mercredi 19 septembre 2012

Política e espiritualidade

Como estamos às vésperas de eleições aqui no Brasil, apresento algumas reflexões que podem ajudar. Boa leitura. JP.

Política e espiritualidade: a justiça enquanto mediação do amor e do poder
Jorge Pinheiro

Em 1977, morei a metade do ano em Lisboa. Era o terceiro ano da revolução dos cravos e o país vivia o caos. Em meio daquela confusão de partidos e propostas políticas, o humor e a criatividade dos anarquistas portugueses era um caso à parte. E entre as histórias que divulgavam, havia uma que pode servir de introdução ao tema de nossa conferência. Contavam eles que certa vez uma criança perguntou ao pai:

Papai, o que é a política?
Ao que o pai respondeu:

Eu trago o dinheiro para casa, por isso sou o capitalismo. A tua mãe controla o dinheiro, portanto é o governo. O vovô quer que tudo funcione a contento, por isso é o sindicato. Nossa empregada é a classe operária. E como estamos preocupados com você, para que esteja bem, você é o povo. E o teu irmãozinho é o futuro. Entendeu?
O garoto pensou e disse ao pai que precisa pensar um pouco mais. E foi para a cama dormir. Durante a noite, acordou com o choro do irmão que estava com a fralda suja. Foi ao quarto do avô, que roncava a sono solto. Como não sabia o que fazer foi ao quarto dos pais. Viu a mãe, que dormia profundamente... Dirigiu-se, então, ao quarto da empregada e viu seu pai com ela. Eles, porém, não se deram conta da presença do menino. Frustrado porque não conseguiu falar com ninguém, o garoto voltou para a sua cama.

Na manhã seguinte, o pai perguntou se ele já sabia explicar o que era política.

Sim, responde o menino: o capitalismo aproveita-se da classe operária, o sindicato não vê nada, o governo dorme, o povo é ignorado e o futuro fica na merda.

Sem dúvida, esta leitura anarquista será avaliada no final desta conferência, mas agora precisamos entender de forma mais acadêmica o que significa política. A palavra política nos leva a quatro conceitos distintos: a doutrina do direito e da moral, a teoria do Estado, a arte de governar e o estudo dos comportamentos intersubjetivos. Na abordagem que estamos fazendo, ao analisar as imbricações entre espiritualidade e política, nos interessa abordar a política enquanto doutrina do direito e da moral, pois a partir daí temos elementos para entender, também, a política sob as demais perspectivas.

O conceito de política enquanto doutrina do direito e da moral foi exposto por Aristóteles na Ética. Para o filósofo grego, a investigação daquilo que deve ser o bem pertence a mais arquitetônica das ciências. Pois, a política determina quais são as ciências necessárias nas cidades, quais as que cada cidadão deve aprender e até que ponto. [1]

Outro filósofo que desejamos utilizar nesta exposição, conscientes de que estamos deixando de lado muitos outros que analisaram a questão, é Spinoza. Em seu prefácio à quinta parte da sua Ética, onde trata da liberdade humana, Spinoza afirmou que sua preocupação era a potência da razão e a liberdade de alma ou beatitude. Nesse sentido, em Spinoza não podemos separar política e ética, ou como diz em seu Tratado teológico-político, “a justiça e todos os preceitos de razão, inclusive o amor ao próximo, somente pelos direitos de dominação recebem força das leis e ordenanças, ou seja, do decreto daqueles que possuem o direito de reger”. [2]

A partir de Aristóteles e de Spinoza podemos dizer que a política, enquanto conhecimento que trata dos aspectos práticos da ética, e que se apóia na antropologia filosófica ou teológica, por necessitar definir uma concepção de ser humano, remete a questões como a natureza e alcance da liberdade, os diversos tipos de liberdade e a natureza e formas de justiça.

Temas como estrutura e forma de governo, legitimidade do poder, fontes do poder, direitos e deveres dos membros de uma comunidade, assim como as relações entre os indivíduos e o Estado não podem ser entendidos e conscientemente vividos sem a compreensão das questões éticas e morais que aí estão presentes.

Assim, entendemos que a política deve responder de forma prática à pergunta pelo bem dos membros de determinada comunidade, traduzindo esta ação nas questões do poder e das estruturas de governo. Mas e a espiritualidade, tem algo a dizer à política?

De forma abrangente podemos dizer que espiritualidade é aquela relação do ser com a transcendência, que dá sentido à vida. O ser humano, unidade multiforme, tem em seu espírito não uma dimensão parcial da vida, mas como afirmava Lossky, irredutível. [3] Nesse sentido, o espírito é a totalidade da vida.

Nas situações de perda, falta de sentido e de ameaça à vida também há experiência com a transcendência, pois mesmo na negação dela há um sentido transcendente.

Quando assistimos, por exemplo, a um filme como Gandhi, [4] constatamos que o ser humano, não importando credo religioso, tem atributos potenciais para a espiritualidade. Nas religiões ditas primitivas, onde a distinção entre sagrado e profano é menos nítida, embora exista, é mais difícil para o cientista da religião delimitar e definir nessas comunidades o conceito de espiritualidade. Mas nas sociedades mais complexas, naquelas religiões onde o espaço e o tempo do sagrado e profano são mais bem definidos, envolvendo escolha, disciplina e prática levam a experiências avançadas de espiritualidade. Rudolf Otto, no seu livro O Sagrado classifica a experiência religiosa como algo intenso e profundo, misterium tremendum, já que traduz o numinoso para a realidade do crente, que diante daquilo que o esmaga desenvolve senso de temor. [5] Esse temor é um medo qualitativo, motivo para reflexão e energia que transformado em poder faz dele um adorador.

Tais experiências com o sagrado encorajam e incorporam no adorador aquilo que lhe é distinto. Mas, apesar dessa relação de aparente intimidade, de relacionamento, permanece sempre o abismo entre adorador e sagrado. Dessa maneira, este desejo de saltar sobre o abismo que separa humano e sagrado é em última instância o móvel que dará origem à espiritualidade, embora não seja propriamente espiritualidade, pois se faz presente na busca do artista, no amor do filósofo pela sabedoria e, porque não, nos anseios da juventude.

A busca frenética de bens e posses materiais, tão característica da sociedade ocidental no século 20, favorece a redescoberta da espiritualidade como experiência de vida coerente e recomendável.

Logicamente, dentro do próprio cristianismo, antigas correntes heterodoxas, como o gnosticismo, o mitraísmo e o maniqueísmo, herdeiras do pensamento oriental, assim como aquelas que buscavam a regeneração do mundo, herdeiras das religiões helênicas de mistério, ganharam popularidade por suas práticas ascéticas. E influenciaram, posteriormente, ainda que indiretamente, a espiritualidade dos pais do deserto e o monasticismo erudito dos capadócios, e de seus três grandes expoentes, Basílio, Gregório de Nissa e Gregório de Nazianzo. Esse processo, que a partir dos pais do deserto e dos capadócios vinha sofrendo uma mutação fundamental, a passagem da espiritualidade enquanto experiência pessoal e exclusiva a experiência comunitária e de piedade cristã, será expandido e ocidentalizado por Jerônimo, com a defesa do estudo histórico das Escrituras, Tertuliano, com seu olhar de jurista romano e, sobretudo, com Agostinho ao desenvolver na Cidade de Deus, nos livros 13 e 14, a idéia da participação no crente na vida divina através da graça.

Mas será com Gregório Magno (540-604), pai da espiritualidade medieval, que sistematizou o monasticismo ocidental e defendeu que a busca da visão de Deus implica em pureza de coração, humildade e serviço, que a espiritualidade, embora aparentemente enclausurada, transpõe os marcos da individualidade e passa a olhar para as comunidades ao redor. Assim, lectio, meditatio, oratio e intento nortearão os caminhos da espiritualidade na expansão do cristianismo no mundo bárbaro.

A partir desse momento em que a espiritualidade torna-se também prática e o caminho para Deus passa pelo serviço ao próximo, a espiritualidade tem algo a dizer à política. Nesse sentido, a espiritualidade dá sentido à vida cotidiana, torna-se além de mística e profética, política.

Com a queda do governo militar brasileiro ressurgiu entre os evangélicos brasileiros a discussão sobre a responsabilidade política da comunidade cristã. Foi e é importante para o cristianismo brasileiro que tal discussão se faça, mas ainda faltam aos pronunciamentos evangélicos consciência e maturidade da responsabilidade política que devem ter. A comunidade evangélica ainda tem que ultrapassar a espiritualidade privatizada em direção ao compromisso social efetivo e prático.

Paul Tillich em seu trabalho Amor, Poder e Justiça [6] pode nos ajudar a entender o caminho a percorrer na construção desse diálogo da espiritualidade com a política. Para ele, toda e qualquer política tem sempre uma mesma essência, que é o uso do poder. [7]

“L’être, c’est le pouvoir de l’être. Mais même dans son emploi métaphorique, le pouvoir suppose um objet sur lequel il peut exercer et démontrer son pouvoir”. [8]

Por isso, o poder determina os caminhos da sociedade. E que será chamado de poder político porque recorre à autoridade social instituída e possibilita ao Estado exercer coerção em nome do direito dos cidadãos.

As convicções pessoais acerca da soberania de Deus e do Cristo, que conquista principados e potestades, têm profundas implicações no modo em que pensamos a política. Assim, a espiritualidade privatizada ofusca o caminho a seguir e mascara práticas imorais através de atitudes aparentemente piedosas.

De novo, voltemos a afirmação de Tillich, que de certa forma já tinha sido exposta por Spinoza: não há política sem o uso de poder. Embora tal afirmação seja quase óbvia, é comum encontrarmos cristãos que apresentam propostas sobre o reino de Deus e políticas que buscam uma ordem política onde o amor sem poder possa superar o poder sem amor.

Ao analisar tais propostas, que ressuscitaram no século 20 a teoria social anabatista, que contrapõe as políticas de poder ao amor cristão, vemos que para esses evangélicos é impossível aceitar tais políticas e viver o estilo de vida do Jesus crucificado. Chamam à igreja a criar uma comunidade nova e a rejeitar qualquer forma de violência, representada na ordem econômica e política sob o poder do Estado.

Mas ao rejeitarem as políticas de poder da sociedade, de fato estavam aceitando qualquer uso do poder, pois não defenderam uma retirada do mundo ou um abandono da missão da igreja no mundo. Neste sentido, diferiam dos fundamentalismos separatistas. O que estavam propondo era a subordinação radical dos poderes do mundo ao Cristo. Acreditavam que o fracasso da política criaria as bases para a manifestação do poder de Deus através do testemunho da comunidade cristã, que enquanto agente profético apontava o caminho da redenção do mundo.

Mas o que deve ser reconhecido é que tal pensamento faz crítica política, mas rejeita envolvimento e prática políticas como estratégia. O que em última instância significa uma estratégia apolítica que rejeita o poder, rejeitando também a política.

