades democráticas e o regime democrático burguês. A nova correlação de forças ultrapassou as leis do sistema. O seu reacionarismo, aceito pela burguesia na época do milagre econômico já não pode sê-lo atualmente. Por isso se fez necessário adaptar as leis, arcabouço jurídico, ao novo momento. Criou-se a expectativa de reformas e durantes meses o governo foi ouvindo diversos setores.

Mas, quando essas formas apresentadas se verificou que já estavam velhas, velhíssimas. A correlação de forças entre as classes já havia caminhado bem mais para as liberdades democráticas, e a defasagem entre a nação e o governo era bem mais aguda. A nação exigia liberdades democráticas e o governo propunha um arremedo de reformas. Na realidade propunha e tentava conseguir uma nova reordenação, uma nova unidade do bloco hegemônico, fundamental para continuidade do bonapartismo.

As reformas que deveriam dizer do novo, tinham portanto cheiro de mofo. Nem a muitos setores burgueses elas servem e muito menos à grande maioria da nação, os trabalhadores. Elas forma aprovadas não apenas pela Arena, mas também e fundamentalmente pelos emedebistas que não compareceram por ocasião de sua votação. Na realidade reformas são contra os trabalhadores já que criam empecilhos graves à sua reorganização. Mas possibilitam o surgimento de um novo partido para a sustentação do regime e do governo propostos por Figueiredo. Partido que poderá surgir tendo as forças chaguistas como um de seus principais sustentáculos. 

No entanto trabalhadores terão dificuldades de ter um partido autenticamente seu. As novas leis que regem a reorganização partidária não são apenas contra os trabalhadores mas também são extremamente contraditórias, verdadeiras arapucas.

3. É O MOMENTO DE FALARMOS EM PARTIDO DOS TRABALHADORES?

Fernando Henrique Cardoso – Pela lei a possibilidade de criação de novos partidos é muito pequena. Na prática eu acho que já está se constituindo o que chamo de um partido dos assalariados. Um partido não comprometido com o capital, mas com o trabalho. Dentro do MDB já existe uma enorme corrente que tem essa perspectiva é a tendência á aumentar. Sou contra partidos sectários. Acho que nos precisamos saber conviver e tolerar divergências frente aos inimigos principais. E acho que isso já está posto na realidade. A gente não deve precipitar as coisas. Não adianta criar um partido que tenha um nome bonito, e uma ideologia perfeita, mas que não tenha apoio do povo. Temos que criar partidos que sejam enraizados no povo, que tenham símbolos culturais e acho que o MDB é um partido que hoje têm apoio do povo. Como eu acho que o novo nasce do velho é partir daí para no futuro criar um novo partido. Se o MDB não for capaz disso então cria-se um outro. E sou otimista, moderadamente, em relação a essa possibilidade. Acho que já está sendo criada. Não no sentido conspiratório, um grupinho ali, outro aqui. Não, nisso eu não acredito. Isso são ilusões. Já um movimento social nessa direção que vai englobar esses vários grupos.

Os trabalhadores hoje estão conscientes de que é preciso um partido no qual eles influam, um parido que seja constituído com a presença ativa das lideranças sindicais mais combativas como a oposição sindical à CNTI. Já existe uma liderança sindical competente e o apelo de autonomia por parte dos trabalhadores, primeiro a nível sindical mas também ao nível político. Não endosso nenhum grupo, não pertenço a nenhum segmento limitado, mas sim pertenço claramente ao conjunto da sociedade que quer fazer uma transformação com a criação de um partido desse tipo, mais amplo. Não é segredo para ninguém, nem mesmo para a direção do MDB. Eu não estou levantando essa questão, não é próprio para um candidato ao senado pelo MDB começar a discutir outros partidos. Temos que discutir a vitória do MDB daqui há 40 dias. Eu acho que a vitória do MDB é a condição necessária para criação desse partido.

Benedito Marcílio – É evidente que um regime democrático só poderá existir no Brasil quando ao trabalhador for garantido o direito de participação política. Essa participação terá de ser feita através de um partido próprio, organizado pelas bases e dirigido por trabalhadores. Para que isto ocorra é necessário que desde já iniciemos a organização deste Partido, pois só assim estaremos em condições de impor a nossa organização independente, quando vier a reformulação partidária. Acho que a Oposição Sindical surgida no último Congresso da CNTI expressa a necessidade desse partido e pode ser um importante instrumento aglutinador e impulsionador de sua construção. É preciso que nos lancemos de imediato nessa tarefa, pois só assim estaremos dando reposta precisas e concretas às necessidades das grandes massas de assalariados e, dessa forma, fazendo jus à representação que nos foi confiada.

Alberto Goldman – Institucionalmente a criação de um partido dos trabalhadores hoje é impossível. Não há possibilidade de se organizar um partido que provenha das classes trabalhadoras e que defenda seus interesses enquanto classe pois legalmente é impossível. E não sei se seria desejável hoje. Sob um regime de exceção. Acho que a tarefa prioritária é a mudança do regime, é a abertura política e a democracia. E acho até que ficar discutindo muito isso é uma perda de tempo. É transferir o essencial para uma luta secundária e transformar o secundário em essencial.

A colocação hoje, como fala o próprio Lula, de um partido dos trabalhadores, não é uma colocação legal dos trabalhadores hoje, debaixo de um regime de exceção. Para mim o MDB ainda é o partido que congrega, que aglutina os trabalhadores. Muito mais importante e prioritário transformar esse MDB no melhor conduto possível, no melhor instrumento possível, na melhor arma possível. Esse deve ser o nosso papel, melhorar dentro do MDB, lutar dentro dele no sentido de fazer avançar. É o instrumento que se tem, é o instrumento legal de deve ser usado. Pensar num partido dos trabalhadores que não existe, nem pode existir, repito, é perda de tempo.

Júlio Tavares – Sim. E não só é o momento de falarmos mas também o de começarmos a organizar as  bases. E isto é o que estamos fazendo. Cremos que este partido vai surgindo pelo fortalecimento da Convergência Socialista, pelas lutas dos trabalhadores nacionalmente, pela compreensão da sua necessidade por parte de milhares de brasileiro e também pela luta da oposição sindical da CNTI. Vimos com profunda alegria o surgimento dessa oposição sindical e estamos acompanhando a trajetória de suas lideranças. A luta pela organização sindical independente e a organização do partido dos trabalhadores são dois momentos combinados para a independência da classe. Ao nosso ver fator fundamental para a existência da democracia em nosso país. Por tudo isso cremos que o embrião do verdadeiro partido socialista está nascendo e nós estamos lutando com todas as nossas forças para que esse embrião cresça rapidamente e se transforme na verdadeira opção de democracia.

[Sobre as duas mortes do príncipe, perguntamos, São Paulo, Versus no 26, novembro de 1978, pp.8-10]. 
 




MEIA VOLTA, VOLVER!


O esgotamento da Instituição Militar, após 14 anos de governo, só não é admitido por alguns dos seus chefes. Suportando o peso do desgaste e o repúdio da maioria da nação brasileira, soldados, sub-oficiais e muitos oficiais consideram encerrada sua missão na direção do Estado. Nelson Werneck Sodré, ex-militar, historiador, e autor de “História Militar do Brasil” e “Memórias de um Soldado”, descreve, em entrevista para Astrogildo Esteves e Renato Lemos, o impasse vivenciado hoje pelo conjunto das Forças Armadas do País.

P – Qual a origem, a raiz das dissidências militares hoje?

R – O problema militar é sempre difícil de ser analisado, particularmente, numa situação como esta, onde a estrutura do Estado repousa sobre a estrutura militar. Tudo o que se diz a respeito é uma heresia, assumindo a proporção de contestação.

O primeiro dado sobre a instituição militar é a hierarquia. Qual é a característica da instituição hierárquica? É que ela opera por gravidade, ou seja, quem está por cima tem ação por quem está por baixo. Então, quem dirige esta pesada máquina que é a instituição militar? É o comando.

Realmente é muito fácil obedecer, difícil é não obedecer. A arte do golpe militar foi transformar essa obediência profissional, obediência propriamente militar, em obediência política. Daí a idéia do monolitismo, muitas vezes falsa. Sempre que se ouvir a frase “o exército está coeso”, ele não está. Se é necessário dizer que está coeso é porque não está. Por essa característica de gravidade, de hierarquia é fácil ver como um pequeno grupo, estando em cima pode controlar toda a instituição e falar em seu nome.

Na realidade, poucos falam pela instituição, pois quem fala são os de cima, são os generais que têm um certo álibi para falar. Eles falam funcionalmente porque são comandantes de exército, ou chefes de departamento ou ministros ou ainda chefes do Estado Maior. E o que falam é dado como sendo um pensamento geral, quando não há nada que credencie isto. Eles podem refletir pensamentos gerais no sentido profissional, estritamente militar, para isso são instrumentados. Para isso estão autorizados. Mas para falar politicamente não. É uma anomalia que existe aqui no Brasil, dada a natureza do regime.

O segundo dado é aquele referente ao conceito de que as Forças Armadas estão independentes da situação geral do País, do mundo. Que as Forças Armadas vivem como se estivessem numa redoma. Elas estão inseridas na realidade, recebendo os efeitos do quadro real, das contradições, das pequenas lutas, de todas as posições e dos problemas do cotidiano. O militar tem filhos, paga aluguel, a mulher vai à feita, não pode ter determinados lazeres que outros têm. O militar participa de tudo isso que nós estamos a assistir aí, como a carestia de vida, o processo inflacionário, acusações de corrupção. Isto tem eco não há dúvida. Os indivíduos da instituição recebem os efeitos desses fenômenos que estão ocorrendo na realidade. Presumir que estão imunes, que estão no mundo da lua, é uma ilusão.

Que é então essa dissidência? Bem, o que está nos jornais são dissidências de ordem pessoal. São generais que discrepam de uma instituição ou de determinada ordem a que vinham obedecendo. É uma dissidência? Não, é uma divergência de opinião, até certo ponto legítima. Eu encaro a dissidência como um fato muito mais amplo e mais profundo, quer dizer, diversas correntes de opinião. Isto existe e tem muito mais seriedade, mais gravidade de que a discrepância de um oficial, mesmo que seja general, qualquer que seja ele, discrepar tem uma importância relativa e transitória, é  o fato individual. Agora, há o fato político que afeta a instituição e que transcende as pessoas. Sente-se que há nas Forças Armadas em geral, duas correntes de opinião. Uma corrente é aquela que quer que os militares se afastem, é a célebre “volta pra os quartéis”. Querem se desligar da responsabilidade que vêm acontecendo, responsabilidade que toda a opinião do País atira nas costas dos militares. Parece-me que esta segunda corrente deve ser preponderante porque, como militar, sei como o militar pensa e sente, como ele reflete essas contradições. Por exemplo: qual é o militar autêntico? O militar autêntico é aquele que levanta cedo, vai para o quartel e sai de lá de noite. Ele é um funcionário que trabalha fora e tem com a família os fins de semana. Ele é um homem do trabalho e encara com maus olhos aqueles militares que não estão trabalhando, que estão em boas funções públicas, estão nas empresas estatais ou nas empresas privadas, ou em órgãos altamente remunerados, com boas mordomias... O militar médio não gosta disso: aquele que trabalho mesmo, aquele que está carregando fardo da instituição, não gosta disso...

P – Existe relação entre estas duas grandes corrente dentro das Forças Armadas e os grupos econômicos?

R – Sim, este é um dado da realidade. Os militares que querem a continuidade do regime são aqueles que estão ligados aos negócios direta ou indiretamente. Façamos uma retrospectiva. O governo Castelo Branco foi a primeira etapa do regime, talvez a melhor, ou a menos ruim. A etapa em que o regime tinha ampla base política, na qual entravam os militares majoritariamente, no sentido de endireitar a nação que presumiam torta. Ao terminar o governo Castelo Branco, quase todos os ministros, tranqüilamente, se dirigiram cada um para a sua multinacional. É giram cada um para a sua multinacional.É um fato. Se nós apanharmos aí algumas multinacionais e outras grandes empresas ligadas às multinacionais ou às altas finanças, vamos encontrar muitos militares. Hoje é comum de alto a baixo as funções serem providas de militares. Hoje é comum de alto a baixo as funções serem providas de militares. Acredito que muitos deles tenham sido procurados para essas funções pela competência, mas em parte foram procurados porque, para as empresas que os empregavam , correspondia  a ter um “bom guarda”. Há empresas, inclusive multinacionais, que têm generais empregados como encarregados do pessoal! Evidentemente, que isso é uma impropriedade, pelo menos para não dizer outra coisa. Porque a empresas os procuram para isso? Elas buscam homens que tenham livre circulação pelos órgãos de segurança, pois hoje a segurança é quase que um sinônimo do militar, a segurança é provida pelo aparelho militar.

P – As sucessões tem sido historicamente de crises. Em geral, os militares têm sido chamados a participarem, a intervirem nesse processo. Até a década de 50, até o segundo governo de Getúlio Vargas essas crises talvez pudessem ser caracterizadas como jogos de oligarquias. Depois de 1955, depois da Ligas Camponesas, com o aperfeiçoamento do movimento sindical operário, a criação do Comando Geral dos Trabalhadores, com o amadurecimento político de proletariado urbano, as crises ganharam um conteúdo de classe e os trabalhadores passaram a ser um fator de crise... Este fato não acrescentaria um dado novo no caráter das crises políticas? Os militares têm condições de conviver com os organismos independentes dos trabalhadores passaram a ser um fator de crise... Este fato não acrescentaria um dado novo no caráter das crises políticas? Os militares têm condições de conviver com os organismos independentes dos trabalhadores, com os sindicatos plenamente livres e centrais sindicais que dariam base à uma autêntica democracia?

R – Você me recorda uma posição que a partir de 64 foi geralmente aceita, de que os militares estavam liquidados para o processo democrático brasileiro. Eles seriam como uma tropa de ocupação. Eu sempre combati essa idéia porque não é verdadeira. É só analisarmos a história, verificaremos que as Forças Armadas tiveram posições muito diferentes conforme o momento histórico. Os militares apoiaram a monarquia a ajudaram a liquidá-la. Apoiaram a escravidão e ajudaram a por fim nela, enfim muitas coisas foram criadas e destruídas, eles ajudaram a criar isto aí e acho que eles vão ajudar a liquidar. Quando? Como? Eu não sei, é um jogo que está sendo jogado.

Como foi lembrado, as sucessões presidenciais quando ocorriam normalmente se convertiam em momentos de crise de um regime político. As intervenções militares até 45 eram menos graves, menos profundas, e se revestiam de um outro caráter. Hoje essas intervenções são diferentes. As intervenções militares que assumiram aspecto de golpe se faziam transitoriamente. Havia intervenções seguidas de um retraimento para os quartéis e entrega da atividade política, não aos civis, mas as organizações políticas, aos partidos.

O golpe de 64 foi de qualidade diferente, algo novo no terreno das intervenções militares brasileiras e o novo custou a aflorar. O próprio presidente Castelo Branco diria em seus pronunciamentos que aquilo era transitório: tratava-se de fazer uma nova Constituição, fazer um novo sucessor e estaria terminado o movimento. O regime tem três etapas ao meu ver. A primeira de 64 a 68. Em 68, o regime adquire sua fisionomia definitiva, e tem o seu apogeu no período 68 a 74. Em 74 começa a declinar. De 68 a 74 o regime tem um caráter completamente diferente de outros regimes presididos por militares nesse País, mais especificamente o chamado Estado Novo que foi uma ditadura militar exercida por um civil. De que decorre essa diferença? Justamente das contradições sociais apresentarem-se hoje no Brasil com muito mais força do que antes. Inclusive a classe operária, uma classe relativamente recente em nossa história, começa a aparecer no palco político, e pretende ocupar um certo espaço, disputar direitos, como o direito de se organizar, e chegar a esse tipo de organização centralizada que é o Comando Geral dos Trabalhadores, ou algo dessa natureza. Os militares vêm sendo doutrinados violentamente para encarar essa pretensão como uma arma contra a humanidade quanto é uma coisa perfeitamente normal. Mas a doutrinação no processo da luta ideológica consiste justamente em apresentar a indivíduos ou à instituições como uma verdadeira heresia aquilo que é normal. É o processo de lavagem cerebral. Este processo é exercido através do que se chama doutrina de Segurança Nacional. Esta doutrina é inoculada nos militares individualmente, e não só nos militares, porque hoje ela abrange o País todo, todas as atividades, todas as classes, todas as profissões, para que encarem como uma ameaça séria ao próprio País as formas de organização operária, estudantis e religiosas, mas, particularmente, as operárias. Então, o novo é que fez com que surgisse uma forma nova de intervenção militar, uma forma nova de regime militar. As contradições da sociedade brasileira se aprofundaram e não vão desaparecer por causa disso, nem vão deixar de se aprofundar, vão resistir, vão achar que a coisa é anormal por algum tempo. A própria realidade vai mostrar para eles que não é anormal, que é uma exigência da própria sociedade. Espero que algum dia se convençam disso.

O processo histórico se caracteriza por um fato que é muito pouco estudado que se chama ritmo. Às vezes o ritmo é lento, ás vezes é acelerado. Vive-se, em um período curto, mudanças significativas. Espero que esta mudança para uma visão mais justa do processo social resulte de um ritmo mais rápido. De qualquer forma, a realidade é mais forte do que qualquer organização militar.

[Astrogildo Esteves e Renato Lemos entrevistam Nelson Werneck Sodré, Meia volta, volver!, São Paulo, Versus no 27, dezembro de 1978, pp.10-11]. 


 




O EDITORIAL DOS EDITORIAIS – 1978
Por Enio Bucchìoni e Omar de Barros Filho


A cultura como forma de ação era insuficiente para acompanhar as transformações registradas na sociedade brasileira durante 1978. Versus assumiu o discurso político. Mais que isso, buscou encontrar os caminhos para a construção de um novo programa político, social e cultural. Divulgamos o pensamento de inúmeros líderes políticos, desde os remanescentes do PTB aos socialistas. Acompanhamos as lutas, os impasses e o desenvolvimento dos trabalhadores e suas lideranças, desde a Scania, no ABC, às eleições e a perspectiva da criação de seu Partido. Ultrapassamos os cantos de sereia da Frente Nacional de Redemocratização e do seu general candidato. Estivemos na linha de frente na campanha pela anistia e pelas liberdades democráticas, reclamadas pela população brasileira. Fomos duramente atingidos pelos vários organismos repressivos do regime, inclusive com as prisões de alguns companheiros da redação, administração e colaboradores. Fomos sufocados financeiramente, e houve momentos em que a sobrevivência material diária ficou em mãos de nossos amigos e companheiros. No entanto, permanecemos e nos transformamos, nesse terceiro ano de vida, o mais agitado, sem dúvida. Ousamos nos entranhar na realidade social e política,e nos definimos. Acreditamos na profundidade de nossos ideais e estamos convencidos de rumar no mesmo sentido da história, sendo uma de suas parcelas vivas e atuantes.

Aos leitores, que nos acompanharam nesta trajetória, principalmente aos cinco mil novos que nos conheceram a partir dos segundo semestre, deixamos registrado neste editorial a nossa transformação durante 78 e a relação dela com a dinâmica das lutas sociais e políticas.

“Versus se dispõe a integrar estas três linguagens: a da cultura como forma de ação, a reflexão sociológica, e a discussão da instância diretamente política. Em São Paulo, Rio, Brasília e Porto Alegre, o dilema se coloca nos meios oposicionistas: qual a forma de construir uma oposição com um programa político, social, cultural novo?”

Nascia o ano de 1978 e, com ele, uma indagação para nossa equipe. Mais que isso, um desafio. Sabíamos que a hora não era apenas das denuncias, mas da discussão das perspectivas. Assim, abrimos a polêmica interna e externamente, e publicamos Chico Pinto, José Álvaro Moisés e Fernando Henrique Cardoso. Era a primeira edição do ano, e o tema da discussão era a questão dos novos partidos. Natural que voltássemos ao passado para rever criticamente o velho PTB e o fenômeno do populismo. E essa foi nossa conclusão:

“Ao movimento popular de 1964 faltou lideranças. Fragilmente organizado na base, recebendo grande parte de sua inspiração ideológica de cima. Eis que se vê abandonado, sem um esboço de reação de seus líderes. Entre as lideranças faltosas com os milhões de trabalhadores a quem tudo se prometera e que permaneceram na miséria, na doença...sobressai-se a figura esquálida do ex-presidente, exasperante nas suas pequenas astúcias, nas suas jogadas íntimas...”

Versus mudou? Foi a pergunta que fizemos em fevereiro. A resposta foi positiva, e aí nasceram nossas principais transformações. Versus que inicialmente estava voltado quase completamente para o que chamávamos de cultura como forma de ação assumiu o discurso político. E passou não só a discutir profundamente a conjuntura nacional, como também a se identificar com as correntes que entendiam que a construção de uma democracia, no país, passava necessariamente pela legalização de todos os partidos operários. Partimos para a construção de um partido socialista. Foi uma decisão importante, no início de nosso terceiro ano de vida. A decisão, consagrada por ampla maioria de nossa equipe, foi reafirmada em nosso editorial: 

“Versus pensou dois anos as lutas dos índios, a questão da universidade e do Poder. O movimento estudantil, a vida dos trabalhadores, imperialismo cultural... mas nós tínhamos clareza de que ao nível de nosso país, as tarefas de Versus eram  frustrantes”.

Sim, o jornal se transformara. Estampávamos em nossas páginas, além de todo o universo das lutas políticas e culturais na América Latina, também a luta por uma alternativa política independente no Brasil. A luta pelo PS crescia. E buscamos as opiniões de Almino Affonso, Edmundo Moniz, Plínio de Arruda Sampaio, a Tendência Socialista do MDB, no Rio Grande do Sul.

No ímpeto da busca de uma resposta prática, que materializasse nossa perspectiva política optamos por um caminho. No próprio mês de fevereiro, participamos de uma breve convenção, a que criava a Convergência Socialista. Juntamente com 25 entidades estudantis e de trabalhadores passávamos a refletir o ardor diário da construção de um futuro PS. Já não éramos mais expectadores e críticos da realidade social e política hostil que nos circundava, mas nos sentíamos parcela integrante de um movimento ativo no sentido de transformar. O corolário desta opção política foi o surgimento de críticas de companheiros com que, de uma forma ou de outra, marchamos juntos contra o regime militar, nosso opressor comum. O pretexto era que devíamos a oposição. Omar de Barros Filho, um de nossos editores, respondia na edição de março-abril:

“Entre críticas pela direita e pela esquerda nós, socialistas, continuamos com a construção da Convergência Socialista, movimento amplo, pela unidade... Pensamos que o MDB, onde os “liberais” detém a hegemonia, não esgota todas as correntes de oposição ao regime... mas não podemos esquecer que uma frente (opositora ao regime militar) é formada por contrários não antagônicos, e que é no debate e na ação que  a frente se dinamiza e avança em direção aos seus objetivos”.

A polêmica acerca do PS estava lançada, e Versus era seu portador preferencial. Edson Khair, Alves de Brito, Moniz Bandeira, entre outros, aprofundava a discussão, mais teórica, nesse momento. Em abril-maio, Júlio Tavares, editor-assistente, e membro da Coordenação Nacional da Convergência Socialista, afirmava e esclarecia alguns pontos:

“Não queremos o socialismo deformado, burocratizado, estalinizado. Queremos um socialismo adaptado às condições de nosso povo, que acabe com todo o tipo de alienação, de discriminação. Buscamos o socialismo que signifique liberdade...”.

Alguns boatos corriam nas mesas dos botequins de São Paulo. Entre um suspiro e outro se comentava: o pessoal do Versus recebeu dinheiro da social-democracia européia, há uma fita gravada que comprova tudo...

A misteriosa fita nunca apareceu (e nem o dinheiro!). Mas respondendo às críticas vindas de outros quadrantes, Jorge Pinheiro, um dos nossos editores, caracterizava com precisão política que...

“A social-democracia européia tem como base programática...melhores condições de vida e de trabalho, democracia e socialismo, através de reformas pacíficas do capitalismo...tem uma direção pequeno-burguesa,e tem uma base social que é a classe trabalhadora, mas amordaçada por uma aristocracia operária. Em termos políticos, o conflito social-democracia Versus socialismo, no Brasil, se traduziria no conflito petebismo Versus socialismo”.

Olhando retrospectivamente, estávamos convencidos, e em grande parte tínhamos razão, que esses debates teóricos e programáticos teriam uma incidência prática eloqüente alguns meses mais tarde, nas eleições de novembro. Em meados de maio, afirmávamos que o caminho da corrente socialista começava a ser trilhado, e prevíamos um salto na experiência política das massas a partir de sua própria participação eleitora. As eleições de novembro funcionariam entre todas as classes como um grande agente de discussão política. Antevíamos os desdobramentos possíveis: o crescimento do movimento socialista e a intensificação da discussão sobre a rearticulação partidária, fatos confirmados pelos eventos pós-eleitorais.

“Mas estávamos em 1o  de maio, em Santo André, demonstrou que está havendo um processo de politização dos trabalhadores, a partir de suas lutas mínimas. E mostrou, também, que surge uma nova vanguarda... A vanguarda que está surgindo agora, e que se expressou em Santo André, tem suas expressões marcadas pelo passado recente. O processo ainda é atomizado, e ela também. O programa aprovado em Santo André pode ser base para esse processo e expressa bem os anseios dos trabalhadores hoje...”

As greves no ABC estouravam, quando ganhamos um novo colaborador. Seu nome: Santiago. Sua profissão: operário metalúrgico. Estávamos na rua com a edição de junho. Santiago entrava em campo.

“A posição destacada, assumida pelas direções sindicais de São Bernardo, Santo André, Santos, na luta pela reposição salarial, dando exemplo para todas as categorias profissionais, recoloca nossa classe metalúrgica na vanguarda no operariado brasileiro, no que diz respeito à prática sindical, e marca profundamente níveis de comportamento que rompem com um passado de quase estagnação das lutas reivindicativas. Não será mais possível voltar atrás...”.

Santiago tinha razão. As greves repercutiam intensamente no país inteiro. Trabalhávamos como doidos na redação (praticamente sem recursos, comendo pouco, e dormindo menos ainda) para acompanhar os acontecimentos no ABC paulista. Tiramos duas edições extras, dirigidas para os sindicatos e fábricas. Impactados pelos fatos, transformamos um pouco as feições de nossa publicação. Buscávamos um mergulho mais fundo. Jorge Pinheiro, edição de junho-julho, notava:

“A greve no ABC começou a abrir os olhos dos trabalhadores para o que são o governo e suas leis. Os operários, é claro, quando iniciaram a greve, não entendiam nada de leis, mas quando as fábricas foram se enchendo de fiscais, inspetores, e até mesmo de policiais, então aprenderam muita coisa aprenderam que estavam violando a lei que era ilegal pedir de forma unitária um aumento de 20 por cento. E, nesse momento, algumas abstrações como Governo Militar, AI-5, Anistia, etc... começaram a ficar mais claras...”

Paralelamente à luta dos trabalhadores, as facções burguesas em choque, se reacomodavam no cenário político. Nascia a Frente Nacional pela Redemocratização. Euler Bentes passava a ganhar cada vez mais espaço nos jornais. Alertávamos que a Frente era uma tentativa sui-generis de um grande acordo da burguesia para a volta ao estado de direito. Víamos seu programa de aberturas, mas apontávamos para aumentos salariais; nada sobre reorganização sindical e CGT e resumia a questão de um governo provisória a um simples pode ser.

“Não devemos cair no sectarismo ignorando a existência da Frente como um fenômeno objetivo, que nasce da situação de crise política que o país vive... Mas também não podemos cair no oportunismo, dar nosso apoio cego e irrestrito a um projeto elaborado pela burguesia...”

Na edição posterior de Versus, a de número 23, anunciávamos o enterro político da Frente e do general Euler. A vaga de greves continuava, do ABC para a Capital e outros estados, da classe operária para a classe média. A nível superestrutural, o centro das atenções era Brasília, para o Congresso Nacional, e a discussão das reformas propostas pelo Governo. Em setembro, em editorial intitulado As lutas, as reformas e o socialismo...

“Para o governo, o objetivo não é o de fazer concessões através do  Congresso. É permitir a abertura não mais que necessária para equilibrar o establishment. Daí que as aberturas não passarão...pelo Legislativo, ou mesmo por um governo civil eleito pelo voto universal e direto. E neste jogo de pôquer, de blefes e blefes, o governo ganha com a indecisão do MDB, que por suas divisões e interesses – não pode dizer as coisas claras. E também com as dúvidas da FNR, que aos poucos vai naufragando num mar de vacilações. E quem ganha de conjunto é o governo, que vai transferindo as decisões que poderiam ajudar em muito o processo de democratização – para as salas viciadas de um Legislativo sem liberdade”.

No entanto outro fato de intensa significação política marcou o mês de agosto. Ainda que embrionário, detectamos sua importância e sua possível evolução: a oposição sindical surgida no V Congresso Nacional dos Trabalhadores industriários. Enio Bucchioni, nosso editor nacional, assinalava então que a oposição Sindical, surgida do movimento grevista, consolidada programaticamente numa Carta de princípios, e estruturada nos principais sindicatos do país era o fenômeno superestrutural e político mais importante registrado desde 1964.

