vendredi 11 septembre 2009

Mitos da religiosidade evangélica -- I

Mitos da religiosidade evangélica
Primeira parte

O velho protestantismo está cada vez mais distanciado dos novos movimentos de lastro cristão. Não se pode mais ignorar as significativas diferenças que há entre eles, sob pena de cometer equívocos nos resultados das pesquisas. O pesquisador atual não pode furtar-se ao, às vezes, penoso labor de precisar classificações e conceitos. É preciso que distinga bem, ao estudar qualquer novo movimento religioso, o limite exato em que o velho protestantismo deixa de estar presente. Quando seus princípios básicos de liberdade – a justificação pela fé, a sola scriptura, o livre exame e o sacerdócio universal dos crentes – não estiverem presentes ou se apresentarem obscurecidos por outras práticas religiosas, não há mais protestantismo”. Antonio Gouvêa Mendonça. (1)

A academia em suas análises sobre o fenômeno evangélico brasileiro na alta-modernidade urbana criou três lugares comuns: mercado, trânsito religioso e fundamentalismo. Na verdade, essa leitura reducionista da realidade traduz um defeito que nasce de suas bases teóricas de análise, fundamentadas sobre os “trois petits cochons” da sociologia: Marx, Durkheim e Weber. É a partir dessa trindade que nossos estudiosos se debruçam sobre o fenômeno religioso. Esses três pensadores das ciências sociais, por mais importantes, tinham em comum um ponto de partida no mínimo questionável: a idéia de que a religião é sempre conseqüência, resultante de fenômenos ou situações sociais e nunca fenômeno fundante, embora relacional com contexto cultural de época, situação e geografia.

Quando o fenômeno evangélico explodiu no Brasil, a partir dos anos 1950, a sociologia brasileira encontrava-se desarmada para analisar e entender o que estava a acontecer. Isto porque suas bases situavam-se nos século dezoito e dezenove. É verdade que grandes processos de revolução religiosa já tinham acontecido no mundo moderno, a começar pela Reforma na Europa, com seus desdobramentos continentais nos Estados Unidos. Isso só para falar do movimento protestante no Ocidente.

Mas conhecemos as dificuldades de Marx para entender o fenômeno religioso como fundante e criador de contextos e novas relações dentro de determinada sociedade. Durkheim embora caminhe no sentido de entender estruturalmente o fenômeno religioso, construindo conceitos e parâmetros a partir das religiões antigas, ditas primitivas, e não monoteístas, formata leituras que até hoje são recitadas como compreensões definitivas sobre o fenômeno religioso, as estruturas dessas instituições e a relação entre líderes e fiéis.

Depois que pensamento marxiano entrou em crise, fato marcado nas universidades européias, Weber foi tirado do ostracismo e passou a ser reverenciado, assim como todo o historicismo alemão. Ora, se partimos daqueles que influenciaram o historicismo de Weber, em especial Ritschl e Troeltsch, vemos que eles consideravam o fenômeno religioso que estudavam típico ao Ocidente e, mais ainda, europeu. Dessa maneira, Weber entendeu o calvinismo como base para a expansão do capitalismo nos Estados Unidos, principalmente.

Assim, o que poderia fazer a sociologia brasileira diante da explosão do fenômeno evangélico no Brasil a partir dos anos 1950? Ora, voltar aos pais da sociologia. E assim foi. E assim é. E a explosão do fenômeno evangélico passou a ser vista como efeito de causas como a migração, a urbanização e a ruptura com a estrutura agrária e patriarcal.

Mas, com a débâcle do marxismo, nos anos 1980, e o boom neoliberal que varreu o mundo, a sociologia trouxe o neoliberalismo travestido de espírito crítico para dentro da casa e passou a ver o fenômeno evangélico no Brasil apenas como um subproduto do mercado capitalista.

Donde, as idéias de mercado e seus componentes se transformaram em conceitos da sociologia e instrumentos de análise para o fenômeno religioso. Vendo dessa maneira o fenômeno evangélico, a sociologia reduziu o fenômeno, jogou fora todas as experiências anteriores que ajudaram a construir o Ocidente protestante e criou outro conceito, o de trânsito religioso. E tudo que passou a acontecer no Brasil virou trânsito religioso. Mas, e antes em outras regiões do planeta? Foi o trânsito religioso que mudou a cara da Alemanha, dos países nórdicos ou mesmo da Inglaterra e Estados Unidos?

Porque lá podemos utilizar o conceito de conversão (2) trabalhado por Weber e por que não aqui? Sabemos, claro que sabemos, que as condições são diferentes. Mas, em relação ao fenômeno evangélico brasileiro duas componentes dificultam a análise: o preconceito diante de algo que impacta e desnorteia o mundo acadêmico e a limitação de suas bases teóricas.

Definidos assim os limites necessários, afirmamos a importância de Marx, Durkheim e Weber para a sociologia e para todos aqueles que se dedicam ao estudo da religião. Mas, nessa pequena série de artigos, queremos utilizar como referencial um trabalho de Paul Tillich lançado este ano em português: Teologia da Cultura. Desejamos, dessa maneira, a partir da teologia da cultura e de teóricos como Bauman, Mendonça, Robertson e Milton Santos analisar a relação entre evangelicalismo (3), urbanização e a busca por fundamentos, e construir uma leitura dos caminhos transitados pelo evangelicalismo urbano brasileiro, em suas diferentes formas.

Caminhos da espiritualidade

Uma das questões que nos perguntamos quando relacionamos cidade e religião é se, de fato, o evangelicalismo outorga sentido às massas urbanas. Na verdade, podemos dizer que o ser humano é um ser potencialmente espiritual, e que essa espiritualidade pode se expressar de várias formas, mas que a religião no mundo urbano, nos grandes centros brasileiros, ocupa um espaço privilegiado enquanto tradução dessa espiritualidade, isso é verdade. Ora, a espiritualidade é a dimensão da profundidade do espírito humano e no mundo urbano brasileiro essa busca, por vários fatores, é incrementada e direcionada ao evangelicalismo. Basta ver que no Brasil urbano a igreja evangélica cresceu 267% nos últimos dez anos (Ronaldo Lidório, Rede Sepal). Assim, se a população brasileira urbana é religiosa, essa religiosidade é catalisada pelo permanente processo de evangelização (4) protestante dos últimos 150 anos.

Que a espiritualidade traduzida nas religiões das cidades da alta modernidade está presente em todas as ações do espírito humano, na ética, na estética, no conhecimento, isso é fato registrado pelas ciências da religião e pela teologia. Por isso, quando na cidade alguém conscientemente rejeita a religião, ou seja, se diz agnóstico ou ateu em nome de uma ética, de uma estética, ou por causa da busca de conhecimento, está a rejeitar a religião em nome da religião. Isto porque ela é o fundamento, a profundidade e a substância da vida espiritual do ser humano.

De forma geral, numa leitura antropológica cristã, podemos dizer que espiritualidade é aquela relação da pessoa com a transcendência. Nesse sentido, a espiritualidade é a totalidade da vida. A religião, por sua vez, traduz a dimensão dessa espiritualidade. Por exemplo, quando multidões assistiram ao filme A paixão de Cristo, de Mel Gibson, e foram despertadas, cada qual à sua maneira, para a miserabilidade humana, temos aí uma expressão da espiritualidade. As experiências humanas com o que é sagrado envolvem escolha, disciplina e prática e levam o ser humano às experiências religiosas, porque a religião traduz o que é sagrado para a vida da pessoa. Dessa forma, a espiritualidade sempre será traduzida em religiosidade, mas na globalidade de forma mais contundente enquanto fenômeno urbano.

Em relação à realidade brasileira percebemos no cristianismo mais diversidade confessional do que religiosa. Oitenta e nove por cento dos brasileiros confessam ser cristãos, e esta espiritualidade está presente no desejo de justiça social e solidariedade. Diante dessa espiritualidade cristã invisível, podemos dizer que quase todos os brasileiros são cristãos em alguma medida. Tomemos como exemplo a igreja católica, que não pode ser analisada como uma, pois abriga diferentes manifestações de religiosidade. Além dessa pluralidade católica, há centenas de igrejas protestantes/ evangélicas que incluem as históricas de migração e missão, as pentecostais históricas e as neopentecostais.

Em razão disso podemos dizer que enquanto fenômeno urbano o evangelicalismo é fator de agregação e desagregação. Podemos, até explicitar essa dualidade com um exemplo recente. Durante os anos da ditadura militar no Brasil, algumas igrejas e denominações apoiaram o governo militar, a repressão, e tivemos até casos de torturadores protestantes e evangélicos, membros de igrejas importantes. Assim, o evangelicalismo é desagregador quando se liga à corrupção, ao clientelismo e às benesses. Mas agrega quando defende a vida humana. Com isso, constatamos que o evangelicalismo pode ser uma coisa ou outra ou mesmo, dialeticamente, ambas.

Essas são marcas da história protestante/evangélica recente. Mas, é claro que seria um erro uniformizar a atuação dos protestantes e evangélicos no período dos governos militares, até mesmo porque muitos crentes também foram torturados. O certo é que pessoas, em nome da agregação, do fanatismo e de preconceitos, foram cúmplices de torturas e mortes.

Notas
1. Antonio Gouvêa Mendonça, Protestantes, pentecostais & ecumênicos, o campo religioso e seus personagens, São Bernardo do Campo, Universidade Metodista de São Paulo, 2009.
2. É importante notar que o ensino faz parte da ação protestante. E essa ação de ensino potencializa a conversão, que é novo sentido de vida, e deve alcançar todas as pessoas. Assim, a arte do educador está em sua capacidade de transformar o literalismo dos símbolos cristãos em interpretações conceituais sem destruir seu poder simbólico. Mas, nem todos educadores acham que isso seja possível. Outros se recusam a ajudar os alunos no caminho dessa transformação, ou se recusam a transmitir esses símbolos aos jovens enquanto eles não tiverem condições de interpretá-los. Para Tillich, as duas atitudes estão erradas, pois se deixamos de transmitir os símbolos cristãos aos jovens, estes só experimentarão seu poder numa conversão tardia. Paul Tillich, Teologia da Cultura, São Paulo, Fonte Editorial, 2009, pp. 206-207.
2 Entendemos evangelicalismo conforme situado por Mendonça, quando diz que “a vertente vitoriosa do protestantismo, seu lado conservador, cuja extensão vai do evangelicalismo ao fundamentalismo radical, com sua rigorosa racionalidade, negou-se a rever suas posições tradicionais em relação às mudanças e desafios das novas realidades. Mantendo firme seu perfil de Deus e a correspondente configuração do mundo, perdeu sua maneira de agir e, portanto, a ética dinâmica de que foi portadora. Sua ética ascética mundana cedeu lugar a uma ética monástica”. Antonio Gouvêa Mendonça, idem, op. cit., pp. 99.
4 O ensino e o evangelismo são funções dinâmicas da igreja protestante. Tillich explica que “a igreja tem a função de responder à questão implícita na existência humana, isto é, a questão a respeito do sentido da existência. O evangelismo é um dos meios que ela usa para esse fim. O princípio do evangelismo consiste em mostrar às pessoas fora da igreja que os símbolos que ela usa são respostas às questões implícitas em sua existência. Porque se trata de mensagem de salvação e porque significa cura, a mensagem é apropriada à nossa situação”. Paul Tillich, idem, op. cit., p. 91.

jeudi 10 septembre 2009

Lei Geral das Religiões

Dois acordos históricos

A Câmara Federal aprovou (27/08/2009) dois acordos sobre religião, um com a Santa Sé, ou seja, com o Vaticano, e outro que recebeu o nome de Lei Geral das Religiões.

Logo após votar o texto do acordo entre o governo brasileiro e a Santa Sé, de interesse dos católicos, os deputados aprovaram o projeto da Lei Geral das Religiões, de interesse dos evangélicos. É uma cópia do acordo entre Brasil e Vaticano, apenas com substituição da expressão Igreja Católica por instituições religiosas. Ambos têm os mesmos 19 artigos. A lei geral proposta vale para todas as religiões, inclusive a católica.

O acordo com o Vaticano cria o Estatuto Jurídico da Igreja Católica no Brasil e foi motivo de polêmica com os evangélicos desde o envio ao Congresso, no fim de 2008. Seus opositores acusaram o governo de privilegiar os católicos e ferir a condição do Brasil de país laico.