Ora, se a comunidade evangélica tem uma moral política, deve exercer poder e utilizar os meios que possibilitem chegar aos fins que busca. Rejeitar o poder é rejeitar políticas. Tal rejeição pode até ser aceita, desde que seus agentes tenham clara a opção que estão fazendo. O problema é que fizeram uma opção pela renovação da consciência moral da comunidade evangélica, eles próprios rejeitaram a política como meio de viabilizar a opção social escolhida.

Ora, enquanto a consciência evangélica acreditar que a omissão diante da política e do poder favorece à instalação do reino de Deus, teremos o apoliticismo como política evangélica, e isso só fortalece os grupos instalados no poder. E, ao contrário do que pretendem modernos fundamentalismos, não vai estabelecer neste mundo o reino do Cristo.

Se não é possível falar de política, sem falar de poder, fica uma outra questão, que tem a ver com o pensamento cristão: amor e poder são compatíveis? A pergunta procede porque o cristão e a espiritualidade pós-gregoriana remetem à prática e ao serviço ao próximo. Mas, sabemos que em nome do amor, da espiritualidade e do serviço ao próximo muitos cristãos negam a possibilidade de todo e qualquer poder.

“... pouvoir de l’être n’est pas une identité morte, mais lê processus dynamique dans lequel l’être n’est se separe de lui-même et retourne à lui-même. Le pouvoir,d’autre part, est d’autant plus grand, que la séparation vaincue a été plus grande.Lê processus par lequel est reuni ce qui était separe s’appelle l’amour. Plus il y d’amour réunificateur, plus il y a de non-être vaincu, et plus il a de pouvoir d’être. L’amour est la base, non la négation du puvoir”. [9]

Sabemos, como nos mostra Tillich, que o amor do qual estamos falando é um ato da vontade. Não se pode forçar uma pessoa a amar ninguém. Porém, atos de ordem política contêm elementos involuntários. Assim, porque o poder do Estado é associado com ações que vão ou estão fora de nossa vontade e o ato de amor associado com ações do querer, concluímos que a ação do Estado extrapola o amor porque este não pode ser forçado.

Outro fato importante, é que o amor é algo que deve ser mediado pessoalmente. Como a natureza voluntária do amor necessita a existência de uma pessoa que o ative, o amor sempre é pessoal. O Estado, como qualquer outra ordem social instituída, tem uma existência objetiva e alcança seus fins indiscriminadamente. A relação do cidadão com o Estado é eu/instituição, em lugar da relação eu/você, que possibilita a mediação pessoal que ativa o amor.

Além disso, o amor é sempre sacrificial. Ou seja, possibilita ações que a despeito dos meus interesses particulares, imediatos, responde ao bem-estar do outro. Conscientemente, é um perder para que outro ganhe. Sacrificamos direitos, sem estar forçados por obrigação legal, para que o outro seja beneficiado.

Assim, por ser livremente determinado, o amor vai além de uma obrigação moral ordinária. Cumprir obrigação moral é responder à necessidade moral, é um ato de dever em lugar de um testemunho moral livre. É importante entender que esse processo de ir além da obrigação moral envolve, como paradoxo, uma vontade moral implícita.

Resumindo, podemos dizer que o amor é voluntário e livremente entregue, que envolve volição moral, deve ser mediado pessoalmente, é sacrificial. E, finalmente, o amor vai além do dever ou da obrigação moral, embora implique, paradoxalmente, em obrigação moral ou realização de um dever de origem.

Mas política, por outro lado, envolve servidão involuntária. Sua natureza implica no uso de coerção e força para alcançar seus fins. É organização formal e opera impessoalmente. Os políticos e aqueles que atuam ao nível do Estado se ocupam de ações que levam terceiros ao sacrifício, por isso a necessidade da força e da coerção e, em última instância, do próprio Estado. A maioria da população geralmente se considera satisfeita quando vive sob determinada ordem política que pelo menos responde às exigências de sua obrigação moral. E quando isso não acontece nos sentimos tentados à rebelião contra o Estado, a fim de exigir dele a realização daquilo que consideramos sua obrigação moral. Fazendo assim agimos no sentido de que não se torne totalitário, ou seja, negando os limites de seu poder de Estado ou passando por cima das obrigações que tem com os cidadãos.

Por isso, usar o poder do Estado como meio de realizar o amor entre os cidadãos é um contra-senso, pois não podemos forçar ou coagir ninguém ao amor. Tal coesão destruiria também a obrigação moral do Estado, que baliza a diferença entre poder limitado e governo totalitário.

Dado a dualidade entre poder e amor e o conflito aparente entre poder sem amor e amor sem poder, como nos situaremos frente à política? Colocada a questão nestes termos, de fato é muito difícil escolher entre ser um castrado político, mas cidadão do reino, e ser um político atuante à margem da salvação. Como então seguir o caminho do amor cristão sem rebaixar a nobreza do amor no altar do poder?

Há um conceito, presente na teologia cristã, que nos leva a alternativas de reconciliação entre poder sem amor e amor sem poder. É o conceito de justiça.

A recusa em reconhecer as reivindicações da justiça como universais e invioláveis, cobrou um alto preço, no correr da história, à política e à teologia em termos da própria integridade da igreja. Por exemplo, a teologia de Albrecht Ritschl sofreu deste erro. Ritschl contrapôs poder sem amor e amor sem poder. Fazendo assim, criou um sistema teológico que contrastou o Deus de poder do Antigo Testamento ao Deus de amor do Novo Testamento. No processo abandonou o conceito do julgamento de Deus e retribuição aos pecadores, adotou uma visão universalista de salvação e passou a ver na igreja um amor moral que nada de substantivo apresenta.

Ao nível prático, o amor moral torna-se, então, irrelevante para as questões políticas porque, nas palavras de Reinhold Niebuhr, apresenta a lei de amor como solução simplória para qualquer problema da sociedade. [10] Por isso, o conceito de justiça passa a ter tanta relevância para o cristão quanto o conceito de amor.

É necessário reconhecer que as reivindicações de justiça são universais, eternas e objetivas, e têm como fonte a própria pessoalidade do Deus justo. Tal afirmação, se por um lado, traduz o fato teológico de que a justiça de Deus se faz manifesta nas ordenanças da criação, por outro nos leva a perguntar porque os elementos substantivos e características de justiça nunca foram consensuais para a humanidade?

A definição mais aceita de justiça é o de dar a toda pessoa aquilo que por direito lhe pertence. Mas aí de novo temos um problema: o que por direito lhe pertence? Esta pergunta nos obriga, enquanto cristãos evangélicos, a analisar com atenção nosso conceito tradicional de justiça.

“La justice est la forme dans lequelle lê pouvoir de l’être se réalise, la justice doit être en rapport avec la dynamique du pouvoir. Elle doit être capable de donner une forme aux rencontre de l’être avec un autre être. Le problème de la justice dans la recontre vient du fait qu’il est impossible de prédire comment s’organisera le rapport des forces au sein de telle rencontre. A chacun des moments, il existe de nombreuses possibilités. Et chacune de ces possibilités demande une forme particuliére”. [11]

Assim, conforme Tillich, as reivindicações de justiça só podem ser operacionais numa comunidade política se forem definidas com um grau significante de particularidade. Justiça, nas palavras de Niebuhr, requer julgamentos distintos de reivindicações contraditórias. [12] Justiça como uma abstração não basta. É necessário trabalhar fora da compreensão de justiça no particular, para não cair na armadilha do moralismo político, quando não se tem nada a oferecer quando se fala de forma idêntica em tempos, espaços e situações particulares diferentes.

Um exemplo clássico da questão está presente na Política de Aristóteles. Aristóteles diz que se faz justiça quando se dá a cada cidadão aquilo que lhe é por direito. Dois problemas nascem dessa afirmação: se todas as pessoas têm igualdade moral, então essa igualdade deve se estender a todo grupo social, às relações econômicas e políticas em que se fazem presentes. E se as pessoas são desiguais nas contribuições que fazem à sociedade, então essas desigualdades devem se traduzir nos grupos sociais e nas relações econômicas e políticas. Ambos os argumentos, sem dúvida, têm suas razões de ser. E, no século 20, fizeram parte do debates político de entre socialistas e liberais.

Por encontrar dificuldades na formulação prática do conceito de justiça, a teoria política evangélica contemporânea tem rejeitado o conceito de justiça universalmente conhecido como ordenança da criação, enquanto compreensão de que todas as pessoas são imagem de Deus e têm um conhecimento do bem. Donde, todas as pessoas compreendem a necessidade de justiça. E defendem um novo conceito, de ordenança da redenção. Para esses cristãos, devido à queda humana, não existe um conhecimento seguro de justiça fora da revelação. Na verdade, é muito difícil discutir quando se parte da natureza caída e da crença de que a justiça era perfeita antes da queda. Apesar dessa leitura soteriológica, acredito, assim como Tillich, que a melhor base para a compreensão da justiça ainda está no conceito da justiça que parte da ordenança da criação.

Rejeitar a ordenança da criação como algo que está fora da razão, por não ser revelada, é um problema de epistemológico. Tal postura afirma que a razão não tem nada que dizer fora da revelação.

Esta posição tem conseqüências práticas muito sérias para as estratégias de ação política, porque só a partir da fé e da revelação se pode falar com autoridade sobre justiça. Ou seja, os cristãos não podem, em política, se comunicar ou trabalhar com não-cristãos. Não pode haver nenhuma base secular no envolvimento político dos cristãos. Assim, quando nega o conhecimento natural do bem político, a única alternativa para o cristão é omitir-se, porque política é coisa mundana, caída, ou estabelecer uma política cristã sectária.

A leitura da justiça a partir da universalidade da imago Dei responde aos questionamentos contemporâneos levantados pelos cristãos em relação à política, enquanto a leitura a partir das ordenanças da redenção isola, aliena e separa o cristão da prática política.

O movimento evangélico fundamentalista buscou de forma acrítica impor normas a partir da revelação, definir caminhos de retidão para a sociedade, com a finalidade de atingir os não-crentes. Isto tem levado às cruzadas fundamentalistas norte-americanas que buscam fazer dos Estados Unidos uma nação cristã à força. E no Brasil levou à omissão que favoreceu a presença de políticas conservadoras e de direita dentro das igrejas.

Outros pensadores evangélicos, neo-ortodoxos, procuraram substituir as ordenanças da redenção pelas ordenanças crísticas, com a finalidade de trazer o amor moral de Jesus para as normas de justiça, que seriam assim emprenhadas pelo espírito de amor. E o fundamentalismo anabatista e batista substituiu as ordenanças da redenção por ordenanças escatológicas, buscando a partir da moral do reino futuro, fazer todas as coisas novas e conquistar os poderes caídos.

Ora, a justiça deve estar baseada em reivindicações universais de direito. Estabelecer justiça em base de autoridade sectária é violentar a compreensão de que todas as pessoas são imagem de Deus e têm um conhecimento do bem. Donde, todas as pessoas compreendem a necessidade de justiça.