“É ela uma alternativa? Ainda não, mas em processo de se transformar. Para isso terá de se estender horizontalmente junto às suas bases, e verticalmente, consolidando seu raio de ação com os demais sindicatos que a ela se incorporarem buscando a adesão de novos companheiros.                                                                                                 

Mas isso só não basta. Terá de se posicionar frente a todos os acontecimentos políticos nacionais, incluindo desde já as reformas e as eleições de 15 de novembro. E, sobretudo, capacitar-se para ser direção das lutas que lhe deram origem e que ainda são o dia a dia dos trabalhadores: pelos 20 por cento de aumento salarial imediato, pela reposição salarial, e contra a demissão dos trabalhadores, alvo de represália do patronato”.

Esta relação dialética, com as inevitáveis mediações, entre as lutas econômicas, sindicais, e políticas, a dinâmica das classes sociais em movimento, a expressão e desenvolvimento de suas vanguardas, foi um acerto político fundamental.

Mas, prossigamos nossa caminhada pela história deste jornal neste ano de 1978. Vejamos outubro: a dinâmica da conjuntura acrescentava alguns elementos políticos com contornos mais nítidos...

“A vontade do governo e a dos socialistas está mediada por uma dialética de ferro: o ritmo das reivindicações do trabalhadores. A luta salarial... continua sendo a alavanca que move o país no presente e nos meses vindouros..., as reivindicações dos dirigentes da Oposição a CNTI apontam com claridade a disposição da classe trabalhadora em intervir na cena política nacional, com o posicionamento de sua classe em relação às liberdades democráticas. Para nós, socialistas, este é um fator determinante, e coloca mais uma vez a imperiosa necessidade de construirmos a ferramenta política necessária: um Partido dos Trabalhadores, um Partido Socialista”. 

O caminho estava traçado. Os principais líderes sindicais autênticos passavam a se manifestar publicamente, mostrando a necessidade de um partido político da classe, e de todos os assalariados. Ganhamos novos companheiros, mas perdemos outros: em meados de agosto uma parcela dos que faziam Versus conosco se desprendeu de nossa redação por diferenças políticas e editoriais. E a seguir, pagamos o preço de nossa audácia: mais de duas dezenas de companheiros da Convergência Socialista, entre os quais alguns membros de nossa equipe, eram presos pelo DEOPS em São Paulo e no Rio de Janeiro. As prisões ocorreram alguns dias depois da Convenção Nacional da Convergência Socialista, da qual participamos, e algumas horas antes do general Euler Bentes se apresentar, definitivamente como candidato ‘desafiante’ do general Figueiredo. Era um ataque direto à frente das oposições, da qual fazemos parte. Assim interpretamos os acontecimentos que se sucederam.

“Foi uma maneira de frear o processo eleitoral de novembro, e tentar evitar o que todos sabem inevitável, a  vitória eleitoral da oposição democrática. Foi  também uma tentativa de eliminar o direito da formação de um partido verdadeiramente democrático, e que tem como principal objetivo a independência dos trabalhadores”.

Os fatos posteriores e a unção de Figueiredo à presidência confirmaram todos os prognósticos. O governo conseguira, na reta final, uma certa unidade e obtinha forças burguesas e imperialistas, e de setores da casa militar, o aval necessário a seu pupilo. Marcamos posição no editorial de novembro.

“Para cumprir seus objetivos de Bonaparte tropical provavelmente terá de fazer maiores concessões democráticas, e abrir ainda mais as portas do país à entrada de capital estrangeiro, entregando o que resta de nossas riquezas e soberania. Caso consiga essa combinação, poderá amenizar a crise econômica, política e social ora em desenvolvimento. Neste momento de crise do regime, de campanha eleitoral. Todos vestem pele de cordeiro, todos são democratas, até mesmo o general Figueiredo. É o grande baile de fantasias. Devemos determinar bem os inimigos aproveitando as eleições para melhor combatê-los...”.

Optamos pelo apoio aos candidatos operários e socialistas E o resultado mais marcante foi a eleição de Benedito Marcílio, líder dos metalúrgicos de Santo André, que eleito deputado federal declarava:

“Quando surgiram as greves quais foram os políticos que se identificaram com os trabalhadores? Não podemos pensar que nossos problemas serão resolvidos por eles. Somente uma frente dos trabalhadores nas fábricas é que nos garante. Não os políticos e nem os carimbos de papéis dos sindicatos. O parlamento deve ser visto no sentido de denunciar as injustiças e as irregularidades que os trabalhadores estão submetidos, no sentido da conscientização dos trabalhadores”.

O Brasil inteiro fazia seu balanço eleitoral. A verdade era cristalina. A derrota do governo nas urnas era a manifestação clara, pacífica, mas firme contra a ausência das liberdades democráticas mais elementares, contra o arrocho salarial, e o desejo expresso pelo fim da ditadura. E há um salto de qualidade: o centro-sul do país, eixo social, econômico e político, se manifestou contra o atual regime. O proletariado e a classe média das cidades grandes e médias afirmava claramente seus anseios.

Qual seria a repercussão dos resultados no futuro governo Figueiredo? Opinamos no editorial de dezembro:

“É nesse quadro político que Figueiredo terá que governar, sem reinar como os seus antecessores. Com uma pequena instável margem de manobra parlamentar, com as fissuras nas forças armadas, o descontentamento entre os vários setores da classe dominante, uma oposição das classes médias urbanas e do proletariado urbano e rural. O processo eleitoral recém terminado é um elemento de aceleração a mais no processo de transição do regime militar. Em vez de ordenar, arbitrar os conflitos entre as classes dominantes, e entre essas e as camadas sociais e oprimidas. Figueiredo terá de compor alianças políticas, conviver com um congresso com mais poderes, fazer concessões ao nível de vida das grandes massas, ceder algumas liberdades democráticas, abolir o bipartidarismo, imposto há 13 anos...”.

Temas como a Constituinte, eleições diretas a todos os níveis, anistia, melhores condições de vida e trabalho para a população, direito de greve e a Central única dos Trabalhadores vão sendo absorvidos e vividos pelos trabalhadores nas eleições e nas suas lutas cotidianas. Por outro lado, a propaganda do socialismo como única alternativa história ao atual regime capitalista, e a mediação imperiosa da construção do PS ganhou dimensões também nestas eleições, jamais sonhadas por qualquer um de nós, digamos, a um ou dois anos atrás.

Dizíamos, a vitória eleitoral é um elemento de aceleração. Efetivamente as articulações no sentido de construção do partido dos trabalhadores se intensificaram. A libertação dos nossos companheiros presos foi um passo importante nessa direção, mas última palavra será dada pelas  novas lideranças sindicais, surgidas na luta. É um desafio que temos pela frente. Já vencemos muitas dificuldades, há outros obstáculos a superar. Mas deixemos com Lula, direção dos metalúrgicos de São Bernardo, as considerações finais.

“Minha proposta é no sentido de que temos que caminhar a 500 por hora na conscientização sobre a participação política dos trabalhadores, que culminaria com a formação de um partido saído de dentro das fábricas, criado pela classe... Hoje o trabalhador já fala em criar um novo partido político. O que se tem que fazer agora é organizar os meios para a criação desse partido... Enquanto existir um trabalhador, um trabalhador vivo, enquanto existir um trabalhador sedento de liberdade, enquanto existir um trabalhador sedento de dar à sua família o direito de viver com dignidade, poderão nos prender, poderão nos matar uma a um, mas enquanto existir uma só viva alma, que seja trabalhador, seremos uma batalha imensa contra o patronato, seremos uma força viva contra a exploração econômica, seremos ainda mais uma ameaça constante àqueles poucos que dominam o país. Seremos ainda mais os causadores da liberdade dos trabalhadores”.
[Ênio Bucchioni e Omar de Barros Filho, O editorial dos editoriais, 1978, São Paulo, Versus no 28, janeiro de 1979, pp.3-9]. 
 




O MANDAMENTO DA LIBERDADE
Entrevista com  Dom Adriano Hipólito, bispo de Nova Iguaçu


Hoje são quase 50 mil Comunidades Eclesiais de Base, organizando cerca de um milhão e quinhentos mil pessoas, no Brasil. Elas identificam o pecado-raiz de toda a opressão: “...esse grande pecado é agora social e se chama sistema capitalista”, concluiu o III Encontro Intereclesial de Comunidades de Base, em julho de 78 na Paraíba. Já não se contam mais nos dedos as Comissões Diocesanas de Justiça e Paz. A Igreja Católica foi, talvez, o primeiro setor organizado, com peso efetivo na sociedade brasileira, a empunhar a bandeira de luta pelos direitos humanos. Ligadas às parcelas mais exploradas do povo, sofrendo a perda de padres e freiras perseguidos e mortos, a Igreja se organizou para combater as ameaças à Justiça e à Paz. Deixa, enfim, o regaço dos poderosos, não sem contradições e conflitos dentro de sua própria estrutura. A velha Igreja ainda pesa. Esse processo de “descolamento” se dá em toda a América Latina. Desde Medellin, há 10 anos, nasce uma igreja combativa, voltada para os problemas das sociedades pobres e dependentes. É aí que aparecem Pedro Casaldáliga, Tomás Balduíno, D. Pelé, Benedito Uchoa, Cândido Padim. Para um jornal que se coloca junto as lutas populares este é um debate fundamental. Qual é o papel da Igreja hoje? O que acontecerá em Puebla? Dentro de alguns dias, centenas de religiosos se encontrarão no México, para decidirem o destino de suas comunidades, arduamente trabalhadas durante anos e anos. O Papa vai a Puebla: rompe-se a tradição anticlerical da “revolução” mexicana, mas, é certo, podemos esperar a aberta interferência de um Vaticano endividado, atolado na falta do dinheiro, recebendo ajuda americana, e alemã... um papa polonês, um golpe nos  estados operários, golpe nas comunidades de base?

De qualquer  modo, qualquer que seja o resultado da reunião, a luta entre as tendências conservadoras da Igreja e os setores progressistas vai continuar. Ela não é um fenômeno apenas superestrutural, ela reflete um processo mais amplo de lutas sociais, e faz parte da movimentação política das massas latino-americanas, hoje num processo irreversível de construção de sua própria história.

Assim, entrevistamos D.Adriano Hipólito, bispo de Nova Iguaçu. Esta cidade talvez seja o modelo de cidade dos pobres e oprimidos: oitavo município mais populoso do país, ali faltam esgotos, escola, hospitais, transporte, segurança pessoal (reina o esquadrão da morte). Região de  operários, funcionários mal remunerados, comerciários, subempregados, que já não podem esperar soluções senão de si próprios.

Talvez haja, ainda, quem desconfie do engajamento da igreja na luta pelos direitos dos oprimidos. A Igreja, é verdade, deu razões para isso durante séculos. Mas, se os homens são aquilo que fazem, a Igreja está sendo aquilo que seus sacerdotes  têm praticado. E essa prática de discussão e organização das bases de nossa sociedade nós precisamos compreender e avaliar.

P: Qual o espírito que orienta o atual trabalho comunitário da Igreja Católica no Brasil?

R: A Igreja, na sua essência, é comunidade de fé, de esperança e de amor. Sua maior eficiência fermentadora e renovadora da comunidade humana sempre dependeu de seu comportamento e de sua atuação com comunidades. Sem dimensão comunitária a Igreja não é Igreja. Sem abertura para os problemas da comunidade/sociedade, a Igreja não está em condições de realizar sua missão, ser continuação da ação libertadora de Jesus Cristo, ser sinal de esperança para o homem angustiado e sofredor.

É verdade que nem sempre a consciência comunitária da Igreja funcionou com tanta clareza. Houve períodos  Históricos em que os cristãos, inclusive em nível de hierarquia, se deixaram envolver demasiadamente pelos interesses de grupos do poder, e assim se acomodaram.

Essas colocações são importantes para entender o interesse da Igreja pelos problemas da humanidade e os instrumentos que ela criou, como por exemplo as Comunidades Eclesiais de Base (CEB), as Comissões de Justiça e Paz, etc... Não visam dominar, elas visam servir melhor.

P: Que são as CEBs? Como funcionam? Quem as integra?

R: Comunidade: as pessoas se aproximam livremente, se sentem responsáveis, descobrem e atuam nos mais diversos elementos de interesse comum. Eclesial: o ponto de partida  e de chegada, os elementos formadores e aglutinadores, os métodos de ação, etc, são os mesmos da Igreja. Base: a comunidade de base tem como princípio fundamental o relacionamento primário das pessoas: pessoas que se conhecem, que se estimam, se complementam, se ajudam mutuamente. Todos atuamos em  nível de base. A CEB, embora não seja constituída para fazer política, tem de se preocupar com os problemas políticos e tem parte ativa no processo político. Tem a  preocupação de integrar as pessoas da base no processo social, como direito/dever da pessoa humana, e de levá-la à participação consciente e crítica.

A CEB aberta, integra-a quem quiser viver e agir em dimensão comunitária. É através da educação de seus membros, empregando o método da reflexão bíblica-oração, orientada para a via concreta: conscientização para a participação tanto na atuação interna da comunidade e da Igreja, como na atuação social. A CEB não é uma sociedade secreta, por isso não tem medo de serviços  secretos, nem de perseguição. É  típico de uma ideologia de segurança e de desenvolvimento ter medo da conscientização e da participação ativa do Povo, e por isso mesmo olhar como subversivas as atividades da Igreja e das CEBs.

P: E as Comissões de Justiça e Paz?

R: São um instrumento de defesa dos Direitos Humanos, da Justiça e Paz sociais, criados pelo Papa Paulo VI. A sede internacional desse organismo está em Roma. Importante e fundamental para todos os níveis da Comissão de Justiça e Paz é a defesa dos direitos fundamentais da pessoa humana: direito à vida, à integridade pessoal, à igualdade fundamental perante à Lei, à honra, ao desenvolvimento da personalidade, ao casamento, ao trabalho e à subsistência, à liberdade de consciência e de religião, à educação dos filhos, à livre expressão do pensamento, à  propriedade. São direitos da pessoa humana e por isso fundamento de uma ordem  social justa.

P: Como o senhor vê a realidade da organização dos trabalhadores ao nível sindical e político?

R: Para participar do processo social, o Povo precisa de instrumentos válidos e eficientes. Entre esses instrumentos estão, por exemplo, os sindicatos e os partidos políticos.

Os sindicatos devem ser órgãos de participação eficiente na defesa dos  direitos dos seus sindicalizados. Estão a serviço dos trabalhadores como comunidade de trabalho que constrói a Pátria, e não a serviço de grupos do poder, de demagogos e pelegos. O Estado onipotente conseguiu, também no Brasil, corromper a filosofia dos sindicatos, reduzindo-os a instituições de beneficência e lazer.

A frase “os sindicatos não podem fazer política” tornou-se corrente entre nós, apesar de totalmente absurda. Que os sindicatos não devem ser manipulados, estamos de acordo. Mas cabe aos sindicatos o papel conscientizador de seus membros, a fim de levá-los à participação eficiente no processo social e, por isso mesmo, na Política. Os trabalhadores não podem ficar à margem da Política: devem participar.

Um partido trabalhista que corresponde realmente a uma grande corrente do pensamento popular, na classe dos trabalhadores será, mais cedo, ou mais tarde, uma necessidade imperiosa. Mas um Partido Trabalhista que esteja entregue à liderança dos trabalhadores será, mais cedo, ou mais tarde, uma necessidade imperiosa. Mas um Partido Trabalhista que esteja entregue a liderança dos trabalhadores, e não seja manipulado por uma elite burguesa que deseja apenas conquistar o poder.

P: Há algum momento particular que marque a virada da Igreja no caminho da luta pela emancipação social dos trabalhadores e pelos Direitos Humanos?

R: Tenho a impressão de que, a nível oficial, institucional, a grande virada aconteceu com o Concílio Vaticano II (l962-l965) e com a Segunda Conferência do Episcopado Latino Americano, em Medellin (l968). A Igreja volta-se com mais decisão para a situação concreta do mundo e do Povo, identifica-se mais corajosamente com os pobres e com os marginalizados, dispõe-se a contestar a sociedade de consumo e os grupos dominantes. Nem tudo ainda foi feito. Não será fácil à Igreja despojar-se em todos os níveis de uma sobrecarga Histórica que a comprometeu com o estabelecimento, com o poder, com a reação.

Olho a nossa América Latina. Apesar de certas aparências, nossos povos vivem à margem do processo social. Uma elite, voltada inteiramente para a Europa, para os EUA, para a Rússia, continua hoje o imperialismo colonial de séculos passados. Só que agora o colonizador é interno. Apesar da chamada independência política os nossos povos precisam ainda ser liberados, e ter os meios de participar intensamente da vida nacional. Medellin quis dar um impulso forte para o aceleramento deste processo integração e participação. Nossa esperança é que a planejada Terceira Conferência, em Puebla, intensifique mais ainda o esforço de Medellin.

No caso particular do Brasil parece-me que os danos do governo militar, com toda espécie de tensões e conflitos com a Igreja nos mais diversos planos contribuíram também para a “virada”. Há males que vêm para o bem. Tenho a qualquer vantagem ou privilégio, de qualquer proteção política ou militar.

Mais do que antigamente a Igreja sente-se como Igreja do Povo e se identifica alegremente, corajosamente com o Povo humilde, pobre, explorado. Mas ainda falta muito. Ainda não tiramos, nem de longe, todas as conseqüências desta inspiração de Deus.

P: Como o senhor vê o possível relacionamento entre Cristianismo e Socialismo diante das necessidades dos trabalhadores?

R: Sem disfarçar as divergências em pontos fundamentais, podemos admitir uma luta comum por uma causa comum: a justiça social. Quero crer que sem o Cristianismo como pano de fundo, o Socialismo não se explica suficientemente. Muitos elementos do Socialismo são de fato cristãos.

Disse o sociólogo alemão Werner Sombart: “há mais de cem tipos de Socialismos”. Certamente com vários tipos será possível uma aproximação do Cristianismo. É por isso que as palavras de Pio XI no “Quadragésimo Anno”: “Ninguém pode ser ao mesmo tempo socialista e cristão” (que em determinado momento histórico visava ao socialismo radical, em sua forma extremada) têm de ser entendidas corretamente. O Socialismo teve de adaptar-se, e moderar-se no contato com a realidade concreta, que é sempre muito diferente do mundo dos filósofos e dos ideólogos. A História, mestra da vida, corrigiu graves erros do Socialismo primitivo, como está corrigindo (cf. Eurocomunismo e também as formas políticas dos diversos países comunistas) o Marxismo.

Para nós, os cristãos, vale sempre o princípio de não absolutizarmos os momentos históricos, que de sua natureza, são sempre contingentes e mutáveis. Isto vale para a Política, para a Economia, para a Cultura, para as diversas Religiões. Isto vale também para a própria história do Cristianismo.

Entre nós, a separação de Igrejas e Estado, que foi introduzida pela República, pareceu então a muitos católicos e hierarcas, acostumados aos favores do poder, e envolvidos pelo ideal de Cristandade um desastre irreparável. A História mostrou que só a partir da separação é que a Igreja se tornou realmente independente, e capaz de crescer com seu ritmo e dinâmica próprios. Os exemplos são numerosos. A História, deveria ensinar-nos pelo menos a não sermos radicais em nossas posições diante de fenômenos humanos. Sem falsear a sua natureza e a sua missão a Igreja saberá sempre encontrar a fórmula de convivência com o mundo e com os homens, saberá sempre (após dolorosa fase de procura) descobrir os lados positivos no “adversário”.
 
[Renato Lemos e Marcos Magalhães, O mandamento da liberdade, São Paulo, Versus no 28, janeiro de 1979, pp.14-15]. 
 




O PADRE GUERRILHEIRO


Camilo Torres foi um símbolo da minha geração, da nossa Latino-América, influenciada pelo êxito da revolução cubana. Camilo foi também um marco no desenvolvimento da Igreja dos oprimidos, a que nasce com Medellin. Recordo ainda dos meus dias no exílio em Santiago, vários anos após a morte de Camilo: sua lenda permanecia, e também ainda sobreviviam as idéias que o levaram até a militância num grupo armado guerrilheiro no  interior da Colômbia marginalizada. E recordo um pierrot le fou chileno, membro de uma organização militarista, que preso por um cinturão de bananas de dinamite, atirou-se contra uma delegacia de polícia. Explodiu como o personagem de Godard. Foi em Santiago que, naqueles anos, li o primeiro documento produzido por exilados brasileiros, que fazia uma profunda crítica dos métodos guerrilheiros no continente. O texto era claro, era uma volta ao marxismo clássico, uma análise que recolocava no seu verdadeiro lugar o papel das massas como agente transformador da história. Ao mesmo tempo, o documento negava toda uma teoria levada a prática pela esquerda tradicional em toda a América Latina, a mesma que levou a derrocada da revolução chinesa na década de vinte, ao massacre de Jacarta, e a débâcle de Allende. Além de tentar resolver sem as massas e pelas armas a questão do poder, a guerrilha nascia com a tarefa da negação da triste herança que recebemos nos últimos 50 anos. Foi incapaz disso. Não era um simples acaso: éramos milhares de exilados, de várias nacionalidades em busca de uma alternativa... (E.B.)

IN MEMORIAN DE CAMILO TORRES

Após mais de 10 anos de morte do padre e sociólogo Camilo Torres, membro ativo do grupo guerrilheiro ELN (Ejército de Liberación Nacional), o povo colombiano ainda duvida das versões oficiais que à época descreveram o encontro dos guerrilheiros com as tropas regulares, no lugar conhecido como Patio Cemento.

Os comunicados governamentais informaram que o padre Camilo caíra em combate, a 15 de fevereiro de 1966, atingindo por balaços de carabina automática 30´´, disparados por um sargento da patrulha, emboscada pelo agrupamento guerrilheiro. Ele morrera de forma instantânea, não dizendo uma só palavra, não tentara render-se, nem pedira clemência. O povo colombiano, pelas carreras de Bogotá, ou pelos caminhos de Barrancabermeja e Bucaramanga atribui o assassinato, como dizem, a um plano organizado pelo general Alvaro Valencia Tovar, por ironia da sorte, amigo íntimo de Camilo Torres desde a infância. Tovar comandava a Quinta Brigada do Exército, responsável pelo combate ao ELN.

Percorremos a Colômbia em busca da memória de Camilo Torres. Conversamos com o padre German Guzman Campos, companheiro de sacerdócio e grande amigo do padre guerrilheiro. O general Alvaro Valencia Tovar, hoje personalidade política em seu país, também deu sua versão. Do mesmo modo, falamos com o ex-padre Walter J. Broderick, australiano, que publicou um contundente livro a respeito dos acontecimentos cujo desfecho foi Patio Cemento. Ouvimos também intelectuais e jornalistas colombianos, que ainda hoje buscam a verdade do padre Camilo. Este é o resultado de nosso trabalho. Os depoimentos são emocionantes pela sua coragem. As falas do general Tovar são reveladoras. O depoimento de Isabel Restrepo Gaviria recolhemos de uma obra sobre Camilo.
Bem, aos fatos...

POR FRANCISCO HARDY

GUZMAN CAMPOS, padre e amigo de Camilo Torres, certo dia manteve este diálogo com Camilo:

-- Por que ingressou no seminário? Problemas familiares? Decepção amorosa? Vazio interior, surgimento de valores religiosos silenciados? Qual foi a causa?

-- Um pouco de tudo isto. Na verdade, passou-se o seguinte: numas férias, fui ao Llano (planuras colombianas). Aquela imensidão, silêncio, a eclosão tropical de vida, de sol, me impressionaram muito. Comecei a isolar-me, queria estar só. Compreendi que a vida, como eu a entendia, como eu a estava vivendo, carecia de sentido. Pensei que poderia ser mais útil, mas numa função coletiva. Foi a imensidão do Llano que me fez encontrar Deus. Era a solução, que me pareceu uma solução total, a mais lógica.

FERNANDO SOTO APARICIO, escritor -- Os soldados (moços camponeses, moços do povo, moços colombianos) mataram Camilo Torres, numa ação contra os guerrilheiros (moços camponeses, moços do povo, moços colombianos). Há um só responsável por este fratricídio: o sistema. E uma só vítima: a Colômbia.

ISABEL RESTREPO GAVIRIA, mãe do Padre Camilo -- A idade de dois anos nós o levamos à Europa, onde viveu pelo espaço de três anos, na Bélgica e em Barcelona.

Aos oito anos ingressou no Colégio Alemão de Bogotá, onde fez os estudos primários, até que a escola foi fechada, por causa da guerra.

Desde pequeno tinha gênio difícil. Os estudos secundários foram iniciados numa dependência do  Colégio Rosário, mas por dedicar-se a outras atividades perdeu o 4º ano.

Dedicava-se ao “jornalismo” e escrevia, editava, financiava e vendia um jornalzinho feito com tipos de borracha. Mais tarde, a edição passou a ser impressa num mimeógrafo que lhe dera uma amiga. O “jornal” era EL PUMA, e a nota explicativa dizia:

“DIÁRIO SEMANAL, APARECE TODO MÊS”

Criticava todos os professores, pois sempre foi um rebelde.

Repetiu o 4º ano no Liceu Cervantes, onde continuou editando EL PUMA. Ao começar o 6º ano, foi advertido pelos pais, prometeu ser o melhor aluno da turma, cumprindo a promessa: obteve todos os primeiros prêmios, inclusive um livro da Embaixada da França, por ter sido escolhido “o colega ideal”. Ganhou-o por unanimidade.

Sempre foi um excelente desportista, e talvez não haja esporte que ele não tenha praticado - era presidente de todos os clubes desportivos da escola, além de dedicar-se ao escotismo.

Ingressou na Universidade Nacional para estudar Direito, porém não freqüentou mais que um semestre. Nessa época, colaborava como redator de La Razón e travou amizade  com a família do dr. José A. Moltalvo, que o relacionou com os padres dominicanos. Camilo resolveu fazer-se membro da Ordem.

GUZMAN CAMPOS -- Para Camilo, nos países subdesenvolvidos, as mudanças de estrutura se produzirão se houver pressão popular, e a revolução pacífica só é possível se houver concessões da classe dominante. A revolução  violenta é uma alternativa bastante provável, se não houver a compreensão dos dirigentes.

VALENCIA TOVAR, general do Exército Colombiano -- Creio que Camilo serviu seu ideal com tanta vontade, firmeza e devoção, como eu o fiz... Diferentes concepções colocaram-nos em campos opostos, quando ele modificou seus rumos.

Camilo foi o único sacerdote a quem tratei por Tu. A simpatia de outros tempos transformou-se em cordial amizade, e muitas vezes falamos sobre a Colômbia, pela qual ambos sentíamos amor apaixonado: seus profundos problemas sociais, a difícil conjuntura econômica. Em nossa conversas dividíamos inquietação e angústia pelos muitos males que afetam o nosso povo. Jamais, é importante afirmar isto, falamos de soluções sangrentas.

A 7 de janeiro de l965 surgiu, na bizarra história da nossa grande tragédia colombiana, um novo grupo revolucionário, conhecido desde então como o ELN - Exército de Libertação Nacional. Ninguém poderia supor então que Camilo Torres, ainda em pleno exercício sacerdotal, haveria de terminar por unir seu destino ao dessa guerrilha incipiente, e que com ela realizaria o único e último combate armado da sua vida.

É certo que, ao longo de acontecimentos precedentes, Camilo se havia mostrado um inconformado frente a diversos aspectos estruturais da sociedade colombiana. Tal inconformismo emanava da sua sensibilidade humana, da sua formação sociológica na Universidade de Louvain, do contato com a realidade universitária, da sua passagem pela Escola de Administração Pública e pelo Instituto de Assuntos Sociais. Sem os inconformados o mundo ficaria onde esta, ou não teria saído do primeiro dia da Criação...

GUZMAN CAMPOS -- “Lá vai a mãe de Camilo”, diziam os passantes da “Carrera Sétima”, principal artéria de Bogotá. Na verdade, dona Isabel Restrepo, viúva do eminente cientista Calixto Torres Umaña, com seu rosto doce e vestido negro, marcado por toda a nobre dignidade de uma vida admirável, oferecia aos populares, com bondosa simpatia, o semanário do seu filho: “Compre FRENTE UNIDO, o jornal do povo!!!

Que contrastes oferece a vida! Dona Isabel, imaginável só para brilhar nos círculos das mais alta aristocracia, se misturava com o povo. Doce mãe generosa que não podia negar ao filho a solidariedade muda, um alento, o gesto maduro de carinho, a tutela previdente, o sacrifício heróico para que avançasse cada vez mais passos até sua meta de homem comprometido totalmente com seu povo.

Comparo Isabel Restrepo Gavina com o personagem de Gorki, é o símbolo da mulher colombiana: fervorosa nas jornadas cívicas, decidida quando serve ideais.

VALENCIA TOVAR -- Patio Cemento... O lugar não figurava em qualquer mapa, nem o conheciam os próprios habitantes da região. Talvez tenha existido ali alguma morada campesina, uma plataforma de cimento para secar café. Aquela diminuta área, de uns 3  por 4 metros, anônima até 15 de fevereiro de 1966, haveria de fazer-se tragicamente famosa pelos acontecimentos que iriam ter lugar em suas imediações.