Os dois textos asseguram benefícios tanto para a Igreja Católica como para qualquer outra religião, como a proteção ao patrimônio e aos locais de culto, aos símbolos, imagens e objetos culturais; assegura assistência espiritual aos fiéis internados em estabelecimentos de saúde, assistência social e educação; imunidade tributária; e garante o ensino religioso nas escolas públicas de ensino fundamental.

Único partido a votar contra os dois textos, o PSOL anunciou que irá à Justiça para anular a aprovação da Lei Geral, por considerar que foi a aprovação da lei das compensações no mercado da fé, segundo Ivan Valente (PSOL/SP).

Para que o projeto dos evangélicos tivesse a urgência necessária para ser votado, Inocêncio Oliveira (PRPE), 2o secretário da Câmara, que presidia a sessão, pôs o requerimento em votação sem dar tempo para contestações.

Articulador do acordo pelo lado dos evangélicos, Eduardo Cunha (PMDB-RJ), que também foi o relator da Lei Geral, disse que o propósito era mesmo copiar o acordo, adequá-lo e estendê-lo às demais religiões.

Copiamos todas as cláusulas, mas no formato de projeto de lei. Não houve acordo fechado, mas uma ponderação para que se desse igualdade a todos os credos. O que ocorreu foi um acordo político para votar.

O acordo foi aprovado na íntegra. O que a bancada evangélica fez foi elaborar o outro projeto, também aprovado, estendendo os mesmos priviégios às outras religiões. Foi uma atitude oportuna. O acordo agora vai ao Senado.

Os evangélicos se mobilizaram, apresentaram seu projeto, mas engloblaram todas as confissões religiosas. Desse modo, num gesto democrático, as demais religiões foram contempladas.

LEI GERAL DAS RELIGIÕES
Dispõe sobre as Garantias e Direitos Fundamentais ao Livre Exercício da Crença e dos Cultos Religiosos, estabelecidos nos incisos VI, VII e VIII do art. 5º e no § 1º do art. 210 da Constituição da República Federativa do Brasil.
O CONGRESSO NACIONAL decreta:
Art. 1º
Esta Lei estabelece mecanismos que asseguram o livre exercício religioso, a proteção aos locais de cultos e suas liturgias e a inviolabilidade de crença no País e liberdade de ensino religioso, regulamentando os incisos VI,VII e VIII do art. 5º e o § 1º do art. 210 da Constituição da República Federativa do Brasil.
Art. 2º
É reconhecido às instituições religiosas o direito de desempenhar suas atividades religiosas e o exercício público de suas atividades, observada a legislação própria aplicável.
Art. 3º
Fica garantido o reconhecimento personalidade jurídica das instituições religiosas, mediante o registro no ato de criação na repartição competente, devendotambém ser averbadas todas as alterações que porventura forem realizadas dentro da respectiva estrutura.
Parágrafo único.
As denominações religiosas podem livremente criar, modificar ou extinguir suas instituições, na forma prevista no caput.
Art. 4º
As atividades desenvolvidas pelas pessoas jurídicas reconhecidas nos termos do art. 3º que persigam fins de assistência e solidariedade social gozarão de todos direitos, imunidades, isenções e benefícios atribuídos às entidades com fins de natureza semelhante previstos e na forma da lei.
Art. 5º
O patrimônio histórico, artístico e cultural, material e imaterial das instituições religiosas, assim como os documentos custodiados nos seus arquivos e bibliotecas, constitui parte relevante do patrimônio cultural brasileiro e continuará a cooperar para salvaguardar, valorizar e promover a fruição dos bens, móveis e imóveis de propriedade de instituições religiosas que sejam considerados como parte de seu patrimônio cultural e artístico.
§1º A finalidade própria dos bens eclesiásticos mencionados no caput deste artigo deve ser salvaguardada, sem prejuízo de outras finalidades que possam surgir da natureza cultural.
§2º As instituições religiosas comprometem-se facilitar o acesso ao patrimônio referido no caput para todosos que o queiram conhecer e estudar, salvaguardadas as suas finalidades religiosas e as exigências de sua proteção e da tutela dos arquivos de reconhecido valor cultural.
Art. 6º
Ficam asseguradas as medidas necessárias para garantir a proteção dos lugares de culto das instituições religiosas e de suas liturgias, símbolos, imagens e objetos culturais, tanto no interior dos templos como nas celebrações externas, contra toda forma de violação, desrespeito e uso ilegítimo.
§ 1º Nenhum edifício, dependência ou objeto afeto aos cultos religiosos, observada a função social da propriedade e a legislação própria, pode ser demolido, ocupado, penhorado, transportado, sujeito a obras ou destinado pelo Estado entidades públicas a outro fim, salvo por utilidade pública, ou por interesse social, nos termos da lei.
§ 2º É livre a manifestação religiosa em logradouros públicos, com ou sem acompanhamento musical, desde que não contrarie a ordem e a tranquilidade pública.
Art. 7º
A destinação de espaços para fins religiosos poderá ser prevista nos instrumentos de planejamento urbano a ser estabelecido no respectivo Plano Diretor.
Art.8º
As organizações religiosas e instituições poderão, observadas as exigências da lei, prestar assistência espiritual aos fiéis internados em estabelecimento de saúde, de assistência social, de educação ou similar, ou detidos em estabelecimento prisional ou similar.
Art. 9º
Cada credo religioso poderá ser representado por capelães militares no âmbito das Forças Armadas Auxiliares, constituindo organização própria, assemelhada ao Ordinariato Militar do Brasil, com a finalidade de dirigir, coordenar e supervisionar a assistência religiosa aos fiéis.
Parágrafo único.
Fica assegurada a igualdade de condições, honras e tratamento a todos os credos religiosos referidos no caput, indistintamente.
Art. 10.
As instituições religiosas poderão colocar suas instituições de ensino, em todos os níveis, a serviço da sociedade, em conformidade com seus fins e respeitada a livre escolha de cada cidadão na forma da lei.
§ 1º O reconhecimento de títulos e qualificações em nível de Graduação e Pós-Graduação estará sujeito, respectivamente, às exigências da legislação educacional.
§ 2º As denominações religiosas poderão constituir e administrar seminários e outros órgãos e organismos semelhantes de formação e cultural.
§ 3º O reconhecimento dos efeitos civis dos estudos, graus e títulos obtidos nos seminários, institutos e fundações antes mencionados é regulado por lei, em condições de paridade com estudos de idêntica natureza.
Art.11.
O ensino religioso, de matrícula facultativa, é parte integrante da formação básica do cidadão e constitui disciplina dos horários normais das escolas públicas de ensino fundamental, assegurado o respeito diversidade cultural religiosa do Brasil, em conformidade com a Constituição Federal e as outras Leis vigentes, sem qualquer forma de proselitismo.
Art. 12.
O casamento celebrado em conformidade com as leis canônicas ou com as normas das denominações religiosas reconhecidas no País, que atenderem também às exigências estabelecidas em lei para contrair o casamento, produzirá os efeitos civis, após registro próprio a partir da data de suacelebração.
Art. 13.
É garantido o segredo do ofício sacerdotal reconhecido em cada instituição religiosa, inclusive confissão sacramental.
Art.14.
Às pessoas jurídicas eclesiásticas religiosas, assim como ao patrimônio, renda e serviços relacionados com as finalidades essenciais, é reconhecida agarantia de imunidade tributária referente aos impostos, em conformidade com a Constituição Federal.
Parágrafo único.
Para fins tributários, as pessoas jurídicas das instituições religiosas que exerçam atividade social e educacional sem finalidade lucrativa receberão mesmo tratamento e benefícios outorgados às entidades filantrópicas reconhecidas pelo ordenamento jurídico brasileiro, inclusive em termos de requisitos e obrigações exigidos para fins de imunidade e isenção.
Art. 15.
O vínculo entre os ministros ordenados ou fiéis consagrados mediante votos e as instituições religiosas e equiparados é de caráter religioso e não gera, por si mesmo, vínculo empregatício, a não ser que seja provado desvirtuamento da finalidade religiosa, observado o disposto na legislação trabalhista brasileira.
Parágrafo único.
As tarefas e as atividades de índole apostólica, pastoral, litúrgica, catequética, evangelística, missionária, prosélita, assistencial, de promoção humana semelhante poderão ser realizadas a título voluntário, observado o disposto na legislação brasileira.
Art.16.
Os responsáveis pelas instituições religiosas, no exercício de seu ministério e funções religiosas, poderão convidar sacerdotes, membros de institutos religiosos e leigos que não tenham nacionalidade brasileira para servir no território de sua jurisdição religiosa e pedir às autoridades brasileiras, em nome daquelas, a concessão dovisto para exercer atividade ministerial no Brasil, no tempo permitido por legislação própria.
Art. 17.
Os órgãos do Poder Executivo, no âmbito das respectivas competências, e as instituições religiosas poderão celebrar convênios sobre matérias de suas atribuições tendo em vista colaboração de interesse público.
Art.18.
A violação à liberdade de crença proteção aos locais de culto esuas liturgias sujeitam infratoràs sanções previstas no CódigoPenal, além da respectiva responsabilização civil pelos danos provocados.
Art. 19.
Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação.
CÂMARA DOS DEPUTADOS, de setembro de 2009.

Um executivo de missão


Breve biografia de Waldemiro Tymchak

Waldemiro nasceu no dia 15 de outubro de 1937, no Paraná. Seu pai, Basílio Tymchak, era um pregador leigo, natural da ex-União Soviética. Sua mãe, D. Teodora Tymchak, nasceu na Romênia. Era uma lutadora, pois teve de sustentar a família após ficar viúva, ainda jovem.

O menino Waldemiro recebeu uma positiva influência da sua avó, a quem carinhosamente chamava de “Bába”, palavra que em búlgaro significa “vovó”. Foi com ela, uma crente piedosa, que ouviu os primeiros sermões em russo, transmitidos pela Rádio HCJB, emissora cristã que transmitia a partir de Quito, no Equador. Foi com sua avó e com o seu irmão Paulo que o pequeno Waldemiro aprendeu hinos do Cantor Cristão e cânticos infantis. Gostava de ouvir histórias da Bíblia, especialmente aquelas que falavam da segunda vinda de Cristo – um tema sempre presente na vida dos crentes eslavos.

O garoto Waldemiro Tymchak sempre foi bom aluno, aplicado e disciplinado nos estudos. Aos 12 anos perdeu o pai, mas não a influência e o testemunho de cristão que recebera dele. Basílio Tymchak era líder de uma congregação e um grande evangelista. Seu ministério teve lugar entre o povo eslavo. Por isso, o adolescente Waldemiro orava e cantava em russo fluentemente. Ele foi batizado na Igreja Russa, onde tocava banjo, bandolim e pistão. Na igreja foi líder de adolescentes e jovens.

A família Tymchak residiu inicialmente em São José dos Pinhais, tendo se mudado depois para a capital, Curitiba. Nessa época Waldemiro tinha 18 anos. Começou a “abrasileirar-se”. Na Primeira Igreja Batista de Curitiba, onde foi membro, conviveu com grandes líderes batistas, como Walter Kaschel, Harald Schally e Artur Gonçalves. Na época participou de muitos retiros, congressos e intercâmbios.

Na vida profissional seguiu as orientações do pai quanto a ter uma profissão e tornou-se alfaiate, atividade que exerceu até os 23 anos. “Bába” o acordava às 3 horas da madrugada e ele trabalhava até ao meio-dia. Depois do almoço, ia para a escola. Todo este esforço era necessário porque, sendo o filho mais velho, a responsabilidade pelo sustento da família após a morte do pai recaiu sobre seus ombros. Ele aprendeu a depender muito de Deus.

O jovem Waldemiro Tymchak cursou dois anos de estudos na Universidade Federal do Paraná, mas os interrompeu porque Deus o chamava para o ministério. Saiu da universidade e ingressou no Seminário Teológico Batista do Sul do Brasil, no Rio de Janeiro. Durante os estudos no seminário, foi sustentado pela Primeira Igreja Batista de Curitiba. Como seminarista, serviu na Igreja Batista do Calvário e na Primeira Igreja Batista de Copacabana, ambas no Rio. Pregava nas favelas do bairro de São Cristóvão e fazia todo tipo de trabalho nas igrejas: cantava no coro (era tenor), pregava ao ar livre, visitava e substituía os pastores no púlpito.