Ora, assim, justiça deve ser definida dentro do contexto de uma determinada ordem social e deve ser aplicada em termos de particulares, pois fundamentar o argumento da justiça apenas na pessoa não é o bastante.

Devido à universalidade das normas de justiça e à universalidade da consciência de justiça, uma pessoa pode ter procedimentos e práticas que aprofundem políticas e programas que favorecem a justiça. É exatamente isso que os direitos civis buscam trazer para as democracias constitucionais. É o reconhecimento de que os meios empregados não devem violentar os fins procurados.

É necessário, ainda, reconhecer que as normas de justiça são objetivas e que elas existem independentemente de volição humana. Conseqüentemente, podem ser feitas reivindicações no nome de justiça e podem ser rejeitadas reivindicações no nome de justiça. Considerando que o amor deve ser volitivamente entregue, justiça exige reconhecimento independente da vontade humana.

O Deus de amor também é um Deus de justiça, amor e justiça não podem ser contrapostas. O amor pode ir além da justiça, mas nunca pode buscar menos que a justiça. O amor pode inspirar reverência à justiça, mas nunca pode ser desculpa para esquecer as reivindicações da justiça.

Se a justiça é uma qualidade objetiva que estabelece direitos e obrigações, projetos podem e devem ser desenvolvidos pelos indivíduos e sociedades para criar ações que sirvam as reivindicações de justiça. Dado o fato que nem todas as pessoas buscam a justiça de boa vontade, o poder pode ser usado legitimamente quando serve à causa de justiça. Dizemos que o amor não pode usar o poder para alcançar seus fins, mas que a justiça têm que usar o poder para alcançar seus fins.

Tais distinções são necessárias porque não se pode dizer ao Estado que ame, porque suas ações têm por base o poder, e porque as reivindicações do amor estão arraigadas em reconhecimento pessoal e particular ao invés de normas universais de justiça. Como a igreja cristã proclama o Evangelho, sensibiliza a comunidade para as demandas da justiça. Conseqüentemente, permanece a justiça enquanto serviço de amor.

Assim, usar o Estado como um instrumento de amor leva a um Estado sectário, quando não totalitário. Por causa disso, as normas distintivas da justiça são usadas para delimitar o que é meu e o que é teu. Negar a justiça em nome do amor é negar os direitos civis que são a base de qualquer governo constitucional.

O conceito de justiça aliado aos de amor e poder apresenta as alternativas para o protestantismo evangélico ao pensar a ação política. A política, com base no poder, cumpre uma função legítima quando serve as reivindicações da justiça. Amar, sem rejeitar o poder, indo além dos direitos e deveres estabelecidos pela justiça possibilita um testemunho de justiça e uma motivação moral que coroam o ato justo. Amar, através da mediação pessoal, complementa a justiça em suas demandas objetivas.

Essa exposição carece de ilustrações. Por isso, vamos ouvir um ex-ativista da Juventude Universitária Católica e ex-combatente da Ação Popular, Herbert de Souza, mais conhecido como Betinho. Em artigo publicado em 1993, Betinho afirmou que a “fome é exclusão. Da terra, da renda, do salário, da educação, da economia, da vida e da cidadania. Quando uma pessoa chega a não ter o que comer, é porque tudo o mais já lhe foi negado. É uma forma de cerceamento moderno ou de exílio. A morte em vida. E exílio da terra. A alma da fome é política”. [13]

É interessante que o ativista cristão e ex-combatente marxista afirme: a alma da fome é a política. Mas que política? E ele explica:

A história do Brasil pode ser vista de vários modos e sob muitos ângulos, mas para a maioria ela é a história da indústria da fome e da miséria. Um modo perverso de dividir o mundo em dois, produzindo um gigantesco apartheid. Nesse campo, fizemos alguns milagres de desenvolvimento. Um dos maiores PIB do mundo junto com a pobreza e a miséria mais espantosa. Aqui não houve lugar para o acaso. Tudo foi produzido como obra calculada. Fria.

O resultado está aí diante dos olhos de todos. Uma parte ostensiva, rica, branca, educada, motorizada, dolarizada. Outra parte imensa na sombra, negra, analfabeta, dando duro todos os dias, comendo o pão que o diabo amassou em cruzeiros, reais. Dois povos no mesmo país, na mesma cidade, muito próximos em geografia e infinitamente distante como experiência de humanidade.

É gente que começa o dia sem o que comer e chega à noite sem nada. Pode-se imaginar o quadro que é o de todo dia para milhões de seres humanos: a fome de comida e de tudo. A essa altura da vida da humanidade é incrível que isso aconteça. Como morrer de fome ao lado de 70 milhões de toneladas de grãos, de 8,5 milhões de hectares de terra, se todos esses brasileiros miseráveis ficariam saciados só com os 20% do desperdício?

O clamor de Betinho é um clamor para que a justiça dê sentido humano à política. E ele, já morto, acreditava nessa possibilidade, quando diz no artigo:

É assustador perceber com que naturalidade fomos virando um país de miseráveis, com que rapidez fomos produzindo milhões de indigentes. Acabar com essa naturalidade, recuperar o sentido de indignação frente à degradação humana, reabsolutizar a pessoa como humana e eixo da vida da ação política é fundamental para transformar a luta no Brasil contra a fome e a miséria num imenso processo de reformulação do Brasil e de nossa própria dignidade. Por isso acabar com a fome não é só dar comida, e acabar com a pobreza não é só gerar emprego; é reconstruir radicalmente toda a sociedade, começando por incorporar agora 32 milhões de seres humanos ao mapa da cidadania.

Por isso o ato de solidariedade, por menor que seja, é tão importante. É um primeiro movimento no sentido oposto a tudo o que se produziu até agora. Uma mudança de paradigma, de norte, de eixo, o começo de algo totalmente diferente. Como um olhar novo que mostra todas as relações, teorias, propostas, valores e práticas, restabelecendo as bases de uma reconstrução radical de toda a sociedade. Se a exclusão produziu a miséria, a união destruirá a produção da miséria, produzirá a cidadania plena, geral e irrestrita. Democrática.

Isso foi dito há dez anos. Luciano Mendes de Almeida [14] contextualiza o clamor místico, profético e político de Betinho. Diz o pastor:

Considero ainda mais grave a condição de quem não alcança ou perde o sentido da vida (...). Há um vazio ontológico pela falta de discernimento dos verdadeiros valores e pela solidão profunda de quem não se abre à presença e ao amor de Deus.

O ensinamento de Jesus dissipa as trevas e dúvidas e anuncia a boa nova, valores, critérios e atitudes que dão pleno sentido à vida. A injustiça será vencida pelo reconhecimento da dignidade da pessoa a luz de Deus, convertendo-os à convivência fraterna e à partilha. O perdão do Evangelho é a única resposta definitiva contra a violência e inicia um processo de apreço, respeito e diálogo, superando toda exclusão social e aproximando-nos uns dos outros, como irmãos e irmãs, na concórdia e na paz.

As palavras pastorais de Luciano Mendes de Almeida podem parecer, à primeira vista, que estão longe da ação política, mas na verdade iluminam a história anarquista contada no início dessa conferência. Apesar de seu humor e tom crítico, a leitura anarquista da política carece de algo fundamental: a busca do bem e a exigência de justiça. Ao negar a justiça, a política torna-se escrava do poder. Perde o eixo da vida da ação política, conforme afirmou Betinho. Ou, agora nas palavras de Luciano Mendes de Almeida, a injustiça será vencida pelo reconhecimento da dignidade da pessoa, e esta é uma tarefa política. Para conquistar tal dignidade, o poder deve ser exercido.

Assim, as análises ontológicas de Tillich nos levam à compreensão de que a síntese deste diálogo pertinente entre política e espiritualidade é a justiça.

Notas

[1] Aristóteles, A Ética, São Paulo, Atena Editora, 1950, 1ª parte, Livro 1o, II, 2-4, pp. 15 e 16.
[2] Benedict de Spinoza, Writings on Polital Philosophy, New York, Appleton Century Crofts Inc., p. 51.
[3] Vladimir Lossky, A l’image et la ressemblance de Dieu, Paris, 1967, p. 118.
[4] Gandhi, 1982, filme dirigido por Richard Attenborough, com Ben Kingsley e Candice Bergen.
[5] Rudolf Otto, O Sagrado, Lisboa, Edições 70, 1992, pp. 21-22.
[6] Paul Tillich, Amour, pouvoir et justice, Analyses ontologiques et applications éthiques, Revue d’Histoire et de Philosophie Religieuses, Paris, Presses Universitaires de France, 1963 et 1964, números 4 et 5.
[7] Idem, op. cit., no. 4, p. 334.
[8] Idem, op. cit., no. 4, p. 339.
[9] Idem, op. cit., no. 4, pp. 355-356.
[10] Reinhold Niebuhr, Políticas, ed. Harry R. Davis e Robert C. Good, Scribners, 1960, p. 163.
[11] Idem, op. cit., no. 4, p. 360.
[12] Reinhold Niebuhr, Amor e Justiça, ed. D. B. Robertson, World, 1967, p. 28.
[13] Herbert de Souza e Carla Rodrigues, A Alma da Fome é Política, artigo publicado no Jornal do Brasil, 12 setembro de 1993, apud, Ética e cidadania, São Paulo, Moderna, 1995, pp.22-25.
[14] Dom Luciano Mendes de Almeida, A quem iremos?, Folha de S. Paulo, 6/3/2004, p. 2.

Política e espiritualidade

Como estamos às vésperas de eleições aqui no Brasil, apresento algumas reflexões que podem ajudar. Boa leitura. JP.

Política e espiritualidade: a justiça enquanto mediação do amor e do poder
Jorge Pinheiro

Em 1977, morei a metade do ano em Lisboa. Era o terceiro ano da revolução dos cravos e o país vivia o caos. Em meio daquela confusão de partidos e propostas políticas, o humor e a criatividade dos anarquistas portugueses era um caso à parte. E entre as histórias que divulgavam, havia uma que pode servir de introdução ao tema de nossa conferência. Contavam eles que certa vez uma criança perguntou ao pai:

Papai, o que é a política?
Ao que o pai respondeu:

Eu trago o dinheiro para casa, por isso sou o capitalismo. A tua mãe controla o dinheiro, portanto é o governo. O vovô quer que tudo funcione a contento, por isso é o sindicato. Nossa empregada é a classe operária. E como estamos preocupados com você, para que esteja bem, você é o povo. E o teu irmãozinho é o futuro. Entendeu?
O garoto pensou e disse ao pai que precisa pensar um pouco mais. E foi para a cama dormir. Durante a noite, acordou com o choro do irmão que estava com a fralda suja. Foi ao quarto do avô, que roncava a sono solto. Como não sabia o que fazer foi ao quarto dos pais. Viu a mãe, que dormia profundamente... Dirigiu-se, então, ao quarto da empregada e viu seu pai com ela. Eles, porém, não se deram conta da presença do menino. Frustrado porque não conseguiu falar com ninguém, o garoto voltou para a sua cama.