Nenhuma lógica poderia indicar para aquele homem, um sacerdote, nascido e tendo crescido numa cidade, o caminho perigoso da montanha com a qual ele não tinha afinidade alguma. Além de tudo devemos considerar a sua idade, que já se aproximava dos 40 anos.

Quando Camilo Torres aderiu à guerrilha (ELN) por que foi situar-se na área sob meu comando? Nossa antiga e cordial amizade (pelo menos da minha parte) traçava um paradoxo difícil de entender.

WALTER J. BRODERICK, ex-padre australiano -- A Ação Cívica do Exército Colombiano foi um ensaio, uma tentativa de manter os camponeses na inatividade. Naturalmente Camilo conhecia tal Plano, sabia que não era produto do cérebro do Coronel Valencia. Era de conhecimento comum que a Ação Cívica havia se desenvolvido no exército dos Estados Unidos, como técnica regular para combater levantes na América Latina. Foi induzida a Valencia Tovar e a centenas de oficiais durante os cursos de treinamento na base do US Army e Fort Bragg (Carolina do Norte), Fort Gullick (Zona do Canal do Panamá) ou em Fort Gordon (Georgia). Quando o coronel solenemente anunciava seus planos de Ação Cívica, simplesmente recitava uma lição aprendida dos seus patrões “gringos”.

Sob o comando de Valencia Tovar os soldados se consagravam com os camponeses e assim cortavam as linhas de abastecimento dos combatentes nas montanhas. Para apressar o enfraquecimento dos guerrilheiros, o Coronel encontrou formas sutis de acender chamas de discórdia entre os próprios líderes da contestação.

NORBERTO HABEGGER, autor do livro “Camilo Torres, o padre guerrilheiro” -- Tudo parece indicar que se tratou de hábil operação político-militar em que tomaram parte ativamente os órgãos de segurança antiguerrilhas. Na operação o Coronel Valencia Tovar, ligado intimamente ao General Ruiz Novoa, aparece, segundo alguns, como o responsável.

VALENCIA TOVAR -- A única verdade é que Camilo Torres Restrepo caiu em combate proposto pelo grupo guerrilheiro ao qual ele pertencia, com dois tiros de carabina calibre 30, disparados pelo sargento da patrulha emboscada pelo mencionado grupo sedicioso, acabando sua vida de forma quase instantânea. Não chegou a dizer uma palavra. Não quis render-se, nem pediu clemência.

Não foi Valência Tovar quem procurou Camilo Torres para matá-lo. Foi Camilo quem se uniu a um grupo armado contra a lei colombiana e buscou a luta por meios violentos, enfrentando as forças legítimas comandadas por seu velho amigo.

Foi o guerrilheiro Fábio o primeiro a abrir fogo com sua Madsen. As detonações percorreram toda a linha de guerrilheiros e retumbaram pela selva. Caiu o tenente, ferido por dois balaços, também o soldado e o sargento que assumira o comando. O fogo continuava golpeando a fração armada desintegrada, cada homem buscou abrigo por trás das árvores - e os poucos sobreviventes devolveram o fogo que brotava como granizo da espessura da mata.

Dois vultos saíram do emaranhado, eram de elevada estatura, e foram em direção ao tenente e ao soldado morto. O sargento os recebeu com uma rajada. Um dos vultos caiu por terra e quedou-se  imóvel. O outro correu de regresso à cobertura do mato, perseguido por nova rajada.

O destacamento (fração) que se envolvera no choque não atuava sob minhas ordens diretas, nem cumpria tarefas impostas pelo Comando da Brigada, mas de um batalhão subordinado. Mas como é fácil tergiversar os fatos! Eram tropas minhas, de qualquer maneira...

ISABEL -- Foi o então Coronel Álvaro Valencia Tovar quem deu a ordem para assassinar meu filho, apesar de haverem sido amigos. Valencia Tovar visitava com freqüência minha casa em Bogotá e “instigava Camilo para que ingressasse nas guerrilhas”. Ele, o coronel, me escreveu cartas após a morte de Camilo.

VALENCIA TOVAR -- Na obscuridade da pequena fazenda, iluminada apenas por duas lâmpadas de querosene, jazia sem vida Camilo Torres Restrepo. Outros quatro corpos imóveis lhe faziam escolta silenciosa na noite nublada e sem estrelas. Haviam militado com ele até o instante em que a fatalidade calou seu grito revolucionário em um fugaz encontro que cortou suas existências.

Com a barba crescida, o corpo que fora razoavelmente corpulento estava delgado, os cabelos compridos desgrenhados em nada recordavam o antigo corte sacerdotal, o rosto de Camilo era contudo reconhecível ao primeiro olhar.

Junto ao corpo inerme, eu meditava nos estranhos paradoxos que traz a vida. Camilo havia sido meu amigo. Nunca, nem mesmo quando seguiu os caminhos perigosos da revolução, que acabaram por levá-lo ao enfrentamento com tropas sob meu comando, deixei de considerá-lo como tal. Circunstâncias que escapam ao controle humano nos situaram em campos opostos de uma luta que eu não propus...

É difícil expressar a profundidade dos sentimentos que me saturaram nessa hora sombria, ali à frente do cadáver empalidecido pela morte...

BRODERICK -- O Ministro da Guerra dera instruções a esse Comandante da V Brigada: “Varrer o ELN, empregando os métodos que julgasse convenientes”.

VALENCIA TOVAR -- Calle 100, Bogotá, 7 de outubro de l971, 7 horas da manhã. Um veículo se colocou ao lado do que eu ocupava.

Um pensamento cruzou meu cérebro como uma centelha: “Este tipo não está brincando!” Num reflexo veloz, atirei-me ao chão do auto, sob uma rajada de balas, ouvindo o ratear da arma que golpeava bem dentro dos meus ouvidos. Dois tiros atingiram-me nas costas, outro feriu o motorista, quebrando-lhe a clavícula, detendo-se a milímetros da aorta.

As duas balas que penetraram em meu corpo alojaram-se, uma contra a coluna vertebral e a outra circulou pela cavidade abdominal, fazendo estragos, e deteve-se perto do pulmão esquerdo

Várias rádio-emissoras passaram minutos depois a receber chamadas anônimas, anunciando o justiciamento, realizado pelo Exército de Libertação Nacional, do assassino de Camilo Torres e verdugo do povo colombiano.

Perdia sangue em abundância, enquanto era levado ao hospital, por um carro que por ali passava. Quis mexer as pernas e elas não me obedeciam. A perspectiva de tornar-me um paralítico levou-me a desejar a morte. Apelei para o que me restava de forças e consegui mover as pernas -- senti um alívio infinito porque percebi que, se vivesse, não seria um inválido.

GUZMAN CAMPOS -- Todo homem é conseqüência de sua própria vocação. Se é absolutamente fiel a ela, o destino pessoal pode se transformar num sacrifício necessário.

Camilo é a resultante da sua vocação, constitui um caso inaudito. A Colômbia o engendrou e o pariu. Pariu o inaudito. E o entrega, à América e ao mundo, com a certeza de uma ressurreição inevitável.

Bárbaros! Camilo não morreu! É o grande símbolo da Nova América, com ele nasce a esperança!

[O padre guerrilheiro, in memoriam de Camilo Torres, São Paulo, Versus no 28, janeiro de 1979, pp.16-18]. 
 




CIRCO CYNEMATOGRÁFICO -- BRUNINHO BARRETO, O GROSSO QUE SATISFAZ
Por Luis Rosemberg

“Não é a cachaça que estraga esse país, meu caro, é a burrice”
(Lima Barreto)


A história do colonizado, não é a história da história, mas a história do colonizador. Ele determina não só a ideologia do real, como todo o processo de produção. A “antiga” oligarquia financeira, volta com o dilema de renovar: organização pra essa gente é a reprodução do capital e nada mais. Acho ótimo que este ou aquele filme dêem dinheiro; é fundamental  para a sobrevivência dos cineastas. Mas é só o dinheiro que se busca, numa possível relação política com o cinema??? Burramente estamos passando do mercantilismo colonial para o capitalismo selvagem -- e se entendendo isso como REVOLUÇÃO!!!. O instinto sanguinário do atual  processo de produção cinematográfico gera e restabelece a euforia de “cineastas” colonizados. Tudo isso pra dizer que com “AMOR BANDIDO” Bruno Barreto conseguiu fazer o seu pior “filme”. E que ao lançá-lo em São Paulo, entrou em campo se defendendo  de tudo e de todos. De cara, crítica os intelectuais do mesmo modo que Goebbels. Acha que a “geração das drogas foi mais fundo no desespero”. Tua geração, malandro, de viva só tem a tua cabeça dura e vazia... Criticar os campos de concentração na Rússia e defender o capitalismo selvagem americano é o que se quer, para se manter esta nossa quitanda enfeitada pela dor real e profunda da FOME, O LACAISMO, se você também não sabe, é a melhor escola da dependência. Se criticar (e eu me dou a este direito) as baboseiras que vocês andam fazendo ou dizendo, é ser “patrulheiro”, então vocês realmente estão atolados na merda até os olhos...

O teu “novo” trabalho me causou horror, pelo ódio que você tem a liberdade, à criatividade, a mulher, ao desejo, ao erotismo e ao cinema de Nicholas Ray e Glauber Rocha. Passando por Godard, Pasolini, Straub e tantos outros. Agora eu entendo o porquê desse teu flerte com o Cacá, no que toca aos “patrulheiros”. O melhor seria que AMBOS fizessem filmes mais conseqüentes, menos novelão e mais verdadeiros, CONTEMPORÂNEOS, se possível. A célebre fórmula do discurso “organizado”, morreu com o mestre Rosselini. Insistir com o método é caducar na EVOLUÇÃO. Para ser mais claro, no que toca à ANÁLISE da tua juventude, você esta mais por fora que o umbigo das tuas duas vedetinhas. Aliás os teus ATORES nunca estiveram tão maus, tão feios - como neste teu cineminha de imitação  vulgar do produto estrangeiro. No que toca a juventude, Reich dizia: “A juventude de todas as gerações representa o passo seguinte da civilização. A geração mais velha tenta conservar a juventude no seu próprio nível cultural. Os motivos disto são de natureza predominantemente irracional: a geração velha teve de resignar-se e por isso se sente ameaçada quando a  juventude ultrapassa o que ela própria não pode realizar. A rebelião típica dos adolescentes contra o lar  paterno não é uma manifestação neurótica da puberdade, mas uma preparação para a função social que esses jovens terão de desempenhar mais tarde, como adultos. Eles têm de lutar pela sua própria capacidade de pelo seu progresso. Sejam quais forem as tarefas de civilização e cultura que a geração nova tem de enfrentar, é sempre o medo da geração mais velha quanto à sexualidade e ao espírito de luta do jovem o que o inibe” Ora, o Bruninho com o seu “AMOR BANDIDO” pretende analisar o que ele entende por juventude, só que no nível baixo de novelão das sete. “O Pecado Rasgado” do Barretinho. Nem mesmo assume as perversões produzidas pela impotência do novelão e muito menos os conflitos reais da geração que ele diz pertencer. “AMOR BANDIDO” é um “trabalho” amarrado, feio (pessimamente enquadrado e pior ainda impresso), sem LIBERDADE, moralista e por lástima pretende ser uma CRÍTICA a Copacabana: “o monumento de concreto que o capitalismo selvagem ergueu às margens do Atlântico”, à classe média e aos “heróis” da repressão...

Claro que fazendo o pior “cinema” do planeta, o Bruninho tem mesmo que se sentir seguido por patrulheiros e outros fantasmas do seu LIMITADO cotidiano. Aliás, de tanto fazer mau cinema, o menino acabará um dia acertando.  E o que me parece mais chato, é que pelo visto sob as ordens do papai, o garoto parece, ser mais eficiente. Agora eu entendo o porquê de tanto ódio a “ESTÉTICA DA FOME”. Claro, FOME para Bruno é o que ele nunca conseguiu VER, VIVER ou SENTIR. É dos tais “cineastas”, que almeja ser DIRETOR  mesmo. Pobre é a sua visão de mundo. Pobre é o seu universo. Pobre é a sua inteligência. Mas como diz Oswald: “O DINHEIRO SÓ É ÚTIL NAS MÃOS DOS QUE NÃO TÊM TALENTO”. Bruninho é o intelectual PINOTE dos novos tempos a procura do seu Abelardo. Está por fora de tudo e de todos, cultuando o passado ideológico de Hollywood.

Num lamentável depoimento dado à jornalista Maria da Paz, disse no Folhetim que não existia dirigismo na EMBRAFILME e que todos recebiam financiamento, apontando Rui Guerra como um exemplo de mau caráter por criticar e receber. Pelo que me consta, Rui por ser um cineasta, coisa que muitos não são, não recebeu FINANCIAMENTO para  “A QUEDA”. Mas um mísero adiantamento de distribuição, pois o filme já estava devidamente rodado em 16 mm. O mesmo de sempre aconteceu comigo, com Rose Lacreta, agora com Zé Celso e para que você saiba, acabaram de negar o mísero avanço de distribuição para TONACCI, que é sem dúvida um dos nossos maiores cineastas. Particularmente guardo  muitas simpatias pelo ROBERTO FARIAS, mas que existe dirigismo na EMBRA, existe. Mas como o seu papai manda, mama e desmanda na Embrafilme, é claro que o filhinho do pai-patrão não poderá nunca ver dirigismos na Embrafilme. É que nada mais é, que uma empresa que reflete bem o sistema em que vivemos. Ora, uma Embrafilme justa, necessitaria um sistema justo. E isso entre nós não é possível. Mais ainda: ninguém está usando a repressão pra não fazer. Vocês é que a usaram para enriquecer. A repressão EXISTE MESMO, e é tão forte que se você não sair dando apoio a Geisel, Barretão, Golberi, Arena e já agora a Figueiredo, nem trabalho você consegue... E veja: a sexualidade vista por Bertolucci ainda que ingênua em “1900” é sublime. Já a tua maneira de ver é comércio puro, cheira a sabão em pó. 

Bote as mãos no peito, ao reverenciar o capitalismo americano. Condiz mais, com o que você realmente é. “TEU” cinema na desesperada tentativa de ser o que já se deixou de fazer, mesmo em Hollywood, não é outra coisa que a sagrada aliança  com o capital, e nada mais. Pena que a METRO seja deles e não vossa. Mas quem sabe, numa das próximas vítimas do VALENTI, ele não te convida para filmar com John Waine nos esqueletos da UNIVERSL?!?!?!?!. Folclórico quando necessário, Bruninho defende A ARTE PARA O POVO, incapaz de se sentir ultrapassado pelo próprio povo. Vide os movimentos sindicais, a luta política e o crescimento nas urnas da oposição. Não dá mais  pé cultuar a preservação da “união entre o trabalho e o capital”. E o “AMOR BANDIDO”, só é isso. Então, se permite afirmar que: “Num certo sentido DONA FLOR é mais político  que muitos filmes que se dizem políticos”. Ora, o jovem além de não entender nada de política, pouco sabe de cinema e menos ainda do estado de prazer que ele tanto defende equivocadamente. Segundo Bruninho: “Cinema é antes de tudo audiovisual, a técnica está aí para ser usada. Esse negócio de “Estética de Fome” é muito folclórico, é uma atitude parnasiana, de poeta da época vitoriana. Vivemos a era da cibernética; tal o “2001, Uma Odisséia no Espaço”, um filme que não teria sido feito se não fosse a técnica”. Com uma DIVÍDA EXTERNA EXTRAVAGANTE, Bruninho formado pelo Pato Donald e pelo Mickey, ainda vive a era cibernética da Hollywood - TV Globo. Se amanhã a cibernética importada e obviamente cultuada for ultrapassada pela filobernética, Bruninho será o primeiro a incorporá-la ao seu estado de prazer equivocado. Se esquece, ou não quer ver que vive no BRASIL entre o desespero da fome braba e o desemprego galopante. Entre o corpo torturado pelos computadores do imperialismo e a cabeça anestesiada pela BURRIFICAÇÃO dos meios de informação. Bruninho é dos tais que acha que a droga foi “a pontuação histórica de uma geração que desbundou”. Ele e toda a nossa polícia . Será que  não tá dando pra ver um pouquinho mais adiante??? Assimilar um pouco que os exilados são algo mais na vida, no sofrimento e na resistência  que a tua cabecinha dura não consegue entender, pois sem querer, a tua escola é exatamente a da repressão absoluta!!!... A “ESTÉTICA DA FOME” Bruninho, lamentavelmente ainda é  o nosso real. Olhe nas ruas sem os filtros KODAK’S e veja o povo. Tire as lentes da tua tecnologia importada e sinta o cheiro do povo. E mais:  essa de dizer que o povo participa com interesse do “cinema” que vocês fazem, é de cortar as asas de um agente pastoral. Na prática o que se vê, é o horror do real. A consciência dominada e o povo até ontem, sem um discurso político próprio. E o que é pior: a dilaceração cotidiana da informação de VOCÊS, que  se colocou à serviço do status quo. Hoje sou e somos OPOSIÇÃO COM ORGULHO. A compactuar com a xaropada das vossas aspirações, do vosso quietismo maniqueista, eu prefiro a loucura, o isolamento. Não a piração das droguinhas fornecidas pelo imperialismo, mas o toque mágico na longa viagem sem volta. Não sou santo, sistema ou repressor. Que me desculpe o amigo ZUENIR VENTURA, mas mais uma vez me coloco contra  este tipo de cinema que em nada contribui para uma conscientização do público, do cinema e dos próprios autores. A realidade como sempre  ausente solidifica as bases desse cinema industrial. O que resiste, existe em si, de modo independente ao próprio cinema. E no que tudo explica o real, nada explica  nada. Eis a perspectiva dos monopólios da “informação”: UM DESASTRE TOTAL.

Luis Rosemberg, nosso crítico, tem cadeira cativa na história do cinema brasileiro (e destes 14 anos). Sua independência e coragem, além de seu talento,o transformaram numa espécie de personagem que McCarthy adorava caçar nos seus bons tempos. Rosemberg é um dos cineastas mais proibidos do país e dirigiu Crônica de um Industrial, e Assuntina das Américas.

[Luis Rosemberg, Circo Cynematográfico, Bruno Barreto, o grosso que satisfaz, São Paulo, Versus no 28, janeiro de 1979, pp.32-33].

 




DO OUTRO LADO DA LINHA, LEONEL BRIZOLA, DO EXÍLIO...
da sucursal de Porto Alegre


VERSUS - Como vários outros líderes sindicais do País, entre os mais reconhecidos pela classe, Luiz Inácio da Silva, o Lula, considera que nem o MDB, nem o PTB são partidos que possam vir a defender os interesses dos trabalhadores. E hoje no País se discute a criação de um partido de trabalhadores, sem patrões, classista.

LEONEL BRIZOLA -- Olha, eu tenho pessoalmente muita simpatia pelo Lula, que eu não conheço pessoalmente. Como tenho muita simpatia por outros  personagens da vida do País, que surgiram, que atuaram durante esse tempo. Quer ver, por exemplo, um pelo qual eu tenho uma grande simpatia pessoal? É o senador Teotônio Vilela. Tenho realmente uma grande simpatia  por ele, embora pertença ele a Arena.

No caso do Lula ele está amadurecendo para a vida pública. E eu tenho esperanças nele, acho que ele, com o tempo, vai tomando conhecimento mais a fundo de certos elementos históricos, de  todas as lutas sociais do passado... e irá ajustando a sua posição.

Quanto a esse movimento sindicalista, eu o vejo com grande simpatia, porque eu acho que uma das questões  fundamentais para o nosso País, para o seu desenvolvimento, é ter um movimento sindical consciente, livre, independente. Sobretudo consciente com as suas responsabilidades, não apenas  com a sociedade em conjunto, mas especialmente com as classes e categorias que representam.

Eu acho que o setor sindical, no nosso caso que pretendemos nos empenhar pelo ressurgimento do PTB, é uma questão da maior importância. O trabalhismo é uma espécie  de irmão gêmeo do sindicalismo. Nós somos como os irmãos siameses. Embora hoje muitas questões do relacionamento do partido com o sindicato precisam ser reconsideradas. Por exemplo: nós hoje vemos que é nosso dever promover o desenvolvimento  do sindicalismo independente, esclarecido, autêntico. Mas sem que os sindicatos  sejam dependências do partido, sejam correias de transmissão do partido. Ao contrário. O partido deve ser mais dependente do sindicato  que o sindicato do partido. Que os sindicatos sejam uma fonte  de informação para o partido  e não um elemento de proselitismo do partido.

Eu realmente, vejo com simpatia tudo que puder ser feito. Acho que o MDB como frente geral das oposições deveria realizar um grande trabalho promocional de revitalização do sindicalismo brasileiro, que sofreu muito durante este tempo.

VERSUS - No Rio Grande do Sul, os deputados estaduais Américo Copetti e Elygio Meneghetti e a Tendência Socialista do MDB e, a nível  nacional, a Convergência Socialista levantam a inviabilidade de um partido como o PTB que o senhor propõe, defender ao mesmo tempo os interesses de patrões e empregados, latifundiários e peões.

LEONEL BRIZOLA - Olha, no meu ponto-de-vista, eu vejo com simpatia que expressões da nova vida pública brasileira estejam discutindo, essas questões. Especialmente quanto à idéia de um partido socialista ou qualquer outro. Isso é sinal de que está ressurgindo o pluralismo e realmente nós vamos ingressar num período de renascimento, de criatividade.

Agora, na minha visão, no meu ponto-de-vista, eu não vejo condições, não vejo ambiente, não vejo que seria ajustado à nossa realidade a tese de um partido de classe. Acho que o problema brasileiro ele se enquadra muito dentro de uma visão terceiro-mundista.

Nós temos problemas muito sérios, como, por exemplo, a situação dos contingentes imensos da nossa população que são marginais. Então, antes de qualquer outra questão, nós precisamos reintegrar, integrar esses contingentes à vida do País, à comunhão nacional.

Sem a integração desses contingentes marginais, não existe classe alguma de assalariados que encontre solução verdadeiramente para os seus problemas. Porque as portas das fábricas sempre estarão cheias de gente oferecendo mão-de-obra desvalorizada. E assim por diante, só para argumentar.

Agora, no caso nosso do PTB, nós pretendemos abranger, numa visão global, o conjunto do País, dentro de uma perspectiva que vise, com sentido pluralista, desenvolver uma política popular. Evidentemente que as classes assalariadas, os trabalhadores, serão uma espécie de fonte de inspiração, serão uma espécie de espinha dorsal desse movimento.

[Do outro lado da linha, Leonel Brizola, do exílio, São Paulo, Versus no 29, fevereiro de 1979, p.13].
 




ERNESTO CARDENAL, JURAMENTO E REVOLUÇÃO


Fazia muito sol naquela manhã. Às oito e meia, e depois de uma curta e compreensiva espera, chegou a hora de conversar com Ernesto Cardenal. Ele e mais dois integrantes da Frente Sandinista de Libertação Nacional  ocupavam a mesa em que se serviriam do último desjejum em Quito. Os diários informavam sobre as negociações entre a Frente Ampla de Oposição, os mediadores da OEA, e a ditadura somozista. Ernesto Cardenal chegou a Quito na qualidade de chanceler da Frente. Hoje, sua tarefa é a de buscar a solidariedade “moral e efetiva” que  os povos do mundo tem para oferecer ao povo da Nicarágua. Eu sempre quis fazer a Cardenal duas perguntas. Isto porque dois dos assuntos mais debatidos na América Latina são a posição da igreja frente ao processo de libertação dos povos e o compromisso do intelectual com essa luta. Em Cardenal, sacerdote, poeta e combatente, estão as respostas.

P - Como se integrou o sacerdote Cardenal ao processo de libertação da Nicarágua?

R - Meu compromisso com Deus tinha que ser um compromisso com o povo, e eu nunca estive longe disso. Quando fundei a comunidade de Solentiname, estava sempre preocupado com os acontecimentos do país, e nossa principal tarefa era conscientizar os camponeses e prepará-los para a revolução. Já contei outras vezes como o que mais nos radicalizou foi o Evangelho que líamos e comentávamos com os camponeses na missa, todos os domingos. E esses comentários foram sempre de uma grande profundidade teológica.

Os jovens de minha comunidade entenderam que para serem fiéis ao Evangelho, deviam ser revolucionários. E sendo revolucionários deviam entrar para Frente Sandinista. Eles desejavam deixar a comunidade e ir lutar na montanha. Mas, a direção da Frente Sandinista comunicou que a comunidade devia manter-se como estava porque tinha uma grande importância política, tática, e estratégica. Devíamos manter-nos ali até nova ordem.

E essa ordem chegou quando a Frente Sandinista preparava sua ofensiva de outubro do ano passado. Então a ajuda dos jovens de  minha comunidade foi solicitada. A colaboração deles para a luta armada. E eles aceitaram com prazer, e passaram a treinar ali em Solentiname. Rapazes e também moças. Quando chegou a hora, participaram do assalto ao quartel da cidade de São Carlos junto com outros companheiros, principalmente dessa zona. O fizeram muito valentemente e com grande êxito. Quase todos os guardas de São Carlos caíram mortos ou feridos, menos uns poucos que conseguiram escapar. Tivemos um ferido, que depois foi assassinado pela Guarda Nacional.

Três jovens de minha comunidade foram capturados. Um deles foi libertado com a ação do Palácio Nacional dirigida pelo comandante Zero. Os outros dois estão desaparecidos, e tememos que tenham sido assassinados. Os demais jovens de Solentiname estão agora incorporados na guerrilha da Frente Sandinista que está combatendo na Nicarágua, e eu me encontro cumprindo estas tarefas no exterior.

Nossa comunidade, depois do assalto ao quartel de São Carlos, foi totalmente arrasada pelo exército. Ali não  restou nada.

(Ernesto Cardenal leva as mãos ao rosto. Aperta os olhos com força como querendo  afastar alguma dor. Suas respostas são pausadas mas enérgicas, e sua atitude reflete uma profunda indignação).

P - Em relação à Igreja, qual é o comportamento frente à ditadura?

R - Está opondo-se muito fortemente contra Somoza. Especialmente o arcebispo. Também os demais bispos, mas estão sofrendo uma grande pressão de parte do Núncio do Vaticano para que não se oponham muito fortemente a Somoza. Eu denunciei isso em Roma, numa entrevista coletiva. O Núncio na Nicarágua é somozista. Além dos bispos, há muitos sacerdotes que dão seu apoio e estão lutando com o povo. Muitos deles colaboram com a Frente Sandinista, e alguns militam nela. Há três que estão lutando  como guerrilheiros nas montanhas, de armas na mão. 

P - Quais são as evidências da pressão que exerce o Núncio sobre os bispos?

R - Sabemos das conversas deles com os bispos. O sabemos porque os bispos mesmos nos disseram.

P - O Papa já se pronunciou sobre a situação nicaragüense?

R - Não. Não se pronunciou.

P - E  o Papa Paulo VI o fez?

R - Eu denunciei também em Roma, que Paulo VI havia enviado uma benção especial a Somoza, pelo arcebispo de Manágua. Mas o arcebispo se negou a dá-la, e a manteve em segredo, revelando o fato apenas ao seu clero presbiterial e pedindo silêncio. Mas eu o fiz público em Roma, fazendo ver que essa tinha sido uma manobra do Núncio na Nicarágua.

P - Que acolhida teve a denúncia?

R - Os jornais de Roma lhe deram muita importância.

P - Em você existe também o compromisso do escritor, do intelectual com o processo de libertação da Nicarágua...

R - Como poeta, eu sempre estive comprometido com a luta de meu povo, e minha poesia  sempre foi inspirada pela revolução. Essa é a minha musa, a revolução.

P - O que ocorre com a poesia quando há uma ofensiva sandinista?

R - Eu tive que deixar de escrever desde que saí de minha comunidade de Solentiname. Tive que sacrificar isso para dedicar-me a outras tarefas mais urgentes, que são as da luta do meu povo. Até que triunfemos, não penso em escrever poesia.

P - Neste momento existem na Nicarágua alguns poetas que, como você, se alinharam na luta de libertação?

R - A poesia na Nicarágua sempre teve uma tradição de compromisso político. Eu publiquei uma antologia de poesia nicaragüense para mostrar, precisamente, essa poesia social, política e revolucionária. Os poetas mantêm, isso sim, distintos graus de compromisso com a luta. O que se comprometeu mais com a revolução, dos poetas vivos, sou eu. Mas eu digo dos poetas vivos, porque o poeta mais revolucionário da Nicarágua, o mais comprometido, foi nosso mártir Leonel Rugama. Um grande poeta que morreu aos vinte anos, lutando como guerrilheiro sandinista na guerrilha urbana em Manágua. É um dos nossos grandes heróis e também um de nossos grandes poetas, apesar de ter morrido aos vinte anos.

[Ernesto Cardenal, Juramento e Revolução, São Paulo, Versus no 29, fevereiro de 1979, pp.18-19].
 




MOACIR FÉLIX, POESIA, CRIAÇÃO
Por Marcos Magalhães

Moacyr Felix é editor da revista “Encontros com a Civilização Brasileira” e autor de “Pão e Vinho”, “Canto  para as Transformações do Homem”, “Neste Lençol”, “Canção do Exílio Aqui” e “Invenção de Crença e Descrença”.


P - Como você vê a produção poética no Brasil hoje?