Após concluir o curso de Bacharel em Teologia, o Pastor Waldemiro Tymchak viajou para a Inglaterra, para fazer um curso de especialização em Novo Testamento no conceituado Spurgeon’s College, de Londres, onde ganhara uma bolsa. Durante o período do curso, conheceu outros países e também líderes denominacionais estrangeiros. Foi nessa época que visitou a Rússia e, profundamente impressionado com a realidade religiosa, política e social do país de seu pai, escreveu uma série de artigos intitulada “Eu chorei na Rússia”, publicada na época no Jornal Batista.

Em 1971, o Pastor Tymchak retornou ao Brasil, indo trabalhar com a Congregação Batista em Bom Retiro, Curitiba. Três anos e meio depois foi para São Paulo, a fim de liderar a Igreja Batista Boas Novas, em substituição ao pastor Carlos Grigorowich, que encerrava um ministério de 43 anos à frente daquela igreja. Era uma típica igreja russa, com uma rígida disciplina, mas também uma igreja missionária e com uma grande membresia jovem.

Naquele mesmo ano, na Assembléia da CBB realizada em Campos, RJ, o Pastor Waldemiro conheceu a jovem Acidália, natural da Bahia, com quem casou-se no dia 20 de janeiro de 1973, no templo da Igreja Batista Sião, em Salvador. Desta união nasceram os filhos Nelson e Thaís.

A família Tymchak servia ao Senhor na Igreja Batista Boas Novas quando o Pastor José dos Reis Pereira, presidente da JMM, comunicou ao Pastor Waldemiro a decisão da Junta de Missões Mundiais de convidá-lo para ocupar o cargo de Secretário Geral.

O Pastor Waldemiro Tymchak tomou posse no dia 13 de julho de 1979 (na época, a instituição chamava-se Junta de Missões Estrangeiras). Os quase 28 anos à frente de Missões Mundiais representaram um período de grandes realizações e a obra missionária realizada pelos batistas brasileiros deu um salto significativo. Em 1979, eram 56 missionários, em 11 campos. Em 2007, são cerca de 600 obreiros, em 63 campos de 62 países.

Nesse período, os batistas brasileiros galgaram vitórias expressivas na evangelização do mundo, alcançando países fechados para o Evangelho, como Índia, Japão, Palestina, Líbano, Cuba, China, Iraque, Líbano, Sudão... Das 15 nações que formavam a União Soviética, como Ucrânia e Federação Russa, apenas uma (o Quirguistão) não fora alcançada pela JMM na gestão do Pastor Waldemiro Tymchak. Nos últimos anos a prioridade foram os povos não-alcançados, especialmente os que estão na Janela 10/40 e no Leste Europeu. Atualmente, a Junta de Missões Mundiais concentra mais de 50% da sua força missionária entre eles.

Estas três décadas também foram de mudanças ideológicas, quando a JMM passou a realizar a obra missionária com um novo paradigma, trabalhando mais com os missionários do próprio país. Esta estratégia permitiu entrar em lugares proibidos para obreiros estrangeiros, como é o caso de Cuba, onde a JMM tem mais de 120 Missionários da Terra (autóctones).

Atendendo as necessidades dos campos, a Junta criou novas categorias de missionários. Hoje, é possível ir para o campo por períodos que variam de seis meses a dois anos, como é o caso dos temporários, dos voluntários (que financiam sua própria estada onde atuam) e dos missionários de curto prazo. Os fazedores de tenda (trabalhadores que vão para outros países e sustentam-se com suas atividades profissionais) têm sido verdadeiras testemunhas onde o Evangelho não pode ser pregado na sua forma tradicional.

Nos últimos anos, o esporte ganhou destaque nas estratégias de evangelização. Através do Programa Esportivo Missionário (PEM) dezenas de pessoas ligadas especialmente ao futebol têm aberto portas para o Evangelho onde, de outra amaneira, seria impossível chegar. Este é o caso da China e de muitos países muçulmanos. Além destes, a Junta passou a enviar equipes formadas por pastores, líderes, médicos e enfermeiros para realizarem campanhas evangelísticas em alguns campos, especialmente na América do Sul e na África, num trabalho de apoio aos missionários efetivos.

Uma das realizações mais importantes implementadas pelo Pastor Waldemiro Tymchak foi o Programa de Adoção Missionária (PAM). Também o Programa de Intercessão Missionária (PIM) foi um projeto que deu certo; hoje, o PIM tem mais de 18.000 pessoas que estão orando pela obra de evangelização mundial.
Em parceria com a Junta de Missões Nacionais, a JMM criou o Centro Batista de Treinamento Missionário (CBTM), que preparava aqueles que seguiriam para os campos. Hoje, o preparo missionário é feito no Centro Integrado de Educação e Missões (CIEM), no Rio de Janeiro, um empreendimento desenvolvido em parceria com a UFMBB e JMN.

De olho nos desafios deste novo século, a Junta de Missões Mundiais está preparando, no IBER/CIEM, grupos para evangelizar povos não-alcançados na África e na América Latina. Trata-se do Projeto Radical, que faz parte de um novo paradigma missionário para enviar jovens, por um período de até quatro anos, que viverão de acordo com os povos a quem irão anunciar o Evangelho.

Sempre foi uma preocupação do Pastor Tymchak aproximar a Junta de Missões Mundiais daquelas que realmente fazem missões: as igrejas. Assim, ele dinamizou a comunicação da JMM, criando novos veículos para alcançar o coração dos batistas brasileiros com os clamores da obra missionária. Sua maior publicação é o Jornal de Missões com uma tiragem bimestral de 160.000 exemplares, em média. O JM substituiu a revista O Campo é o Mundo (que tinha uma tiragem de 15.000 exemplares) e desde 2004 é publicado em parceria com Missões Nacionais. Também em parceria com a JMN, criou a Revista Missiológica, destinada à reflexão e ao estudo das tendências missionárias mundiais. A JMM editada também o informativo A Colheita que é e enviado bimestralmente aos adotantes do PAM.

A JMM também ingressou definitivamente na era da imagem. Ela foi a primeira Junta a apresentar o seu relatório nas Assembléias de CBB em vídeo e criou as Videoconferências Missionárias. Em março de 1999 lançou um projeto arrojado: as Teleconferências Missionárias – um programa transmitido através da TV Executiva da Embratel que levou para todo o Brasil notícias e os desafios missionários mundiais. Além disso, a Junta está ligada à Internet e no ano passado transformou seu site num moderno Portal.

Desde 1982, a Junta de Missões Mundiais trabalha através de planejamentos estratégicos. Primeiro lançou o Plano Qüinqüenal de Metas; depois veio o Plano Decenal. No ano 2000 encerrou-se o Plano Quadrienal de Metas, lançado em 1996. Nesse mesmo ano, a Junta teve o prazer de concluir as obras de sua nova sede, no Rio de Janeiro, um local dedicado ao avanço da obra missionária mundial. Esses planos foram fundamentais para o avanço da obra missionária. A maioria das metas do Plano Quadrienal foram alcançadas; algumas, inclusive, ultrapassadas. Depois veio o Plano Qüinqüenal de Avanço Missionário (2001-2005) e, em 2006, lançou o seu Planejamento Estratégico, com metas até 2009.

Outros progressos podem ser destacados neste período, confirmando o derramamento das bênçãos de Deus sobre a vida e a obra do Pastor Tymchak. A fim de reunir líderes num espaço de reflexão missionário, o Pastor Waldemiro Tymchak realizou dois fóruns de missões, em 2002 e em 2005. E com a finalidade de despertar vocações e envolver as igrejas e os crentes no trabalho de Missões Mundiais, a JMM realiza, desde 1997, o Proclamai, que em 2007 está celebrando dez anos. Em julho deste ano chegará à marca de 50 congressos missionários realizados.

O Pastor Waldemiro Tymchak fez do mundo o seu local de trabalho e realizava diversas viagens no ano. Elas eram para pastorear os missionários nos campos (em 2005 esteve no interior do Níger e na Guiné para apoiar os jovens Radicais); ou para espiar a terra fazendo contatos com líderes nacionais a fim de abrir novos campos. Somente em 2003, pela primeira vez em 23 anos na JMM, viajou na companhia da esposa Acidália (ao Quênia, Tanzânia, Sudão e Egito), viagem patrocinada pela International Mission Board. Em 2004 esteve em alguns países do Leste Europeu, em 2005 visitou os confins da China com um grupo de pastores brasileiros.

Ele representava a JMM no Brasil e os batistas brasileiros pelo mundo afora. Em abril de 2004 foi eleito Diretor de Missões da União Batista Latino-Americana; na ocasião da reunião da UBLA, na Colômbia, lançou o desafio de enviar 10.000 jovens para a América Latina em 10 anos. Em 2005 esteve no centenário da Aliança Batista Mundial, na Inglaterra. Em 2004, a Assembléia Legislativa do Rio de Janeiro o homenageou com o Título de Cidadão do Rio de Janeiro e com a Medalha Tiradentes.

Nos quase 28 anos à frente de Missões Mundiais, o Pastor Waldemiro Tymchak venceu as doenças, ficou longos dias fora de casa, enfrentou a hiperinflação... Foi o Diretor Executivo que mais tempo ficou à frente da Junta de Missões Mundiais. Aos 69 anos e com a saúde debilitada, ainda sonhava como um iniciante. Sua morte, ocorrida no dia 20 de abril de 2007, no Rio de Janeiro, encerra um dos maiores capítulos da história de missões dos batistas no Brasil e no mundo. Deixa um legado de realizações que somente a eternidade poderá revelar.

[Texto produzido pela JMM com base em informações do Pr. Bill Ichter. Atualizado por Luiz Cláudio Marteletto].
Fonte: http://www.jmm.org.br/index.php?option=com_content&task=view&id=1108&Itemid=275

lundi 17 août 2009

Maravilhosa Graça (Teo. Sis. II)

1. A alienação de Adão e Eva definem um padrão humano, ou seja, a alienação humana faz parte da existência. Já o conceito mal, usado no seu sentido mais amplo cobre tudo o que é negativo e inclui tanto a alienação, quanto a destruição. Neste sentido, o pecado é visto como a maldade presente na natureza humana, sendo chamado também de mal moral. Os seres humanos são tentados quando atraídos e enganados pelos maus desejos da natureza humana. Então, esses maus desejos da natureza humana fazem brotar o pecado, e o pecado quando está maduro produz a morte. Veja Tiago 1.13-15 e Gênesis 4.6-7. Aqui vemos que há um processo: alienação/mal, pecado, destruição. O que nos possibilita a construção de duas teorias, a da alienação/mal e a do pecado.

2. Somos libertos da alienação que nos separa do Eterno pela graça. Ou como afirma Tiago, tudo o que é bom e perfeito vem daquele que é o fundamento e Ele nos fez para ocuparmos um lugar central na existência. Veja Tiago 1.17-18.

3. O Eterno, antes da criação do mundo, elegeu em Cristo, entre a raça humana alienada aqueles que pela graça crêem em Jesus Cristo e obedecem na fé. Contrariamente, o Eterno rejeita os que desobedecem a Cristo. Veja João 3.36.

4. Cristo, o libertador da existência alienada, morreu por todos as pessoas, de modo a garantir, pela morte na cruz, liberdade e perdão para o pecado de todas as pessoas. Mas, a salvação é desfrutada por aqueles que arrependidos aceitam pela fé este perdão e perdoados abandonam seus alvos errados. Veja João 3.16 e 1João 2.2.

5. A pessoa não pode obter a fé salvadora por si mesmo ou pela força do seu livre-arbítrio, necessita da graça de Deus por meio de Cristo para ter sua vontade e seu pensamento renovados. Veja João 15.5.

6. A graça é a causa do começo, do progresso e da completude da salvação da pessoa. Ninguém poderia crer ou obedecer na fé sem esta graça cooperante. A obediência e as boas obras devem ser creditadas à graça de Deus em Cristo. Mas, a operação desta graça não é irresistível. É necessário que a pessoa a deseje e queira permanecer nela. Veja Atos 7.51.

7. Os crentes têm força suficiente, por meio da graça divina, para lutar contra Satanás, contra a natureza humana (a alienação) e contra o pecado e para vencê-los.

8. A expiação por meio de Jesus Cristo é universal e comunica essa graça preveniente, que vem antes, a todas as pessoas, mas ela pode ser resistida. Assim, como a alienação/mal entrou no mundo pelo primeiro Adão, a graça foi concedida ao mundo por meio de Cristo, o segundo Adão. Veja Romanos 5.18 e João 1.9.