Na manhã seguinte, o pai perguntou se ele já sabia explicar o que era política.

Sim, responde o menino: o capitalismo aproveita-se da classe operária, o sindicato não vê nada, o governo dorme, o povo é ignorado e o futuro fica na merda.

Sem dúvida, esta leitura anarquista será avaliada no final desta conferência, mas agora precisamos entender de forma mais acadêmica o que significa política. A palavra política nos leva a quatro conceitos distintos: a doutrina do direito e da moral, a teoria do Estado, a arte de governar e o estudo dos comportamentos intersubjetivos. Na abordagem que estamos fazendo, ao analisar as imbricações entre espiritualidade e política, nos interessa abordar a política enquanto doutrina do direito e da moral, pois a partir daí temos elementos para entender, também, a política sob as demais perspectivas.

O conceito de política enquanto doutrina do direito e da moral foi exposto por Aristóteles na Ética. Para o filósofo grego, a investigação daquilo que deve ser o bem pertence a mais arquitetônica das ciências. Pois, a política determina quais são as ciências necessárias nas cidades, quais as que cada cidadão deve aprender e até que ponto. [1]

Outro filósofo que desejamos utilizar nesta exposição, conscientes de que estamos deixando de lado muitos outros que analisaram a questão, é Spinoza. Em seu prefácio à quinta parte da sua Ética, onde trata da liberdade humana, Spinoza afirmou que sua preocupação era a potência da razão e a liberdade de alma ou beatitude. Nesse sentido, em Spinoza não podemos separar política e ética, ou como diz em seu Tratado teológico-político, “a justiça e todos os preceitos de razão, inclusive o amor ao próximo, somente pelos direitos de dominação recebem força das leis e ordenanças, ou seja, do decreto daqueles que possuem o direito de reger”. [2]

A partir de Aristóteles e de Spinoza podemos dizer que a política, enquanto conhecimento que trata dos aspectos práticos da ética, e que se apóia na antropologia filosófica ou teológica, por necessitar definir uma concepção de ser humano, remete a questões como a natureza e alcance da liberdade, os diversos tipos de liberdade e a natureza e formas de justiça.

Temas como estrutura e forma de governo, legitimidade do poder, fontes do poder, direitos e deveres dos membros de uma comunidade, assim como as relações entre os indivíduos e o Estado não podem ser entendidos e conscientemente vividos sem a compreensão das questões éticas e morais que aí estão presentes.

Assim, entendemos que a política deve responder de forma prática à pergunta pelo bem dos membros de determinada comunidade, traduzindo esta ação nas questões do poder e das estruturas de governo. Mas e a espiritualidade, tem algo a dizer à política?

De forma abrangente podemos dizer que espiritualidade é aquela relação do ser com a transcendência, que dá sentido à vida. O ser humano, unidade multiforme, tem em seu espírito não uma dimensão parcial da vida, mas como afirmava Lossky, irredutível. [3] Nesse sentido, o espírito é a totalidade da vida.

Nas situações de perda, falta de sentido e de ameaça à vida também há experiência com a transcendência, pois mesmo na negação dela há um sentido transcendente.

Quando assistimos, por exemplo, a um filme como Gandhi, [4] constatamos que o ser humano, não importando credo religioso, tem atributos potenciais para a espiritualidade. Nas religiões ditas primitivas, onde a distinção entre sagrado e profano é menos nítida, embora exista, é mais difícil para o cientista da religião delimitar e definir nessas comunidades o conceito de espiritualidade. Mas nas sociedades mais complexas, naquelas religiões onde o espaço e o tempo do sagrado e profano são mais bem definidos, envolvendo escolha, disciplina e prática levam a experiências avançadas de espiritualidade. Rudolf Otto, no seu livro O Sagrado classifica a experiência religiosa como algo intenso e profundo, misterium tremendum, já que traduz o numinoso para a realidade do crente, que diante daquilo que o esmaga desenvolve senso de temor. [5] Esse temor é um medo qualitativo, motivo para reflexão e energia que transformado em poder faz dele um adorador.

Tais experiências com o sagrado encorajam e incorporam no adorador aquilo que lhe é distinto. Mas, apesar dessa relação de aparente intimidade, de relacionamento, permanece sempre o abismo entre adorador e sagrado. Dessa maneira, este desejo de saltar sobre o abismo que separa humano e sagrado é em última instância o móvel que dará origem à espiritualidade, embora não seja propriamente espiritualidade, pois se faz presente na busca do artista, no amor do filósofo pela sabedoria e, porque não, nos anseios da juventude.

A busca frenética de bens e posses materiais, tão característica da sociedade ocidental no século 20, favorece a redescoberta da espiritualidade como experiência de vida coerente e recomendável.

Logicamente, dentro do próprio cristianismo, antigas correntes heterodoxas, como o gnosticismo, o mitraísmo e o maniqueísmo, herdeiras do pensamento oriental, assim como aquelas que buscavam a regeneração do mundo, herdeiras das religiões helênicas de mistério, ganharam popularidade por suas práticas ascéticas. E influenciaram, posteriormente, ainda que indiretamente, a espiritualidade dos pais do deserto e o monasticismo erudito dos capadócios, e de seus três grandes expoentes, Basílio, Gregório de Nissa e Gregório de Nazianzo. Esse processo, que a partir dos pais do deserto e dos capadócios vinha sofrendo uma mutação fundamental, a passagem da espiritualidade enquanto experiência pessoal e exclusiva a experiência comunitária e de piedade cristã, será expandido e ocidentalizado por Jerônimo, com a defesa do estudo histórico das Escrituras, Tertuliano, com seu olhar de jurista romano e, sobretudo, com Agostinho ao desenvolver na Cidade de Deus, nos livros 13 e 14, a idéia da participação no crente na vida divina através da graça.

Mas será com Gregório Magno (540-604), pai da espiritualidade medieval, que sistematizou o monasticismo ocidental e defendeu que a busca da visão de Deus implica em pureza de coração, humildade e serviço, que a espiritualidade, embora aparentemente enclausurada, transpõe os marcos da individualidade e passa a olhar para as comunidades ao redor. Assim, lectio, meditatio, oratio e intento nortearão os caminhos da espiritualidade na expansão do cristianismo no mundo bárbaro.

A partir desse momento em que a espiritualidade torna-se também prática e o caminho para Deus passa pelo serviço ao próximo, a espiritualidade tem algo a dizer à política. Nesse sentido, a espiritualidade dá sentido à vida cotidiana, torna-se além de mística e profética, política.

Com a queda do governo militar brasileiro ressurgiu entre os evangélicos brasileiros a discussão sobre a responsabilidade política da comunidade cristã. Foi e é importante para o cristianismo brasileiro que tal discussão se faça, mas ainda faltam aos pronunciamentos evangélicos consciência e maturidade da responsabilidade política que devem ter. A comunidade evangélica ainda tem que ultrapassar a espiritualidade privatizada em direção ao compromisso social efetivo e prático.

Paul Tillich em seu trabalho Amor, Poder e Justiça [6] pode nos ajudar a entender o caminho a percorrer na construção desse diálogo da espiritualidade com a política. Para ele, toda e qualquer política tem sempre uma mesma essência, que é o uso do poder. [7]

“L’être, c’est le pouvoir de l’être. Mais même dans son emploi métaphorique, le pouvoir suppose um objet sur lequel il peut exercer et démontrer son pouvoir”. [8]

Por isso, o poder determina os caminhos da sociedade. E que será chamado de poder político porque recorre à autoridade social instituída e possibilita ao Estado exercer coerção em nome do direito dos cidadãos.

As convicções pessoais acerca da soberania de Deus e do Cristo, que conquista principados e potestades, têm profundas implicações no modo em que pensamos a política. Assim, a espiritualidade privatizada ofusca o caminho a seguir e mascara práticas imorais através de atitudes aparentemente piedosas.

De novo, voltemos a afirmação de Tillich, que de certa forma já tinha sido exposta por Spinoza: não há política sem o uso de poder. Embora tal afirmação seja quase óbvia, é comum encontrarmos cristãos que apresentam propostas sobre o reino de Deus e políticas que buscam uma ordem política onde o amor sem poder possa superar o poder sem amor.

Ao analisar tais propostas, que ressuscitaram no século 20 a teoria social anabatista, que contrapõe as políticas de poder ao amor cristão, vemos que para esses evangélicos é impossível aceitar tais políticas e viver o estilo de vida do Jesus crucificado. Chamam à igreja a criar uma comunidade nova e a rejeitar qualquer forma de violência, representada na ordem econômica e política sob o poder do Estado.

Mas ao rejeitarem as políticas de poder da sociedade, de fato estavam aceitando qualquer uso do poder, pois não defenderam uma retirada do mundo ou um abandono da missão da igreja no mundo. Neste sentido, diferiam dos fundamentalismos separatistas. O que estavam propondo era a subordinação radical dos poderes do mundo ao Cristo. Acreditavam que o fracasso da política criaria as bases para a manifestação do poder de Deus através do testemunho da comunidade cristã, que enquanto agente profético apontava o caminho da redenção do mundo.

Mas o que deve ser reconhecido é que tal pensamento faz crítica política, mas rejeita envolvimento e prática políticas como estratégia. O que em última instância significa uma estratégia apolítica que rejeita o poder, rejeitando também a política.

Ora, se a comunidade evangélica tem uma moral política, deve exercer poder e utilizar os meios que possibilitem chegar aos fins que busca. Rejeitar o poder é rejeitar políticas. Tal rejeição pode até ser aceita, desde que seus agentes tenham clara a opção que estão fazendo. O problema é que fizeram uma opção pela renovação da consciência moral da comunidade evangélica, eles próprios rejeitaram a política como meio de viabilizar a opção social escolhida.

Ora, enquanto a consciência evangélica acreditar que a omissão diante da política e do poder favorece à instalação do reino de Deus, teremos o apoliticismo como política evangélica, e isso só fortalece os grupos instalados no poder. E, ao contrário do que pretendem modernos fundamentalismos, não vai estabelecer neste mundo o reino do Cristo.

Se não é possível falar de política, sem falar de poder, fica uma outra questão, que tem a ver com o pensamento cristão: amor e poder são compatíveis? A pergunta procede porque o cristão e a espiritualidade pós-gregoriana remetem à prática e ao serviço ao próximo. Mas, sabemos que em nome do amor, da espiritualidade e do serviço ao próximo muitos cristãos negam a possibilidade de todo e qualquer poder.