R - Bom, eu acho que  há realmente uma grande produção de poesia, neste momento, no Brasil. Toda ela muito diversificada, espelhando, na sua parte mais ostensiva, na sua parte mais evidente, na sua produção maior, a realidade política , social e econômica desses últimos anos. E como se estivesse, por assim dizer, estourando a tampa de uma panela. Esse setor de poesia, portanto, importante do ponto de vista sociológico, importante  sob o ponto de vista de uma análise política, importante no conhecimento  do país onde vivemos, evidentemente bem também emocional, traumatizado e muitas vezes cheio de equívocos quanto ao fazer cultural, quanto à própria criação literária, quanto àquilo que deve ser o poema, aquilo que é a poesia ou o alcance, em última análise, de um bom poeta. 

Então, o que você tem é uma produção grande, desde os chamados poetas marginais, que não têm oportunidade de encontrar editores, desde a censura até o pagamento  de uma edição de livro, e que proliferaram nesse país, sobretudo nas grandes cidades. São poetas típicos dos grandes centros, dos centros mais politizados. É evidente que fazem uma poesia humanamente do maior interesse, e , às vezes, muito apressada no sentido de se guiar mais pela aparência dos fatos. Isto vem acontecendo com esse setor chamado “poesia engajada”, que é um setor que eu acho que a gente deve estimular. Eu sempre pertenci a ele, desde que cheguei de Paris em 1954. A minha luta, então, é para que o poeta se volte para sua história, e que faça poesia sobre o seu tempo, sobre a cidade em que vive, sobre a rua onde ele mora, sobre o homem com quem ele convive, sobre seu cotidiano.

P - Esses poetas novos que estão surgindo estariam na linha de poesia engajada?

R - Uma boa parte desses poetas novos, e alguns com grande  força, estão dentro dessa linha de poesia engajada. A mim, me chamam mais a atenção aqueles que já superaram aquela fase do berro, do grito, do trauma, do apenas colocar-se emocionalmente no papel e protestar aos gritos contra uma determinada situação que ele considera desumana. Na realidade, isso não é bem poesia, isso é um texto válido do ponto de vista cultural, mas não é poesia na medida em que não tem meditação, porque  eu sempre aproximo  poesia a um pouco de filosofia: o poeta tem que pensar o mundo em que está. Não adianta apenas reclamar das aparências das situações sociais, políticas e econômicas. O que acaba acontecendo é que se analisarmos esses poemas com maior profundidade, não encontraremos fundo neles, às vezes eles acabam dizendo contrário do que querem, na medida em que são puramente emocionais e sem aquele trabalho, não de artesanato, pelo amor de Deus! É isso que eu quero frisar: a forma é a conseqüência de um conteúdo, o que existe é algo a ser dito, e na medida em que você consegue expressar esse algo é que você luta pela forma. Então, eu não estou falando do ponto de vista de um artesanato falho. Ao contrário, eu acho que essas falhas de artesanato  aparecem como conseqüência de uma falha de meditação sobre a situação, de um aprofundamento cultural. É preciso estudar, o poeta tem que colocar  isso na cabeça  de uma vez por todas, o poeta tem que estudar filosofia, tem que estudar história, tem que estudar economia, senão você nunca vai  saber porque um grande poema é diferente  de um pequeno poema, porque formalmente às vezes os que são perfeitos , mas apenas um é uma pequena dica sobre o mundo, e o outro é uma meditação sobre a vida e sobre o mundo.

Bom, nesses poetas jovens, talvez eu faça injustiça , porque numa entrevista  a gente cita rapidamente, existe em Minas um grupo do Antonio Barreto, por exemplo, autor  de Sono Provisório, que recebeu o prêmio Remington. Como aquela equipe de Belo Horizonte composta por Adão Ventura, Márcio Almeida e, dentro de uma outra linha, mas também com grande consciência  de um fazer poético, um Paschoal Motta. Em São Paulo, me chama muito a atenção um pessoal mais novo, numa poesia engajada; tem o grupo Paulo Nassar, Aristides Klapke, ligados  àquele grupo do Paraná, do Domingos Pelegrini, da cooperativa de escritores, o Reinaldo Atem. Em Brasília, também considero que estão fazendo boa poesia, embora não engajada, nesse sentido evidente da palavra. Na verdade todo bom poema é engajado.

José Godoy Garcia é um poeta que também dou bastante importância, porque seus poemas são dos poucos, que nós temos, voltados para o campo, sobre a situação do homem no Araguaia, sobre o que é um pote de barro, o que é  uma laranja, o que é uma mulher lavando roupa na beira do rio...

Em Goiânia, podemos destacar um Gabriel Nascente, um rapaz de grande força e garra.

Esses poetas do interior  não estão tendo vez nos grandes centros porque, infelizmente, a literatura é feita através de grupinhos, por circunstâncias outras nem sempre ditadas pelo  valor da obra literária.

Infelizmente, hoje, a indústria cultural tem a mania, para faturar, seja no disco, seja na música , e agora também na  literatura, de lançar as vedetes. Em lugar de se falar de trinta ou quarenta músicos da maior qualidade  que estão fazendo música por esse Brasil todo, você salienta um Chico, num determinado  momento, ou um Caetano Veloso, em detrimento do geral. É assim mesmo na poesia, então é como se tivesse um holofote para uma só pessoa e, infelizmente, às vezes, os poetas entram nesse jogo, e a poesia fica competitiva e carreirista.

Continuando a citar nomes, então, no Pará você tem um Porantin, livro de João Jesus Pais Loureiro, poema de primeiríssima qualidade sobre a Amazônia. No Amazonas, você tem, fazendo uma poesia autêntica,  um Bacelar, autor de Flauta de Barro, você tem um Elson Farias, também bom poeta. No Ceará, o Francisco Carvalho, já com vários livros publicados, e infelizmente não tendo ainda a repercussão que merece ter aqui.

Você vê quantos poetas existem nesse país  e que mereciam ser conhecidos e que não são por serem colocados atrás de outros  que estão com mais evidência. Você tem, por exemplo, no Maranhão , um Lauro Machado, um José Chagas, excelentes poetas.

Eu poderia continuar essa lista, você vê que ela vai longe, e eu sei que cometi injustiças. Mas, o que é importante é que está amadurecendo  essa poesia cada vez mais voltada para a história .

P - O que impede um maior consumo de poesia no país?

R - Infelizmente, a poesia,  primeiro, é pouco divulgada. Segundo, o livro de poesia, na medida em que é divulgado, é dentro do sistema capitalista, ou seja, sai por uma empresa que se rege pelo capitalismo. Então, na medida em que 90 dias  depois de sair o livro, você não tenha vendido quase que 50% da edição, para a empresa começa haver prejuízo. O empresário fica cauteloso na venda de poetas. Sobretudo, existe um grande problema que é a distribuição: você faz o livro e o livro quase que sai clandestinamente; o livro não é divulgado , as livrarias não operam  como deviam. Ai é que aparece nosso subdesenvolvimento, guarde sempre essa idéia. Paris tem mais livrarias que o Brasil todo, só isso já é um dado fundamental, 94% do povo alemão compra livros, e não precisa dizer mais. Nós com 110 milhões de habitantes, temos tiragens médias de três  mil exemplares, e que levam  um ou dois anos  para serem vendidos, normalmente.

P - Entre os títulos editados hoje, poucos são de poesia, não?

R - No momento, publica-se  mais poesia  do que em tempos anteriores. Eu posso mostrar uma série de produções de livros feitas por pequenos editores, feitos por cooperativas, feitos pelo próprio autor  às vezes. Livros até mimeografados e espalhados por todo esse país. A divulgação da produção  poética nunca esteve tão grande, nunca foi tão efervescente, apesar de tudo.

P - Está se fazendo  então muita poesia engajada?

R - De um modo geral, sim, mesmo porque eu acho, como lhe disse, que todo bom poema  é engajado. Porque você pode fazer um poema aparentemente individualista, que não deixa de ser um testemunho sobre o que um determinado sistema de vida faz com o ser humano. Ele próprio já é uma peça testemunhante de a que ponto chega o ser humano em termos de solidão e desespero. Eu prefiro isto, do que o outro que insinceramente, inautenticamente, panfletariamente, ou apenas em termos publicitários força um engajamento, uma generosidade, ou um falar sem procuração da situação do operário, do trabalhador, sem ter meditado  sobre essa situação, sem saber o que é  capitalismo, socialismo, o que acontece no momento na situação internacional, o que é realmente um operário, o que é classe social, ou seja, esse, de um modo geral, é menos engajado do que aquele que se apresenta tal como ele é.
[Marcos Magalhães, Moacyr Félix, Poesia, Criação, São Paulo, Versus no 29, fevereiro de 1979, pp.36-37].  




UM LUÍS BONAPARTE
Por Jorge Pinheiro


O termo bonapartismo, como caracterização de regimes e governos, e em especial como estilo personalista de ditadores, foi cunhado por Karl Marx, em sua análise do golpe de estado de Luís Bonaparte, sobrinho do grande Napoleão.

No “18 Brumário”, Marx analisa as intenções e razões do golpe, mostrando como diante da crise de direção da burguesia, do acirramento das contradições sociais, e da crescente força do movimento de massas, a única saída para a burguesia era um governo forte, com base no aparelho militar, que se colocasse acima dos interesses imediatos de sua própria classe.

Ou seja, surgia o governo de arbítrio, acima do Legislativo e do Judiciário.

O termo passou a fazer parte da terminologia política do marxismo, enriquecida posteriormente por dois grandes teóricos, antes preocupados com a tendência do surgimento de governos fortes em nosso século: Gramsci e Trotski. Por razões táticas, já que estava preso, Gramsci adota um sinônimo para bonapartismo, cesarismo. E analisa todo o período da Itália pré-fascista, principalmente.

E Trotski faz uma previsão: a de que a tendência nos países dependentes e semi-coloniais era a do surgimento de governos de tipo bonapartista, devido à própria fraqueza estrutural do capitalismo nesses países.

É claro que um bonapartismo não é igual a outro. Nunca teremos dois governos bonapartistas inteiramente iguais, mas sempre terão características centrais semelhantes; a sua própria razão de existência será sempre uma aguda contradição e choque de classes e o debilitamento político da burguesia. Daí o papel das forças armadas, as restrições às liberdades e o surgimento de um Executivo que exerce o papel de juiz, de árbitro.

Nesse sentido, a partir de 1964, todos os governos que tivemos forma bonapartistas. Mas o de Geisel (possivelmente como o de Castelo Branco) foi o mais típico dos quatro, já que não somente arbitrou, mas equilibrou-se  entre interesses distintos, às vezes fazendo acordos, às vezes golpeando.

Assim, entendendo o estilo de Geisel como uma conseqüência (ao menos em parte) do momento histórico em que governou, vamos traçar um perfil do “estilo político” do general, sem perder de vista algo muito mais importante: desde o início de seu governo tinha como meta criar as condições para uma abertura política no Brasil, sem, no entanto, desestabilizar o poder burguês.

Choque militar e estilo bonapartista

O presidente Ernesto Geisel é o primeiro presidente do movimento de 1964 que exonerou um ministro do Exército. Também foi o primeiro a punir ostensivamente um general do Exército, Ednardo D´Ávila Mello, em janeiro de 1976. E mandar prender em 1978, um general – Hugo Abreu – que poucos meses antes tinha sido um de seus assessores mais chegados.

Estes gestos sem precedentes indicavam um “estilo” de governar, que tem desnorteado muitos analistas. Seu estilo é considerado, em geral, agressivo e personalista, e muitos militares sempre temeram que esses gestos  pudessem colocar em risco a unidade corporativa das Forças Armadas, ou mesmo o regime de poder vigente no país.

Mas essa interpretação era uma simplificação, já que não levava em conta as condições do momento, e o amplo leque de significações que cada gesto presidencial contém e produz. Em primeiro lugar, o general – dentro de sua meta de governo, “desenvolvimento com segurança” – sempre agiu em nome da hierarquia e da disciplina militar. Assim, combinando sua diretriz política de governo (a chamada “distenção”), as pressões sociais do momento e a estrutura hierárquica das Forças Armadas, podemos dizer que os generais Frota e d´Ávila Mello foram punidos por não adotarem a diretriz política do governo e por não cumprirem à risca, em suas áreas de responsabilidade, as ordens presidenciais.

Como estamos falando de um governo bonapartista e de um “estilo bonapartista”, aqui diretriz política de governo e diretriz presidencial se combinam. Aliás, esta é uma das chaves para entender o bonapartismo: ele destrói as estruturas da democracia burguesa substituindo-as pelo “princípio do chefe”, que norteia a conduta do interior das Forças Armadas. Assim, hierarquizada militarmente a sociedade civil, chega o momento em que o governo e executivo, propriamente, se confundem.

Do ponto de vista estritamente político, os gestos do presidente ao punir homens da própria revolução tinha uma significação mais ampla, pois pretendiam justamente mostrar que Geisel podia e devia transcender o regime, estar acima dele, e coloca-lo sob o controle de princípios que supunha desvirtuado na prática. Nesse sentido, o general Geisel é o primeiro presidente pós-64, desde Castelo Branco, que pretendeu falar não em nome do regime, apenas, mas da nação como um todo.

Evidentemente, os generais presidentes anteriores também supunham falara em nome da nação. Mas devido à própria situação histórica, o momento os levou a esbarrar no jogo pendular entre “direita” e “esquerda”. Tinham limites estritos determinados, surgidos dos compromissos com setores específicos burgueses e dos acordos com a “linha dura”, o núcleo não castelista que se pretende portador da legitimidade e intérprete da “pureza revolucionária”. Claramente, o general Frota fazia parte desse núcleo de “puros”. De todas as maneiras, a incompatibilidade entre ele e Geisel não era ideológica, mas tática.

Podemos dizer, inclusive, comparando o governo Geisel com o de Médici, que embora mantendo seu profundo conteúdo de classe burguês, o “estilo bonapartista” de Geisel não é tão ideológico no sentido imediato do termo, já que não representa o setor militar comprometido com prescrições estritas, nem com grupos específicos da sociedade civil, mas com a estrutura capitalista da sociedade como um todo. Por isso seu governo foi mais complexo e contraditório e menos definido ideologicamente. 

A forma faz o estilo

Os gestos autoritários de Geisel não foram aleatórios, nem são produto de um temperamento contraditório. Tudo indica que Geisel, e a inteligência técnico-militar que o rodeou, tinha metas a cumprir nestes cinco anos de governo, e de acordo a cada momento foi elaborando as táticas aparentemente mais viáveis a cada situação. Podemos dizer também que Geisel (e Golbery, logicamente) tinha uma noção aguda do momento de transição vivido no país. E tentou levar a cabo a reabilitação de um programa político. Implementando-o à maneira bonapartista: acima dos partidos, das classes sociais e dos próprios grupos funcionais, militares e tecnocratas, que estiveram na gestão do Estado até agora.

Como toda estratégia bonapartista, a de Geisel visava à unidade nacional sob a hegemonia não contestada da burguesia. Esta estratégia durante o seu governo teve uma formulação política teve uma formulação política mais precisa, que era a de preparar o país para uma “conciliação nacional”. Conciliação esta supervisionada por seu sucessor – o general Figueiredo – e logicamente pelas Forças Armadas.

A esta estratégia, Geisel foi acrescentando em momentos precisos uma tática bastante utilizada pelo bonapartismo; aquela que consiste em dar a todos a nítida impressão de que é vítima constante de fortes pressões vindas do interior da sociedade, às quais precisa antecipar-se ou enfrentar. São os “shows bonapartistas”, montados especialmente e que permitem ao executivo manter o autoritarismo. Geisel, o mais político dos presidentes do movimento de 64, obteve certos êxitos com esta tática bonapartista. E a utilizou intensamente. Podemos citar alguns exemplos: o show montado ao redor da descoberta da gráfica do Partido Comunista, logo no início de seu governo (antes de completar um ano); o massacre da direção do Partido Comunista do Brasil; as cassações de parlamentares do MDB; o caso do general Sílvio Frota e outros militares e a repressão ao Movimento de Convergência Socialista.

Mas já no final de seu governo, quando uma nova etapa da história do Brasil se abre, principalmente a partir das grandes mobilizações operários e sindicais de 78, esta tática começou a desgastar-se. Ela, ao contrário, causava um efeito inverso na sociedade. Já não atemorizava, mas incentivava. Isto porque o governo Geisel viveu dois períodos distintos: o antes e o depois de maio de 78. E nem tudo que valia para março/abril de 78 podia, por exemplo, ser aplicado em junho/julho do mesmo ano. Exemplo, a lei antigreve.

Assim, o bonapartismo de Geisel foi mais rico porque teve que dar respostas a um número de problemas sociais muito maiores do que seus antecessores e porque conseguiu faze-lo sem ocasionar grandes e bruscas rupturas na estrutura autoritária do regime.

Cabe, no entanto, perguntar: este “estilo”, este tipo de governo pode repetir-se com Figueiredo?

Ao invés de formalizar o problema do governo, dizendo que com Geisel se fecha um período e com Figueiredo se abre outro inteiramente novo, preferimos dizer: no governo Geisel está o velho e o novo, os dois coexistiram durante cinco anos e aliados às táticas específicas – e inclusive à própria personalidade do governante – imprimiram um estilo à sociedade.

Acontece que até maio de 78, o bonapartismo podia arbitrar sem sofrer as pressões imediatas das mobilizações sociais. E por isso essa primeira parte do governo Geisel refletia mais o homem, mais o estilo. A partir de maio de 78, a própria figura do árbitro começa a ofuscar-se diante das pressões sociais e diante de um outro personagem que entra em cena, o movimento operário.

Ora, o governo Figueiredo manterá sua política e estratégia bonapartista, mas devido às próprias contradições da sociedade que começa a tomar contornos democráticos burgueses (fim do AI-5, da legislação repressiva, fortalecimento do legislativo, do judiciário e anistia), já não poderá utilizar as mesmas táticas que Geisel. Não terá as características bismarckianas que o general-presidente imprimiu ao seu governo.

Ambos são bonapartistas, mas um tão diferente do outro como o próprio governo de Luís Bonaparte do governo do general Geisel.

A História – Grandes planos, grandes derrotas
 
Entre o governo Médici e o governo Geisel há uma continuidade. Se o primeiro conseguiu, pela força do aparelho de repressão, com a ajuda do boom econômico e o apoio de um setor da classe média, acabar com a guerrilha e o terrorismo, o segundo planejou dar seqüência à luta contra o comunismo e a subversão através de uma política redistributiva, que visaria não somente melhores salários, mas também medidas indiretas.

O II Plano Nacional de Desenvolvimento – II PND, divulgado em setembro de 74 (e que teve suas linhas mestras elaboradas antes mesmo de Geisel tomar posse), estabeleceu claramente a política redistributiva como meta social e, mais ainda, como instrumento para o crescimento econômico. Adaptando a política econômica a uma visão de que o boom já chegara ao fim, o governo tentava se adaptar à nova conjuntura, lembrando no segundo capítulo do II PND (Estratégia de Desenvolvimento e Modelo Econômico) a necessidade da formação de um mercado interno de massas, ante as incertezas em que o mercado mundial mergulhara por força da recessão nos países industrializados e da “crise de energia”. Para a formação desse mercado colocava “a importância da população como fator de demanda, além de sua função mais conhecida, como fator de produção”.

Há uma continuidade entre Médici e Geisel. Mas uma continuidade com revisão. E ao nível da política econômica, a revisão se dá no mesmo modelo “exportador” e “concentrador de renda”. Ao menos nos planos.

Até 1974, para os economistas alinhados ao governo, a larga disponibilidade de mão-de-obra a baixo custo era apresentada como um dos fatores para “atrair” os investimentos das multinacionais. A mão-de-obra, isto é, o homem brasileiro era considerado apenas “fator de produção”.

A partir do II PND há uma revisão dessa colocação e atribui-se à população o papel de “fator de demanda”, isto é, considera-se o homem brasileiro também como consumidor, cuja renda elevada por uma política deliberada permitiria a formação de mercado de massas e a expansão da economia.

A política de redistribuição de renda foi, assim, projetada também como instrumento de política econômica, da mesma forma que a concentração de renda foi uma opção no campo econômico, em governos anteriores. Essa característica da política distributiva não tira, evidentemente, seu aspecto social, tanto que o mesmo II PND previa que a política econômica do novo estágio devia assegura:
“Aumento substancial de renda para todas as classes... Assim se poderá estabelecer uma sociedade em que, econômica e socialmente as bases estejam sempre movendo-se para cima”.

“Redução substancial da ‘pobreza absoluta’, ou seja, do contingente de famílias com nível de renda abaixo do mínimo admissível, quanto à alimentação, saúde, educação e habitação”.

A ênfase que o governo pretendia dar ao lado “social” do desenvolvimento ficava clara nesta colocação:

“Para atender a esses objetivos será executada, no próximo estágio, política social que não constitua simples conseqüência da política econômica, mas também objetivo próprio”.

Mudar a política econômica sem reformular praticamente todo o arcabouço político que caracterizou o movimento de março de 64 é praticamente impossível. Assim, mudar o modelo econômico significava em última instância mudar o modelo político. E o governo de Geisel sabia disso. E isso foi dito por metáfora, quando logo depois de tomar posse, afirmou que interviria no sentido de constitucionalizar a Revolução, o que significa de fato extinguí-la como Revolução.

Mesmo tendo conhecimento das mudanças que deveriam ser adotadas a nível econômico, Geisel se viu impossibilitado de levar a cabo as reformas propostas pelo II PND. Não havia margem política para isso. Qualquer reforma mais séria significaria de fato um enfrentamento com as multinacionais que controlam a produção de bens de consumo e se beneficiam diretamente do modelo concentrador. Por outro lado, a insatisfação da classe média, que aos poucos ia perdendo privilégios, criava novos problemas: o das mobilizações. Assim, as propostas do II PND foram sendo esquecidas e o governo optou por uma política econômica conjunturalista, de tipo “go-and-stop”. Pois temia que uma política econômica mais audaz pudesse levar a sociedade ao desbordamento.

A opção política

Diante da dificuldade de aplicar a política econômica que havia elaborado ainda na época de seu escritório no Largo da Misericórdia, no Rio, e da ofensiva que setores democráticos e populares começavam a fazer no período eleitoral de 74, o governo teve que fazer algumas adaptações na sua estratégia geral.

Se antes o plano era conseguir base social através de reformas na política econômica, desestabilizando a oposição, para então – e só então – no fim do governo fazer uma ofensiva política que levasse o país a uma abertura democrática, sem grandes desequilíbrios, logo em 75 esse plano teve que ser reestruturado.

Face a impossibilidade de aplicação do II PND – pelas pressões surgidas do próprio poder – e da avançada oposição nas eleições “plebiscitárias” de 74, o governo resolveu aceitar já no segundo ano a briga no terreno político.

E recorreu à repressão e ao AI-5.

1975 significou um endurecimento, uma ruptura no plano original: caça aos comunistas, cassações e início dos debates sobre os contratos de risco para exploração do petróleo. Significou desde logo que o governo Geisel, ao contrário do que desejava ele e seus teóricos, seria desde o início um governo engajado no debate político, visto sob o prisma da redemocratização. Mesmo não querendo (já que pensava discutir o problema muito possivelmente só em 1978) viu-se obrigado pelas pressões sociais aceitar o desafio quase que imediatamente.

E cada acontecimento político gerava outro. O descontentamento tomava corpo e forma de epidemia. 

A ofensiva repressiva de 1975 acabou gerando frutos diferentes do que esperava o governo. A morte de Herzog lançou milhares de pessoas às ruas, unindo estudantes e sindicalistas.

Era o marco.

Se para Stalin, os estudantes eram a banda de música da revolução, a partir de 76 eles começaram a fazer muito barulho, mas agora com apoio de amplos setores da sociedade. Discutiam e reorganizavam suas entidades e criavam o DCE Livre da USP – Alexandre Vanucchi Leme. O governo via apenas.

A experiência de 75 estava muito fresca ainda. O governo evitava novos atritos, preferindo tentar um diálogo a nível parlamentar. Mas sem grandes sucessos.

De todas as maneiras, aceitar o debate político durante o governo de Geisel significou sempre chegar a acordos ao nível das elites do parlamento, mas nunca – jamais – permitir que o movimento operário tivesse expressão nesse diálogo.

Assim, em 1977, quando trabalhadores distribuíram convites para uma manifestação de 1o de maio, a repressão veio violenta. Era perigoso permitir que trabalhadores se reunissem para discutir problemas como a questão salarial, o direito de greve, etc. E de certa maneira veio o desbordamento. Os operários foram às universidades e os estudantes vieram às ruas.

E de repente por culpa do governo, o ano de 68 ressurgia em 77, com uma exigência: liberdade para os operários presos. O movimento democrático a favor dos companheiros trabalhadores se estendeu país a fora. E, inclusive, foi apoiado por entidades estudantis e profissionais de outros países, principalmente nos EUA, Portugal, França e Itália.

Essa situação, sem dúvida, aumentou em muito as contradições e os choques ao nível do aparelho militar. A economia não ia bem e a política também não. Geisel enfrentou o seu inimigo mais difícil, a contestação militar encabeçada pelo general Sílvio Frota. Era a prova de fogo.

Derrubado Frota, libertados os operários do ABC e com um pacote de abril nas mãos, o governo preparou-se para enfrentar 1978 que, ao que tudo indicava, seria um ano difícil.

O início do fim

1977 foi um ano de acumulação. Serviu para perde o medo, para começar a reaprender a reivindicar. E o governo que vinha de planos de posições autoritárias inquestionáveis, começou a jogar na retranca.

Sem dúvida, aplicaria parte de seu programa político, mas não com a firmeza que imaginara no início. Não com o vento a favor. Muito ao contrário. Se durante quase todo o primeiro tempo procurou jogar na ofensiva, 1978 nos mostraria o governo utilizando uma tática nova, passando para a retranca e começando a falar macio.

E assim foi.

Só que o movimento de 1977 começava a tomar forma. Surgia a Convergência Socialista propondo a unidade de trabalhadores e socialistas sob o mesmo partido. E pela primeira vez os trabalhadores se reuniram e comemoraram o seu 1o de maio no Sindicato dos Metalúrgicos de Santo André com a presença – inclusive – daqueles companheiros que há um ano tinham sido presos.

Depois de anos, socialistas e trabalhadores começavam a alçar a voz. A greve do ABC que começou em maio e que se espalhou pelos meses e pelo país arrancou a mordaça do povo. Todos sentíamos que alguma coisa chegava ao seu fim. Não o governo, nem mesmo a participação dos militares na sociedade civil, mas o regime. Havia claros indícios de que o regime transicionava em direção à democracia burguesa, embora o governo ainda mantivesse sua característica bonapartista.

Em agosto, os socialistas foram reprimidos. Mas já era uma repressão diferente. Já não havia como repetir 1977. As eleições acabaram por aglutinar milhões de descontentes. Uma grande corrente pró-democracia tomava forma de norte a sul do país. E dentro dessa corrente surgia outra, a dos trabalhadores classistas organizados na oposição à direção da CNTI – Confederação Nacional dos Trabalhadores da Indústria.

As eleições de novembro e a participação crescente dos sindicalistas – que surgiram como um processo real de democracia – acabaram transformando o show bonapartista da sucessão presidencial num simples teatro burlesco. E, agora, quando socialistas e sindicalistas começam a discutir a viabilidade de um partido dos trabalhadores de caráter laborista, já não há muito o que fazer por parte do governo.

Durante anos o bonapartismo foi a grande estrela do cenário político brasileiro. Mas o movimento de massas por suas próprias lutas recuperou o seu lugar e levantando o punho golpeou a estrela da usurpação.

Ernesto Geisel foi um bom político. Talvez o melhor que o movimento de 64 conseguiu produzir até agora.

Mas o seu mérito político consistiu exatamente em sobreviver estes cinco anos. Não deixou obra alguma. Sua política financeira não foi aplicada e sua redemocratização não nos foi outorgada, mas conquistada. Em última instância foi derrotado. Derrotado pelos operários. Se pensou em ser um grande estadista ou entrar para a História, talvez se decepcione. Dentro de alguns anos, poucas coisas se poderá dizer dele. Talvez nos lembremos de Geisel como nos lembramos de Dutra. Triste Bonaparte, cuja imagem se esfuma na História. 

[Jorge Pinheiro, Um Luís Bonaparte?, São Paulo, Versus no 29, fevereiro de 1979, pp. 4-7]. 
 




O GOVERNO GEISEL E A CONTRA-REVOLUÇÃO
Por Florestan Fernandes


Para se dar um “balanço socialista” sobre os feitos da Revolução seria bom enfatizar três coisas. Primeiro, não estamos diante de uma revolução, mas de uma contra-revolução (que além do mais é largamente planejada e programada) a qual se auto-proclamou uma revolução (já que teve poder político, militar e legal para ir mais longe, autodeterminando sua “legitimidade”). Segundo, o governo Geisel não é o quarto governo da revolução, mas o quinto. O terceiro governo não foi o do governo Médici, mas o da Junta Militar. E é decisivo lembrar isso aqui, porque a Junta e o governo Geisel constituem as duas manifestações mais típicas da forma política que a autocracia burguesa assumiu no Brasil. Em relação a ambos é possível afirmar-se: toda e qualquer mistificação é inútil, pois tudo aparece de modo muito claro. Terceiro, o problema político central não varia na sucessão dos cinco governos da contra-revolução. Todos eles contêm e desenvolvem a mesma forma política: a ditadura de classe, a tirania burguesa, quando esta autonomiza as funções de dominação e de poder do Estado capitalista mediante sua militarização e tecnocratização, convertendo-o em uma forma política preponderantemente ditatorial. Deste ângulo, todos os governos da contra-revolução enfrentam a mesma exigência política – como manter a continuidade da contra-revolução, como adaptar a tirania burguesa às variações das condições externas do Estado capitalista e, enfim, como vencer as pressões contrárias de normalização da ordem e de neutralização da contra-revolução ou seja como impedir o advento da revolução democrática.