9. Em 1Timóteo 4.10 a salvação em Cristo se expressa de duas maneiras: uma universal e uma especial para os que crêem. A primeira corresponde à graça preveniente, concedida a todos as pessoas, que lhes restaura o arbítrio, ou seja, a capacidade de aceitar ou não o chamado de Deus. Ela é distribuída a todos as pessoas porque o Eterno é amor (1João 4.8, João 3.16) e deseja que todas as pessoas se salvem (1Timóteo 2.4, 2Pedro 3.9). A segunda é alcançada por aqueles que não resistem à graça salvadora e crêem em Cristo.

10. A expressão liberdade deve ser entendida como arbítrio liberto pela graça convencedora, iluminadora e capacitante que torna possível o arrependimento e a fé. Sem a atuação da graça, nenhuma pessoa teria livre-arbítrio.

11. A graça preveniente, concedida a todas as pessoas, não é uma força irresistível, que leva o homem ou a mulher à salvação. Tal graça, se fosse irresistível, violaria o caráter pessoal da relação entre o Eterno e o homem ou a mulher. Todas as pessoas têm a capacidade de resistir ao Eterno. Veja Atos 7.51, Lucas 7.30, Mateus 23.37.

12. A responsabilidade humana na salvação consiste em não resistir ao Espírito Santo. Veja Mt. 12.31, Mc 3.29.

Da anástase. Ou, pede-se ser levantado (Filosofia II)

Você está falando de bens materiais, de coisa frágil. Se você tem certeza de que esses bens ficarão sempre com você, fique com eles sem partilhar com ninguém. Mas se você não é o senhor absoluto deles, se tudo que você tem depende mais da sorte do que de você mesmo, por que este apego a eles?”. [Menandro, O Misantropo].

I. Você vai fazer uma viagem no expresso transiberiano. A viagem leva 15 dias, de Moscou até Pequim. Para passar o tempo você vai ler o Fédon de Platão. Você deve fazer uma leitura teatral, em voz alta, na sua cabine, e ocupar a cada momento o papel das personagens centrais no texto. No dia seguinte, da mesma maneira deve ler O Misantropo de Menandro.

Tomando assento no trem
Betty Fuks no seu livro Freud e a Judeidade, a vocação do exílio conta que Freud, um dia depois do sepultamento do pai, sonhou com um cartaz onde estava escrito: “Pede-se fechar os olhos”. Mais tarde, em carta a Fliess, o pai da psicanálise falou dos sentidos subjetivos da frase: “era parte da minha auto-análise, minha reação diante da morte de meu pai, vale dizer, diante da perda mais terrível na vida de um homem”.

Não vou entrar nos detalhes das leituras que o próprio Freud fez da frase que apareceu em seu sonho. Diria ao leitor que vale a pena ler Freud e a Judeidade. Pretendo aqui levantar uma proposta de Fuks: “há que ler o desejo: sem terra, sem pátria e sem objeto, ele vaga por um deserto, cujas trilhas conduzem o leitor à experiência limite mais-além do que aparece na imagem”. É a partir dessa hermenêutica, que vamos ler trechos do final da primeira carta aos coríntios de Paulus, o pequeno, apóstolo temporão de Iesous.

... Foi sepultado e foi despertado do sono no terceiro dia, de acordo com o escrito”.

A frase acima e a continuação do texto, que veremos no correr dessas três aulas, é uma das mais importantes sobre a egeiró e anástasis, duas expressões gregas não substancialmente diferentes, que sintetizam a teologia da anástase dos cristãos do primeiro século. As traduções posteriores, e creio que dificilmente poderiam ser diferentes, criaram um padrão de imagem que dificultam a experiência do ir além. Por isso, fomos obrigados antes da tradução transversa fazer a desconstrução histórico-filosófica da anástase.

As leituras da anástasis e egeiró remontam a Homero e ao grego antigo e com seus sentidos correlatos axanástasis, anhistémi e anazaó, que podem ser traduzidas por “ficar de pé”, “ser levantado” e “voltar à vida”, foram fundamentais para a construção do conceito anástase, amplamente utilizado pelas ciências do espírito. Mas é com Platão, na literatura filosófica, que vamos encontrar um debate fundamental para a teologia da anástase, quando apresenta a alma enquanto semelhança do divino e o corpo enquanto semelhança do que é físico e temporário.

Platão, em Fédon, num diálogo entre Sócrates e seus amigos defendeu a idéia da imortalidade da alma. Sócrates foi condenado à morte por envenenamento, mas não teve medo, por crer ser a alma imortal. Para Platão, as almas possuem semelhanças com as formas, que são realidades eternas por trás do mundo físico, natural. Nesse sentido, para Platão, o corpo morre, mas a alma não. Ele parte do padrão cíclico da natureza, frio/ quente/ frio, noite/ dia/ noite. Assim, os mortos despertam numa nova vida depois da morte: caso contrário, a vida desapareceria.

E dirá através de Sócrates em Fédon: “(...) perguntemos a nós mesmos se acreditamos que a morte seja alguma coisa? (...) Que não será senão a separação entre a alma e o corpo? Morrer, então, consistirá em apartar-se da alma o corpo, ficando este reduzido a si mesmo e, por outro lado, em libertar-se do corpo a alma e isolar-se em si mesma? Ou será a morte outra coisa? (...) Considera agora, meu caro, se pensas como eu. Estou certo de que desse modo ficaremos conhecendo melhor o que nos propomos investigar. És de opinião que seja próprio do filósofo esforçar-se para a aquisição dos pretensos prazeres, tal como comer e beber?

II. Na sequência da viagem, você deve ler o texto grego da 1ª. Carta de Paulo aos Coríntios, capítulo 15. Caso tenha dificuldades com o idioma do Novo Testamento, com a ajuda de um bom dicionário de teologia do Novo Testamento, analise os conceitos anástasis e egeiró que se apresentam no texto.

Chegando à Novosibirsk
Paulus conhecia a discussão filosófica grega acerca da anástase, já que isso se evidencia em seus escritos, principalmente no trecho que estamos analisando, mas é certo que construiu seu conceito também levando em conta a tradição judaica, acrescentando novidades ao debate teológico. Existem referências ao ser trazido de volta à vida nas escrituras hebraico-judaicas. Mas a preocupação judaica era existencial. Mais do que remeter a um futuro distante, embora tais leituras estejam presentes na teologia de alguns profetas, as histórias de anástase relacionadas aos profetas Elias e Eliseu falam do aqui e agora. Aliás, este último, mesmo de depois de morto, trouxe à vida um defunto que foi jogado sobre sua ossada. Ao tocar os ossos de Eliseu, o morto ficou vivo de novo e se levantou. Esse caminho será a novidade da compreensão cristã/ helênica da anástase.

Somos arautos de que o ungido foi levantado do meio dos mortos: como alguns podem dizer que não há o ser erguido dos mortos? E, se não há o despertar do sono da morte, também o ungido não foi levantado. E se o ungido não foi levantado, é inútil o que falamos e também inútil a nossa crença. Somos então testemunhas falsas, porque anunciamos que Deus ergueu o ungido. Mas se ele não foi levantado, os mortos também não são erguidos. E se os mortos não são erguidos, o ungido também não o foi. E, se o ungido não foi erguido, a nossa crença é inútil e vocês continuam a vagar sem destino. E os que foram colocados para dormir no ungido estão destruídos”.

Outras fontes de Paulus foram o profeta Daniel e a literatura intertestamentária, que trabalham com a idéia de “despertar subitamente do sono”. Os elementos novos da compreensão paulina da anástase, porém, já aparecem delineados no profeta Daniel: “Muitos dos que dormem no pó da terra despertarão, uns para a vida eterna, e outros para vergonha e horror eterno. Os que forem sábios, pois, resplandecerão como o fulgor do firmamento; e os que a muitos conduzirem à justiça, como as estrelas, sempre e eternamente”. Paulus, porém, acrescentará uma leitura existencial à compreensão de Daniel, dirá que a morte, o maior de todos os odiados pela espécie humana, será privada de força.

Caso o ungido só sirva para esta vida, somos as pessoas mais dignas de lástima. Mas o ungido foi levantado dentre os mortos e foi o primeiro fruto dos que foram colocados para dormir. Porque se a morte chegou pela humanidade, também o ungido dará à luz nova vida. Como morre a espécie, no ungido ela recebe vida. E isso acontece numa ordem: o ungido é o primeiro fruto, depois os que pertencem ao ungido, quando ele aparecer. E veremos o limite, quando o ungido entregar o reino a Deus e Pai, e tornar inoperante o império, os poderes e os exércitos. Convém que seja rei até derrubar os odiados por terra. O último odiado a ser privado de força é a morte, porque o resto já foi colocado debaixo de seus pés”.

É interessante que Paulus em seu texto sobre a anástase cita o filósofo, dramaturgo e poeta grego Menandro (342-291 a.C.), que num verso disse: “as más companhias corrompem os bons costumes”. Paulus gostava de teatro e de comédias. E voltando ao Misantropo: “insisto que, enquanto você é dono deles, você deve usá-los como um homem de bem, ajudando os outros, fazendo felizes tantas pessoas quantas você puder! Isto é que não morre, e se um dia você for golpeado pela má sorte você receberá de volta o mesmo que tiver dado. Um amigo certo é muito melhor que riquezas incertas, que você mantém enterradas”.

Que Paulus recorreu à tradição hebraico-judaica fica claro quando cita o profeta Oséias literalmente: “eu os remirei do poder do inferno e os resgatarei da morte? Onde estão ó morte as tuas pragas? Onde está ó morte a tua destruição?”. Mas há uma correlação entre Platão e a tradição hebraico-judaica, que pode ser lida nesta carta de Paulus. Isto porque, como afirma Fuks, o leitor desconstrói, pois ler não é repetir o texto: é um modo de transformação e de criação. Por isso, digo que ler é um ato de anástase. E Paulus trabalhou de forma brilhante o termo, tanto nas suas leituras e estudos, como na reconstrução do próprio conceito.

Que farão os que se batizam pelos mortos, se os mortos não são chamados de volta à vida? Por que se batizam então pelos mortos? Por que estamos a cada hora em perigo? Protesto contra a morte de cada dia. Eu me glorio por vocês, no ungido Iesous a quem pertencemos. Combati em Éfeso contra animais ferozes, mas o que significa isso, se os mortos não podem ressurgir? Comamos e bebamos, porque amanhã morreremos. Mas não vamos nos enganar: as más companhias corrompem os bons costumes”.

Na sequência da tradição hebraico-judaica, ou como diz Fuks, “os antigos hebreus não estavam trabalhados, como nós, pela necessidade de abstração, de síntese e de precisão na análise conceitual do real, herança dos gregos”, Paulus está preocupado com o corpo, com a vida.

Mas alguém pode perguntar: como os mortos são trazidos à vida? E com que corpo? Estúpido! O que se semeia não tem vida, está morto. E, quando se semeia, não é semeado o corpo que há de nascer, mas o grão, como de trigo ou qualquer outra semente. Deus dá o corpo como quiser, e a cada semente o corpo que deve ter. Nem toda a carne é uma mesma carne, há carne humana, de animais terrestres, de peixes, de aves. E há corpos celestes e corpos terrestres, uma é a dignidade dos celestes e outra a dos terrestres. Diferente é o esplendor do sol do esplendor da lua e das estrelas. Porque uma estrela difere em brilho de outra estrela. Assim também o ser levantado dentre os mortos. Semeia-se o corpo perecível; levantará sem corrupção. Semeia-se na desgraça, será levantado em excelência. Semeia-se em debilidade, será erguido vigoroso. Semeia-se corpo controlado pela psique, ressuscitará corpo espiritual. Se há corpo controlado pela psique, também há corpo espiritual”.

III. Ulan–Baator ficou para trás. Aproveitando seu tempo livre, depois de ter visitado o Parque Nacional de Terelj em Ulan-Baator, você vai correlacionar a presença do pensamento grego e platônico na construção da teologia da anástase/egeiro a partir dos três textos lidos.

O trem corre, as paisagens também
Para Paulus, anástase leva à uma teologia da vida que nasce do corpo. Mas, não é simplesmente ter de volta a vida do corpo material, tanto que em certo momento Paulus diz que “deveremos ser a imagem do homem do céu”.

Assim também está escrito: o primeiro ser humano, terrestre, foi feito ser-que-deseja, o futuro humano será um espírito-cheio-de-vida. Mas o que não é espiritual vem primeiro, é o natural, depois vem o espiritual. O primeiro ser humano, da terra, é terreno; o segundo humano, a quem pertencemos, é celestial. Como é o da terra, assim são os terrestres. E como é o celeste, assim são os celestiais. E, como somos a imagem do terreno, assim seremos também a imagem do celestial”.