“... pouvoir de l’être n’est pas une identité morte, mais lê processus dynamique dans lequel l’être n’est se separe de lui-même et retourne à lui-même. Le pouvoir,d’autre part, est d’autant plus grand, que la séparation vaincue a été plus grande.Lê processus par lequel est reuni ce qui était separe s’appelle l’amour. Plus il y d’amour réunificateur, plus il y a de non-être vaincu, et plus il a de pouvoir d’être. L’amour est la base, non la négation du puvoir”. [9]

Sabemos, como nos mostra Tillich, que o amor do qual estamos falando é um ato da vontade. Não se pode forçar uma pessoa a amar ninguém. Porém, atos de ordem política contêm elementos involuntários. Assim, porque o poder do Estado é associado com ações que vão ou estão fora de nossa vontade e o ato de amor associado com ações do querer, concluímos que a ação do Estado extrapola o amor porque este não pode ser forçado.

Outro fato importante, é que o amor é algo que deve ser mediado pessoalmente. Como a natureza voluntária do amor necessita a existência de uma pessoa que o ative, o amor sempre é pessoal. O Estado, como qualquer outra ordem social instituída, tem uma existência objetiva e alcança seus fins indiscriminadamente. A relação do cidadão com o Estado é eu/instituição, em lugar da relação eu/você, que possibilita a mediação pessoal que ativa o amor.

Além disso, o amor é sempre sacrificial. Ou seja, possibilita ações que a despeito dos meus interesses particulares, imediatos, responde ao bem-estar do outro. Conscientemente, é um perder para que outro ganhe. Sacrificamos direitos, sem estar forçados por obrigação legal, para que o outro seja beneficiado.

Assim, por ser livremente determinado, o amor vai além de uma obrigação moral ordinária. Cumprir obrigação moral é responder à necessidade moral, é um ato de dever em lugar de um testemunho moral livre. É importante entender que esse processo de ir além da obrigação moral envolve, como paradoxo, uma vontade moral implícita.

Resumindo, podemos dizer que o amor é voluntário e livremente entregue, que envolve volição moral, deve ser mediado pessoalmente, é sacrificial. E, finalmente, o amor vai além do dever ou da obrigação moral, embora implique, paradoxalmente, em obrigação moral ou realização de um dever de origem.

Mas política, por outro lado, envolve servidão involuntária. Sua natureza implica no uso de coerção e força para alcançar seus fins. É organização formal e opera impessoalmente. Os políticos e aqueles que atuam ao nível do Estado se ocupam de ações que levam terceiros ao sacrifício, por isso a necessidade da força e da coerção e, em última instância, do próprio Estado. A maioria da população geralmente se considera satisfeita quando vive sob determinada ordem política que pelo menos responde às exigências de sua obrigação moral. E quando isso não acontece nos sentimos tentados à rebelião contra o Estado, a fim de exigir dele a realização daquilo que consideramos sua obrigação moral. Fazendo assim agimos no sentido de que não se torne totalitário, ou seja, negando os limites de seu poder de Estado ou passando por cima das obrigações que tem com os cidadãos.

Por isso, usar o poder do Estado como meio de realizar o amor entre os cidadãos é um contra-senso, pois não podemos forçar ou coagir ninguém ao amor. Tal coesão destruiria também a obrigação moral do Estado, que baliza a diferença entre poder limitado e governo totalitário.

Dado a dualidade entre poder e amor e o conflito aparente entre poder sem amor e amor sem poder, como nos situaremos frente à política? Colocada a questão nestes termos, de fato é muito difícil escolher entre ser um castrado político, mas cidadão do reino, e ser um político atuante à margem da salvação. Como então seguir o caminho do amor cristão sem rebaixar a nobreza do amor no altar do poder?

Há um conceito, presente na teologia cristã, que nos leva a alternativas de reconciliação entre poder sem amor e amor sem poder. É o conceito de justiça.

A recusa em reconhecer as reivindicações da justiça como universais e invioláveis, cobrou um alto preço, no correr da história, à política e à teologia em termos da própria integridade da igreja. Por exemplo, a teologia de Albrecht Ritschl sofreu deste erro. Ritschl contrapôs poder sem amor e amor sem poder. Fazendo assim, criou um sistema teológico que contrastou o Deus de poder do Antigo Testamento ao Deus de amor do Novo Testamento. No processo abandonou o conceito do julgamento de Deus e retribuição aos pecadores, adotou uma visão universalista de salvação e passou a ver na igreja um amor moral que nada de substantivo apresenta.

Ao nível prático, o amor moral torna-se, então, irrelevante para as questões políticas porque, nas palavras de Reinhold Niebuhr, apresenta a lei de amor como solução simplória para qualquer problema da sociedade. [10] Por isso, o conceito de justiça passa a ter tanta relevância para o cristão quanto o conceito de amor.

É necessário reconhecer que as reivindicações de justiça são universais, eternas e objetivas, e têm como fonte a própria pessoalidade do Deus justo. Tal afirmação, se por um lado, traduz o fato teológico de que a justiça de Deus se faz manifesta nas ordenanças da criação, por outro nos leva a perguntar porque os elementos substantivos e características de justiça nunca foram consensuais para a humanidade?

A definição mais aceita de justiça é o de dar a toda pessoa aquilo que por direito lhe pertence. Mas aí de novo temos um problema: o que por direito lhe pertence? Esta pergunta nos obriga, enquanto cristãos evangélicos, a analisar com atenção nosso conceito tradicional de justiça.

“La justice est la forme dans lequelle lê pouvoir de l’être se réalise, la justice doit être en rapport avec la dynamique du pouvoir. Elle doit être capable de donner une forme aux rencontre de l’être avec un autre être. Le problème de la justice dans la recontre vient du fait qu’il est impossible de prédire comment s’organisera le rapport des forces au sein de telle rencontre. A chacun des moments, il existe de nombreuses possibilités. Et chacune de ces possibilités demande une forme particuliére”. [11]

Assim, conforme Tillich, as reivindicações de justiça só podem ser operacionais numa comunidade política se forem definidas com um grau significante de particularidade. Justiça, nas palavras de Niebuhr, requer julgamentos distintos de reivindicações contraditórias. [12] Justiça como uma abstração não basta. É necessário trabalhar fora da compreensão de justiça no particular, para não cair na armadilha do moralismo político, quando não se tem nada a oferecer quando se fala de forma idêntica em tempos, espaços e situações particulares diferentes.

Um exemplo clássico da questão está presente na Política de Aristóteles. Aristóteles diz que se faz justiça quando se dá a cada cidadão aquilo que lhe é por direito. Dois problemas nascem dessa afirmação: se todas as pessoas têm igualdade moral, então essa igualdade deve se estender a todo grupo social, às relações econômicas e políticas em que se fazem presentes. E se as pessoas são desiguais nas contribuições que fazem à sociedade, então essas desigualdades devem se traduzir nos grupos sociais e nas relações econômicas e políticas. Ambos os argumentos, sem dúvida, têm suas razões de ser. E, no século 20, fizeram parte do debates político de entre socialistas e liberais.

Por encontrar dificuldades na formulação prática do conceito de justiça, a teoria política evangélica contemporânea tem rejeitado o conceito de justiça universalmente conhecido como ordenança da criação, enquanto compreensão de que todas as pessoas são imagem de Deus e têm um conhecimento do bem. Donde, todas as pessoas compreendem a necessidade de justiça. E defendem um novo conceito, de ordenança da redenção. Para esses cristãos, devido à queda humana, não existe um conhecimento seguro de justiça fora da revelação. Na verdade, é muito difícil discutir quando se parte da natureza caída e da crença de que a justiça era perfeita antes da queda. Apesar dessa leitura soteriológica, acredito, assim como Tillich, que a melhor base para a compreensão da justiça ainda está no conceito da justiça que parte da ordenança da criação.

Rejeitar a ordenança da criação como algo que está fora da razão, por não ser revelada, é um problema de epistemológico. Tal postura afirma que a razão não tem nada que dizer fora da revelação.

Esta posição tem conseqüências práticas muito sérias para as estratégias de ação política, porque só a partir da fé e da revelação se pode falar com autoridade sobre justiça. Ou seja, os cristãos não podem, em política, se comunicar ou trabalhar com não-cristãos. Não pode haver nenhuma base secular no envolvimento político dos cristãos. Assim, quando nega o conhecimento natural do bem político, a única alternativa para o cristão é omitir-se, porque política é coisa mundana, caída, ou estabelecer uma política cristã sectária.

A leitura da justiça a partir da universalidade da imago Dei responde aos questionamentos contemporâneos levantados pelos cristãos em relação à política, enquanto a leitura a partir das ordenanças da redenção isola, aliena e separa o cristão da prática política.

O movimento evangélico fundamentalista buscou de forma acrítica impor normas a partir da revelação, definir caminhos de retidão para a sociedade, com a finalidade de atingir os não-crentes. Isto tem levado às cruzadas fundamentalistas norte-americanas que buscam fazer dos Estados Unidos uma nação cristã à força. E no Brasil levou à omissão que favoreceu a presença de políticas conservadoras e de direita dentro das igrejas.

Outros pensadores evangélicos, neo-ortodoxos, procuraram substituir as ordenanças da redenção pelas ordenanças crísticas, com a finalidade de trazer o amor moral de Jesus para as normas de justiça, que seriam assim emprenhadas pelo espírito de amor. E o fundamentalismo anabatista e batista substituiu as ordenanças da redenção por ordenanças escatológicas, buscando a partir da moral do reino futuro, fazer todas as coisas novas e conquistar os poderes caídos.

Ora, a justiça deve estar baseada em reivindicações universais de direito. Estabelecer justiça em base de autoridade sectária é violentar a compreensão de que todas as pessoas são imagem de Deus e têm um conhecimento do bem. Donde, todas as pessoas compreendem a necessidade de justiça.

Ora, assim, justiça deve ser definida dentro do contexto de uma determinada ordem social e deve ser aplicada em termos de particulares, pois fundamentar o argumento da justiça apenas na pessoa não é o bastante.

Devido à universalidade das normas de justiça e à universalidade da consciência de justiça, uma pessoa pode ter procedimentos e práticas que aprofundem políticas e programas que favorecem a justiça. É exatamente isso que os direitos civis buscam trazer para as democracias constitucionais. É o reconhecimento de que os meios empregados não devem violentar os fins procurados.

É necessário, ainda, reconhecer que as normas de justiça são objetivas e que elas existem independentemente de volição humana. Conseqüentemente, podem ser feitas reivindicações no nome de justiça e podem ser rejeitadas reivindicações no nome de justiça. Considerando que o amor deve ser volitivamente entregue, justiça exige reconhecimento independente da vontade humana.

O Deus de amor também é um Deus de justiça, amor e justiça não podem ser contrapostas. O amor pode ir além da justiça, mas nunca pode buscar menos que a justiça. O amor pode inspirar reverência à justiça, mas nunca pode ser desculpa para esquecer as reivindicações da justiça.