Na situação brasileira, cumpre reconhecer, tudo favoreceu essa terrível manipulação da dominação de classe e do poder político de classe. Do mesmo modo, tudo simplificou essa luta de classe pela continuidade da contra-revolução. De um lado, as forças que poderiam traduzir o verdadeiro antagonismo à ordem existente, proletárias ou populares, não se haviam organizado autonomamente e se viram segregadas da atividade política propriamente dita pela ditadura. De outro lado, esta teve a habilidade de imantar as forças políticas da oposição ativa a um pólo consentido, fixando-as portanto dentro de uma gravitação de baixo alcance político. O conflito tolerado, além de legitimizar o regime, dinamizava-o e criava uma alternativa dentro da ordem para o “partido do governo”. Esse pólo consentido que recebeu o nome de MDB não foi pois um “erro político”. Ele nasceu de uma necessidade política, para operar como uma válvula de escape em uma panela de pressão. A lógica da guerra contra-revolucionária, temperada com a sabedoria dos mestres em política sistêmica (em sua maioria norte-americanos e europeus) e compensada pela convergência básica dos interesses dominantes das classes possuidoras (por acaso alocados na Arena e no MDB) inspirou essa escolha. Se ela se converteu no calcanhar de Aquiles do regime, sem ela as resistências à contra-revolução seriam maiores e dificilmente a contra-revolução poderia lutar por sua sobrevivência dentro e através do “Estado de direito” na fase de retorno à “ordem normal”. 

Este me parece ser o contexto dentro do qual se deve avaliar em conjunto e globalmente o chamado “governo Geisel”. Enquanto o curto governo da Junta enfrentou uma crise de existência, em termos da continuidade e do aprofundamento da contra-revolução, o governo Geisel enfrentou uma crise de sobrevivência. O mínimo que se poderá dizer a seu respeito é que a enfrentou com uma eficácia comparável a uma cirurgia bem feita. Em todos os planos – no político, no institucional e no militar – forjaram-se focos artificiais de “luta decisiva” pela “normalização da vida democrática” (sic) e pela “cessação do arbítrio” (sic). Sempre com vistas ao impedimento de qualquer normalização democrática autêntica ou da extinção arbítrio.

É óbvio que o assunto é complexo e extenso demais para uma apertada resenha. No entanto, é possível situar os dados essenciais. Também cumpre evitar o cipoal de confusões que se armaram em torno do governo Geisel. Algumas foram inventadas e difundidas a partir de cima como parte da concepção da “guerra psicológica” transferida para a política (hoje só parcialmente um assunto militar), outras criadas espontaneamente pelas classes possuidoras e disseminadas por seus órgãos de comunicação de massa, outras, por fim, forjadas pelas cassandras da oposição que investem seu tempo em um jogo de amarelinha política e inventam dissensões ou conflitos intestinos que, infelizmente, ou não existem ou não chegam a devastar as hostes da ditadura. O resultado dessas confusões aparece tanto em mistificações deliberadas, forjadas para “confundir os adversários”, quanto em mistificações reativas, forjadas para  compensar a fraqueza congênita da oposição tolerada. Por aí o governo Geisel foi visto como a primeira encarnação do presidencialismo sob “o ciclo revolucionário”  e, alternativamente, como “ a primeira derrota do sistema”. Ora, malgrado toda sua saliência pessoal e sua enorme vontade de poder, o general Geisel foi, até hoje, o mais disciplinado, diligente e eficaz delegado do sistema. Ambos se sobrepuseram e triunfaram porque se entrosaram e se serviram com ousadia e flexibilidade. Em nenhum momento o general Geisel se tornou o campeão do “combate ao sistema”, para suaviza-lo ou destruí-lo. Se o fizesse combateria a si próprio e se destruiria politicamente. Reciprocamente, em nenhum momento o sistema combateu o “presidente Geisel”. Se o fizesse perderia o seu agente específico de objetivação, personalização e concretização na cena política. A crise de sobrevivência impôs avanços e recuos, isso é certo. Eles levariam ao fim fatal (e muito mais rápido) da contra-revolução se os dois não compreendessem os seus papéis e se não estivessem suficientemente entrosados para travar a sua batalha pela “democracia relativa” (ou seja, pela continuidade do sistema por outros meios), à luz das exigências da “segurança nacional” e das “salvaguardas do Estado”. O que quer dizer que o governo Geisel deixa um legado claro – ele se transformou na ponte pela qual o regime vigente tenta reciclar-se, engatando uma ditadura de classe a uma potencial normalização da República presidencialista. Se quisermos algo mais e, especialmente algo diverso, teremos que travar, a exemplo do próprio general Geisel, um áspero combate direto pela nossa causa, a implantação de um regime autenticamente democrático.

Dito isso, está feito o diagnóstico global. Não posso ser confundido com um admirador do general Geisel, do seu governo e do regime ditatorial (já fui chamado mesmo de “inimigo notório da Revolução”). Portanto, não estou fazendo um panegírico: estou tentando proceder a uma análise objetiva e correta, de uma perspectiva socialista. A contra-revolução entrou, há tempo, em uma fase de desgaste; e ela poderá enfrentar, brevemente, uma fase subseqüente de desagregação. Isso era e é fatal, na mesma medida em que ela nunca teve a apoio das classes trabalhadoras, das massas populares e dos setores divergentes das classes médias e altas. Ao perder combustível interno – sua base de classe oscilou e se estreitou, tanto em termos do suporte imperialista e das multinacionais, quanto em termos da solidariedade dos setores dominantes da grande burguesia e das classes médias – defrontou-se com o que chamei de crise de sobrevivência. No entanto, nessa crise, enquanto as forças de oposição se mantiveram enquadradas (com exceção dos “ousados” ou “radicais”, que pagaram com a própria cabeça a ousadia e o radicalismo), não ousando romper coletivamente os limites impostos arbitrariamente a sua atuação política, o governo delegado do sistema tomou todas as iniciativas e ocupou todos os espaços de que dispunha, para se proteger, fortalecer e determinar as condições de sua permanência no poder ou da transformação imediata do Estado de exceção, sob o governo seguinte do general Figueiredo. A pergunta pertinente não é, pois, o que Geisel e seu governo deixaram de fazer. Ela é outra: o que levou a oposição consentida a praticar o jogo das “cartas marcadas”, comprometendo-se ainda mais na consagração de um estéril ritualismo eleitoral e na dinamização de um status quo altamente interessante para a ditadura. O medo do “ganha mais não leva?” O temor da repressão e da violência organizada? O pavor de uma guerra civil? É evidente que não. Nunca chegaremos a lutar verdadeiramente pela revolução democrática se não reconhecermos de modo franco um fato elementar. Todos os setores estratégicos das classes possuidoras compartilham de “vested interests” profundos, e isso em duas direções políticas: 1o ) na de garantir o desaparecimento gradual e a absorção sem choques da contra-revolução (o que compromete todos esses setores com a reciclagem do regime vigente e a continuidade da contra-revolução por outros meios); 2 o ) na de abafar os ritmos “impacientes” da revolução democrática, negando ou contendo as pressões radicais de baixo para cima, de origem popular e operária, e afunilando ou esterilizando as pressões radicais de cima para baixo, de origem “esclarecida” e de “reforma do capitalismo”. O intervalo de fricção enfrentado pela ditadura não exigia medidas extremamente drásticas ou desesperadas. O MDB não entendeu, como um todo, que para servir à Nação deveria condenar-se à autodestruição, pois ele não poderá destruir a ditadura sem imolar-se com tal. Em face dos nossos fracos e oscilantes ritmos históricos, pode ser que seu cálculo político auto-protetivo e fisiologicamente adaptativo esteja certo. Pode ser mesmo que o regime vigente não mereça as honras de um enterro dramático. O que não impede que a revolução democrática continue enjeitada e destituída de paladinos. E por conseguinte, que a ditadura possa ousar o que não ousou, já que está livre para decidir como manter-se e que tipo de democracia convém ao Brasil.

Nesse ângulo, o “legado do governo Geisel” aparece como a contribuição que os dirigentes da contra-revolução lograram, em um período extremamente difícil para eles, para aperfeiçoar o Estado democrático-burguês e para buscar garantias políticas de seu engrenamento com outras soluções possíveis. Nesta resenha, seria preciso por em relevo pelo menos três áreas de êxito marcante, que deve ser creditado a esse governo: a da preservação do sistema de poder montado e desenvolvido a partir de 1964; a da criação de espaço político para a sobrevivência da própria contra-revolução; a da redução do campo de luta e de auto-afirmação das forças políticas opostas ao regime.

Quanto à primeira questão, é claro que os instrumentos especiais de violência política, legal e policial-militar, criados em 1964 e depois, em particular em 1968-1969 e sob o governo Geisel, facultaram a preservação e o aperfeiçoamento do sistema de poder colimado pela contra-revolução. Esse sistema de poder se caracteriza pela sobrevivência formal dos três poderes e pela existência de um Estado constitucional e representativo restrito. A separação de poderes é útil a um Executivo forte, mas constitui uma necessidade política imperiosa quando o Presidente dispõe de todos os poderes reais e os exerce como delegado fiel de um poder executivo oculto (o sistema), no qual ele é apenas um membro relativamente privilegiado. Em última instância, o sistema utiliza a separação de poderes e o poder presidencial para concentrar todos os poderes em um pequeno coletivo, capaz de jogar com a protagonização pessoal dos papéis presidenciais e de neutralizar os poderes do Legislativo e do Judiciário. A essência autocrática dessa forma de presidencialismo reside nessa concentração de poderes, dissimulada e mistificada no plano institucional, mas posta em prática com a maior desenvoltura no plano do funcionamento do governo “republicano”. A militarização e a tecnocratização das estruturas e funções políticas do Executivo encobre ainda mais o processo, convertendo a autocracia em algo que pode ser denunciado (nos outros poderes e fora do âmbito estatal), mas que não pode ser evitado ou superado pelos mecanismos automáticos de defesa do Estado. De outro lado, a existência formal de um Estado constitucional e representativo restrito assenta na base material e política efetiva da contra-revolução, que não é – nem mesmo por ficção legal forjada – a Nação, mas os estratos sociais, econômica, cultural e politicamente válidos da sociedade civil. Em suma, a uma democracia restrita corresponde, naturalmente, um Estado constitucional e representativo restrito (ou seja, uma República burguesa autocrática). Os partidos e as eleições não desempenham a função de forças reais dentro desse sistema de poder. São antes marcos e símbolos formais de legitimação do poder político dos que exercem os mandatos constitucionais dessa representação sui generis. Pelo uso sagaz das faculdades de decisão do Executivo, o sistema e o presidente procedem a escolhas meramente sancionadas pelos partidos e pelos mandatários da “vontade do Povo” (portanto, são escolhas que “passam” pelos mecanismos parlamentares, eleitorais e dos partidos, porém possuem uma eficácia própria de origem autocrática). O que sugere que não existe um “partido militar”, como alguns supõem, e que os militares e os tecnocratas participam do quadro político como os demais cidadãos válidos, sensível e diretamente como servidores do sistema ou, por eufemismo, da “República democrática” e do “Governo nacional”. Ora, todo esse sistema de poder nunca funcionou, desde 1964, com tamanha  amplitude e vitalidade quanto sob o governo Geisel. Para muitos, esse governo definiu a normalidade do que deve ser a vida política em um “regime democrático responsável”. Outro ponto, que precisa ser ventilado, é o que diz respeito à natureza do uso da violência institucional no referido sistema de poder. Parece que conto entre os poucos que consideram que a superposição dos atos institucionais à constituição e aos códigos, com as práticas políticas e policial-militares conseqüentes, constitui uma “conexão fascista” desse sistema de poder. Todos os “governos revolucionários” apelaram desenvoltamente para essa modalidade política do terrorismo burguês. No entanto, foi a crise de existência do regime, em 1968-1969, que converteu esse elemento em traço estrutural típico. Duas coisas são patentes quanto ao governo Geisel. Primeiro, sob esse governo, tentou-se explorar esse elemento de forma seletiva, embora tenham ocorrido episódios trágicos, alguns situando-se, mesmo, entre os mais graves de nossa história. Segundo, depois de superada a crise de sobrevivência do regime – em termos das recomposições políticas e policial-militares realizadas – ganharam decidida saliência e preponderância os instrumentos especiais de violência política. Não obstante, a conexão fascista mencionada não desapareceu nem podia desaparecer. O equilíbrio do sistema de poder montado, na ausência do consenso e da verdadeira representação, exige um mínimo de violência institucional e de intimidação permanente. O governo Geisel recebeu vários elogios aqui e no exterior pela “moderação” com que usou esse sal político do regime vigente. Todavia, ou a memória histórica da humanidade é curta, ou não existe de todo, nenhuma razão há para fazer-se elogios dessa espécie. 

Quanto à segunda questão, as várias marchas e contra-marchas que se originaram de conflitos reais ou latentes dentro da base material e política de sustentação da contra-revolução ou de fricções e tensões que opuseram o Gross da Nação à ditadura, sempre tiveram um destino certo. O governo Geisel nunca cedeu terreno às pressões fragmentadoras que pudessem deslocar o sistema do controle do Executivo e da República; e se faz concessões táticas para preservar certa margem de apoio, tão pouco se aventurou a ceder às pressões contestadoras de origem popular. Tirou proveito, como lhe foi possível, de ambos os tipos de pressão, com o propósito de alargar o espaço político da contra-revolução. Por paradoxal que pareça, uma contra-revolução em desgaste conseguiu usar o próprio desgaste para intimidar os relutantes e os desertores, liberando certas formas de contestação que evidenciam o quanto o Brasil está condenado a comoções intestinas estruturais. Se a contra-revolução não se recuperou, ela ganhou um novo alento, mais tempo para desdobrar a reciclagem do regime e maior espaço político para adaptar-se às condições atuais, nascidas de um quadro mundial novo e de uma situação interna diferente. Um regime que poderia sucumbir rapidamente ganhou, não obstante, meios de sobreviver, preservando certas estruturas ou certas funções essenciais e conquistando uma potencialidade de manobra que não possuía antes. Por esta razão, corremos o risco de ver a “democracia relativa” converter-se em sucedâneo do regime vigente. Tenta-se evoluir para um “Estado de direito” que gradue a democracia e submeta a Nação às exigências conservadoras e reacionárias das classes burguesas, pela mediação das “salvaguardas do Estado”. O êxito desse projeto político não está assegurado e contra ele se voltam o que o senso comum entende como as “forças vivas da Nação”. Contudo, o governo Geisel realizou essa façanha e encetou, na prática, uma tentativa de metamorfosear a ditadura em democracia possível.

Quanto à terceira questão, el nos põe diante de uma evolução que tem sido pouco discutida e que se acentuou de modo perturbador (basta que se atente para os últimos pronunciamentos dos chefes militares e dos “setores responsáveis” do empresariado, para se perceber a gravidade da situação e a intensidade da resistência burguesa a uma autêntica revolução democrática). A constante de todos os “governos revolucionários” sempre foi o travamento do discurso político da oposição. Para que isso deixasse de ocorrer seria necessário que a oposição apelasse para a desobediência civil em escala coletiva e de modo sistemático – sem concessões e sem falecimentos. Isso equivaleria a negar validade e eficácia a uma legalidade forjada pela ditadura, a qual tem por função reproduzir e ampliar o regime ditatorial. Ora, a oposição não realizou esse avanço, mesmo sob o impacto das eleições, das fraturas e desgaste do regime, da apresentação de um candidato à presidência próprio. Em contraposição, o governo Geisel avançou como pode no uso de suas faculdades para combinar a “abertura” com o asfixiamento político do adversário. Se os resultados são medíocres, tal coisa se deve ao fato de que a orgia das ilusões constitucionais e eleitorais tenha subvertido a linha governamental. Esta segue de marcha batida. A oposição é que não se coloca à altura das forças que conquistou e do poder real que elas representam. Em conseqüência, o campo de luta das forças que se empenham (ou que poderiam se empenhar) por uma revolução democrática não só é minado de cima para baixo, ele se vê reduzido drasticamente por maquinações que são designadas como “casuísticas”, mas que, na realidade, são funcionais para a continuidade da contra-revolução, por outros meios. O principal efeito negativo dessa situação é de causar estupefação. As várias forças que  compõem o espectro político da oposição vacilam até diante da necessidade fundamental de buscar uma identidade política própria e de constituir uma organização de frente comum, suscetível de medir-se com a capacidade de opressão e de repressão dos donos do poder. Quem é e por que é liberal-radical, socialista ou comunista? Quais são os requisitos e os objetivos da revolução democrática? Que tipo de estado se pretende criar e o que ele pode representar diante das exigências das classes sociais empenhadas na revolução democrática? Qual o papel das classes trabalhadoras e das massas populares nessa transformação? Essas e outras perguntas são não são equacionadas, enquanto as energias políticas dos setores mais ativos são investidas em atividades políticas secundárias ou neutras diante das perspectivas de uma revolução democrática. O elitismo, portanto, emprenha a reação e a contra-revolução. É natural que isso aconteça. Mas, o elitismo também engravida a oposição, tolhe os seus movimentos, empobrece a sua atuação no combate à ditadura ou de luta pela revolução democrática. Tudo se passa como se a contra-revolução tivesse instalado dentro da consciência política da oposição alvos, valores e estruturas funcionais para a reprodução do status quo. Se é inegável que muitas dessas conseqüências são produtos reativos de um processo secular de afastamento das classes trabalhadoras do processo político, da traição da República à cusa democrática, dos vários regimes ditatoriais que se sucederam depois de 1930 (alguns explicitamente, outros como formas políticas da ditadura de classe oculta) e dos vários “governos revolucionários” de 1964 para cá, o fato elementar é que o governo Geisel foi inexorável na manipulação de controles diretos e indiretos, tanto da “oposição legal” quanto das forças mais amplas de contestação popular ao regime. Ele fragmentou e pulverizou como lhe foi possível as várias modalidades de antagonismo e de conflitos políticos que surgiram na sociedade brasileira, em virtude da  expansão das classes sociais e do tipo de inquietação política que teria de resultar dessa expansão. Por isso, enquanto a evolução espontânea da sociedade fortalecia naturalmente as forças de oposição e de contestação, estas se encolhiam ou se ativavam sem aproveitar suas vantagens e sem levar a confrontação para um terreno no qual a contra-revolução e sua ditadura estão condenadas à derrota.

Esta resenha não pretende esconder o quanto avançamos, apesar de tudo, e tão pouco suscitar a hipótese de que o regime ditatorial acabará impondo os caminhos da democracia “forte e responsável”. Não se pode realizar o combate verdadeiro sem um balanço objetivo do governo Geisel, o que foi mais produtivo, inventivo e realizador para os fins políticos da contra-revolução prolongada. Foi o que tentei fazer nos limites das minhas possibilidades intelectuais. Também não pretendo expor a oposição organizada e o MDB em particular à irrisão. O meu alvo é outro. Estamos empenhados (ou devemos nos empenhar) em uma revolução democrática. Devemos abrir a nossa consciência política para as exigências da revolução democrática e lutar por ela – e não apenas “contra” o autoritarismo.

[Florestan Fernandes, O governo Geisel e a contra-revolução, São Paulo, Versus no 29, fevereiro de 1979, pp. 8 –10]. 

 




FIGUEIREDO E O PROJETO MILITAR 
Por Jorge Pinheiro

Nos últimos anos, mais precisamente de 1974 até agora, o perfil da economia brasileira não sofreu grandes mudanças. Manteve-se numa situação de equilíbrio, financiado em parte pela entrada nestes últimos cinco anos de cerca de US$ 33 bilhões, 15 a 20%  dos quais  sob  a forma de investimento direto. Assim, até mesmo a recessão prevista por alguns economistas se viu minorada, compensada também pelo rendimento das indústrias de ponta, de algumas estatais e como não poderia deixar de ser pela apropriação de uma das taxas de mais-valia mais altas existentes no mundo. Mas como não poderia deixar  de ser, também, dentro  do modelo econômico que caracterizou todo o período militar, a dívida externa acabou chegando a uma soma astronômica, que está por volta de US$ 40 bilhões, sendo que só de amortizações da dívida o país terá que pagar este ano cerca de US$ 5 bilhões. E esta situação  não deve parar aqui - tudo indica que a dívida continuará crescendo e com ela a dependência. Mas a constatação científica  de que a dívida continuará crescendo não nos pode levar  ao silogismo formal de que a situação econômica do governo do general Figueiredo será catastrófica. Assim como a constatação genérica e histórica de que o aumento da dívida externa  leva à dependência  não nos poder levar  a pensar que o Brasil durante os próximos seis anos estará  preso por uma bola de ferro aos ditames imediatos dos Estados Unidos. 

A dívida sem determinismos

Até o momento o Brasil não  está encontrando qualquer dificuldade para fazer o giro (roll-over) da dívida  e para melhorar o seu perfil, através da amortização de empréstimos a curto prazo e a sua  substituição  por outros de prazo maior. Com isso, o próximo governo herdará uma situação relativamente folgada quanto ao serviço da dívida. O mesmo não se pode dizer categoricamente do governo que o sucederá.

O que permitiu ao Brasil reduzir o montante da dívida a vencer em 1968, de 35% do total para 17% em 1977 foi, sem dúvida, a excepcional liquidez do mercado internacional há cerca de dois anos (falava-se em 600  bilhões de dólares no mercado  de eurodólares). E essa liquidez se deve em parte ao gigantesco déficit comercial norte-americano e ao não menos notável excesso de recursos apresentados pela Alemanha Federal, Japão e Suíça que, juntos, apresentam um superávit três vezes superior ao dos países exportadores de petróleo.

Com a existência deste excedente de recursos aplicáveis, o Brasil não encontrou obstáculo, para conseguir dinheiro que precisava  para girar, aumentar e melhorar o perfil da dívida  externa do país.

Tudo indica que esta situação começa a mudar. Mas de forma tendencial e não brusca. A razão principal  da mudança estaria na acentuada queda do dólar norte-americano, provocada pelo déficit comercial.

A associação entre a queda do dólar e a pujança econômica norte-americana torna os EUA um mercado bastante atraente para investimentos alemães, japoneses, suíços e da Opep. Por outro lado, a política de crescimento, apesar do déficit comercial, obriga os EUA a buscarem mais recursos no mercado financeiro internacional, principalmente porque a tendência de um grande setor de seu próprio capitalismo financeiro é a especulação.

O que é importante ser entendido é que em médio prazo a política dos EUA aliada à preferência dos grandes investidores pode começar a restringir a liquidez internacional para os demais países. E como conseqüência teríamos o aumento dos juros e a redução no prazo dos empréstimos. Para o Brasil, não no próximo ano, mas possivelmente dentro de cinco ou seis anos, isto pode significar um perigoso deterioramento  do perfil da dívida.

A questão do desenvolvimento

Para o marxismo o conceito desenvolvimento está intimamente ligado ao de forças produtivas. Mas dizer apenas isso significa  quase impossibilitar uma resposta cientifica de questões  concretas . Daí que para chegar-se ao próprio conceito  de forças produtivas é necessário fazer uma análise parcelada do problema, fazendo uma separação real e metodológica entre desenvolvimento e acumulação de riquezas embora sabendo  que os dois conceitos fazem parte de  um conjunto maior que são as forças produtivas.

Em nossa definição consideramos que a visão neomarginalista de Bresser Pereira ajuda a aclarar o conceito, permitindo trabalhar a contento ao nível da economia e dos chamados processos de revolução social vividos no capitalismo.

Assim, “o desenvolvimento é um processo de transformação econômica, política e social, através do qual o crescimento do padrão de vida da população tende a tornar-se automático e autônomo. Trata-se de um processo social global, em que as estruturas econômicas, políticas e sociais de um país sofrem contínuas e profundas transformações. Não tem sentido falar em desenvolvimento apenas econômico, ou apenas político, ou apenas social. Na verdade não existe desenvolvimento dessa natureza, parcelado, setorizado, a não ser para fins de exposição didática. Se o desenvolvimento econômico não trouxer consigo modificações de caráter social e político, se o desenvolvimento  político  e social não for a um tempo o resultado e causa de transformações econômicas, será porque de fato não houve desenvolvimento”.

O desenvolvimento, portanto, é um processo de transformação global. Seu resultado mais importante, todavia, ao menos o mais direto, é o crescimento do padrão de vida da população. No processo  de desenvolvimento, em termos clássicos da economia capitalista, o aspecto  econômico é preponderante. Mas o setor político  pode transformar-se, em determinados momentos (e acredito que historicamente passou a ser fundamental, invertendo o processo clássico descrito por Marx. Aliás, este foi um dos grandes aportes de Rosa Luxemburgo à moderna ciência  marxista), no foco dinâmico do processo de desenvolvimento, como aconteceu nas grandes revoluções operárias deste século. 

No caso brasileiro podemos dizer que o país se encontra em sua terceira fase de acumulação e desenvolvimento capitalistas -- cuja arrancada se dá a partir da década de 60 -- e que se caracteriza pelo rápido crescimento  do setor de bens de produção (intermediários e de capital), pela ofensiva  do capital transnacional na produção fabril, pela crescente penetração do capital na agricultura (apesar das características tradicionais do setor) e na integração da economia local à economia mundial. Além de ter transformado, de fato a classe operária no sustentáculo da produção.

Um programa estratégico

Bem, agora vamos ver como se combina essa discussão sobre desenvolvimento com o plano estratégico  elaborado pela cúpula militar ligada à Escola Superior de Guerra para o Brasil.

Antes de mais nada, iniciamos de uma afirmação: os militares e o governo que se sucederam a partir de 1964 formam um todo. E nesse sentido, excluindo o governo de Vargas no período que vai de 1932 a 1943, eles foram os únicos  que tentaram elaborar uma doutrina  de conjunto (e para ser cumprida num longo período) para  o desenvolvimento  do capitalismo no Brasil. Antes de pensarmos sobre a viabilidade desse projeto  integrado e a longo prazo de desenvolvimento , vamos ver quais são as bases sobre os quais se apóia.

Levando em conta o material que tem sido publicado pelos principais teóricos da Escola Superior de Guerra -- e que infelizmente é pouco -- podemos tirar a algumas quantas conclusões:

1-- Os militares consideram realmente  que o movimento de 31 de março teve um caráter de revolução, já que implica num processo tríplice -- forma uma nova camada dirigente e tem como meta a destruição do pensamento tradicional, tanto a nível político, como econômico.

2 - Tendo em vista a crise anterior a 1964 (dos anos 1961-63), e levando em conta que para derrubar o governo de Goulart eles necessitavam do apoio dos próprios setores tradicionais (que em termos estratégicos não mereciam nenhuma confiança), os militares passam a se considerar como reserva moral  da nação e única alternativa de governo. Tomando sua aliança com os setores tradicionais (ou oligárquicos) como tática, tentando por isso excluí-los do processo político, sempre que se apresentavam mais ousados ou como possível fator de aglutinação do descontentamento ou da oposição.

3 - É simplista dizer que o movimento de 31 de março é a expressão da penetração do capital  transnacional no Brasil. Embora o movimento tenha desde o primeiro momento se considerado como parte da geopolítica ocidental, ele considera também que é possível o desenvolvimento a partir de uma acumulação da riqueza. Daí que a visão que têm é exatamente inversa à defendida pelas correntes nacionalistas radicais “que a dependência aumenta na proporção direta da entrada de divisas e investimentos transnacionais”. Aclarando. Uma das teses econômicas defendidas pelos teóricos da ESG, ao nível da economia, é que a entrada de capital transnacional pode  gerar uma acumulação de riqueza, que se num primeiro momento apresenta-se como problemática, tende a produzir uma decolagem -- utilizando a expressão de Rostow --, ou seja, um processo gradual de desenvolvimento (a partir de um certo grau de acumulação). Daí considerarem de secundária importância no processo geral da economia a questão da dívida externa.

4 - Levando em conta a impossibilidade de fazer crescer a economia em todos os seus itens, a política  econômica da “inteligência” militar tem sido a de criar o que eles chamam de “pólos de desenvolvimento”, começando pelos setores de ponta, já que estes por realizar mais rápido a mais-valia atraem mais investimentos estrangeiros. Já ao nível do Estado começaram (ou continuaram, esta seria a expressão correta) a dar importância ao setor de bens de capital, mas desde que estivesse relacionada diretamente com o resto do parque industrial brasileiro. Ou seja, a política de substituição de importações nesse setor só passa a ser prioritária quando seus custos sejam menores ou iguais aos do competidor estrangeiro. O que pode parecer uma contradição com um plano geral de desenvolvimento, mas que surge de um fenômeno concreto, a descapitalização da economia. Aqui também deve ser levada em consideração a política de construção de grandes obras (que junto à questão militar levou alguns economistas a verem características do modo de produção asiático no projeto militar), que está mais ligado à rápida  realização da mais-valia do que pela intenção de diminuir as tensões sociais geradas pelo desemprego, embora seja importante notar que algumas dessas grandes obras têm claro fim estratégico.