Mas o pensamento grego, platônico, está presente na anástase paulina, já que a eternidade não é construída em cima da carne e do sangue. Vemos aqui a dualidade entre a realidade física e o mundo das formas. O dualismo metafísico de Paulo admite aqui duas substâncias que regem o ser humano, no mundo natural, a psique, e no mundo pós-anástase, o pneuma. E dois princípios, nesse sentido bem próximo a Platão, o bem e o mal.

E agora digo que a carne e o sangue não podem herdar o reino de Deus, nem a corrupção herdar a eternidade. Digo um mistério: nem todos vamos adormecer, mas seremos transformados. Num momento, num abrir e fechar de olhos, ante a última trombeta, porque a trombeta soará, os mortos serão levantados incorruptíveis, e seremos transformados. Convém que o corrompido seja tornado eterno, e o que é mortal seja tornado imortal. E, quando o que é corruptível se vestir de eternidade, e o que é mortal for transformado em imortal, então será cumprida a palavra que está escrita: a morte foi conquistada definitivamente. Onde está, ó morte, a tua picada? Onde está, ó inferno, a tua vitória? Ora, a picada da morte é o desviar-se do caminho da honra e da justiça, e a força do erro é a lei. Mas a alegria que Deus dá é a vitória por Iesous, o ungido, a quem pertencemos. Sejam firmes e persistentes, abundantes no serviço daquele a quem pertencemos, conscientes de que o trabalho árduo e duro não é desprezado por aquele a quem pertencemos”.

IV. Chegamos a Pequim
Agora, ao desembarcar do trem, com os textos utilizados em mãos, analise o conceito anástase no capítulo 15 da primeira carta aos coríntios, tomando como ponto de partida o desafio e a afirmação de Fuks: “há que ler o desejo: sem terra, sem pátria e sem objeto, ele vaga por um deserto, cujas trilhas conduzem o leitor à experiência limite mais-além do que aparece na imagem”. E considere se, no referido texto, Paulus traduziu – e se traduziu, como? -- o desejo grego/judaico/cristão, humano, da anástase: “Pede-se ser levantado”.

Ah! Esqueci de dizer: a viagem não acaba, mas é você quem decide como viajar.

Referências bibliográficas
Barbara Aland e outros (editores), The Greek New Testament, Stuttgart, Deutsche Bibelgesellschaft, 1994.
Betty B. Fuks, Freud e a Judeidade, a vocação do exílio, Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 2000 (pp. 127-133).
Menandro, O misantropo. Site: Oficina de teatro. WEB: www.oficinadeteatro.com
Platão, Fédon, Coleção Os Pensadores, São Paulo, Nova Cultural, 1987.

mercredi 12 août 2009

Paulo e o destino trágico dos gregos (Filosofia II)

Como se dá na tradição judaico-cristã a relação entre a liberdade e o mal? No Antigo Testamento tínhamos uma aspiral conceitual na trindade aliança, fidelidade e constância, cujo centro epistemológico era a liberdade. No Novo Testamento o vértice é o conceito de destino.

Paralelamente ao pensamento hebraico, a cultura grega apresentou uma leitura diferente do conceito de destino, que traduzia a maneira de pensar e viver do helenismo.

Na sua época, por razões apologéticas, o apóstolo Paulo apresentou um conceito de destino que resgatava e transcendia o conceito veterotestamentário de aliança. Entre os gregos, a religião e os cultos de mistérios traduziam uma luta contra o destino, numa tentativa de colocar-se acima dele. A origem dos cultos de mistérios não pode ser entendida quando os vemos apenas como fruto da decadência da mitologia clássica. Para o ser humano helênico a luta com o destino era inevitável porque o destino tinha qualidades demoníacas. Era um poder sagrado e destrutivo. Envolvia o ser humano numa culpa objetiva. Os cultos de mistério, dessa forma, ofereciam uma purificação das mãos de deuses que manipulando o destino, excluíam do ser humano qualquer possibilidade de liberdade. Assim, também a filosofia grega, através do conhecimento, procurava elevar o ser humano à transcendência, despojando-o dos objetivos e formas da vida imediata, para lançá-lo através da abstração em direção ao ser puro. O mundo helênico era um mundo de culpa objetiva e castigo trágico e um profundo pessimismo atravessava todo o conhecimento, desde Anaximandro, passando por Pitágoras, Demócrito, Sócrates, Platão e Aristóteles.

Apesar dessa visão trágica, os gregos eram apaixonados pela vida e é essa dicotomia que dará riqueza a esta que será uma das mais expressivas culturas da humanidade. Mas, em última instância, a luta do filósofo permaneceu inalterada em todo o helenismo: superar o destino. E isso foi tentado através do domínio do pensamento, como forma de elevar-se acima da existência, já que no campo da ação e da transformação da existência é impossível superar o destino. No entanto, nunca essa meta foi alcançada. Possibilidade e necessidade foram conceitos chaves nas discussões do helenismo pós-platônico. O medo de demônios obscureceu o espírito helênico. O epicurismo tentou, em vão, libertar seus seguidores do medo, mas ao definir o conceito de possibilidade absoluta [ou azar], abriu o espaço para o medo em sua argumentação filosófica.

Dessa maneira, a filosofia grega caminhou para ceticismo, já que a busca de uma certeza transcendente para a existência humana se mostrou nula. Ao mesmo tempo, enquanto força sobre-humana do destino, as nações eram submetidas ao poderio romano. Diante desse destino trágico, o mundo helênico tinha necessidade da revelação. Ameaçado por um destino demoníaco, o mundo helênico ansiava por um destino salvador, necessitava de graça.

O cristianismo é a vitória sobre a idéia da força resistível da matéria eterna, traduz a idéia de que o mundo é uma criação divina. É a vitória da crença na perfeição do ser em todos seus aspectos sobre o medo trágico e a matéria que resiste, hostil ao divino. É a negação radical do caráter demoníaco da existência em si. Dá a existência um valor essencialmente positivo e valoriza os acontecimentos da ordem temporal. Com o cristianismo, ao contrário do que pensava Anaximandro, a ordem do tempo não leva apenas ao transitório e perecível, mas também à possibilidade de algo totalmente novo, um propósito e um fim que dá pleno significado à vida humana.

No cristianismo o tempo triunfa sobre o espaço. O caráter irreversível do tempo bom [kairós] substitui o tempo cíclico, transitório e perecível do pensamento helênico. A partir desse momento, destino outorga graça, que traz salvação no tempo e na história. O mundo helênico e sua interpretação da vida estão superados e com eles, a filosofia, a religião e os cultos de mistério.

Antes, a filosofia buscava desesperadamente a revelação, agora a revelação apodera-se da filosofia dando origem à teologia. Assim, a teologia jogou fora o destino demoníaco e por extensão a metafísica helenística e se apropriou de suas formas lógicas e de seus conteúdos empíricos. O transitório e perecível da filosofia helenística não teve importância na formação do pensamento ocidental, mas sim a idéia da criação divina do mundo e a fé numa providência divina, através da salvação que se constrói historicamente e acontece num tempo bom. E isso já não é helenismo, mas antropologia teológica cristã.

Mas voltemos um pouco atrás, para entendermos esse processo. Dentro da visão paulina, que traduz o pensamento cristão palestino, destino, no sentido de que os limites estão dados de antemão, é a lei transcendente na qual está imbricado o conceito de liberdade. Assim, destino também implica numa trindade conceitual: (1) o destino está sujeito à liberdade; (2) destino significa que a liberdade também está sujeita à lei; (3) destino significa que liberdade e lei são interdependentes e complementares.

Analisando o conceito cristão palestino de destino, exposto por Paulo [Romanos 8.31-39; e 9], podemos dizer que a liberdade humana está ligada às leis universais, de tal forma que liberdade e leis se encontram intrinsecamente entrelaçadas. Aqui Paulo trabalha com um conceito judaico, de que lei é imposição de limites, que faz parte da revelação, que se expressa pela primeira vez como criação de Deus. Mas para Paulo, se o mal é uma probabilidade que surge da dialética lei e graça, o julgamento era inerente a tudo na criação, mas também a liberdade.

Assim, a certeza de que o destino é divino e não demoníaco e tem um significado realizador e não destruidor é a peça chave do pensamento paulino, que coloca o Logos acima do destino. Ao fazer isso, Paulo está dizendo que a compreensão do destino não está ao alcance do ser humano, nem pode ser submetido aos processos do pensamento humano. Mas esse Logos eterno se reflete através de nossos pensamentos, embora não exista um ato do pensamento sem a secreta premissa de sua verdade incondicional [Romanos 12.2 e ICoríntios 2.16]. Mas a verdade incondicional não está ao nosso alcance. Em nós humanos há sempre um elemento de aventura e risco em cada enunciado da verdade. Mas, mesmo assim, devemos correr este risco, sabendo que este é o único modo que a verdade pode ser revelada a seres finitos e históricos.

Quando mantemos relação com o logos eterno e deixamos de temer a ameaça do destino demoníaco, aceitamos o lugar que cabe ao destino em nosso pensamento. Podemos reconhecer que desde o princípio esteve submetido ao destino e que o nosso pensamento sempre desejou livrar-se dele, mas nunca conseguiu. Tarefa teológica da maior importância, na análise cristã do destino é saber relacionar logos e kairós. O logos deve alcançar o kairós. O logos deve envolver e dominar as leis universais, a plenitude do tempo, a verdade e o destino da existência. A separação entre logos e existência chegou ao fim. O Logos alcançou a existência, penetrou no tempo e no destino. E isso aconteceu não como algo extrínseco a ele próprio, mas porque é a expressão de seu próprio caráter intrínseco, sua liberdade.

É necessário, porém, entender que tanto a existência como o conhecimento humano estão submetidos ao destino e que o imutável e eterno reino da verdade só é acessível ao conhecimento liberto do destino: a revelação. Dessa maneira, ao contrário do que pensavam os gregos, todo ser humano possui uma potencialidade própria, enquanto ser, para realizar seu destino. Quanto maior a potencialidade do ser – que cresce à medida que é envolvido e dominado pelo logos – mais profundamente está implicado seu conhecimento no destino.

Nosso destino, que aqui deve ser entendido como missão, é servir ao Logos, num novo kairós, que emerge das crises e desafios de nossos dias. Quanto mais profundamente entendermos nosso destino [no sentido de prokeimai, estar colocado, ser proposto] e o de nossa sociedade, tanto mais livres seremos. Então, nosso trabalho será pleno de força e verdade.

mercredi 29 juillet 2009

O PRÍNCIPE DO RANCHO

Jorge Pinheiro, O príncipe do rancho, São Paulo, Versus no 33, junho de 1979, pp. 28-32.

A política e a ficção se confundem. Certa vez, eu dizia para meu amigo Alejandro Arizcún Cela – um dirigente socialista espanhol – na cidade de Vigo, que a política é um aramo da ficção científica. Ele concordou. Afinal, se a primeira trabalha com hipóteses e procura dar respostas ao futuro imediato, a segunda trabalha com a especulação e pensa o futuro. E mais do que isso, ambas trabalham com a realidade, com a vida. Assim, o que às vezes parece distante, um sonho, pode ser a resposta metafórica para nossos problemas do hoje ou do amanhã. É exatamente por isso, que nesta análise da situação nacional e dos caminhos da reorganização partidária, “Ratos e Homens” de John Steinbeck se confunde com os planos de Figueiredo e a consciência de nosso proletariado. São por incrível que pareça um mesmo mundo. Afinal, na política sempre teremos um magro das mulas, aquele que procura “matar com o chicote uma mosca pousada na anca da mula da carroça sem tocar a pele do animal”.
“Há um sendeiro através dos salgueiros e dos sicômoros, um caminho batido pelos mesmos que descem das fazendas para vir nadar no poço e trilhado pelos vagabundos que, à noitinha, deixam fatigados a estrada real para vir acampar à beira d’água. Diante do ramo horizontal e baixo dum sicômoro gigante vê-se um monte de cinza feito por muitas fogueiras: o tronco está gasto e polido de tantas foram as pessoas que se sentaram nele.
O anoitecer dum dia cálido pôs em movimento a brisa por entre as folhas. A sombra subiu as colinas na direção dos topos. Os coelhos estavam sentados imóveis nas margens arenosas como pequenas esculturas de pedra cinzenta. E depois, das bandas da estrada estadual, veio o som de passos sobre as folhas secas de sicômoro. Os coelhos correram furtivos para seus esconderijos. Uma garça empertigada se ergueu pesadamente no ar e sobrevoou o rio, corrente abaixo. Por um momento a vida como que cessou naquele recanto...”