Se a justiça é uma qualidade objetiva que estabelece direitos e obrigações, projetos podem e devem ser desenvolvidos pelos indivíduos e sociedades para criar ações que sirvam as reivindicações de justiça. Dado o fato que nem todas as pessoas buscam a justiça de boa vontade, o poder pode ser usado legitimamente quando serve à causa de justiça. Dizemos que o amor não pode usar o poder para alcançar seus fins, mas que a justiça têm que usar o poder para alcançar seus fins.

Tais distinções são necessárias porque não se pode dizer ao Estado que ame, porque suas ações têm por base o poder, e porque as reivindicações do amor estão arraigadas em reconhecimento pessoal e particular ao invés de normas universais de justiça. Como a igreja cristã proclama o Evangelho, sensibiliza a comunidade para as demandas da justiça. Conseqüentemente, permanece a justiça enquanto serviço de amor.

Assim, usar o Estado como um instrumento de amor leva a um Estado sectário, quando não totalitário. Por causa disso, as normas distintivas da justiça são usadas para delimitar o que é meu e o que é teu. Negar a justiça em nome do amor é negar os direitos civis que são a base de qualquer governo constitucional.

O conceito de justiça aliado aos de amor e poder apresenta as alternativas para o protestantismo evangélico ao pensar a ação política. A política, com base no poder, cumpre uma função legítima quando serve as reivindicações da justiça. Amar, sem rejeitar o poder, indo além dos direitos e deveres estabelecidos pela justiça possibilita um testemunho de justiça e uma motivação moral que coroam o ato justo. Amar, através da mediação pessoal, complementa a justiça em suas demandas objetivas.

Essa exposição carece de ilustrações. Por isso, vamos ouvir um ex-ativista da Juventude Universitária Católica e ex-combatente da Ação Popular, Herbert de Souza, mais conhecido como Betinho. Em artigo publicado em 1993, Betinho afirmou que a “fome é exclusão. Da terra, da renda, do salário, da educação, da economia, da vida e da cidadania. Quando uma pessoa chega a não ter o que comer, é porque tudo o mais já lhe foi negado. É uma forma de cerceamento moderno ou de exílio. A morte em vida. E exílio da terra. A alma da fome é política”. [13]

É interessante que o ativista cristão e ex-combatente marxista afirme: a alma da fome é a política. Mas que política? E ele explica:

A história do Brasil pode ser vista de vários modos e sob muitos ângulos, mas para a maioria ela é a história da indústria da fome e da miséria. Um modo perverso de dividir o mundo em dois, produzindo um gigantesco apartheid. Nesse campo, fizemos alguns milagres de desenvolvimento. Um dos maiores PIB do mundo junto com a pobreza e a miséria mais espantosa. Aqui não houve lugar para o acaso. Tudo foi produzido como obra calculada. Fria.

O resultado está aí diante dos olhos de todos. Uma parte ostensiva, rica, branca, educada, motorizada, dolarizada. Outra parte imensa na sombra, negra, analfabeta, dando duro todos os dias, comendo o pão que o diabo amassou em cruzeiros, reais. Dois povos no mesmo país, na mesma cidade, muito próximos em geografia e infinitamente distante como experiência de humanidade.

É gente que começa o dia sem o que comer e chega à noite sem nada. Pode-se imaginar o quadro que é o de todo dia para milhões de seres humanos: a fome de comida e de tudo. A essa altura da vida da humanidade é incrível que isso aconteça. Como morrer de fome ao lado de 70 milhões de toneladas de grãos, de 8,5 milhões de hectares de terra, se todos esses brasileiros miseráveis ficariam saciados só com os 20% do desperdício?

O clamor de Betinho é um clamor para que a justiça dê sentido humano à política. E ele, já morto, acreditava nessa possibilidade, quando diz no artigo:

É assustador perceber com que naturalidade fomos virando um país de miseráveis, com que rapidez fomos produzindo milhões de indigentes. Acabar com essa naturalidade, recuperar o sentido de indignação frente à degradação humana, reabsolutizar a pessoa como humana e eixo da vida da ação política é fundamental para transformar a luta no Brasil contra a fome e a miséria num imenso processo de reformulação do Brasil e de nossa própria dignidade. Por isso acabar com a fome não é só dar comida, e acabar com a pobreza não é só gerar emprego; é reconstruir radicalmente toda a sociedade, começando por incorporar agora 32 milhões de seres humanos ao mapa da cidadania.

Por isso o ato de solidariedade, por menor que seja, é tão importante. É um primeiro movimento no sentido oposto a tudo o que se produziu até agora. Uma mudança de paradigma, de norte, de eixo, o começo de algo totalmente diferente. Como um olhar novo que mostra todas as relações, teorias, propostas, valores e práticas, restabelecendo as bases de uma reconstrução radical de toda a sociedade. Se a exclusão produziu a miséria, a união destruirá a produção da miséria, produzirá a cidadania plena, geral e irrestrita. Democrática.

Isso foi dito há dez anos. Luciano Mendes de Almeida [14] contextualiza o clamor místico, profético e político de Betinho. Diz o pastor:

Considero ainda mais grave a condição de quem não alcança ou perde o sentido da vida (...). Há um vazio ontológico pela falta de discernimento dos verdadeiros valores e pela solidão profunda de quem não se abre à presença e ao amor de Deus.

O ensinamento de Jesus dissipa as trevas e dúvidas e anuncia a boa nova, valores, critérios e atitudes que dão pleno sentido à vida. A injustiça será vencida pelo reconhecimento da dignidade da pessoa a luz de Deus, convertendo-os à convivência fraterna e à partilha. O perdão do Evangelho é a única resposta definitiva contra a violência e inicia um processo de apreço, respeito e diálogo, superando toda exclusão social e aproximando-nos uns dos outros, como irmãos e irmãs, na concórdia e na paz.

As palavras pastorais de Luciano Mendes de Almeida podem parecer, à primeira vista, que estão longe da ação política, mas na verdade iluminam a história anarquista contada no início dessa conferência. Apesar de seu humor e tom crítico, a leitura anarquista da política carece de algo fundamental: a busca do bem e a exigência de justiça. Ao negar a justiça, a política torna-se escrava do poder. Perde o eixo da vida da ação política, conforme afirmou Betinho. Ou, agora nas palavras de Luciano Mendes de Almeida, a injustiça será vencida pelo reconhecimento da dignidade da pessoa, e esta é uma tarefa política. Para conquistar tal dignidade, o poder deve ser exercido.

Assim, as análises ontológicas de Tillich nos levam à compreensão de que a síntese deste diálogo pertinente entre política e espiritualidade é a justiça.

Notas

[1] Aristóteles, A Ética, São Paulo, Atena Editora, 1950, 1ª parte, Livro 1o, II, 2-4, pp. 15 e 16.
[2] Benedict de Spinoza, Writings on Polital Philosophy, New York, Appleton Century Crofts Inc., p. 51.
[3] Vladimir Lossky, A l’image et la ressemblance de Dieu, Paris, 1967, p. 118.
[4] Gandhi, 1982, filme dirigido por Richard Attenborough, com Ben Kingsley e Candice Bergen.
[5] Rudolf Otto, O Sagrado, Lisboa, Edições 70, 1992, pp. 21-22.
[6] Paul Tillich, Amour, pouvoir et justice, Analyses ontologiques et applications éthiques, Revue d’Histoire et de Philosophie Religieuses, Paris, Presses Universitaires de France, 1963 et 1964, números 4 et 5.
[7] Idem, op. cit., no. 4, p. 334.
[8] Idem, op. cit., no. 4, p. 339.
[9] Idem, op. cit., no. 4, pp. 355-356.
[10] Reinhold Niebuhr, Políticas, ed. Harry R. Davis e Robert C. Good, Scribners, 1960, p. 163.
[11] Idem, op. cit., no. 4, p. 360.
[12] Reinhold Niebuhr, Amor e Justiça, ed. D. B. Robertson, World, 1967, p. 28.
[13] Herbert de Souza e Carla Rodrigues, A Alma da Fome é Política, artigo publicado no Jornal do Brasil, 12 setembro de 1993, apud, Ética e cidadania, São Paulo, Moderna, 1995, pp.22-25.
[14] Dom Luciano Mendes de Almeida, A quem iremos?, Folha de S. Paulo, 6/3/2004, p. 2.

mardi 18 septembre 2012

O sermão de Santo Antônio aos Peixes

Para meus alunos de Homilética Prática

Leia a análise de texto em Lithis
Site: www.lithis.net/19 r />

Filosofia II -- Platão e a psiquê

"Se não existe a ressurreição de mortos, então quer dizer que Cristo não foi ressuscitado". (1a. Coríntios 15:13 NTLH).
"εἰ δὲ ἀνάστασις νεκρῶν οὐκ ἔστιν, οὐδὲ Χριστὸς ἐγήγερται·" (ΠΡΟΣ ΚΟΡΙΝΘΙΟΥΣ Α΄ 15:13 NTPT)

Na sequência de nossa discussão sobre "Da anástase. Ou, pede-se ser levantado", vamos pensar a questão da psiquê platônica.

Em seu texto Fédon, Platão apresenta sua compreensão sobre a psiquê. Ela não é vista apenas como o princípio da vida, mas também como princípio de conhecimento. A psiquê aparece então como substância independente do soma, do corpo, é eterna, e uni-se a ele de forma temporária.

Na mitologia grega, psiquê é uma personificação da razão. A história é narrada em "O Asno de Ouro" de Apuleio, que a apresenta como uma jovem por quem Eros, o deus do amor, se apaixonou. Era tão bonita que despertou a fúria de Afrodite, deusa da beleza e do amor, mãe de Eros - pois os homens deixavam de frequentar seus templos para adorar uma mortal. Afrodite mandou Eros flechar Psiquê, para que se apaixonasse por alguém que não fosse seu filho. Mas, ao contrário do esperado, Eros se apaixona pela moça - ao ter sido espetado acidentalmente por uma de suas próprias flechas.

Voce deve ler o livro. Existe uma edição de bolso em português, que recebeu o nome de "Eros e Psiquê" e que pode ser comprada em boas bancas de jornais.

A expressão grega psychein, soprar, pode ser entendida como alento e sopro. E porque o alento faz parte do estar vivo, psiquê foi utilizada pelos gregos como sinônimo de vida. Na Septuaginta, por exemplo, a palavra hebraica nefesh foi traduzida por psiquê, e nós, em português, a traduzimos por alma.

Para Platão, a psiquê pertence ao mundo inteligível, mundo das ideias, que é imutável e eterno. As ideias tem uma realidade objetiva, são o modelo ideal -- arquétipos -- de todas as coisas que existem no mundo sensível, com base nas quais as coisas foram criadas ou podem ser realizadas.

O soma pertence ao mundo físico, é mutável e ilusório. As coisas que existem neste mundo são mais ou menos perfeitas conforme a sua semelhança com os seus arquétipos.