5 - A teoria política desenvolvida pela ESG e sintetizada na Lei de Segurança Nacional mais do que expressar um fenômeno conjuntural de repressão mostra exatamente que os militares acreditavam estar enfrentando de fato uma revolução.

Nós consideramos que devido à internacionalização do capital e à interdependência da economia a nível mundial é impossível um processo de desenvolvimento sem desequilíbrio, sem romper a relação estratificada entre os países industrializados e os países periféricos, ainda que esse desequilíbrio se dê dentro das margens do capitalismo. Ou seja, a acumulação do capital e de riqueza terá sempre um limite, caso se mantenha a sangria que representa o déficit do balanço de pagamentos. E mesmo que se dê importância secundária a este fenômeno, o certo é que a sangria existe e é ela que funciona como um dos fatores de dependência e que torna impossível  o desenvolvimento  como meta integrada.

O que é certo é que o equilíbrio fracionado da situação mundial favorece o projeto hegemônico brasileiro. De forma conjuntural, mas favorece. Em termos mais gerais e históricos, o pensamento militar, desenvolvido como teoria da ESG a partir principalmente de 1964, considera que a liberdade deve estar condicionada aos ditames da razão segurança.

Esta é a lição dada por um dos teóricos da ESG, general Meira Matos, em palestra proferida no ano passado na Câmara Americana de Comércio para o Brasil, em Washington. Segundo o general: “O Brasil tem condições geopolíticas para emergir entre as grandes nações do mundo e se tornar um dos países mais importantes, uma potência  em condições de influir nas decisões de ordem mundial”.

Nesta frase está sintetizado o projeto político-militar brasileiro. E uma leitura mais atenta do texto nos conduz à certeza de que o projeto de poder brasileiro inclui a construção de arsenal nuclear. Afinal, hoje a noção de potência capaz de “influir nas decisões de ordem mundial” está vinculada à posse de armas nucleares e à capacidade de dispará-las. Poder mundial sem poder nuclear é ficção num mundo dominado pelo conceito de soberania. Em decorrência, o general  Meira Matos e toda a inteligência  militar consideram que a busca de status de potência conduz a mudanças e a conflitos nas relações tradicionais. Mas tudo tem o seu preço. E se no plano sul-americano o projeto do Brasil potência despertará receios e reações, corridas ao poder militar pelos regimes militares, no plano interno -- em termos históricos -- o preço é a supressão da liberdade, pré-condição implícita na predominância da doutrina de segurança, tal como se depreende do pensamento do general Meira Matos. Ele próprio diz que a segurança é o ônus que o Brasil tem que pagar para “emergir entre as grandes nações do mundo”.

Fica agora um outro problema. É possível o fim da dependência e o desenvolvimento capitalista como está sendo equacionado pelos militares? Se vemos a questão fechada dentro da estrutura nacional é impossível, já que a existência do imperialismo impossibilita o rompimento da dependência. Mas se num determinado momento rompe-se o equilíbrio mundial e o movimento de massas consegue ser canalizado para um projeto nacionalista de direita ou neutralizado e reprimido existe tal possibilidade, como hipótese não descartável. Afinal em termos históricos a tendência não é somente para surgimento de estados operários, mas para a fascistização dos estados capitalistas. Só que aí embora eliminada a dependência, não teríamos ainda o desenvolvimento, já que este dependeria  da situação internacional.

As reformas uma necessidade

Em nossa análise de estrutura vimos que o Brasil é um país capitalista economicamente dependente e com características  peculiares neste seu capitalismo, que é ter parte de sua economia estatizada, uma industrialização desigual, mas importante para um país dependente, baseado principalmente em bens de consumo duráveis e com um crescimento relativo da indústria de base e transformação. Ao mesmo tempo, mantém uma agricultura de corte tradicional, em grande parte dirigida  à exportação.

No plano social essas tendências estruturais ao nível da economia tendem a criar particularidades sui generis. Algumas  delas são clássicas dentro de uma economia dependente, tais como uma burguesia nacional frágil, e sem grande expressão, tanto no cenário interno, como internacional. Participação importante e crescente nas indústrias transnacionais na vida do país, e uma força de trabalho assalariada que aumenta de forma desequilibrada em relação ao próprio poder burguês (incluídos aí os setores nacional e transnacional). Outro fato social, que surge como fenômeno de estrutura, é a fuga das massas assalariadas rurais em direção aos grandes centros urbanos, em busca  de trabalho. Na década de 80, no Brasil, a relação cidade/campo será de 3/1 habitantes, respectivamente. Dentro anos, pasmem, esta relação será de 4 para 1. Transformando isto em número de habitantes teremos 150 milhões nas cidades e 50 milhões no campo.

Ao nível político, a análise de estrutura nos dá fenômenos bem definidos, que surgem da relação das características estruturais entre fator social e fator econômico. Assim temos uma tendência estrutural a governos de tipo bonapartista que equilibram a instabilidade gerada pela crescente mão-de-obra assalariada em descompasso com a burguesia proporcionalmente frágil. Outro fenômeno que tem características políticas predominantes é o das forças armadas assumindo um papel de gerente do Estado e cada vez mais de árbitro da sociedade.

Como dissemos, a análise de estrutura nos dá a essência, ou tipo de sociedade em que vivemos. Mostrando tendências que em termos sociais são históricas, já que permanecem por décadas.

Entendidas estas características da essência e razão (em termos hegelianos), vejamos agora o outro lado da análise, a genética.

Na análise genética ou dinâmica tentaremos determinar aqueles fatores que sendo históricos ou conjunturais levam ao movimento. Ou seja, aqui estamos preocupados justamente com isto, o movimento, que, nascido das próprias contradições da sociedade, faz dela um organismo vivo, em eterno desequilíbrio.

Os problemas do General Figueiredo

Já vimos que os militares têm um projeto global para o desenvolvimento da sociedade capitalista no Brasil. Vimos também que este projeto, devido à própria estrutura do capitalismo mundial, apresenta-se apenas com uma remota possibilidade de viabilidade.

Mas, mesmo que ele seja estrategicamente viável, ou melhor, historicamente possível, não significa que ele passe do possível à realidade. Isto porque o possível é uma hipótese, e nunca na sociedade temos apenas uma hipótese, mas muitas que se combinam, que se negam, e que levam ao que, em lógica, chamamos de probabilidade crescente. E a probabilidade crescente é aquela hipótese que, dentro de um sistema de hipóteses, devido às múltiplas relações entre estrutura e gênese, se transforma na mais viável. Sintetizando isto tudo numa belíssima frase de Trotski, temos: “Não há estratégia correta sem táticas corretas”.

Dessa maneira, a conjuntura pode ser o fator que lance por terra toda a geopolítica da inteligência  militar. Daí, a necessidade de analisarmos a dinâmica das reformas, e a razão da diferença entre Geisel e Figueiredo. Acreditamos que o que pretende Figueiredo é fazer uma plástica no regime, mas como na velha lenda chinesa, às vezes, a máscara se gruda à cara, para desespero do mascarado.

Na verdade, em termos de economia, o governo Figueiredo tentará resolver, ou melhor, adequar a situação brasileira à conjuntura internacional.

Dentro da questão social, intimamente ligada à economia e à política, está a questão trabalhista. Praticamente, nestes últimos 15 anos, os governos militares conseguiram controlar a insatisfação do proletariado industrial e dar concessões  à classe média. Neste momento, a situação já não está tão fácil. Os trabalhadores, aproveitando-se de uma série de facilidades e contradições surgidas na sociedade, optaram pelo caminho clássico e histórico das greves. O que é um problema, pois o regime autoritário não criou nem permitiu a criação de mecanismos de expressão e vazão para o descontentamento social. A falta de sindicatos representativos, fortes e reconhecidos pelos trabalhadores permite, por exemplo, que as greves ameacem extrapolar a frágil e controlada estrutura sindical, e tomar características selvagens. É um problema social e político.

É um problema que tem dois lados, e não um só. Os próprios empresários não estão preparados para enfrentar greves. No tipo de economia que o Brasil desenvolveu nestes últimos anos, que como já vimos inclui até a existência de capitalista sem capital, a greve é considerada o caos, a anarquia. Mas em termos clássicos da economia capitalista, dentro  do chamado sistema de livre empresa, a greve está situada como fazendo parte da dinâmica competitiva. Dentro desta visão as reivindicações e greves estimulam a busca da produtividade e a criatividade empresarial. Os próprios economistas mais ortodoxos e pró-capitalistas afirmam que, em seus 200 anos de existência  fecundos em movimentos de reivindicação operária, o capitalismo não feneceu, ao contrário, desenvolveu-se sempre.

Aliás, eles mesmos esclarecem que, na história contemporânea não foram as greves as responsáveis pelos momentos mais dramáticos da economia, como a crise de 29, por exemplo. Para estes economistas, a greve é o sinal de alarme, a sirene que antecipa a aproximação de emergências sociais. Assim afirmam que, quando a relação entre o capital e o trabalho desequilibra-se acima dos níveis  tolerados, a greve e o recurso para evitar a queda “no abismo” da convulsão popular. A greve dentro deste ponto de vista não seria contra, mas a favor do status quo. E mais um pouco. Esta visão que eu prefiro chamar de neoclássica, ou social-democrata, diz ainda -- sem concorrência não existe capitalismo. A greve é uma espécie de fator darwiniano, dando força aos mais aptos e liquidando os incapazes, assim como o faz uma rígida política monetarista, sem que se lhe atribua a pecha de subversiva. Admitem-se investimentos maciços em tecnologia, propaganda e distribuição, mas despreza-se o elemento humano. Salários justos jamais liquidaram empresas. Produtos de má qualidade ou desvio de lucro como renda de acionistas, sim.

Este é o pensamento dos setores mais avançados do moderno capitalismo europeu, mas sem dúvida um pouco difícil de ser aceito com tanta abertura pelo futuro governo, já que a própria visão da greve como elemento de equilíbrio da economia capitalista implica na existência de um capitalismo forte e não dependente. Em casos como o do Brasil, esta fórmula tende a ser altamente perigosa. E o governo sabe disso. Além do mais há um outro “perigo” que é o da relação quase que imediata entre greve econômica  e greve política.  Aqui, dada a própria existência de uma ditadura, e de um governo que não conta com a simpatia do povo, aliado à inexistência de liberdades políticas e sociais, o processo de greve tende a transformar-se rapidamente numa questão política, ainda que tenha surgido a partir de reivindicações econômicas imediatas.

A inteligência militar sabe disso. Afinal, ela sempre coloca como uma das razões da eclosão do movimento de 31 de março, o fim da baderna grevista dos anos de Goulart. Mas, a situação chegou a tal ponto, que o governo só tem como saída o recuo tático, aceitação da criação de organismos que permitam a vazão, o mais controlado possível, dos conflitos entre o capital e o trabalho. Já estamos vendo o recuo do governo em relação à draconiana lei de greve de agosto e setembro. Já estamos vendo a aceitação das negociações diretas entre patrões e empregados. E veremos muito mais. O que deve ficar claro é que a questão social, particularmente o problema trabalhista passou a ser uma das prioridades do governo Figueiredo, já que este simples elemento  pode ser a hipótese que derrube por terra toda a elaboração  estratégica global da inteligência militar.

E o social nos leva ao político. Esta é, sem dúvida, a grande tarefa do general João Batista Figueiredo. Com todas as palavras -- a tarefa principal do governo Figueiredo é a normalização política do país, entendida como restabelecimento da ordem democrático-burguesa, a partir de uma visão lenta e gradualista. Tarefa esta que ele terá que resolver não por questões morais, mas como solução de uma necessidade, a da própria manutenção das diretrizes mais gerais do movimento de 31 de março. Se ele consegue isso evitando grandes choques sociais, contornando a conjuntura social e política adversa, podemos dizer que a revolução de 64 continua. Se as contradições sociais afogam suas soluções de conjuntura, podemos afirmar que a revolução está morta, e um novo período passa a se abrir na história do país.

Este é o centro e a tese principal de nosso trabalho. A contradição mais crua deste momento histórico da sociedade brasileira é político social. Daí que a abertura e a democracia se transformaram numa necessidade para a própria sobrevivência de todos os planos estratégicos e globais do movimento de 31 de março. Esta abertura será mais lenta ou mais acelerada, conforme se combinem uma série de fatores. Mas o impossível, a probabilidade decrescente, é a manutenção da situação tal qual está.

A democracia burguesa é uma conquista das massas trabalhadoras. Não é um presente ou uma dádiva dos céus. É uma luta e geralmente é conseguida com muita dor, prisões e morte. Mas se em parte ela é uma conquista, às vezes pode transformar-se numa vitória de Pirro. Essa vitória de Pirro é a chamada contra-revolução democrático-burguesa. Nós, os trabalhadores, lutamos pela democracia visando a solução de nossos problemas de classe que são históricos e que em última instância não podem ser completamente solucionados nesta sociedade. Os empresários e um setor  da classe média lutam pela democracia não como conquista dinâmica, mas como algo estático, essência ideal da própria sociedade burguesa.

Esse esclarecimento é necessário porque muita gente considera antagônico e impossível que os próprios homens que formaram o movimento de 31 de março redemocratizem o país. Nós dizemos que isso não é impossível, mas necessário para eles próprios, a partir, logicamente, das pressões sociais. Assim, neste ano de 79, veremos o surgimento de novos partidos, anistia parcial, a volta de antigos e conhecidos políticos que estão exilados, o aumento da liberdade de imprensa, inclusive para o rádio e a televisão, e muitas outras coisas. Mas é necessário fazer uma separação entre aqueles que lutam pela democracia como forma de solucionar parte das necessidades dos trabalhadores, e aqueles que querem um novo status quo, democrático, mas estático.

Reafirmando alguns conceitos e suas relações, diríamos que a situação de equilíbrio fracionado, favorece o projeto militar de Brasil Potência Emergente, desde que este projeto possa adaptar-se taticamente à conjuntura. Esta política a nível internacional significaria relacionar-se economicamente com os quatro grandes pólos mundiais, tentando dessa maneira diminuir a dependência econômica do Brasil em relação aos Estados Unidos, mantendo no entanto uma qualidade de associado. Isto significa também que o Brasil aceleraria seus esforços e aproveitaria sua crescente boa relação com a social-democracia para penetrar no Mercado Comum Europeu. E também continuar ainda que de forma menos expressiva suas relações comerciais com os países limítrofes, com a África e com a China.

Tendencialmente, levando em conta a diferença existente entre crise, recessão, e depressão, e a relação de cada um destes conceitos com o problema da inflação e da dívida externa com a situação da sociedade brasileira em geral que é de unidade ao nível da luta pela democracia, mas de fracionamento ao nível das alternativas políticas, acreditamos que não devem dar-se crises pré-revolucionárias ao menos no curto prazo. Com isso, queremos dizer que, não somente há saídas conjunturais para o futuro governo, mas que subjetivamente os setores sociais explorados não se encontram em condições de lançarem-se a um enfrentamento político de fundo com o governo.

As lutas serão políticas sim, e expressivas, e até mesmo violentas, mas devem ater-se às questões de democracia, tanto ao nível das condições de vida, da organização sindical como da expressão propriamente política. Nesse sentido, a questão democrática passa a ter, ou precisa ter uma conotação proletária. O pólo operário se transforma assim numa proposta  política de mobilização, que significa, de fato, o reconhecimento de que as reivindicações sociais sofreram uma mudança de eixo, passando da classe média para o movimento operário.

Ainda dentro desta análise geral, não vemos o fenômeno de polarização da classe média como iminente. Há contradições ao nível das alternativas políticas já que as aberturas democráticas, se por um lado levam a uma maior politização da sociedade, levarão também num primeiro momento à confusão política. Mas o papel da classe média não deixa  de ter importância, já que ela tende a lançar-se na defesa da democracia, e a acompanhar a experiência da classe operária em suas lutas - ao menos esta deve ser a tendência  no próximo período , quando ainda o inimigo continua sendo o poder militar.

Alertados para a importância que passam a ter a nível nacional as atitudes do movimento  trabalhista, devemos entender que, se por um lado grandes setores de classe se unirão na luta pela democracia, estes setores por si através de suas lideranças políticas apresentarão alternativas distintas de organização partidária  e de projetos políticos e programáticos. E por isso que dizemos: a unidade na luta pela democracia permanecerá  por algum tempo, mas já  começarão a dar-se os fracionamentos de alternativas políticas. E aqui levantamos o pólo operário  como saída ao nível da atuação e da intervenção política principal, e um partido de programa socialista como forma político organizativa de setores mais avançados do proletariado brasileiro.

Para nós, a formação de um partido dos trabalhadores deve ser conseqüência dos processos mobilizatórios que estamos vivendo há quase um ano. Assim como da expressão de repúdio de amplos setores trabalhistas, nestas eleições, ao governo e à política dos militares. Mas consideramos que o fenômeno verdadeiramente novo na  realidade brasileira é o aparecimento de um sindicalismo classista atuante, onde estão representados cerca de 40 sindicatos e, aproximadamente, 1,5 milhão de trabalhadores, e que reivindica um sindicalismo independente dos patrões e do governo, organismos de classes autônomos em relação à burguesia, e a necessidade da formação de um partido dos trabalhadores.

Essa oposição sindical dentro da CNTI e os trabalhadores, em geral, são quem de fato vai trazer os maiores problemas para Figueiredo. Devemos fazer parte deste corpo, participando sem sectarismo de todas as discussões, intervenções e atividades, levantando a necessidade da organização dos trabalhadores num partido socialista. Intervindo claramente para que dentro deste partido e principalmente em sua direção não haja burgueses nem militares. Até aqui chegamos. A sobrevivência  dos ideais e do programa da Convergência Socialista está intimamente ligada à viabilidade de construção deste partido dos trabalhadores. Nesse sentido, essa é a nossa meta.

[Jorge Pinheiro, Figueiredo e o Projeto Militar, São Paulo, Versus no 30, março de 1979, pp.4-8]. 


 




A IGREJA, A SOCIEDADE CIVIL E O MOVIMENTO POPULAR NO BRASIL
Por Vanderlei José Maria

O III CELAM - Conferência  do Episcopado Latino Americano - terminou sem, contudo, levantar muitas dúvidas sobre o seu desfecho. As várias interpretações correntes diziam que, em Puebla, a Igreja corria o risco de fazer sua derradeira opção: confirmar ou negar as teses do II CELAM, realizado em 1968 em Medellin, Colômbia. Para muitos tratava-se de se saber se Puebla significaria uma “volta da Igreja aos seus caminhos espirituais” ou se continuaria  comprometida com os movimentos populares.

Na verdade tais interpretações são vazias de sentido. Isto, se analisarmos o caminho da Igreja através de todos os seus documentos e o nível do seu comprometimento histórico, desde a encíclica “Rerum Novarum” do Papa Leão XIII, promulgada em l981, até o discurso do Papa João Paulo II em Monterey, na sua chegada do continente para a abertura da Conferência. Porém, até onde o comprometimento da  Igreja chegou, não era possível acreditar numa meia-volta, e num retorno às omissões cúmplices com as classes  dominantes. Daí que as interpretações, que viam em Puebla um plebiscito para a “teologia da libertação”, falharam totalmente. Há, sem dúvida, no interior da Igreja, a corrente simpática a um alinhamento direto com as classes dominantes, mas a grande maioria do episcopado presente no México sabe que as decisões do Medellin foram demasiadamente profundas para serem abolidas por um ato de vontade.

O compromisso da Igreja, em particular a Igreja latino americana, é um fato, para todos os efeitos, irremediável. As mortes dos padres Camilo Torres e Penido Burnier são símbolos deste compromisso. Puebla só podia confirmar Medellin. Assim mesmo é pouco.

Na verdade, Puebla deveria ter aprofundado as questões de Medellin.

Agora, após este III CELAM, fica a pergunta: quais os caminhos práticos da Igreja latino-americana, em especial da Igreja do Brasil? A este respeito, entrevistamos Paulo J. Krischke, exilado brasileiro que leciona na Universidad Autonoma del México e é integrante do LARU (Latin American Research Unit), organismo que reúne alguns dos mais sérios intelectuais do Terceiro Mundo (grifo nosso). Paulo Krischke vem há muito tempo analisar as relações da Igreja com toda a sociedade brasileira. Resgata as análises que procuram ver a Igreja como uma superestrutura que simplesmente ecoa os interesses burgueses não-hegemônicos, ou que procuram ver, como os brasilianistas norte-americanos, a Igreja como instituição quase autônoma no interior do país, um organismo indiferenciado e homogêneo em que as contradições de classe estão totalmente esquecidas.

Considerando  insuficientes tais análises, recorre às clássicas “Teses de Lyon” de Antonio Gramsci.  É na interpretação gramsciana sobre as relações entre Estado-Religião-Partido que encontra, não mecanicamente, mas com toda a dinamicidade, parâmetros teóricos para a compreensão do quadro político  brasileiro.

O papel exclusivo da Igreja é o de ter o seu próprio discurso e sua própria práxis, mas na verdade, este discurso (ou discursos) expressa “as tendências da sociedade civil no seu conjunto, sobre as quais a Igreja reciprocamente exerce sua influência”, afirma Krischke. E nesta linha de pensamento  que se pode compreender “muito do que ocorre na Igreja e na sociedade civil brasileira, pois estando  a oposição sob condições rígidas de repressão , convergia para a Igreja, com apoio explícito  da maioria  da hierarquia eclesiástica. Por ser uma “concepção ativa do mundo”. a Igreja joga um papel fundamental no processo de luta pela democratização do país.

[Vanderlei José Maria/Paulo J. Krischke, A Igreja, a sociedade civil e o movimento popular no Brasil, São Paulo, Versus no 30, março de 1979, p. 14].
 




O NOSSO EINSTEIN  - MÁRIO SCHEMBERG
Por Elisabeth Marie


O amigo de Einstein é um homem simples. Quando chegamos em  sua casa, nos recebeu sorrindo. Entramos em uma sala, repleta  de quadros e outros objetos de arte. Em um canto, uma seda chinesa. Ali adiante, oratórios brasileiros. No pé da escada de entrada, uma escultura moderna, perfilada na posição de sentido. Depois que me acomodei em uma enorme almofada, Mário Schemberg puxou uma cadeira da sala de jantar, que qualquer um acharia  desconfortável para quase duas horas de conversa. O professor Ricardo Ferreira e Antonio Carlos Pavão, ambos cientistas, conversavam com Schemberg, coisas da vida de um físico. Olhei para Fernando, o fotógrafo, e dei  a entender que tinha receio de só ouvir falar em neutrinos, ondas gravitacionais, elétrons, energia nuclear. Foi  quase assim. Mas depois de um cafezinho, falamos muito de educação , de arte, de literatura, e de Einstein, que em março estaria completando seu 100. aniversário. Tentei intervir na conversa, para que  aos olhos do leitor ela ficasse mais “objetiva”. Mas não consegui... Acabei desistindo, deixando a fita correr, intervindo pouco. O resultado é esse que publicamos nesta edição: a árvore do conhecimento  de Mário Schemberg.

A conversa começou sobre o óbvio. Schemberg há havia dito que falara tudo sobre isso a um jornal. Mas mesmo assim, Ricardo Ferreira, com seu sotaque nordestino, articulando as palavras com uma rapidez incrível, quis saber alguma coisa sobre o Acordo Nuclear. Antônio Carlos Pavão completava a pergunta, e Schemberg parecia adivinhar tudo, pois nem deixava que terminassem a interrogação para começar a responder, sossegadamente.

Esse acordo foi algo completamente desastroso. Acho que fui o primeiro que tomou uma posição pública, em um seminário no RJ. Posso ter parecido muito violento, na época; mas mais tarde ficou demonstrado que eu tinha razão. O acordo nuclear foi um dos maiores erros econômicos do Brasil. Atualmente, todos os jornais dizem isso. O aspecto mais prejudicial, foi que desviaram muita verba para esse negócio de energia nuclear, ao invés de empatar em energia hidroelétrica.

Tudo partiu de uma ilusão, que a energia nuclear custaria muito menos que a hidroelétrica. Pelo jeito, hoje já está  custando o dobro. Engraçado, os reatores vão ser instalados até 1990, até lá... É um fracasso econômico total. O governo está em uma posição...

E sobre a posição dos EUA, que sempre foi o parceiro maior do Brasil no que diz respeito aos investimentos estrangeiros, a verdade é que os americanos criaram realmente muitos obstáculos a esse acordo, principalmente as usinas de reprocessamento. Um dos grandes inconvenientes dessa tecnologia atual é permitir o desvio de plutônio, ou para a construção de bombas atômicas, ou até mesmo para finalidades criminosas. Esse desvio é mais baixo em uma usina de reprocessamento. Aliás, existe muita suspeita de que esse desvio já esteja sendo feito, parece que para Israel, não se sabe muito bem. E pode ter sido feito até numa escala maior para a África do Sul e outros lugares.

A rigor, você poderia obter plutônio dos depósitos de lixo atômico. O problema do plutônio é um dos pontos fundamentais da política de Carter. Tanto os EUA como a URSS não gostaram muito do acordo nuclear porque  desconfiam que a Alemanha pode fazer aqui uma série de pesquisas que não são permitidas pelo tratado de paz. O fato dos EUA serem os monopolizadores das armas atômicas no mundo capitalista lhes dá uma posição de hegemonia. Eles não devem querer que a Alemanha produza plutônio, porque enfraqueceria o seu controle sobre esse país quer dizer, sobre toda a Europa. Por outro lado, a URSS não tem interesse nenhum de que a Alemanha produza armas atômicas. Esse é um aspecto mais militar do acordo mas que é importante. Por causa disso, pelo menos, é que os EUA queriam impedir a construção de usinas de reprocessamento  aqui no Brasil.

Um empregado apareceu e disse que Schemberg era chamado ao telefone. Nosso entrevistado voltou logo depois, e foi falando sobre os problemas que um cientista encontra no Brasil. Sobre a situação da pesquisa científica brasileira. Todo mundo riu, admitindo a verdade que encerrava a frase que Schemberg emitiu: “A Universidade brasileira  é um erro completo; tão grande quanto o acordo nuclear”.

Mário Schemberg - A Universidade não é nem empresarial, ela é burocrática, e obriga o jovem a ficar até os 30 anos fazendo cursos ou exercícios e outras coisas assim. A pessoa perde os anos de maior energia, maior criatividade adquirindo conhecimentos que talvez nem sejam necessários. A maneira certa de fazer um cientista, é pegá-lo desde o começo do curso e pô-lo para pesquisar. O interessante é encaminhar o jovem mais  rapidamente possível para a pesquisa científica. E ele pode ser encaminhado desde antes dos 21 anos. Lembro que o primeiro trabalho que fiz, em  Mecânica Quântica, foi em 1935, aos 19 anos.

A Universidade massacra a inteligência, é um sistema altamente elitista e prejudicial para as pessoas, porque as obriga a ficar na universidade quase uma década a mais do que deveriam. As maiores descobertas científicas foram feitas por pessoas na faixa dos 19, e no Brasil isso significa que essas pessoas estariam ou no final do secundário, ou na universidade, fazendo exercícios. É nesta fase que, organicamente, é maior a capacidade de trabalho porque entram na pesquisa sem estarem demasiadamente sobrecarregadas das idéias antigas. Estão mais virgens, sem se deixarem envolver demais pelos valores já existentes. Depois de um certo tempo, de certa idade, o sujeito raramente muda de idéia. Em tudo acontece isso, em política, em cultura, em tudo.

Ricardo Ferreira - Mas você não acha que é preciso comandar uma série de técnicas, e que sem essas técnicas as suas idéias não evoluem?

Mário Schemberg - A melhor forma de você desenvolver uma técnica, é praticando-a, aplicando-a. Trabalhando desde o começo com elas, e não fazendo exercício para depois aprendê-las.

Esse negócio de só ficar estudando é uma profunda burrice. Acumular conhecimentos demais não é conveniente, você abafa suas idéias sob o peso das idéias dos outros. O Newton, por exemplo, desde muito jovem já tinha a essência do que ele desenvolveu  durante toda sua vida; e o Einstein aos 15 anos já estava no caminho do desenvolvimento da teoria da relatividade.

Ricardo Ferreira - Você, que foi afastado da Universidade por motivos políticos, vê atualmente alguma perspectiva de mudança?

Mário Schemberg - Eu acho que há  condições para haver essas mudanças, porque levaram as coisas às raias do absurdo, e essas condições não podem ser mantidas. Atualmente a Universidade é uma instituição em decadência, porque ela não se adapta mais às necessidades do mundo contemporâneo. A Universidade se transformou num grande problema político. Os cursos de pós-graduação estão sendo transformados em subsídios ao desemprego. Na minha opinião, a universidade deve ser educacional e não profissional, retomando a tradição da universidade do início do século XIX e adaptando-se a uma estrutura democrática. No Brasil, a universidade não forma nem o que as indústrias estão precisando, nem o que seria necessário para o desenvolvimento de nossa própria tecnologia. Ela está formando um tipo de pessoa que só serve para virar um frustrado, é um negócio completamente surrealista, uma alienação total da realidade. 