Recordemos um pouco a época de Geisel
De certa forma, por razões de método de análise, podemos dividir o período Geisel em três etapas.
A primeira fase vai de 15 de março a 15 de novembro de 1974. Nessa primeira etapa, o governo vivia o fim do milagre econômico e, embora apresentasse um projeto diferente ao de Médici, tinha de fato muitas semelhanças com o governo anterior.
De 15 de novembro de 1974 a maio de 1977 vivemos, realmente, uma segunda etapa do governo Geisel. Antes de mais nada, Geisel sofreu uma violenta derrota eleitoral em 1974, embora esta tenha se dado ao nível da superestrutura e da democracia formal. E foi, contraditoriamente, esta derrota que afirmou as características bonapartistas de Geisel, que começou a tentar uma tímida abertura. Tímida porque as pressões que sofria eram, fundamentalmente, superestruturais, ao nível do regime, já que o movimento de massas não tinha se lançado à luta. Assim, o bonapartismo de Geisel vai se delinear durante todo o período por esses elementos. Ele apresentava força, e de fato a tinha, embora sua base social não fosse muito ampla. Em última instância, sua força surgia do fato de que a oposição existia apenas com superestrutura, dentro do regime.
A terceira fase, que começa a partir das grandes mobilizações de maio de 1977, vai se consolidar com as greves operárias de maio de 1978, que golpeiam o governo, fazendo estremecer o bonapartismo. E aí se dá um fenômeno interessante: ele começa a receber mais apoio da burguesia. Há um voto de confiança burguês e anti-operário no governo que, contraditoriamente, aumenta sua base social, mas como resultado do confronte de forças na sociedade se torna mais fraco porque começa a enfrentar-se com setores do movimento de massas que se mobilizam. A partir da ofensiva das massas delineam-se dois projetos, o “realista” e o “desenvolvimentista”, que se enfrentarão mais claramente no governo Figueiredo..
É esta terceira fase de Geisel que nos dá a chave para entender Figueiredo. É exatamente neste último período de Geisel que a etapa deixa de ser contra-revolucionária e passa a não-revolucionária, já que como as mobilizações estudantis de 1977 e com as greves de 1978 surge uma nova correlação de forças ao nível social. Há uma clara medição de forças entre os proletariados e as camadas assalariada médias e a burguesia, sem grandes derrotas para as classes trabalhadoras, mas ao contrário, com vitórias ainda pequenas, mas que aumentam o ânimo de luta e vão conscientizando uma ampla vanguarda do movimento de massa.
Aqui há um problema de dialética que podemos tentar explicar através de um exemplo da física, que é o do paralelogramo de forças. Antes, na segunda fase do governo Geisel, as forças burguesas embora não estivessem aglutinadas ao redor do governo (desde os imperialismos até a Igreja), formavam um vetor muito maior do que as forças do movimento de massas (que não estava mobilizadas), o que dava uma direcionante favorável ao governo. A partir da terceira fase de Geisel aumenta o vetor das forças que apóiam o governo, mas aumenta o vetor do movimento de massas, que inclui setores mobilizados, como os do proletariado e das classes médias assalariadas, donde o direcionamento passa a ser maior.
Assim, podemos dizer em relação a Figueiredo – nesses primeiros 100 dias de governo – que ele tem maior apoio burguês e imperialista que Geisel, embora como dinâmica seja mais fraco. E mais: a etapa continua sendo não-revolucionária, mas diferente inclusive da terceira fase de Geisel, já que os dois vetores aumentam, mas com sentido inverso. Donde a dinâmica está determinada pelo movimento de massas, pela sua dinâmica.

...havia remédios, pequenos frascos
“A casa dos peões era um comprido edifício retangular. Por dentro as paredes estavam caiadas e o piso não tinha pintura. Em três dessas paredes havia pequenas janelas quadradas e na quarta uma sólida porta com trinco de madeira. Contra as paredes se alinhavam oito tarimbas, cinco delas feitas já com mantas, e as outras três com a serapilheira de riscado dos colchões à mostra. Por cima de cada tarimba estava pregada uma caixa de maçãs vazia com a abertura para a frente, de modo a formar duas estantes para guardar coisas de uso pessoal do ocupante da cama. Estas estantes se achavam cheias de pequenos artigos: sabão e pó de talco, navalhas e números dessas revistas do Oeste que os trabalhadores das fazendas costuma ler, com ar de pouco caso, mas nas quais acreditam secretamente. E havia também remédios, pequenos frascos e pentes; e nos pregos de ambos os lados estavam penduradas algumas gravatas. Perto de uma parede via-se uma estufa negra de ferro fundido cuja chaminé subia reta através do teto. No meio do compartimento se erguia uma grande mesa quadrada coberta de cartas de baralho, ao redor da qual se agrupavam as caixas que serviam de cadeira aos jogadores”.
É necessário levar em conta que o movimento de massas está começando a fazer suas experiências. Essas greves fazem parte de um primeiro ensaio e, além disso, em relação ao conjunto das massas proletárias e das classes médias assalariadas, ainda é muito pequeno o setor mobilizado.
Além disso, o enfrentamento está se dando contra a burguesia mais forte da América Latina, que não está em crise (embora enfrente sérios problemas de redirecionamento do modelo) e está muito unida contra o ascenso operário e popular. E por fim existe um outro fato que é o da relação entre as questões sindical, democrática e política.
Está claro (já no governo Figueiredo) que a ascensão começa a partir de questões salariais, mas não podemos esquecer que vivemos há quinze anos sob o arbítrio e a repressão, e que exatamente por isso as lutas dos trabalhadores tendem a caminhar a solução das questões democráticas.
Lutar por melhores salários significa cada vez mais lutar também por sindicatos fortes e independentes, contra as intervenções e os pelegos, contra a polícia e em certa medida contra o governo. Num primeiro momento, a alternativa para lutar por melhores condições de vida foi votar no MDB, mas isso não ajudou muito. Contraditoriamente, o fortalecimento do MDB nas eleições e sua passividade real após 15 de novembro de 1978 acabou por fortalecer as greves. E se com as greves se deram as intervenções, a resposta foi o fabuloso 1º de Maio em São Bernardo e as assembléias multitudinárias. E essa relação está se dando cada vez mais: salário-democracia-salário, em espiral que chega aos recantos do país.
E se esse processo não se transforma claramente numa luta política contra o autoritarismo é exatamente porque não existem organismos políticos que canalizem essas insatisfações salariais e democráticas.
O MDB não serviu para isso. Daí a defasagem entre a questão salarial/democrática e a questão política. E aqui a relação é a seguinte: quanto mais o fator político for se fortalecendo, mas se fortalece a questão democrática. Mas como falta o elemento político, se fortalece a questão salarial.
Essa relação entre esses elementos (a questão salarial e a democrática) vai nos permitir entender a atual vanguarda que surgiu com as mobilizações, a partir de maio de 1978. Esta vanguarda classista surge mais como necessidade do que como consciência. É a passagem da questão democrática à política, só que fica no meio. Explicando: a necessidade de unificar as lutas, de dar respostas democráticas, de conseguir vitórias salariais, está levando um setor da vanguarda a tentar uma resposta política para o país, mas esta resposta não está surgindo da consciência de que o problema do país é político e de que só um partido dos trabalhadores é a solução. Para a maioria dos trabalhadores esta situação não está clara, nem mesmo para um setor da vanguarda. Eles entendem, empiricamente, que é necessário criar algo que permita o avançar das lutas, e que este algo não é o MDB. Assim, a vanguarda classista é de fato a meditação entre a questão salarial/democrática e a questão política.
Dessa maneira, em relação à etapa, dizemos que ela é não-revolucionária e que seu ritmo é determinado pela ascensão. Este movimento tende a se manter, mas não é explosivo. Ele parte das questões salariais e se combina rapidamente com as questões democráticas. Mas pela falta de organismos políticos de classe e pela unidade burguesa se transforma numa ascensão mediada.

As mãos, de dançarina de templo
“... entrou na sala, movendo-se com uma majestade que só têm os reis e os mestres artífices. Era um condutor de mulas, o príncipe do rancho; podia conduzir dez, dezesseis e até vinte mulas com uma só rédea simples presa às dianteiras. Era capaz de matar com o chicote uma mosca pousada na anca da mula da carroça sem tocar a pele do animal. Havia em suas maneiras uma gravidade e uma quietude tão profundas que toda a conversa cessava quando ele estava a falar. Era tão grande que a sua autoridade, que sua palavra era aceita como definitiva sobre qualquer tema, fosse ele de política ou de amor. Era o Magro das mulas. A cara delgada não tinha idade. O homem tanto poderia ter trinta e cinco como cinqüenta anos. Seu ouvido escutava mais do que lhe diziam e sua fala lenta tinha tons ocultos, não de pensamento, mas sim de uma compreensão que ia além dos pensamentos. Suas mãos grandes e descarnadas eram na ação tão delicadas como as de uma dançarina de templo”.
O governo Figueiredo pretende, em seus seis anos de mandato, conseguir a transição de um regime bonapartista, vivido até Geisel, a um democrático-burguês, controlado, entregando –- então -– a presidência do país a um civil eleito através do voto indireto e que conte com a aprovação das Forças Armadas. Assim, depois de 21 anos de autoritarismo, o novo/futuro governo garantiria a continuidade do anterior. Se esta é a estratégia, a tática é chegar gradualmente à democracia controlada. Nesse processo iria desmontando os elementos institucionais característicos do bonapartismo,e incorporando os da democracia formal burguesa.
Esse plano de alguma maneira parece seguir as pegadas do modelo espanhol. No entanto, na equação política há várias incógnitas para as quais ainda não vemos respostas. Quem cumpriria o papel de Juan Carlos e/ou de Suárez? Poderia a Arena, readaptada e com novo nome, representar o papel da UCD espanhola? Por enquanto não temos respostas.
Mas, mesmo assim existe outro problema sério a resolver, que é o de criar os canais sindicais e políticos que enquadrem o movimento operário e de massas. Este é o ponto mais difícil. Quais serão as organizações que se candidatarão a cumprir o papel que cumprem na Espanha o PCE e o PSOE. Afinal, o próprio Petrônio Portella já disse que “é preciso novos partidos para impedir que a política seja feita através dos grupos de pressão”.
Bem, como hipótese geral podemos dizer que o projeto de abertura tem características espanholas, mas não podemos dizer que a institucionalização desta abertura seja exatamente a do modelo espanhol.
Até agora parece que o projeto do governo em relação aos partidos, e à reestruturação do sistema eleitoral, se aproxima mais do modelo francês, ou seja, da existência de dois partidos fortes ligados ao movimento de massas, com peso eleitoral, e mais dois, muito possivelmente ambos de centro-direita. Este projeto tem como finalidade fazer com que do choque entre os dois maiores partidos governe sempre um terceiro, de centro-direita. Aliás, sinteticamente, essa foi a grande descoberta de De Gaulle para neutralizar a força crescente das esquerdas francesas.
Assim, a Arena renovada e o partido de Magalhães Pinto tendem a cumprir o papel dos partidos de centro-direita, e o MDB (com nova sigla, muito possivelmente) e o PTB seriam de fato os dois grandes partidos que dividiriam o eleitorado. Aliás, a partir dessa elaboração, o governo necessitaria da cor vermelho/Moscou dentro do MDB, o que lhe daria –- unido à burguesia liberal -– um conteúdo específico e ideológico diferente do PTB social-democratizado. Assim, esses dois partidos funcionariam como pólos opostos dentro de uma mesma unidade, o movimento de massas.
Mas essas são hipóteses que levantamos a partir das propostas e manobras do governo. Inclusive, é bom entender que o governo está menos interessado em acabar realmente com o MDB, do que infiltrá-lo de liberais com Severo Gomes, Teotônio Vilela e outros, os quais não fortalecem o MDB de fato, mas acentuam e definem o seu caráter de partido da burguesia liberal, isolando cada vez mais os autênticos. É exatamente dentro desse processo que o governo necessita do PTB, como partido que aglutine os descontentes à esquerda, que não comungam com as idéias do Partido Comunista.