A psiquê aspira libertar-se do soma e retornar ao mundo das ideias. Só que para que isso é necessário que se liberte do eterno retorno -- o ciclo das reincarnações a que estão aprisionadas. Quando morre o soma, a psiquê dirige-se para outro, mas antes viaja pelo mundo das ideias. A viagem e a migração, no entanto, está determinada pelos atos da vida anterior:

A psiquê da pessoa que teve uma vida virtuosa é recompensada na sua viagam pelo mundo das ideias, pois tem um contato mais profundo com os arquétipos, e o corpo que vem a pertencer será o de uma pessoa com um estatuto social mais elevado.

A união da psiquê com o soma não faz desaparecer as ideias que nela existem. Estas serão recordadas através da educação e da experiência sensível.

Platão distingue três tipos de psiquê: 

1. A psiquê enquanto razão-- É a psiquê superior, diretamente relacionada ao conhecimento das ideias. Localiza-se na cabeça, e busca a sabedoria, enquanto virtude primeira.

2. A psiquê associada à vontade, que dá ao ser humano a força para enfrentar os problemas e os conflitos. Localiza-se no peito e busca força, que também é uma virtude.

3. A psiquê que responde às necessidades de manutenção da espécie. Está localizada no ventre e busca a moderação, a terceira virtude.

A partir dessas três virtudes, a psiquê controla o soma. E a psiquê/razão domina as outras duas, levando à justiça, à felicidade. Paulo conhece Platão, mas vê de forma diferente.

"Quando é sepultado, é um corpo material; mas, quando for ressuscitado, será um corpo espiritual. É claro que, se existe um corpo material, então tem de haver também um corpo espiritual". (1 Coríntios 15:44 NTLH)

"σπείρεται σῶμα ψυχικόν, ἐγείρεται σῶμα πνευματικόν. ἔστι σῶμα ψυχικόν, καὶ ἔστι σῶμα πνευματικόν". (ΠΡΟΣ ΚΟΡΙΝΘΙΟΥΣ Α΄ 15:44 NTPT)

Platão, entendeu que o cosmo foi criado por um demiurgo, que deu funçao e sentido ao universo, atribuindo a cada coisa uma finalidade. A criação foi feita com base nas ideias, modelos, formas, existentes no mundo inteligível.

Mas o conhecimento dos sentidos e da razão apresentam resultados diferentes, podendo provocar ilusões. Os dados dos sentidos permitem o conhecimento enquanto cópias imperfeitas das ideias, levando a opiniões, doxa, superficiais sobre a realidade.

No entanto, a experiência sensível é fundamental para desencadear o processo de conhecimento, que ocorre como recordação imperfeita das ideias que a psiquê contemplou no mundo inteligível -- é o processo da anamnesis, reminiscência.

———
Ler para discussão em sala de aula

Epístola de Paulo aos Coríntios, capítulo 15.

E três obras de Platão

Apologia de Sócrates
O Banquete
Fédon

Fontes navegadas na internet

Navegando na filosofia -- Carlos Fontes / web: http://afilosofia.no.sapo.pt/platao1.htm
Via Politica, Jorge Pinheiro, Da anástase. Ou pede-se ser levantado, web: www.viapolitica.com.br
Wikipedia, a enciclopedia livre

———
1a. Epístola de Paulo aos Coríntios, capítulo 15.

Agora, irmãos, quero que lembrem do evangelho que eu anunciei a vocês, o qual vocês aceitaram e no qual continuam firmes. A mensagem que anunciei a vocês é o evangelho, por meio do qual vocês são salvos, se continuarem firmes nele. A não ser que não tenha adiantado nada vocês crerem nele. Eu passei para vocês o ensinamento que recebi e que é da mais alta importância: Cristo morreu pelos nossos pecados, como está escrito nas Escrituras Sagradas; ele foi sepultado e, no terceiro dia, foi ressuscitado, como está escrito nas Escrituras; e apareceu a Pedro e depois aos doze apóstolos. Depois apareceu, de uma só vez, a mais de quinhentos seguidores, dos quais a maior parte ainda vive, mas alguns já morreram. Em seguida apareceu a Tiago e, mais tarde, a todos os apóstolos. Por último, depois de todos, ele apareceu também a mim, como para alguém nascido fora de tempo. De fato, eu sou o menos importante dos apóstolos e até nem mereço ser chamado de apóstolo, pois persegui a Igreja de Deus. Mas pela graça de Deus sou o que sou, e a graça que ele me deu não ficou sem resultados. Pelo contrário, eu tenho trabalhado muito mais do que todos os outros apóstolos. No entanto não sou eu quem tem feito isso, e sim a graça de Deus que está comigo. Assim, não importa se a mensagem foi entregue por mim ou se foi entregue por eles; o importante é que foi isso que todos nós anunciamos, e foi nisso que vocês creram. Se a nossa mensagem é que Cristo foi ressuscitado, como é que alguns de vocês dizem que os mortos não vão ressuscitar? Se não existe a ressurreição de mortos, então quer dizer que Cristo não foi ressuscitado. E, se Cristo não foi ressuscitado, nós não temos nada para anunciar, e vocês não têm nada para crer. E mais ainda: nesse caso estaríamos mentindo contra Deus, porque afirmamos que ele ressuscitou Cristo. Mas, se é verdade que os mortos não são ressuscitados, então Deus não ressuscitou Cristo. Porque, se os mortos não são ressuscitados, Cristo também não foi ressuscitado. E, se Cristo não foi ressuscitado, a fé que vocês têm é uma ilusão, e vocês continuam perdidos nos seus pecados. Se Cristo não ressuscitou, os que morreram crendo nele estão perdidos. Se a nossa esperança em Cristo só vale para esta vida, nós somos as pessoas mais infelizes deste mundo. Mas a verdade é que Cristo foi ressuscitado, e isso é a garantia de que os que estão mortos também serão ressuscitados. Porque, assim como por meio de um homem veio a morte, assim também por meio de um homem veio a ressurreição. Assim como, por estarem unidos com Adão, todos morrem, assim também, por estarem unidos com Cristo, todos ressuscitarão. Porém cada um será ressuscitado na sua vez: Cristo, o primeiro de todos; depois os que são de Cristo, quando ele vier; e então virá o fim. Cristo destruirá todos os governos espirituais, todas as autoridades e poderes e entregará o Reino a Deus, o Pai. Pois Cristo tem de reinar até que Deus faça com que ele domine todos os inimigos. O último inimigo que será destruído é a morte. As Escrituras Sagradas dizem: “Deus pôs todas as coisas debaixo do domínio dele.” É claro que dentro das palavras “todas as coisas” não está o próprio Deus, que põe tudo debaixo do domínio de Cristo. Mas, quando tudo for dominado por Cristo, então o próprio Cristo, que é o Filho, se colocará debaixo do domínio de Deus, que pôs todas as coisas debaixo do domínio dele. Então Deus reinará completamente sobre tudo. Pensem agora nas pessoas que são batizadas em favor dos mortos: o que é que elas esperam conseguir? Se os mortos não são ressuscitados, por que é que essas pessoas se batizam em favor deles? E, quanto a nós, por que é que nos colocamos em perigo a toda hora? Irmãos, eu enfrento a morte todos os dias. Se afirmo isso, é pelo orgulho que tenho de vocês, pois estamos todos unidos com Cristo Jesus, o nosso Senhor. Aqui em Éfeso eu lutei contra inimigos como se lutasse contra animais selvagens. E, se fiz isso somente por interesses humanos, o que foi que eu consegui com isso? Se é verdade que os mortos não são ressuscitados, façamos o que diz o ditado: “Comamos e bebamos porque amanhã morreremos.” Não se enganem: “As más companhias estragam os bons costumes.” Comecem de novo a viver uma vida séria e direita e parem de pecar. Para fazer com que vocês fiquem envergonhados, eu digo o seguinte: alguns de vocês não conhecem a Deus. Mas alguém perguntará: “Como é que os mortos são ressuscitados? Que tipo de corpo eles vão ter?” Seu tolo! Quando você semeia uma semente na terra, ela só brota se morrer. E o que foi semeado é apenas uma semente, talvez um grão de trigo ou outra semente qualquer e não o corpo já formado da planta que vai crescer. Deus dá a essa semente o corpo que ele quer e dá a cada semente um corpo próprio. E a carne dos seres vivos não é toda do mesmo tipo. Os seres humanos têm um tipo de carne; os animais, outro; os pássaros, outro; e os peixes, ainda outro. Há também corpos do céu e corpos da terra. Existe um tipo de beleza que pertence aos corpos celestes, e há outro que pertence aos corpos terrestres. O sol tem o seu próprio brilho; a lua, outro brilho; e as estrelas têm um brilho diferente. E mesmo as estrelas têm diferentes tipos de brilho. Pois será assim quando os mortos ressuscitarem. Quando o corpo é sepultado, é um corpo mortal; mas, quando for ressuscitado, será imortal. Quando ele é sepultado, é feio e fraco; mas, quando for ressuscitado, será bonito e forte. Quando é sepultado, é um corpo material; mas, quando for ressuscitado, será um corpo espiritual. É claro que, se existe um corpo material, então tem de haver também um corpo espiritual. Porque as Escrituras Sagradas dizem: “Adão, o primeiro homem, foi criado como ser vivo.” Mas o último Adão, Jesus Cristo, é o Espírito que dá vida. Não é o espiritual que vem primeiro, mas sim o material; depois é que vem o espiritual. O primeiro homem foi feito do pó da terra; o segundo veio do céu. Os que pertencem à terra são como aquele que foi feito do pó da terra; os que pertencem ao céu são como aquele que veio do céu. Assim como somos parecidos com o homem feito do pó da terra, assim também seremos parecidos com o Homem do céu. Meus irmãos, o que eu quero dizer é isto: o que é feito de carne e de sangue não pode ter parte no Reino de Deus, e o que é mortal não pode ter a imortalidade. Escutem bem este segredo: nem todos vamos morrer, mas todos nós vamos ser transformados, num instante, num abrir e fechar de olhos, quando tocar a última trombeta. Ela tocará, os mortos serão ressuscitados como seres imortais, e todos nós seremos transformados. Pois este corpo mortal precisa se vestir com o que é imortal; este corpo que vai morrer precisa se vestir com o que não pode morrer. Assim, quando este corpo mortal se vestir com o que é imortal, quando este corpo que morre se vestir com o que não pode morrer, então acontecerá o que as Escrituras Sagradas dizem:

“A morte está destruída!
A vitória é completa!”
“Onde está, ó morte, a sua vitória?
Onde está, ó morte,
o seu poder de ferir?”