Dentro das chamadas Ciências Humanas, acho que a situação é ainda pior, porque é mais artificial. Para se ter uma idéia, o próprio Lévi Strauss dizia em 1968 que o estruturalismo havia morrido, mas no Brasil ele nasce exatamente nesta época, isto é, ele já nasceu morto.

Nem no Estado novo a repressão na Universidade foi tão grande como de 64 para cá. Naquela época havia cursos sobre marxismo na USP. Na verdade, era uma coisa meio anêmica. As mocinhas assistiam às aulas, anotavam no caderno que Lênin era o maior filósofo do século XX, e ficava por isso mesmo... As coisas não se tocavam, elas não tinham nenhuma vivência que as tornasse vulneráveis àqueles ensinamentos. Mas no geral, é assim mesmo. A burguesia foi e é liberal sempre que não se sente ameaçada, mas quando sente a menor ameaça, aí a coisa muda de conversa...

A repressão no Estado Novo foi muito violenta. Em alguns setores a censura foi terrível. Mas dentro da universidade o estudante não vivia apavorado, não havia o 477. Não havia a opressão de 64. Provavelmente porque até 68 a Universidade foi uma área de grande agitação. A faculdade de Direito no Estado Novo foi o baluarte do antigetulismo, no estilo da UDN. Não havia nenhuma forte tendência marxista.

A gata angorá deslizou pelo tapete. Mansamente se roçou na barra da calça de Schemberg. Ele lhe fez um cafuné no pescoço e disso: “O que foi, minha gatinha?”. Depois a gata passou os olhos em todos os presentes e seguiu seu caminho. Sem pensar, todos fizemos uma pausa. Aí a conversa continuou.

Ricardo Ferreira: Eu  ainda me lembro que o Darci Ribeiro conta que o Anísio Teixeira chegou para ele e disse: “você vai ser bem-sucedido como reitor da Universidade de Brasília, porque você é um ignorante em educação”. E Darci conta que o Anísio conhecia detalhadamente o sistema educacional brasileiro, e isso o tornava indeciso, ele era mais um erudito.

Mário Schemberg: Aliás, o Anísio fez muito mal à educação brasileira, não porque ele foi um erudito, mas porque ele estava muito influenciado pela escola de Dewey. E Anísio é um dos pais da Universidade profissional, que é outra coisa que eu acho errado – a Universidade profissionalista. Evidentemente, que ele era um homem inteligente.

Tem uma história que ilustra bem isso. O Gilberto Freire, em um depoimento que deu ao “O Estado de São Paulo”, conta que ele chegou na Colômbia, já tendo feito mestrado, e aconselharam-no a fazer doutoramento. Mas por sorte, ele conheceu um crítico americano muito inteligente e agudo, que disse ser besteira fazer doutoramento. Que ele pegasse a tese de mestrado, desenvolvesse melhor, e escrevesse um livro. E o livro foi “Casa Grande e Senzala”, a melhor coisa, talvez a única coisa boa que o Gilberto já produziu. Se tivesse feito doutoramento, nem “Casa Grande e Senzala” teria produzido, iria talvez acabar metendo num livro uma porção de coisas de sociologia acadêmica, que seria difícil entender.

Ricardo Ferreira: Você me parece um especialista em Gilberto Freire. Apesar de eu ter tido uma série de problemas nos anos de exílio, tendo o senhor Gilberto Freire inclusive censurado meus artigos par revistas da Universidade, você acha que o fato da obra de Freire ter sido criticado, por marxistas e pelo próprio Caio Prado Júnior influiu no comportamento do Gilberto, sobretudo em política?

Mário Schemberg: Gilberto é um fenômeno que você vai encontrar muito em outros segmentos lá no Nordeste. É o fenômeno que o Gramsci chama de intelectual da sociedade agrária. O Gramsci no início era um grande admirador de Crocce, e acabou concluindo que Crocce era o grande pensador feudalista lá da Itália do Sul. No Nordeste, você vai encontrar muitos intelectuais e artistas deste tipo. Outro é Câmara Cascudo. Às vezes, são grandes intelectuais. Eu acho o Gilberto Freire um grande intelectual, não há dúvidas. E sobretudo um grande escritor. Mesmo que Casa Grande e Senzala não interessasse para a pesquisa sociológica, teria importância como obra literária. O Gilberto, quando voltou dos EUA em 1930, ficou uma espécie de figura palaciana dos Estácio Coimbra, e sempre foi muito ligado às classe proprietárias. Isto não quer dizer que ele não seja inteligente, mas é um reacionário. E reacionário não é sinônimo de burrice.

Ricardo Ferreira: Mas houve uma época, mesmo dentro do Estado Novo, que ele tomou certas posições progressistas; e depois de 46, voltou a ter uma posição cada vez mais reacionária... 

Mário Schemberg: Mas ele é reacionário! Mas um reacionário não só pelas idéias, mas pelo seu próprio ser. Por mais que ele mude de idéias, nunca vai deixar de ser reacionário. O Gilberto amava aquela sociedade da “Casa Grande e Senzala”, esse é o problema. Ele tem uma fixação por aquela sociedade, ele desejava conservá-la. Aliás, não sei se você leu o prefácio de Ferreira Gullar às obras do poeta Augusto dos anjos. Gullar mostra que ele era filho de senhor de engenho da Paraíba, e que a experiência de vida, ligada á decadência da economia rural nordestina, foi sua fonte de trabalho, o estímulo maior em sua obra. Só que, no augusto, o lado progressista é muito maior que no caso de Gilberto.

Lá fora, o tempo estava fechado. O ruído dos carros e de uma motocicleta, que passou voando, não deixou que entendêssemos algumas palavras. O ruído constante de uma vassoura no chão e a figura da empregada limpando o jardim, já faziam parte do ambiente. Schemberg e Ricardo Ferreira estavam muito animados, falando de grandes escritores. 
Voaram também até as estepes russas.

Ricardo Ferreira: Então a gente pode até falar que Gilberto é um Dostoievski e Augusto dos Anjos um Turgniev, no sentido de que Dostoievski e Turgniev são dois escritores contemporâneos russos. Mas num predomina o aspecto pan-eslavista reacionário, e no outro, predomina o aspecto mais progressista.

Mário Schemberg: Dostoievski é um dos escritores russos do século passado que mais interessam ao século XX, porque levantou problemas existenciais do homem moderno, e que hoje têm importância muito grande.

Ricardo Ferreira: Lembro a você que ele foi o criador de “Pais e filhos”, a primeira obra niilista, e nesse sentido ele é ponte de contato com a revolução da juventude atual, você acha isso correto?

Mario Schemberg: Ele pode ter sido o primeiro na literatura que levantou problemas do niilismo, mas seu livro que mais interessa ao século XX é “Os Demônios”. Este o grande livro de Dostoievski. O pessoal fica pensando muito em “Os Irmãos Karamazov”, que tem uma coisa importante – a visão de Dostoievski de cristianismo. Ele era um homem que fazia uma força incrível para crer em algo. Senão, se suicidaria. Em “Karamazov”, Dostoievski deixa claro – na cena da morte do santo, cujo cadáver começa a se decompor muito rapidamente – que o cristianismo é uma coisa que se você começa a cutucar, fede logo.

E, como estávamos falando de literatura, quisemos saber de Schemberg se ele conhecia na atual fase da cultura brasileira, figuras equivalentes às comentadas (Gilberto, Augusto do s Anjos, Dostoievski, turgniev). Ele falou de um grande amigo seu.

Eu acho que surgiram grandes escritores. Um deles é o José Agripino de Paula, que escreveu “Pan América”. Na minha opinião este é o livro mais importante da década de 60. Muita coisa importante apareceu no Brasil, no campo cultural, permanecendo desconhecida. O Agripino, por exemplo, os críticos não conhecem mas entre os jovens ele é bastante reconhecido. Muita coisa ficou soterrada nesta década, e aos poucos vai emergindo. Mas também tem muita coisa que foi endeusada por aí, e que não é boa. 

Certos escritores surgiram calcados em figuras como Joyce – que é maravilhoso, sem dúvidas. Mas não tem nada a ver com o Brasil.

O tempo passou muito rápido. Pedimos que Schemberg falasse de Einstein, com quem chegou a trabalhar. Sob o olhar arregalado de um outro gato, desta vez um siamês, Mário Schemberg disse coisas que tinham muito pouco a ver com aquela foto famosa do cientista alemão, de cabelos despenteados, língua de fora sorriso zombador.

Einstein era um homem simples. Introvertido, não era de muita conversa. Mas foi talvez o único grande cientista que tornou-se uma figura de um apelo popular tremendo. Outros grandes cientistas não chegaram a ter esse carisma de Einstein, embora fossem tão bons quanto ele, como Max Planck, por exemplo. A maior parte das pessoas que o admiram, não tem a menor idéia do que é a teoria da relatividade, mas sentem por ele quase que uma veneração. É um fenômeno de força de personalidade.

Einstein foi um homem que em determinados momentos teve posições políticas muito corajosas, como na época da Primeira Guerra Mundial. Enquanto noventa e dois cientistas assinavam um abaixo-assinado a favor da guerra, ele, junto com mais outro, se pronunciavam contra a guerra. Na época do macartismo até o Chaplin teve que sair dos EUA, apesar de sua enorme popularidade, mas o Einstein, apesar de protestar nunca foi podado. Ele era alguma coisa como a figura de João XXIII – com tantos papas por aí, não houve nenhum com o prestígio dele, os outros todos eram funcionários lá da Cúria...

Eu diria que depois de Newton não houve nenhum físico com a estatura de Einstein. Ele mudou o ambiente intelectual do século XX, como Darwin fez com o século XIX. Nesse século todos sofreram a influência de Darwin. O próprio Marx queria dedicar “O Capital” ao Darwin, mas por outro lado Darwin foi considerado como o ideólogo do capitalismo liberal da cultura. Tanto Darwin quanto Einstein ajudaram a criar um novo tipo de pensamento. Como Newton tinha feito antes, ele criou uma nova visão do mundo. Depois que ele apareceram, o mundo já não foi mais o mesmo de antes.

Quem é quem
Mário Schemberg – físico brasileiro, de renome internacional. Foi cassado pelo AI – 5. Foi um dos primeiros a se manifestar publicamente contra o Acordo Nuclear Brasil/Alemanha. Sempre, em suas discussões, tem se manifestado contra o autoritarismo, em todas as suas formas, sendo suas posições políticas conhecidas publicamente. Trabalhou com Albert Einstein, de quem nos fala algo, nesta entrevista.

Ricardo Ferreira – Cientista brasileiro, conhecido mundialmente, atualmente trabalhando na Universidade Federal de Pernambuco, depois de passar algum tempo como professor visitante do Instituto de Química da USP, em São Paulo. Devido a motivos políticos, viveu alguns anos fora do país. Morou nos Estados Unidos e Europa, tendo trabalhado em várias universidades e recebido vários títulos. Escreveu um conto (inédito), A Praga Hexagonal, escrito em inglês. Foi membro do antigo Partido Socialista Brasileiro. Membro da Convergência Socialista.

Antonio Carlos Pavão – Um dos primeiros a se doutorar em Química Teórica no Brasil, pela USP. Participante ativo nas atividades de seu campo de trabalho, tanto em seu aspecto científico, quanto político. Atualmente encontra-se trabalhando na Universidade Federal de Pernambuco.

[Elisabeth Marie, O nosso Einstein, Mário Schemberg, São Paulo, Versus no 30, março de 1979, pp. 24-27]. 




O CADAFALSO E SUAS CORDAS – PROCURA-SE
Por Vanderlei José Maria


Assassino de alta periculosidade, responsável pela morte de 450 mil crianças antes que consigam completar um ano de vida. Porta armas como a fome, a miséria, a doença, a exorbitância e a frieza de seus crimes. Seu nome: Leviatã, nome descoberto pelo inglês Thomas Hobbes por volta do ano 1650. Quem o encontrar que o denuncie aos cidadãos, sob a pena de se tornar cúmplice do astuto fratricida. Que se cumpra!

TENTANDO APANHAR A CORDA

Em 1979, nascerão 4,5 milhões de crianças, mas 450 mil estão condenados à more antes de fazerem o primeiro aniversário. Ou seja, de cada mil brasileiros que nascem, cem morrem antes de completar o primeiro ano de vida. Segundo o Fundo das Nações unidas para a Infância (UNICEF) morrem no Brasil uma criança por minuto com idade abaixo de um ano. Os índices oficiais e oficiosos, embora conflitem em décimos percentuais, são os maiores e os mais exorbitantes do mundo. Segundo o professor João Yunes, do Centro de Estudos de Dinâmica Populacional a Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo, em 1970, estima-se que morreram 108,6 por mil nascimentos. Relativamente a países com o mesmo nível de desenvolvimento do Brasil, de acordo com o Anuário Estatístico da Organização das Nações Unidas (ONU) morrem  na Tailândia 21,8 crianças por mil nascimentos; Sri Lanka 45,1; Iraque 27,5; Grécia 24,1; Portugal 38,6; e Argentina 59 por mil. Numa pesquisa editada pela Organização Pan-americana de Saúde, em que participaram os professores João Yunes, Eduardo Marques, Elza Berquó, e Rubens Murilo Marques da Universidade de Campinas, constatou-se neste trabalho, uma grande disparidade no índice nutricional entre um a família rica que gasta por média 111,7 por cento, equivalente ao salário mínimo “por pessoa”, e uma família pobre que gasta 9,6% por pessoa. Teriam, segundo a pesquisa,  as seguintes diferenças de peso e altura quando alcançam a idade de 12 anos; a criança rica pesa 38,8 quilos e tem 1,44m de altura; a criança pobre tem 31,4 quilos e mede 1,38m de atura. Comparativamente, portanto, somente na Bahia, que por estimativa possui 8 milhões de habitantes, morrem 114,7 crianças por mil nascidas; em Angola, com 6 milhões de habitantes morrem 24,1 por mil nascimentos. Porém, a Bahia  não é o estado brasileiro que possui o maior índice de mortalidade infantil. Apesar dos dados estatísticos oficiais não constar pelo menos 10 capitais brasileiras, Natal possui 118,8 por mil nascimentos; João Pessoa e Belo Horizonte, 120; Fortaleza 123,5; Maceió 146,2 e Aracaju 149,7. Com o estado de Minas, estes estados juntos somam 51 por cento da população brasileira.

Oficialmente, a desnutrição é a “causa mortis” de 175 mil crianças. Quando estas crianças chegam a viver mais que 28 dias, enfrentam outros problemas, como as doenças infecciosas, como diarréia, tétano, difteria, sarampo, ou afecções respiratórias, como tuberculose. Estas doenças são responsáveis por 145,5 mil atestados de óbitos, antes de completarem um ano de vida.

A esquistossomose, por sua vez, se aproxima de 100 por cento das crianças do Nordeste. Em Sergipe, a taxa é de 75,8, record mundial. Outro mal da população brasileira, não só nordestina, como também do Sudeste e Centro-Oeste, é o “trypanossoma cruzi”, agente da doença de Chagas. Existem, aproximadamente 10 milhões de brasileiros com este agente: 500 mil crianças são portadoras de doença de Chagas. O tracoma vítima 20 milhões de crianças na faixa etária de sete a 14 anos, ameaçados seriamente de cegueira. Segundo os dados da Superintendência de Campanhas de Saúde Pública (SUCAM), o tracoma afeta os olhos de 700 mil crianças com idade inferior a 14 anos. Segundo o mesmo Sucam, o tracoma está tendo uma desestimulante elevação nos seus índices no estado de São Paulo, onde pensava-se ter erradicado a doença. Aqui foram encontrados 37 casos, atingindo a percentagem de 2,3 por cento.

As condições antropométricas das crianças brasileiras são outro fator relevante, quando estas crianças (poucas) sobrevivem após completar um ano de idade. João Yunes e Eduardo Marques ao examinarem 2.647 crianças com três anos de idade e de diferentes classes sociais, constataram que as crianças da classe baixa possuíam um cérebro por volta de 48,95 centímetros, enquanto as crianças ricas contavam com 49,49 centímetros. O perímetro encefálico é importante, pois é ele, segundo os professores Yunes e Marques que “permite detectar precocemente patologias intracraneanas. Há um relacionamento entre prejuízo nutricional, crescimento do cérebro e desenvolvimento mental. Por outro lado existem no Brasil seis milhões de crianças excepcionais cujo custo mínimo é de Cr$ 3.400 a Cr$ 8.500 por mês, o que é um absurdo para o nível de renda do brasileiro médio”.

NA CORDA BAMBA

As crianças brasileiras defrontam-se ainda com uma luta maior, que depende somente de suas forças. Muitas vezes esta luta começa logo aos sete anos de vida, tendo que suportar todas as condições adversas para sobreviver.

Segundo a revista norte-americana Time, de 11 de setembro de 1978, existem no Brasil, 16 milhões de crianças abandonadas e carentes. Na matéria intitulada “Brazil’s World Generation” (A geração perdida do Brasil), o Governo gasta CR$ 760 milhões com o “bem estar do menor”, porém só 11,8 por cento das cidades brasileiras recebem alguma ajuda. No Nordeste brasileiro, estão 10 por cento dos estabelecimentos federais para amparo ao menor, devido ao alto índice de natalidade. Acrescenta ainda a “Weekly Magazine” que num orfanato em São Paulo, o QI (quociente de inteligência) oscila entre 50 e 70, o que seria diagnosticado nos Estados Unidos como “retardamento mental”.

Mais ainda segundo a “Time”, existem para cada dez mil crianças um estabelecimento governamental, e que a verba destinada, por exemplo à Febem, de São Paulo, não ultrapassa Cr$ 58 milhões, sabendo-se que o custo mensal de uma criança é de Cr$ 2.800, e que são recolhidos por noite 25 menores. Apesar do mal estar dos órgãos responsáveis e a aplicação dos serviços de segurança para saber quem passou às informações à revista, Roberto Cavalcante, diretor da Funabem do Distrito  Federal, diz que time fora até Brasília, e ele fornecera os dados requeridos. Confirmando os dados do semanário, Cavalcante lembrou a Comissão parlamentar de Inquérito do Menor de 1975, que registrava as infrações cometidas por menores: furto, 83 por cento; tentativas ou homicídios consumados, 29,02 por cento; delitos sexuais, 46,16 por cento, outros, 49,67 por cento.

No Senado Federal, o senador paranaense pelo MDB, Leite Chaves, faz constar dos Anais, a matéria da Time dizendo:
– “Nós sabemos que o objetivo do governo nesses anos não foi outro senão trazer privilégios para as grandes multinacionais, para os bancos, para os latifúndios.”

Numa entrevista ao jornal “O Globo”, o Juiz de Menores, Alírio Cavalieri, afirmou que a delinqüência juvenil entre 1970 e 1977 subiu 300 por cento, segundo o conhecimento policial, não levando em consideração a delinqüência real, que não chega aos livros de ocorrências policiais.

Todos estes números confirmam uma única coisa: os menores brasileiros roubam e matam por uma única razão, muito bem sintetizada na CPI do Menor de 1975: “a pobreza é a causa preponderante da marginalização menor em 90,26 por cento dos municípios brasileiros”.

Em agosto de 1978, a assistente social Maria Benedita Salgado Arcas, já denunciava: “O problema não é o menor abandonado, mas as famílias abandonadas. O verdadeiro problema é a carência das famílias”. Funcionária lotada na Febem do Tatuapé, Maria Benedita tocara com profunda acuidade o cerne do problema a má distribuição da renda regional e a péssima distribuição da renda individual.

O PIB (Produto Interno Bruto) brasileiro é um dos maiores do mundo. Alia-se a isto todo o processo de repressão social, sem que os trabalhadores pudessem ter canais para resistir à política tecnoburocrática federal.

Muitos juízes de menores, inclusive o ex-presidente da FEBEM, João Benedito de Azevedo Marques, acabaram afirmando então que era necessário um “transformação” da estrutura sócio-brasileira”.

O que as secretarias de Bem Estar Social combatem são na verdade as conseqüências da política sócio-econômica dos governos militares, pois o menor infrator, como já é sabido, é apenas um menor preso em flagrante.

Depois, como disse um menor no Rio de Janeiro, depois de fugir de uma das unidades da Funabem, para onde ir? “Se for para a rua, disse ele, vou matar muito ou morrer rapidinho.” Mas as unidades de amparo ao menor têm sido alvo das mais fantásticas fugas, tanto pela violência desencadeada, como pela audácia dos fugitivos e pela sua periodicidade. As fugas são resultado dos maus tratos físicos, das torturas, homossexualismo, e mau tratamento carcerário, como no Rio, onde havia uma solitária medindo aproximadamente 2,10 metros por 1,10 com um colchão no chão, e um vaso sanitário sem descarga.

Procurou-se uma solução (paliativo?) lançando-se uma campanha, para a adoção de crianças. Mas com 65 por cento das crianças são negras segundo dados fornecidos por Gilcéria Oliveira, ex-presidente da Associação cultural do Negro, ninguém apresentava-se disposto a fazer alguma adoção. Foi quando Paulo Rui de Oliveira, vereador pelo MDB, dizendo-se representante da comunidade negra, veio apelar a esta que ajudasse “nossos irmãos da Febem”. Isto acarretou uma discussão acalorada entre o vereador e os jornalistas Hamilton Bernardes Cardoso, editor de Versus, e Neusa Pereira, militante do Movimento Negro. Tudo isto tendo como veículo o Jornal da Tarde. Paulo Rui argumentava dizendo ser da responsabilidade da comunidade negra os “negrinhos” que estavam na Febem, e Hamilton Bernardes Cardoso e Neusa Pereira lembravam ao vereador a condição sócio-econômica do conjunto da comunidade negra. Enquanto isto, o Juiz Nilton Silveira nega a que havia racismo na adoção das crianças, ao mesmo tempo em que se contradizia, afirmando que já haviam 80 famílias negras esperando a adoção. Sem levar em conta a rigidez do protocolo para adoção, é bom lembrar as palavras do sociólogo Clóvis Moura: “Existem em São Paulo 150 famílias negras quer podem ser consideradas (sic) de classe média”... Estas 80 realmente são intrigantes.

NA EXTREMIDADE DA CORDA, A LIBERDADE

Mas ao colocar a questão racial na adoção das crianças, Paulo Rui deixou aberta a porta de um raciocínio mais abrangente. Voltemos a alguns dados acima. A população bahiana tem um índice de mortalidade que triplica o índice de Angola, mesmo considerando a sua densidade demográfica. Os maiores índices de mortalidade infantil ocorrem nos estados de maioria negra, ao contrário dos estados do Sul e Sudeste. Todos os números apresentados, de desnutrição, doenças, retardamento mental dizem respeito muito mais aos negros destes estados que ao número de brancos, em sua maioria situados abaixo do Trópico de Capricórnio. As unidades de “bem estar social” são guetos estruturalmente construídos com um capricho superior ao das prisões, mas não lhes fica devendo nada em relação ao tratamento dispensado.

Consciente ou inconscientemente, o que se conclui destes números não pode ser outra coisa do que o que Stockley Carmichael e James Jones chamam de “racismo institucional”, e que Abdias Nascimento soube compreender com a mais extrema clareza: o processo genocida por que passa o negro brasileiro. A institucionalização não precisa ser algo premeditado como apontam Carmichael e Jones. Apenas é necessário deixar as instituições funcionando “normalmente”, desde que garantam o privilégio de um grupo étnico sobre outro.

No Brasil vê-se a questão do racismo individual, quando este é uma versão cuja conseqüência brutal é institucional, gerando o desemprego, a criminalidade e a morte de milhões de negros. O sonho de “embranquecimento” do Brasil, vai, enquanto isto, à todo vapor, pois aliado a imperiosidade de miscigenação, vai se diluindo a população negra no Brasil.

Ao incrementar uma política genocida, todos os governos brasileiros têm provado uma unidade jamais vista em outros pontos. Na verdade, os governos têm simplesmente, representado politicamente as bases econômicas onde estão apoiados. Enquanto defenderem os interesses burgueses estes governos nada farão pelos trabalhadores. Somente no momento em que estes puderem socializar a produção e a distribuição dos bens produzidos, aí sim seus interesses estarão assegurados. Trabalhadores, negros e brancos ao fazê-lo, estarão superando a alienação econômica e humana que o cap8italismo impôs a todos os trabalhadores. Isto significará o nó fatal no pescoço do sistema capitalista-monopolista e o prenúncio do fim da pré-história, para lembrar Karl Marx. Fiat!

[Vanderlei José Maria, O cadafalso e suas cordas, São Paulo, Versus no 31, abril de 1979, pp. 38-39].
 




GOD BLESS YOU, MR. KING!
(Alguém de vocês viu uma sombra passar por aqui?)
Por John Hope Franklin


Há 11 anos Martin Luther King foi assassinado. Sua morte deve ser lembrada pelos 270 milhões de negros espalhados pelo mundo como um marco de resistência e de força à dominação e exploração branca.

1955. Uma costureira negra, dirigindo-se do trabalho para casa em Montgomery, Alabama, recebeu ordens de um motorista branco para que se transferisse para a parte de trás do ônibus. Rosa Parks estava sentada, em um dos bancos da frente, e simplesmente recusou-se a mudar de lugar. Foi presa por violação às leis de segregação do Alabama. A comunidade negra enfureceu-se. Os negros disseram que já vinham sendo insultados há demasiado tempo por motoristas de ônibus brancos, e declararam que não tomariam mais qualquer ônibus até que a segregação fosse eliminada e certo número de motoristas negros fossem admitidos.

Liderados pelo jovem ministro batista Martin Luther King, os negros de Montgomery simplesmente boicotaram os ônibus até que a empresa, quase ás bancarrota, submeteu-se ás exigências. Em breve, os negros de muitas cidades do Sul recorreram à técnica do boicote para conseguir melhor tratamento nas lojas e outras casas comerciais, e para assegurar melhor emprego para sua gente. Se os autores do boicote usavam a não-violência, eram ao mesmo tempo militantes e obstinados. Certamente, tiveram importância na obtenção de certas mudanças que o Sul dos Estados Unidos, com sua veemente resistência a toda e qualquer transformação, consideraria revolucionária.

Quatro de  Abril de 1968. O clergyman Luther King preparava uma marcha dos negros na cidade de Memphis, Tennessee, quando foi  atingido por tiros. Martin Luther King, formado em Filosofia e Teologia em Boston, premiado com o Nobel da paz em 1964, reconhecido por todos os negros, inclusive pelo líder do Black Muslim, o inflexível Malcom X, estava morto. Ele que havia pregado e lutado pela Não-Violência, era uma de suas vítimas mais trágicas.

Desde a época em que chefiou o boicote dos ônibus em Montgomery, inúmeras foram as ameaças à sua vida. Foi publicamente denunciado e alvo de abjetos epítetos. O próprio clima tornou-se tão carregado que, considerando-se agora as coisas, percebe-se que um fim violento para o grande líder negro era inevitável. Todavia, a América branca não podia antecipar a reação da América negra ao assassinato a sangue frio de um de seus líderes mais poderosos. Vários dias de desordens, incêndios e pilhagens em muitas cidades foram a louca manifestação de um amargo desespero e frustração. Mesmo os que prantearam a morte de Martin Luther King sem qualquer mostra exterior de emoção revelaram-se tão sensíveis no apreço de seu significado quanto aqueles cuja reação foi violenta.

Descanse em paz, Dr. Martin Luther King!

[John Hope Franklin, God bless you Mr. King, São Paulo, Versus no 31, abril de 1979, p. 42]. 

 



POR MINHA PRÓPRIA BOCA, POR MINHA PRÓPRIA MENTE
Por Malcolm X

Malcolm Little nasceu em Omaha, Nebraska, a 19 de maio de 1925. Foi expulso da escola com 15 anos e preso por furto quando tinha 21. Na prisão, converteu-se à Nação do Islã (Muçulmanos Negros). Quando deixou a prisão, em 1952, dedicou-se à construção dos Muçulmanos Negros e adotou o nome de Malcolm X. Deixou esse movimento em março de 1964, organizando, primeiro, a Mesquita muçulmana e depois a Organização de Unidade Afro-americana sem caráter religioso. Fez duas viagens à África e Oriente Médio durante 1964. Três meses depois que voltou aos Estados Unidos, foi assassinado em Nova York, a 21 de fevereiro de 1965. [Malcolm X Speaks, tradução de W. Duarte].

O irmão queria saber que medidas práticas poderiam ser tomadas para enfrentar esta situação injusta que existe aqui em Nova York e obter resultados significativos. Um dos erros cometidos na luta do oprimido contra o opressor é que ela tem sido muito fracionada – facções demais. Você tem grupo do centro da cidade, grupo de bairro de periferia, e alguns outros. Ao invés deles terem nível de coordenação para alcançar o objetivo comum, geralmente eles estão divididos, e passam grande parte do tempo ou suspeitando entre eles, ou debatendo entre eles, ou mesmo lutando entre eles.

Onde quer que você tenha negros no Harlem que sejam militantes, eles não procuram muito os brancos da cidade, não importa o quanto militante eles sejam. Agora, os negros que vêm para cidade e se misturam com os brancos que são militantes, normalmente não sabem sequer como falar aos negros que ainda estão no bairro. Tive que trazer isto à discussão. Notei isto observando.