E a democracia-cristã?
Bem, até agora os cardeais e bispos brasileiros têm se pronunciado contra a formação de um partido ligado à Igreja. E há razões para isso. Primeiro porque a Igreja no Brasil não está coesa ideologicamente A corrente democrata-cristã vai desde um Franco Montoro até a um Nei Braga, desde um dom Paulo Arns ou um dom Hélder Câmara até um dom Sigaud. E juntar tudo isso num único partido seria problemático. Além disso, há a experiência internacional naqueles lugares onde a Igreja lançou partidos políticos e estes fracassaram, caiu também, o prestígio da Igreja. O exemplo mais complicado dessa situação é a própria Itália, onde a Santa Sé não sabe como se livrar do peso que é o Partido Democrata Cristão. Por isso, a tendência maior é que a Igreja jogue no seu papel atemporal, e tenha elementos nos mais diferentes partidos. Aliás, é o que tem feito desde 1945: apresentar uma cara antiditatorial e democrática, sem lançar-se como opção política definida.

Temos que encontrar ele
“Depois o Magro se aproximou, lento, da mulher e apalpou-lhe o pulso. Um dedo débil tocou-lhe a face e depois a mão baixou à nuca lentamente torcida e os dedos exploraram o pescoço. Quando o Magro se ergueu os homens se aproximaram e o encanto se quebrou.
O Magro se voltou vagarosamente para George.
– Acho que foi o Lennie -– afirmou.
– Ela está com o pescoço quebrado. Lennie podia ter feito isso.
George não respondeu, mas fez um lento sinal de assentimento com a cabeça. O chapéu estava tão enterrado na cabeça, que lhe cobria os olhos.
– Talvez -– prosseguiu o Magro -– tenha sido o mesmo que aconteceu em Weed, como você me contou.
George tornou a fazer um gesto afirmativo. O Magro suspirou:
-- Bem, acho que temos que encontrar ele. Para onde achas que ele foi?
George deu a impressão de que necessitava de algum tempo para soltar as palavras
-- Decerto... decerto foi para o Sul. Nós vimos do Norte, de modo que talvez ele tenha ido para ao Sul.
-- Acho que temos que encontrar ele – repetiu o Magro”

Que fenômeno é este, o do tal Partido dos Trabalhadores?
Antes que nada ele parte de um elemento, o desenvolvimento econômico e social dos últimos vinte anos, que geraram duas novas classes, uma classe operária industrial, altamente concentrada nos grandes centros urbanos, e uma classe média assalariada moderna. Desde 1978, tanto os operários como esta classe média estão num processo de mobilização.
Essa combinação de fatores, o surgimento de estratos novos na sociedade e o conjuntural -– um ano de mobilização –- levam ao surgimento (ou condicionam o surgimento) de fenômenos novos na sociedade.
Falamos que o centro das lutas é o salarial, mas dissemos também que se chocam freqüentemente com o governo da mão estendida e com o MDB, que não apresentam soluções para a questão do nível de vida. Outra coisa que deve ser levada em conta é que o Partido Comunista, neste momento, não aparece ao nível das lutas com um grande peso específico, o mesmo acontecendo com outros setores menores da esquerda.
O PTB, que é outro elemento, deve ser entendido da seguinte maneira: antes de mais nada as direções sindicais do movimento operário brasileiro não estão hoje ligadas umbilicalmente ao populismo, já que estes novos estratos de classe surgem praticamente quando o populismo começava a dar seu últimos suspiros. Assim, estas direções não surgem a partir do PTB,e não tiveram relações mais profundas com o populismo. E mais: durante os últimos 15 anos, o populismo não apresentou alternativas, nem esteve ligado às lutas dos trabalhadores. E agora, de um ano para cá, a proposta de ressurgimento do PTB não está passando pelas lutas que se deram nas fábricas e nos sindicatos. Tanto a proposta de Brizola, como a de Ivete Vargas não levaram em conta de forma concreta as reivindicações e mobilizações dos trabalhadores. Na verdade, ambos projetos passam pelo MDB, e isso só serve para confundir mais a situação... E por fim, para que surja o PTB é necessário que Brizola esteja no Brasil. Dessa maneira, a realidade do PTB existe mais como possível do que como concreto imediato.
Todo esse processo é o que faz com que os trabalhadores, que enfrentam duras lutas salariais, misturadas com problemas democráticos e políticos, tenham como necessidade alguma expressão de tipo político. É aí que começa a brotar, de forma superestrutural e vacilante, entre alguns dirigentes sindicais, a idéia de um partido dos trabalhadores. Um pouco mais trabalhada pela Convergência Socialista esta proposta começou a ser discutida como possibilidade de superação da necessidade concreta do momento.
A idéia do PT surge então de quatro fatores: (1) de uma nova realidade social; (2) das mobilizações e lutas que estão se dando há mais de um ano e que geram uma nova experiência, não somente sindical, mas democráticas e política; (3) a não existência de alternativas para esta nova vanguarda, que necessita expressar-se politicamente; e (4) de que esta necessidade se expressou através de algumas direções sindicais e através da Convergência Socialista, que cumpriu um papel mais ideológico.
De toda a maneira, o Partido dos Trabalhadores não estava nos planos do governo. Sua intenção é de que todos os dirigentes sindicais classistas e autênticos, assim com o ativismo, estejam controlados pelo PTB ou o MDB. Esta é a única garantia para a burguesia, enquadrá-los e vencer o movimento de massas através de uma saída democrática controlada, entrilhando seu descontentamento para a luta estritamente parlamentar.
Na verdade, a construção do PT passa por grandes dificuldades. Como os dirigentes sindicais chegaram à questão do PT através do classismo, como mediação entre a questão democrática e política, por uma necessidade, e não exatamente por um salto de consciência, o Partido dos Trabalhadores passa a ser de difícil concretização. Os dirigentes sindicais estão procurando um partido, algo que possa cumprir uma necessidade que têm. Como antes o projeto do PTB estava distante, eles começaram a baralhar a hipótese do PT, mas na medida em que o PTB venha a concretizar-se, aumenta a possibilidade de que os classistas aceitem esta alternativa. Já que é mais fácil entrar num partido do que construir um.

Mais um detalhe importante
Todo o processo novo que se dá a partir de mais de 1978 é muito rico porque combina e interliga muitas coisas, como o fato de que setores do movimento de massas se mobilizem a partir do sindical, mas também combinam o democrático e o político e geram uma importante vanguarda, mas se dá de forma desigual e combinada, mais ainda, não é um fenômeno ideológico, mas concreto.
Assim, diríamos que se dão, misturados, três níveis de consciência. Um primeiro mais amplo, que é o sindical-classista e que se traduz no surgimento de uma nova vanguarda classista, em sindicatos autênticos, chapas classistas de oposição, vencedoras, etc.
O segundo nível de consciência é o classista-político, o mais heterogêneo, que se traduz na compreensão empírica, vacilante e não claramente definida ainda, da necessidade de um partido sem patrões, que expresse as necessidades mais gerais da classe trabalhadora. Isto é laborismo.
E o terceiro nível de consciência seria o da consciência revolucionária, daqueles que entendem a necessidade de um partido socialista para a transformação da sociedade.
Sem entender que existem níveis diferentes de consciência e desigualdades não entenderemos o processo vivido pelo PT. A construção do Partido dos Trabalhadores depende dos próprios trabalhadores. A participação dos socialistas nesta construção pode ser fundamental, mas ainda assim é secundária. De todas as maneiras, caso se concretize o PT será talvez o maior salto que a classe operária brasileira já deu no processo de consolidação de sua consciência-para-si. E, um rombo efetivo nos planos de Figueiredo. Dezesseis de junho de mil novecentos e setenta e nove. Anno domini.

“A funda bacia verde do rio Salina estava muito parada naquele fim de tarde. O sol já havia deixado o vale para ir trepando pelas encostas das montanhas Gabilan e os cumes dos outeiros estavam tocados duma luz rosada. Junto do poço, porém, entre os sicômoros mosqueados, havia caído uma sombra agradável.
Uma cobra d’água deslizou tersamente pela laguna, torcendo dum lado para outro a cabeça de periscópio; e nadou toda a largura da bacia, chegou até as pernas de uma garça imóvel que se achava nos baixios. Uma cabeça silenciosa e um bico projetaram-se para baixo, como uma lança, e seguraram a cobra pela cabeça: e o bico engoliu a pequena cobra, enquanto seu rabo coleava freneticamente”.

Fonte
Jorge Pinheiro, O príncipe do rancho, São Paulo, Versus no 33, junho de 1979, pp. 28-32.

mardi 14 juillet 2009

A paridade entre o cristianismo e a consciência social crítica e militante

Conforme explica Paul Tillich em artigo publicado em Das neue Deutschland, de 1919, a consciência e a militância social são produtos do desenvolvimento econômico e espiritual, que surgiu lentamente e se impôs com a Renascença, a Reforma e o capitalismo. A consciência e a militância social surgiram em oposição à cultura autoritária e unitária da Idade Média e sedimentaram suas bases nas criações culturais dos últimos séculos.

A práxis socialista só pode ser compreendida a partir desse desenvolvimento e sua permanência está ligada diretamente a ele. Foi do interior do cristianismo que brotou a consciência e a militância social e, por isso, um socialismo sem pressupostos cristãos se mostra capenga. Ou seja, aqueles que defendem o socialismo devem defender também os princípios sobre os quais ele repousa.

A organização econômica e espiritual da Idade Média estava fundada sobre um sistema de centralização da autoridade que, ancorado no sobrenatural, associava a natureza e a sobrenatureza numa unidade poderosa, à qual os povos se encontravam sujeitos.

A Reforma, sustentada pela visão humanista que surgiu com a Renascença, golpeou o sistema de autoridade, trouxe a fé para o plano formal ao recorrer à autoridade dos textos escriturísticos judaico-cristãos e, no plano material, valorizou a subjetividade da consciência pessoal.

Apoiada formalmente sobre os textos escriturísticos judaico-cristãos, o protestantismo eclesiástico engendrou novas contradições. Mas o sistema centralizado de autoridade já estava em frangalhos: as autoridades anularam a autoridade. Agora cabia ao indivíduo decidir a que grupo ele queria ligar-se.

Por causa das guerras religiosas, essa realidade viveu um processo lento transmitindo a cada lado a esperança de que poderia chegar a uma vitória exclusiva. Mas com o fim dos combates o que se viu é que as oposições às confissões se tornaram permanentes. Dessa maneira, brotou o espírito autônomo e crítico nos mais variados campos. A consciência européia ocidental atacou as muralhas autoritárias das confissões e não deixou subsistir sob o solo protestante nada mais que destroços do constrangimento autoritário.

Descartes deu o golpe decisivo. A certeza que eu tenho de mim mesmo é o princípio de toda certeza objetiva. Embora a autoridade não possa me livrar da dúvida, é em mim mesmo, somente, que se enraiza a certeza. E o Iluminismo tirou suas conclusões: toda tradição deve ser submetida à crítica.

No domínio econômico, espiritual e político nada ficou de positivo que não fosse pensado, confrontado com a consciência, medido e negado. Os sistemas de fé, as formas de Estado, as definições econômicas sofreram o assalto da autonomia, que não livraram nada, que não tiveram nenhum respeito pelas autoridades humanas e divinas.

Lamentou-se a perda do sistema de autoridade ou festejou-se tal acontecimento como um passo em direção à maturidade cultural. De todas as maneiras, houve o reconhecimento de que a vida cultural não podia ser pensada sem autonomia e que a consciência e a práxis social estão presentes em todos os lugares. Líderes e camponeses tiveram o mesmo sentimento, conquistaram a liberdade das mãos do autoritarismo irracional, fosse ele imanente ou transcendente. Este foi o primeiro fato que o cristianismo teve de levar em conta.

Do lado positivo, a autonomia significou o reinado da razão. Pela primeira vez, depois de um milênio e meio, a razão humana não via limites para seu poder. Através da análise ela penetrou as profundezas da vida cultural e social, simultaneamente, e através da síntese dos elementos descobertos apresentou um sistema novo, racional. Depois de séculos de arbítrio, as pessoas foram possuídas por uma vontade de dar forma ao mundo de maneira racional.

E a vida econômica também foi formulada racionalmente. Não era o prazer de certos indivíduos ou povos que deveriam fazer a lei, mas era a humanidade inteira, que é sujeito e objeto dos processos econômicos, quem deveria fazê-lo a partir de critérios racionais. A mesma autonomia que substituiu a autoridade, a partir da razão precisava construir um mundo sem arbítrio. Eis o segundo fato que o cristianismo teve de levar em conta.

Sem dúvida, foi Marx quem introduziu o pensamento histórico objetivo no socialismo, a partir do idealismo alemão, ao dizer que a razão precisa ser separada da decisão humana e colocada ao nível das necessidades objetivas. O processo dialético é racional e a fé nele é uma fé na razão: uma fé que adquiriu uma força enorme graças à sua amarração metafísica objetiva e que se tornaria o dogma fundamental de milhões de pessoas.

Foi o processo da própria história que fez o mundo conformar-se à razão e levou este combate à vitória. E foi essa vitória que deu cara ao mundo que conhecemos como moderno.

A fé na razão estava fundamentada sobre os resultados conquistados pela ciência da natureza. Mas atrás da ciência da natureza veio a cultura moderna. Preparada de várias maneiras a partir do fim da Idade Média, ela surgiu com uma força irresistível na Renascença e conduziu a uma afirmação alegre deste mundo, que durante muito tempo foi negado, desdenhado e rebaixado por um outro onírico e místico.

Os outros mundos empalideceram diante da astronomia, diante da validade universal das leis da natureza, diante da redescoberta da beleza do real na arte, diante da consciência de unidade do finito e do infinito na filosofia da natureza. Foi assim que a imanência ressoou no humanismo e na filosofia das Luzes, com Goethe e no idealismo alemão, da mesma maneira que o socialismo se uniu à consciência da autonomia e à fé do poder formador da razão na construção de um sentimento unitário da vida e do mundo. Este foi o terceiro fato que o cristianismo teve de levar em conta.

Se o socialismo é, nesse sentido, uma herança da cultura universal, ele teve, no entanto, uma originalidade que não se restringiu aos conceitos, mas à experiência vivida. O conceito de humanidade, que manifestou a vitória da idéia de tolerância, não teve no desenvolvimento da práxis burguesa mais que uma realização acidental. A consciência de humanidade foi neutralizada pela consciência de classe burguesa, pela educação e pela dependência nacional.

A humanidade se colocou antes de tudo no campo das confissões religiosas, sob formas absolutamente contrárias a idéia de uma transformação racional do mundo. E foi pela pressão econômica e política sobre os trabalhadores, nos primeiros decênios do capitalismo, que nasceu uma consciência solidária, no coração do qual estava presente o sentimento universal de humanidade, que se opõe àquele que vê as pessoas como meios e não como fim.

O combate contra o feudalismo, o capitalismo, o nacionalismo e o confessionalismo religioso constituiu a expressão negativa da consciência de humanidade, que derruba barreiras e reconhece a pessoalidade de cada ser humano. Este foi o quarto fato que o cristianismo teve de levar em conta.

Esses elementos formadores da consciência social crítica e militante são fundamentais para a compreensão das relações entre cristianismo e socialismo. Eles possibilitam entender até que ponto o cristianismo pode ter uma atitude positiva em relação à essa consciência social crítica e militante.

Um sistema como o catolicismo pré-Vaticano II, que foi erigido sobre o princípio da autoridade centralizada, só poderia se opor a um movimento autônomo como o socialismo. Esse tipo de catolicismo e o socialismo são opostos na medida em que tal catolicismo se afirma enquanto sistema de autoridade.

Eles se colocam como opostos mesmo quando o catolicismo aceita as exigências do socialismo em matéria de economia política. Entre os católicos continua a ser determinante a ética social do tomismo, estabelecida de maneira autoritária, em estreita relação com a dogmática. Ela permite uma ampla margem de manobra, mas a unidade do sistema católico impõe limites bem definidos, que uma doutrina econômica autônoma não pode jamais reconhecer.

O protestantismo quebrou o sistema de autoridade em seu princípio-base e deu voz à autonomia. Por isso, é um erro considerar de forma heterônoma os evangelhos ou dizer que o comportamento da comunidade de Jerusalém em Atos dos Apóstolos conduz a uma política econômica socialista.

Do ponto de vista histórico, os fatos não são assim tão simples, porque os evangelhos não apresentam um programa de reforma social radical, embora Jesus, convencido da irrupção iminente do reino de Deus, tenha apresentado aos seus discípulos as conseqüências éticas do mandato do amor.

Fazendo uma abstração histórica, deve-se reconhecer que no terreno da autonomia, a justiça de uma ética social ou a verdade de uma doutrina não depende de sua conformidade às escrituras judaico-cristãs. Por isso, a consciência social crítica e militante pode ter por base, num determinado contexto, um sólido apoio psicológico a seu favor, enquanto convicção pessoal, que não nasce da autoridade imposta.

Quando os laços do cristianismo com a consciência social crítica e militante estão fundamentados de maneira heterônoma sobre as escrituras judaico-cristãs não há um protestantismo autêntico, mas uma legalidade sectária. Isto porque o protestantismo como essência é autônomo. Mas, sem dúvida, as fórmulas “pela graça somente” e “pela fé somente” transportaram vida ao domínio do conhecimento ao rejeitarem o legalismo, o farisaísmo da posse da verdade e o desejo de querer impor a verdade aos outros.

A religião e o espírito autônomo podem ser entendidos como paritários quando se chega a essa união através da autonomia, que livra do arbítrio. Diante da decomposição da cultura burguesa, o socialismo propôs a criação uma nova vida cultural e social unidas sobre a base de uma economia planejada. Mas tal proposta só é possível quando a autonomia caminha em direção à teonomia. Ou seja, é necessário uma práxis que permita à incondicionalidade apoderar-se de todas as realidades. Este é um ponto sobre o qual cristianismo e socialismo precisam se colocar de acordo.

A idéia de dar forma racional do mundo fez oposição à concepção do cristianismo que via o mundo como contra-divino e a razão como caída, e que via a redenção não como ação que dá feitio ao mundo, e o conhecimento não como razão, mas como revelação. Por isso, nesses últimos séculos, a teologia protestante propôs-se a superar a oposição entre razão e revelação, através da idéia de uma história universal da revelação, humana e imanente ao espírito, que nada mais é que a história do espírito em geral e do cristianismo em particular.

Essa concepção ética elaborada pela cultura protestante considerou que a pessoalidade livre é impossível sem o fundamento natural de sua individualidade psíquica e corporal, com suas inevitáveis particularidades lógicas, fisiológicas e biológicas e que o valor da pessoalidade consiste em ir além, elevar-se acima dessa naturalidade.

Tal concepção de mundo, que repousa sobre o absoluto, que aprofunda esta contradição entre o ser e o mérito, fundamento de toda liberdade moral, não é um estado ideal, pois seria onírico, desprovido de liberdade e de mérito inferior. Assim, o protestantismo traduziu uma vontade de dar forma ao mundo de maneira imanente: o reino de Deus vem ao mundo. Mas, ao mesmo tempo, tal concepção apresentou limitações: o dar feitio está situado no âmbito da técnica, não no da ética, no âmbito da categoria de meio e de fim e não dos juízos e do mérito.

Fazer é técnica, mas a técnica não é o fim em si, não é um fim último. Mesmo que toda economia fosse uma produção racional, a organização jurídica englobasse todos os povos, a vida material estivesse livre do imprevisível, restaria ainda o mérito da pessoalidade, a revelação do espírito e a idéia criativa que traduzem graça e brotam das profundezas do fazer.

Por isso, e essa será uma das sacadas de Tillich, é importante que o olhar lançado nas profundezas da existência não seja turvado, que a fé enquanto experiência da incondicionalidade apóie a vontade de dar forma ao mundo e a livre do vazio e do nada de uma simples tecnificação do mundo. Esta é outra questão sobre a qual cristianismo e socialismo devem se colocar em acordo, pois é com a experiência do imanente que surge claramente a oposição entre o socialismo e o cristianismo, já que o cristianismo está comprometido, enquanto fé, com o lá em cima, e o socialismo voltado para o aqui embaixo. Mas esta oposição não é correta.

Lá onde se vive a profundidade última da experiência humana, onde a experiência da incondicionalidade é pronunciada sobre todas as coisas e sobre todos os méritos, é onde acontece a supressão da oposição entre o em cima absoluto, perfeito, e o embaixo relativo. Sim e não são pronunciados sobre o aqui embaixo, que afinal é a única realidade conhecida. É no coração das pessoas que acontece a separação entre céu e terra, o julgamento paradoxal que confronta absoluto e relativo, perfeito e vão, eterno e terrestre. É assim que devemos entender a teologia do “somente pela fé”, que não admite nem perfeição, nem conhecimento, nem estado absolutos, mas que vê brotar o absoluto em todo relativo.

Temos aqui o fundamento da compreensão positiva que cristianismo nos dá sobre a questão da imanência. Mas aqui também o cristianismo deve oferecer ao socialismo alguma coisa sem a qual ele não pode existir: a experiência vitoriosa da incondicionalidade em tudo que está condicionado, imanente, na totalidade do real.

Existe uma atitude profana e uma atitude religiosa no olhar o mundo: essas atitudes se tornam nulas num estado puro, exclusivo. Num, a primeira predomina fortemente, noutra, a segunda. Pode-se conceber a arte, a ciência, a moralidade, a vida econômica e jurídica, a política exterior e nacional como fazeres profanos e se pode concebê-las de maneira religiosa.

Pode-se vê-las como atividades úteis e agradáveis, necessárias e desagradáveis, mas pode-se ver o espírito agir nelas e ver a vida nelas se revelar e, por isso, aproximar-se de tais coisas com respeito.

O espírito cristão está vivo no movimento socialista: é uma vibração religiosa que circula através das massas. Mas há também presenças profanas no movimento, mesmo entre seus ‘padres’ e ‘bispos’. A santificação da vida cultural no geral e no socialismo em particular é a marca deixada pelo cristianismo no socialismo. Esta é a terceira questão sobre a qual cristianismo e socialismo devem entrar em acordo.

A santificação da vida cultural não será possível sem uma concentração dos elementos religiosos mais expressivos da cultura e da sociedade, sem a constituição de comunidades que estejam imbuídas em aprofundar e transmitir a experiência da fé às gerações futuras. É para isso que servem idéias expressivas e as instituições, que existem com toda a sua riqueza e sua vitalidade no seio das confissões religiosas, e que a partir da força de uma tradição provada apresentam um vigor popular em oposição a uma interconfessionalidade racionalista e artificial.

Sem desejar apresentar uma nova forma de confessionalismo, com verdades e formas absolutas, devemos insistir na necessidade de falar sobre um quarto ponto: a experiência humana universal.

Esta experiência tem seu fundamento nada menos que no próprio cristianismo. Nós podemos ver na cruz de Cristo não somente a negação do judaísmo, mas também do cristianismo, no sentido de que se absolutiza enquanto confissão.

As comunidades cristãs não podem deixar essa consciência tomar-se efetiva, pois é sobre este terreno que se deram as condições para as guerras religiosas. Em relação a isso o espírito deve ser autônomo. O caminho da cultura cristã é entender esta consciência como elemento agregador de todas as culturas e todas as confissões, sem aboli-las, inspirando um sentimento de comunhão mais profundo que todas as barreiras concebíveis.

O cristianismo confere assim conteúdo à experiência humana. A solidariedade nascida da pressão exterior deixa de existir quando a pressão cessa. Os fatos confirmam isso. O socialismo falha em relação ao sentimento de comunidade que suscita a unidade a partir das profundezas últimas do humano, lá onde o incondicionado desperta a alma.

Não devemos entender o cristianismo como confissão exclusiva, mas como irrupção da fé, incondicionalidade que vê uma só humanidade, sem as barreiras internas e externas que caracterizam as comunidades. Esta fé não se mostra hostil a não ser com os domínios econômicos, políticos e religiosos, que se colocam eles próprios contra os outros.

Estes são os fundamentos da paridade entre o cristianismo e a consciência social crítica e militante que deve ser mais que uma associação, que traduz um desenvolvimento de ambos através de uma nova forma de fé e vida. E qual é o papel dos cristãos e dos militantes da consciência social crítica neste desenvolvimento? Essa questão deverá ser respondida no futuro próximo, já que exige uma postura diferente daquela que cristãos e socialistas tiveram até agora.

Fonte
Paul Tillich, Christianisme et Socialisme, Écrits socialistes allemands (1919-1931), Les Éditions du Cerf, Éditions Labor et Fides, Les Presses de l’Université Laval, 1992, Christianisme et Socialisme I, pp.24-30.