Você tem grande quantidade de gente que está farta desta situação. Você tem brancos que estão fartos, você tem negros que estão fartos. Os brancos que estão fartos não podem ir aos bairros facilmente porque o pessoal dos bairros está mais farto do que qualquer outra pessoa e eles estão tão fartos que realmente é fácil ir aos bairros.

Considerando que os negros dos bairros que vêm para a cidade geralmente são os tipos que quase perdem sua identidade – a bem dizer, perdem sua alma – de forma que eles não estão em posição de servir como ponte entre os militantes brancos e os  militantes negros, esse cara não pode fazer isto. Detesto golpeá-lo assim, mas é verdade. Ele perdeu sua identidade, perdeu seus sentimentos e, geralmente – fique frio, por favor – ele perdeu, na verdade, o contato com o Harlem. Assim, ele não serve a nenhuma causa, ele quase não tem raiz, ele não é do bairro e não é totalmente da cidade.

Assim, quando chegar o dia em que os brancos que estão realmente de saco cheio – não quero dizer esses oportunistas brancos, que posam de liberais e que não são, mas aqueles que realmente estão de saco cheio com o que esta acontecendo – quando eles aprenderem como realmente estabelecer o tipo correto de comunicação com o pessoal do bairro que está cheio, e quando estabelecerem uma ação coordenada, você terá alguma chance. Você terá alguma chance. Terá ambas, abrangerá tudo que você é.

II

Depois de prolongadas discussões com muitos Africanos de todos os níveis, eu diria que alguns deveriam ser bem recebidos e outros não. Os que tivessem uma contribuição a fazer seriam bem recebidos; mas aqueles que não tivessem contribuição a fazer não deveriam ser bem recebidos; acho que nenhum de nós se olharmos esse ponto objetivamente, pode discordar disso.

Se migrássemos de volta para a África, culturalmente, filosoficamente e psicologicamente, permanecendo ao mesmo tempo aqui fisicamente, se desenvolveria um laço espiritual entre nós e a África através dessa migração cultural, filosófica e psicológica que fortaleceria nossa posição aqui, porque teríamos contatos com eles, agindo como raízes ou fundações por trás de nós. Você nunca terá um alicerce na América. Você está louco se pensa que este governo irá alguma vez apoiar você ou a mim, da mesma maneira que apoiou a outros. Eles nunca farão isto. Não está neles.

Tome os chineses como exemplo. Você me perguntou sobre a China Vermelha. Antes os chineses eram desrespeitados. Costumava usar a expressão “é um negócio da China”. Você se lembra disso? Você não costuma ouvir mais isto. Porque a China já não é mais explorada pelo primeiro que aparece lá. Agora a China é forma. Desde que A china se tornou forte e independente, ela é respeitada, ela é reconhecida. Assim, onde quer que vá um chinês, ele é respeitado, ele é reconhecido. Ele não é respeitado e reconhecido pelo que ele é como indivíduo; ele é respeitado e reconhecido porque em um país atrás dele, um continente atrás dele. Ele tem algum poder atrás dele. Eles respeitam o que está por trás dele.

Da mesma maneira, quando o continente Africano, na sua  independência, for capaz de criar a unidade que é necessária para aumentar sua força e sua posição sobre esta terra, então sim, a África também se tornará respeitada como os outros grandes continentes são respeitados. E então, onde quer que vá o povo de origem Africana, de herança Africana ou de sangue Africano, eles serão respeitados. Mas somente quando e porque eles tiveram alguma coisa muito maior que tenha semelhança com eles, atrás deles. Com isso por trás de você terá muito maior respeitabilidade. Seremos iguais ao chinês de quem costumavam falar “ele não tem nem a chance de um chinês”. Agora você não tem nem a chance de um Negro. Mas com a independência da África, você e eu teremos muito mais chances. Acredito nisso cem por cento.

E isto é o que eu quero dizer por migração ou volta a África. Voltar no sentido de que nós os compreendemos, e ele nos compreende. Nossa compreensão mútua e nosso esforço mútuo em alcançar o mesmo objetivo trarão um benefício mútuo tanto aos Africanos, com aos afro-americanos. Mas você não pode deixar isso depene exclusivamente do tio Sam. Você está olhando na direção errada. Porque os errados são os de Washington D.C, e quero dizer diretamente os da Casa Branca. Espero não pisar nos calos de ninguém dizendo isto. Não votei neles, por isso posso falar.

III

Estamos vivendo numa era de revolução, e a revolta do Negro Americano é parte da rebelião contra a opressão e o coli9nialismom que caracteriza esta era.

Não é correto classificar a revolta do Negro como simplesmente um conflito racial dos negros contra os brancos, ou como simplesmente num problema Americano. Ao contrário, hoje estávamos vendo uma rebelião global do oprimido contra o opressor, do explorado contra o explorador. A revolução Negra não é uma revolta racial. Estamos interessados em praticar a fraternidade com qualquer um que esteja realmente interessado em viver de acordo com isso. Porém, o homem branco pregou, por muito tempo,a doutrina vazia da fraternidade, que não significa mais do que o Negro aceitar passivamente o seu destino...

As Nações industriais do Oeste têm deliberadamente subjugado o Negro por razões econômicas. Esses criminosos internacionais saquearam o continente africano PARA ALIMENTAR SUAS FÁBRICAS,  e são os verdadeiros responsáveis pelo baixo padrão de vida que prevalece por toda África.

IV

Durante o último mês de vida, Malcolm fez dois discursos no Sul e planejava fazer um terceiro num comício do Partido Democrático Liberdade no Mississipi, em Jackson. O segundo foi feito em quatro de fevereiro de 1975, a pedido de dois membros do Comitê Coordenador dos Estudantes pela Não-Violência, para os jovens manifestantes em Selma, Alabama, onde o reverendo Martin Luther King estava na prisão. Um repórter do “New York Herald Tribune” escreveu que o discurso de Malcolm “perpetuou claramente as pessoas que dirigiam a manifestação... A multidão de jovens aclamava repetidamente, e por várias horas ouros oradores tentaram diminuir o impacto causado por Malcolm”. Antes do ato, adeptos de King, Reverendo Andrew Young e Reverendo James Bevel, preveniram Malcolm contra incidentes que incitassem o povo, que causassem violência, etc.

Lembre-se disso: ninguém coloca palavras em minha boca.

Sinto-me como um homem que tivesse ficado adormecido de alguma maneira e sob controle de alguém. Sinto que o que estou pensando e dizendo agora sou eu mesmo. Antes era para e pela direção de Elijan Muhammad. Agora eu penso por mim mesmo, sim senhor.

[Malcolm X, Por minha própria boca, por minha própria mente, São Paulo, Versus no 32, maio de 1979, pp. 41-42]. 
 




O PRÍNCIPE DO RANCHO
Por Jorge Pinheiro


A política e a ficção se confundem. Certa vez, eu dizia para meu amigo Alejandro Arizcún Cela – um dirigente socialista espanhol – na cidade de Vigo, que a política é um aramo da ficção científica. Ele concordou. Afinal, se a primeira trabalha com hipóteses e procura dar respostas ao futuro imediato, a segunda trabalha com a especulação e pensa o futuro. E mais do que isso, ambas trabalham com a realidade, com a vida. Assim, o que às vezes parece distante, um sonho, pode ser a resposta metafórica para nossos problemas do hoje ou do amanhã. É exatamente por isso, que nesta análise da situação nacional e dos caminhos da reorganização partidária, “Ratos e Homens” de John Steinbeck se confunde com os planos de Figueiredo e a consciência de nosso proletariado. São por incrível que pareça um mesmo mundo. Afinal, na política sempre teremos um magro das mulas, aquele que procura “matar com o chicote uma mosca pousada na anca da mula da carroça sem tocar a pele do animal”.

“Há um sendeiro através dos salgueiros e dos sicômoros, um caminho batido pelos menos que descem das fazendas para vir nadar no poço e trilhado pelos vagabundos que, à noitinha, deixam fatigados a estrada real par avir acampar à beira d’água. Diante do ramo horizontal e baixo dum sicômoro gigante vê-se um monte de cinza feito por muitas fogueiras: o tronco está gasto e polido e tantas foram as pessoas que se sentaram nele.

Ao anoitecer dum dia cálido pôs em movimento a brisa por entre as folhas. A sombra subiu as colinas na direção dos topos. Os coelhos estavam sentados imóveis nas margens arenosas com pequenas esculturas de pedra cinzenta. E depois, das bandas da estrada estadual, veio o som de passos sobre as folhas secas de sicômoro. Os coelhos correram furtivos para seus esconderijos. Uma garça empertigada se ergueu pesadamente no ar e sobrevoou o rio, corrente abaixo. Por um momento a vida com que cessou naquele recanto...”

Recordemos um pouco a época de Geisel.

De certa forma, por razões de método de análise, podemos dividir o período Geisel em três etapas.

A primeira fase vai de 15 de março a 15 de novembro de 1974. Nessa primeira etapa, o governo vivia o fim do milagre econômico e, embora apresentasse um projeto diferente ao de Médici, tinha de fato muitas semelhanças com o governo anterior.

De 15 de novembro de 1974 a maior de 1977 vivemos, realmente, uma segunda etapa do governo Geisel. Antes de mais nada, Geisel sofreu uma violenta derrota eleitoral em 1974, embora esta tenha se dado ao nível da superestrutura e da democracia formal. E foi, contraditoriamente, esta derrota que afirmou a s características bonapartistas de Geisel, que começou a tentar uma tímida abertura. Tímida porque as pressões que sofria eram, fundamentalmente, superestruturais, ao nível do regirem, já que o movimento de massas não tinha se lançado à luta. Assim, o bonapartismo de Geisel vai se delinear durante todo o período por esses elementos. Ele apresentava força, e de fato a tinha, embora sua base social não fosse muito ampla. Em última instância, sua força surgia do fato de que a oposição existia apenas com superestrutura, dentro do regime.

A terceira fase, que começa a partir das grandes mobilizações de maio de 1977, vai se consolidar com as greves operárias de maio de 1978, que golpeiam o governo, fazendo estremecer o bonapartismo. E aí se dá um fenômeno interessante: ele começa a receber mais apoio da burguesia. Há um voto de confiança burguês e anti-operário no governo, que contraditoriamente aumenta sua base social, mas como resultante na relação de forças da sociedade, se torna mais fraco porque começa a enfrentar-se com setores do movimento de massas, que se mobilizam. Mas essa característica de maneira nenhuma elimina as diferenças entre os setores burgueses, ao contrário. Exatamente a partir da ofensiva das massas começam a delinear-se com setores do movimento de massas ,que se mobilizam. Mas essa característica de maneira nenhuma elimina as diferenças entre os setores burgueses, ao contrário. Exatamente a partir da ofensiva das massas começam a delinear-se dois projetos, o “realista” e o “desenvolvimentista”, que se enfrentarão mais claramente no governo Figueiredo..

É esta terceira fase de Geisel que nos dá  a chave para entender Figueiredo. É exatamente neste último período de Geisel que a etapa deixa de ser contra-revolucionária e passa a não-revolucionária, já que como as mobilizações estudantis de 1977 e com as greves de 1978 surge uma nova correlação de forças ao nível da sociedade. Há uma clara medição de forças entre os proletariados e as camadas assalariada médias e a burguesia, sem grandes derrotas para as classes trabalhadoras, mas ao contrário, com vitórias ainda apequenas, mas que aumentam o ânimo de luta e vão conscientizando uma ampla vanguarda do movimento de massa.

Aqui há um problema de dialética que podemos tentar explicar através de um exemplo de física, que é o do paralelogramo de forças.

Antes, na segunda fase do governo Geisel, as forças burguesas embora não estivessem aglutinadas ao redor do governo (desde os imperialismos até a Igreja), formavam um vetor muito maior do que as forças do movimento de massas (que não estava mobilizadas), o que dava uma direcionante favorável ao governo.

A partir da terceira fase de Geisel aumenta o vetor das forças que apóiam o governo, mas aumenta o vetor do movimento de massas, que inclui amplos setores mobilizando os do proletariado e das classes médias assalariadas, donde o direcionamento passa a ser maior.

Assim, podemos dizer em relação a Figueiredo – nesses primeiros 100 dias de governo – que ele tem maior apoio burguês e imperialista quer Geisel, embora como dinâmica seja mais fraco. E mais: a etapa continua sendo não-revolucionária, mas diferente inclusive da terceira fase de Geisel, já que os dois vetores aumentam, mas com sentido inverso. Donde a dinâmica está determinada pelo movimento de massas, pela sua dinâmica.

...havia remédios, pequenos frascos

“A casa dos peões era um comprido edifício retangular. Por dentro as paredes estavam caiadas e o piso não tinha pintura. Em três dessas paredes havia pequenas janelas quadradas e na quarta uma sólida porta com trinco de madeira. Contra as paredes se alinhavam oito tarimbas, cinco delas feitas já com mantas, e as outras três com a serapilheira de riscado dos colchões à mostra. Por cima de cada tarimba esta pregada uma caixa de maças vazia com a abertura para a frente, de modo a formar duas estantes par guardar coisas de uso pessoa do ocupante da cama. Estas estantes se achavam cheias de pequenos artigos: sabão e pó de talco, navalhas e números dessas revistas do Oeste  que os trabalhadores das fazendas costuma ler, com ar de pouco casa, mas nas quais acreditam secretamente. E havia também remédios, pequenos frascos e pentes; e nos pregos de ambos os lados estavam penduradas algumas gravatas. Perto de uma parede via-se uma estufa negra de ferro fundido cuja chaminé subia reta através do teto. No meio do compartimento se erguia uma grande mesa quadrada coberta de cartas de baralho, ao redor da qual se agrupavam as caixas que serviam de cadeira aos jogadores”.

É necessário levar em conta que o movimento de massas está começando a fazer suas experiências. Essas greves fazem parte de um primeiro ensaio e, além disso, em relação ao conjunto das massas proletárias e das classes médias assalariadas, ainda é muito pequeno o setor mobilizado.

Além disso, o enfrentamento está se dando contra a burguesia mais forte da América Latina, que não está em crise (embora enfrente a sério problemas de redirecionamento do  modelo) e está muito unida contra o ascenso operário e popular. 

E por fim existe um outro fato que é o da relação entre as questões sindical, democrática e política.

Está claro (já no governo Figueiredo) que o ascenso começa a partir de questões salariais, mas não podemos esquecer que vivemos há quinze anos sob o arbítrio e a repressão, e que exatamente por isso as lutas dos trabalhadores tendem a caminhar a solução das questões democráticas. 

Lutar por melhores salários significa cada vez mais lutar também por sindicatos fortes e independentes, contra as intervenções e os pelegos, contra polícia e em certa medida contra o governo. Num primeiro momento, a alternativa para lutar por melhores condições de vida foi votar no MDB, mas isso não ajudou muito. Contraditoriamente, o fortalecimento do MDB nas eleições e sua passividade real após 15 de novembro de 1978 acabou por fortalecer as greve. E se com as greves se deram as intervenções, a resposta foi o fabuloso 1.º de Maio em são Bernardo e as assembléia multitudinárias. E essa relação está se dando cada vez mais: salário-democracia-salário, em espiral que chega aos recantos do país.

E se esse processo não se transforma claramente numa luta política contra o autoritarismo é exatamente porque não existem organismos políticos que canalizam essas insatisfações salariais e democráticas.

O MDB não serviu para isso. Daí a defasagem entre a questão salarial/democrática e a questão política. E aqui a relação é a seguinte: quanto mais o fator político for se fortalecendo, mas se fortalece a questão democrática. Mas como falta o elemento político, se fortalece a questão salarial.

Essa relação entre esses elementos (a questão salarial e a democrática) vai nos permitir entender a atual vanguarda classista que surgiu com as mobilizações, a partir de maio de 1978. Esta vanguarda classista surge mais como necessidade do que como consciência. É a passagem da questão democrática à política, só que fica no meio. Explicando: a necessidade de unificar as lutas, de dar respostas democráticas, de conseguir vitórias salariais, está levando um setor da vanguarda a tentar uma resposta política para o país, mas esta resposta não está surgindo da consciência de que o problema do país é político e de que só um partido dos trabalhadores é a solução. Para a maioria dos trabalhadores esta situação não está clara, nem mesmo para um setor de vanguarda. Eles entendem, empiricamente, que é necessário criar algo que permita o avançar das lutas, e que este algo não é o MDB. Assim, a vanguarda classista é de fato a meditação entre a questão salarial/democrática e a questão política.

Dessa maneira, em relação à etapa, dizemos que ela é não-revolucionária e que seu ritmo é determinado pelo ascenso. Este ascenso tende a se manter, mas não é explosivo. Ele parte das questões salariais e se combina rapidamente com as questões democráticas. Mas pela falta de organismos políticos de classe e pela unidade burguesa se transforma num ascenso mediado.

As mãos, de dançarina de templo

“... entrou na sala, movendo-se com uma majestade que só têm os reis e os mestres artífices. Era um condutor de mulas, o príncipe do rancho; podia conduzir dez, dezesseis e até vinte mulas com uma só rédea simples presa ás dianteiras. Era capaz de matar com o chicote uma mosca pousada na anca da mula da carroça sem tocar a pele do animal. Havia em suas maneiras uma gravidade e uma quietude tão profundas que toda a conversa cessava quando ele estava a falar. Era tão grande que a sua autoridade, que sua palavra era aceita como definitiva sobre qualquer tema, fosse ele de política ou de amor. Era o Magro das mulas. A cara delgada não tinha idade. O homem tanto poderia ter trinta e cinco como cinqüenta anos. Seu ouvido escutava mais do que lhe diziam e sua fala lenta tinha tons ocultos, não de pensamento, mas sim de uma compreensão que ia além dos pensamentos. Suas mãos grandes e descarnadas eram na ação tão delicadas como as de uma dançarina de templo”.

O governo Figueiredo pretende, em seus seis anos de mandato, conseguir a transição de um regime bonapartista, vivido até Geisel a um democrático-burguês,  controlado, entregando – então – a presidência do país a um civil eleito através do voto indireto e que conte com a aprovação das Forças Armadas. Assim, depois de 21 anos de autoritarismo, o novo/futuro governo garantiria a continuidade do anterior.

Se esta é a estratégia, a tática é chegar gradualmente à democracia controlada. Nesse processo iria desmontando os elementos institucionais característicos do bonapartismo,e incorporando os da democracia formal burguesa.

Esse plano de alguma maneira parece seguir as pegadas do modelo espanhol. No entanto, na equação política há várias incógnitas para as quais ainda não vemos respostas. Quem cumpriria o papel de Juan Carlos e/ou de Suárez? Poderia a Arena, readaptada e com novo nome, representar o papel da UCD espanhola? Por enquanto não temos respostas.

Mas, mesmo assim existe outro problema sério a resolver, que é o de criar os canais sindicais e políticos que enquadrem o movimento operário e de massas. Este é o ponto mais difícil. Quais serão as organizações que se candidatarão a cumpri o papel que cumprem na Espanha o PCE e o PSOE. Afinal, o próprio Petrônio Portella já disse que “é preciso novos partidos para impedir que apolítica seja feita através dos grupos depressão”.

Bem, como hipótese geral podemos dizer que o projeto de abertura tem características espanholas, mas não podemos dizer que a institucionalização desta abertura seja exatamente a do modelo espanhol.

Até agora parece que o projeto do governo em relação aos partidos, e à reestruturação do sistema eleitoral, se aproxima mais do modelo francês, ou seja, da existência de dois partidos fortes ligados ao movimento de massas, com peso eleitoral, e mais dois, muito possivelmente ambos de centro-direita. Este projeto tem como finalidade fazer com que do choque entre os dois maiores partidos governe sempre um terceiro, de centro-direita. Aliás, sinteticamente, essa foi a grande descoberta de De Gaulle para neutralizar a força crescente das esquerdas francesas.

Assim, a Arena renovada e o partido de Magalhães Pinto tendem a cumprir o papel dos partidos de centro-direita, e o MDB (com nova sigla, muito possivelmente) e o PTB seriam de fato os dois grandes partidos que dividiriam o eleitorado. Aliás, a partir dessa elaboração, o governo necessitaria da cor vermelho/Moscou dentro do MDB, o que lhe daria – unido à burguesia liberal – um conteúdo específico e ideológico diferente do PTB social democratizado. Assim, esses dois partidos funcionariam como pólos opostos dentro de uma mesma unidade, o movimento de massas.

Mas essas são hipóteses que levantamos a partir das propostas e manobras do governo. Inclusive, é bom entender que o governo está menos interessado em acabar realmente com o MDB, do que infiltrá-lo de liberais com Severo Gomes, Teotônio Vilela e outros, os quais n~´ao fortalecem o MDB de fato, mas acentuam e definem o seu caráter de partido da burguesia liberal, isolando cada vez mais os autênticos. É exatamente dentro desse processo que o governo necessita do PTB, como partido que aglutine os descontentes à esquerda, que não comungam com as idéias do Partido Comunista.

E a democracia-cristã?

Bem, até agora os cardeais e bispos brasileiros têm se pronunciado contra a formação de um partido ligado à Igreja. E há razões para isso. Primeiro porque a Igreja no Brasil não está coesa ideologicamente A corrente democrata-cristã vai desde um Franco Montoro até a um Nei Braga, desde um dom Paulo Arns ou um dom Hélder Câmara até a um dom Sigaud. E juntar tudo isso num único partido seria problemático. Além disso, há a experiência internacional naqueles lugares onde a Igreja lanço partidos políticos e estes fracassaram, cai também, o prestígio da Igreja. O exemplo mais complicado dessa situação é a própria Itália, onde a Santa Sé não sabe como se livrar do peso que é o Partido Democrata Cristão. Por isso, a tendência maior é que a Igreja jogue no seu papel atemporal, e tenha elementos nos mais diferentes partidos. Aliás, é o que tem feito desde 1945: apresentar uma cara antiditatorial e democrática, sem lançar-se como opção política definida.

Temos que encontrar ele

“Depois o Magro se aproximou, lento, da mulher e apalpou-lhe o pulso. Um dedo débil tocou-lhe a face e depois a mão baixou à nuca lentamente torcida e os dedos exploraram o pescoço. Quando o Magro se ergueu os homens se aproximaram e o encanto se quebrou.
O Magro se voltou vagarosamente para George.
– Acho que foi o Lennie – afirmou. – Ela está com o pescoço quebrado. Lennie podia ter feito isso. 
George não respondeu, mas fez um lento sinal de assentimento com a cabeça. O chapéu estava tão enterrado na cabeça, que lhe cobria os olhos.
– Talvez – prosseguiu o Magro – tenha sido o mesmo que aconteceu em Weed, como você me contou.
George tornou a fazer um gesto afirmativo. O Magro suspirou:
-- Bem, acho que temos que encontrar ele. Para onde achas que ele foi?
George deu a impressão de que necessitava de algum tempo para soltar as palavras
-- Decerto... decerto foi para o Sul. Nós vimos do Norte, de modo que talvez ele tenha ido par ao Sul.
-- Acho que temos que encontrar ele – repetiu o Magro”

Que fenômeno é este, o do tal Partido dos Trabalhadores?

Antes que nada ele parte de um elemento, o desenvolvimento econômico e social dos últimos vinte anos, que geraram duas novas classes, uma classe operária industrial, altamente concentrada nos grandes centros urbanos e uma classe média assalariada moderna. Desde 1978, tanto os operários como esta classe média estão num processo de mobilização.

Essa combinação de fatores, o surgimento de estratos novos na sociedade e o conjuntural – um ano de mobilização – levam ao surgimento (ou condicionam o surgimento) de fenômenos novos na sociedade.

Falamos que o centro das lutas é o salarial, mas dissemos também que se chocam freqüentemente com o governo da mão estendida e com o MDB, que não apresentam soluções para a questão do nível de vida. Outra coisa que deve ser levada em conta é que o Partido Comunista, neste momento, não aparece ao nível das lutas com um grande peso específico, o mesmo acontecendo com outros setores menores da esquerda.

O PTB, que é outro elemento, deve ser entendido da seguinte maneira: antes de mais nada as direções sindicais do movimento operário brasileiro não estão hoje ligadas umbilicalmente ao populismo, já que estes novos estratos de classe surgem praticamente quando o populismo começava a dar seu últimos suspiros. Assim, estas direções não surgem a partir do PTB,e não tiveram relações mais profundas com o populismo. E mais: durante os últimos 15 anos, o populismo não apresentou alternativas, nem esteve ligado às lutas dos trabalhadores. E agora, de um ano para cá, a proposta de ressurgimento do PTB não está passando pelas lutas que se deram nas fábricas e nos sindicatos. Tanto a proposta de Brizola, como a e Ivete Vargas não levaram em conta de forma concreta, as reivindicações e mobilizações dos trabalhadores. Na verdade, ambos projetos passam pelo MDB, e isso só serve para confundir mais a situação... E por fim, para que surja o PTB é necessário que Brizola esteja no Brasil. Dessa maneira, a realidade do PTB existe mais como possível do que como concreto imediato.

Todo esse processo é o que faz com que os trabalhadores, que enfrentam duras lutas salariais, misturadas com problemas democráticos e políticos, tivessem como necessidade alguma expressão de tipo político. É aí que começa a brotar, de forma superestrutural e vacilante, entre alguns dirigentes sindicais, a idéia de um partido dos trabalhadores. Um pouco mais trabalhada pela Convergência Socialista esta proposta começou a ser discutida com possibilidade de superação da necessidade concreta do momento.

A idéia do PT surge então de quatro fatores: (1) de uma nova realidade social; (2) das mobilizações e lutas que estão se dando há mais de um ano e que geram uma nova experiência, não somente sindical, mas democráticas e política; (3) a não existência de alternativas para esta nova vanguarda, que necessita expressar-se politicamente; e (4) de que esta necessidade se expressou através de algumas direções sindicais e através da Convergência Socialista, que cumpriu um papel mais ideológico.

De toda a maneira, o Partido dos Trabalhadores não estava nos planos do governo. Sua intenção é de que todos os dirigentes sindicais classistas e autênticos, assim com o ativismo, estejam controlados pelo PTB ou o MDB. Esta é a única garantia para a burguesia, enquadrá-los e vencer o movimento de massas através de uma saída democrática controlada, entrilhando seu descontentamento para a luta estritamente parlamentar.

Na verdade a construção do PT passa por grandes dificuldades. Como os dirigentes sindicais chegaram à questão do PT através do classismo, como mediação entre a questão democrática e política, por uma necessidade, e não exatamente por um salto de consciência, o Partido dos Trabalhadores passa a ser de difícil concretização. Os dirigentes sindicais estão procurando um partido, algo que possa cumprir uma necessidade que têm. Como antes o projeto do PTB estava distante, eles começaram a baralhar a hipótese do PT, mas na medida em que o PTB venha a concretizar-se, aumenta  a possibilidade de que os classistas aceitem esta alternativa. Já que á  mais fácil entrar numa partido do que construir um.

Mais um detalhe importante.

Todo o processo novo que se dá a partir de mais de 1978 é muito rico porque combina e interliga muitas coisas, como o fato de que setores do movimento de massas se mobilizem a partir do sindical, mas também combinam o democrático e o político e geram uma importante vanguarda, mas se dá de forma desigual e combinada, mais ainda, não é um fenômeno ideológico, mas concreto.

Assim, diríamos que se dão, misturados, três níveis de consciência. Um primeiro mais amplo, que é o sindical-classista e que se traduz no surgimento de uma nova vanguarda classista, em sindicatos autênticos, chapas classistas de oposição, vencedoras, etc.

O segundo nível de consciência é o classista-político, o mais heterogêneo, que se traduz na compreensão empírica, vacilante e não claramente definida ainda, da necessidade de um partido sem patrões, que expresse as necessidades mais gerais da classe trabalhadora. Isto é laborismo.

E o terceiro nível de consciência seria o da consciência revolucionária, daqueles que entendem a necessidade de um partido socialista para a transformação da sociedade.

Sem entender que existem níveis diferentes de consciência e desigualdades não entenderemos o processo vivido pelo PT. A construção do Partido dos Trabalhadores depende dos próprios trabalhadores. A participação dos socialistas nesta construção pode ser fundamental, mas ainda assim é secundária. De todas as maneiras, caso se concretize o PT será talvez o maior salto que a classe operária brasileira já deu no processo de consolidação de sua consciência-para-si. E, um rombo efetivo nos planos de Figueiredo. Dezesseis de junho de mil novecentos e setenta e nove. Anno domini.

“A funda bacia verde do rio Salina estava muito parada naquele fim de tarde. O sol já havia deixado o vale para ir trepando pelas encostas das montanhas Gabilan e os cumes dos outeiros estavam tocados duma luz rosada. Junto do poço, porém, entre os sicômoros mosqueados, havia caído uma sombra agradável.

Uma cobra d’água deslizou tersamente pela laguna, torcendo dum lado para outro a cabeça de periscópio; e nadou toda a largura da bacia, chegou até as pernas de uma garça imóvel que se achava nos baixios. Uma cabeça silenciosa e um bico projetaram-se para baixo, como uma lança, e seguraram a cobra pela cabeça: e o bico engoliu a pequena cobra, enquanto seu rabo coleava freneticamente”.

[Jorge Pinheiro, O príncipe do rancho, São Paulo, Versus no 33, junho de 1979, pp. 28-32]. 
 






CAPAS DO VERSUS
 

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