O que dá à morte o poder de ferir é o pecado, e o que dá ao pecado o poder de ferir é a lei. Mas agradeçamos a Deus, que nos dá a vitória por meio do nosso Senhor Jesus Cristo Portanto, queridos irmãos, continuem fortes e firmes. Continuem ocupados no trabalho do Senhor, pois vocês sabem que todo o seu esforço nesse trabalho sempre traz proveito. (1a. Coríntios 15:1-58 NTLH)

———
No original grego

Γνωρίζω δὲ ὑμῖν, ἀδελφοί, τὸ εὐαγγέλιον ὃ εὐηγγελισάμην ὑμῖν, ὃ καὶ παρελάβετε, ἐν ᾧ καὶ ἑστήκατε, δι᾿ οὗ καὶ σῴζεσθε, τίνι λόγῳ εὐηγγελισάμην ὑμῖν εἰ κατέχετε, ἐκτὸς εἰ μὴ εἰκῆ ἐπιστεύσατε. παρέδωκα γὰρ ὑμῖν ἐν πρώτοις ὃ καὶ παρέλαβον, ὅτι Χριστὸς ἀπέθανεν ὑπὲρ τῶν ἁμαρτιῶν ἡμῶν κατὰ τὰς γραφάς, καὶ ὅτι ἐτάφη, καὶ ὅτι ἐγήγερται τῇ τρίτη ἡμέρᾳ κατὰ τὰς γραφάς, καὶ ὅτι ὤφθη Κηφᾷ, εἶτα τοῖς δώδεκα· ἔπειτα ὤφθη ἐπάνω πεντακοσίοις ἀδελφοῖς ἐφάπαξ, ἐξ ὧν οἱ πλείους μένουσιν ἕως ἄρτι, τινὲς δὲ καὶ ἐκοιμήθησαν· ἔπειτα ὤφθη ᾿Ιακώβῳ, εἶτα τοῖς ἀποστόλοις πᾶσιν· ἔσχατον δὲ πάντων ὡσπερεὶ τῷ ἐκτρώματι ὤφθη κἀμοί. ἐγὼ γάρ εἰμι ὁ ἐλάχιστος τῶν ἀποστόλων, ὃς οὐκ εἰμὶ ἱκανὸς καλεῖσθαι ἀπόστολος, διότι ἐδίωξα τὴν ἐκκλησίαν τοῦ Θεοῦ· χάριτι δὲ Θεοῦ εἰμι ὅ εἰμι· καὶ ἡ χάρις αὐτοῦ ἡ εἰς ἐμὲ οὐ κενὴ ἐγενήθη, ἀλλὰ περισσότερον αὐτῶν πάντων ἐκοπίασα, οὐκ ἐγὼ δέ, ἀλλ᾿ ἡ χάρις τοῦ Θεοῦ ἡ σὺν ἐμοί. εἴτε οὖν ἐγὼ εἴτε ἐκεῖνοι, οὕτω κηρύσσομεν καὶ οὕτως ἐπιστεύσατε.
δὲ Χριστὸς κηρύσσεται ὅτι ἐκ νεκρῶν ἐγήγερται, πῶς λέγουσί τινες ἐν ὑμῖν ὅτι ἀνάστασις νεκρῶν οὐκ ἔστιν; εἰ δὲ ἀνάστασις νεκρῶν οὐκ ἔστιν, οὐδὲ Χριστὸς ἐγήγερται· εἰ δὲ Χριστὸς οὐκ ἐγήγερται, κενὸν ἄρα τὸ κήρυγμα ἡμῶν, κενὴ δὲ καὶ ἡ πίστις ὑμῶν. εὑρισκόμεθα δὲ καὶ ψευδομάρτυρες τοῦ Θεοῦ, ὅτι ἐμαρτυρήσαμεν κατὰ τοῦ Θεοῦ ὅτι ἤγειρε τὸν Χριστόν, ὃν οὐκ ἤγειρεν, εἴπερ ἄρα νεκροὶ οὐκ ἐγείρονται· εἰ γὰρ νεκροὶ οὐκ ἐγείρονται, οὐδὲ Χριστὸς ἐγήγερται. εἰ δὲ Χριστὸς οὐκ ἐγήγερται, ματαία ἡ πίστις ὑμῶν· ἔτι ἐστὲ ἐν ταῖς ἁμαρτίαις ὑμῶν. ἄρα καὶ οἱ κοιμηθέντες ἐν Χριστῷ ἀπώλοντο. εἰ ἐν τῇ ζωῇ ταύτῃ ἠλπικότες ἐσμὲν ἐν Χριστῷ μόνον, ἐλεεινότεροι πάντων ἀνθρώπων ἐσμέν. Νυνὶ δὲ Χριστὸς ἐγήγερται ἐκ νεκρῶν, ἀπαρχὴ τῶν κεκοιμημένων ἐγένετο. ἐπειδὴ γὰρ δι᾿ ἀνθρώπου ὁ θάνατος, καὶ δι᾿ ἀνθρώπου ἀνάστασις νεκρῶν. ὥσπερ γὰρ ἐν τῷ ᾿Αδὰμ πάντες ἀποθνήσκουσιν, οὕτω καὶ ἐν τῷ Χριστῷ πάντες ζωοποιηθήσονται. ἕκαστος δὲ ἐν τῷ ἰδίῳ τάγματι· ἀπαρχὴ Χριστός, ἔπειτα οἱ Χριστοῦ ἐν τῇ παρουσίᾳ αὐτοῦ· εἶτα τὸ τέλος, ὅταν παραδῷ τὴν βασιλείαν τῷ Θεῷ καὶ πατρί, ὅταν καταργήσῃ πᾶσαν ἀρχὴν καὶ πᾶσαν ἐξουσίαν καὶ δύναμιν. δεῖ γὰρ αὐτὸν βασιλεύειν ἄχρις οὗ ἂν θῇ πάντας τοὺς ἐχθροὺς ὑπὸ τοὺς πόδας αὐτοῦ. ἔσχατος ἐχθρὸς καταργεῖται ὁ θάνατος· πάντα γὰρ ὑπέταξεν ὑπὸ τοὺς πόδας αὐτοῦ. ὅταν δὲ εἴπῃ ὅτι πάντα ὑποτέτακται, δῆλον ὅτι ἐκτὸς τοῦ ὑποτάξαντος αὐτῷ τὰ πάντα. ὅταν δὲ ὑποταγῇ αὐτῷ τὰ πάντα, τότε καὶ αὐτὸς ὁ υἱὸς ὑποταγήσεται τῷ ὑποτάξαντι αὐτῷ τὰ πάντα, ἵνα ᾖ ὁ Θεὸς τὰ πάντα ἐν πᾶσιν. ᾿Επεὶ τί ποιήσουσιν οἱ βαπτιζόμενοι ὑπὲρ τῶν νεκρῶν, εἰ ὅλως νεκροὶ οὐκ ἐγείρονται; τί καὶ βαπτίζονται ὑπὲρ τῶν νεκρῶν; τί καὶ ἡμεῖς κινδυνεύομεν πᾶσαν ὥραν; καθ᾿ ἡμέραν ἀποθνήσκω, νὴ τὴν ὑμετέραν καύχησιν ἣν ἔχω ἐν Χριστῷ ᾿Ιησοῦ τῷ Κυρίῳ ἡμῶν. εἰ κατὰ ἄνθρωπον ἐθηριομάχησα ἐν ᾿Εφέσῳ, τί μοι τὸ ὄφελος; εἰ νεκροὶ οὐκ ἐγείρονται, φάγωμεν καὶ πίωμεν, αὔριον γὰρ ἀποθνήσκομεν. μὴ πλανᾶσθε· φθείρουσιν ἤθη χρηστὰ ὁμιλίαι κακαί. ἐκνήψατε δικαίως καὶ μὴ ἁμαρτάνετε· ἀγνωσίαν γὰρ Θεοῦ τινες ἔχουσι· πρὸς ἐντροπὴν ὑμῖν λέγω.
᾿Αλλ᾿ ἐρεῖ τις· πῶς ἐγείρονται οἱ νεκροί; ποίῳ δὲ σώματι ἔρχονται; ἄφρον, σὺ ὃ σπείρεις, οὐ ζωοποιεῖται ἐὰν μὴ ἀποθάνῃ· καὶ ὃ σπείρεις, οὐ τὸ σῶμα τὸ γενησόμενον σπείρεις, ἀλλὰ γυμνὸν κόκκον, εἰ τύχοι σίτου ἤ τινος τῶν λοιπῶν· ὁ δὲ Θεὸς αὐτῷ δίδωσι σῶμα καθὼς ἠθέλησε, καὶ ἑκάστῳ τῶν σπερμάτων τὸ ἴδιον σῶμα. οὐ πᾶσα σὰρξ ἡ αὐτὴ σάρξ, ἀλλὰ ἄλλη μὲν ἀνθρώπων, ἄλλη δὲ σὰρξ κτηνῶν, ἄλλη δὲ ἰχθύων, ἄλλη δὲ πετεινῶν. καὶ σώματα ἐπουράνια, καὶ σώματα ἐπίγεια· ἀλλ᾿ ἑτέρα μὲν ἡ τῶν ἐπουρανίων δόξα, ἑτέρα δὲ ἡ τῶν ἐπιγείων. ἄλλη δόξα ἡλίου, καὶ ἄλλη δόξα σελήνης, καὶ ἄλλη δόξα ἀστέρων· ἀστὴρ γὰρ ἀστέρος διαφέρει ἐν δόξῃ. οὕτω καὶ ἡ ἀνάστασις τῶν νεκρῶν. σπείρεται ἐν φθορᾷ, ἐγείρεται ἐν ἀφθαρσίᾳ· σπείρεται ἐν ἀτιμίᾳ, ἐγείρεται ἐν δόξῃ· σπείρεται ἐν ἀσθενείᾳ, ἐγείρεται ἐν δυνάμει· σπείρεται σῶμα ψυχικόν, ἐγείρεται σῶμα πνευματικόν. ἔστι σῶμα ψυχικόν, καὶ ἔστι σῶμα πνευματικόν. οὕτω καὶ γέγραπται· ἐγένετο ὁ πρῶτος ἄνθρωπος ᾿Αδὰμ εἰς ψυχὴν ζῶσαν· ὁ ἔσχατος ᾿Αδὰμ εἰς πνεῦμα ζωοποιοῦν. ἀλλ᾿ οὐ πρῶτον τὸ πνευματικόν, ἀλλὰ τὸ ψυχικόν, ἔπειτα τὸ πνευματικόν. ὁ πρῶτος ἄνθρωπος ἐκ γῆς χοϊκός, ὁ δεύτερος ἄνθρωπος ὁ Κύριος ἐξ οὐρανοῦ. οἷος ὁ χοϊκός, τοιοῦτοι καὶ οἱ χοϊκοί, καὶ οἷος ὁ ἐπουράνιος, τοιοῦτοι καὶ οἱ ἐπουράνιοι· καὶ καθὼς ἐφορέσαμεν τὴν εἰκόνα τοῦ χοϊκοῦ, φορέσομεν καὶ τὴν εἰκόνα τοῦ ἐπουρανίου. Τοῦτο δέ φημι, ἀδελφοί, ὅτι σὰρξ καὶ αἷμα βασιλείαν Θεοῦ κληρονομῆσαι οὐ δύνανται, οὐδὲ ἡ φθορὰ τὴν ἀφθαρσίαν κληρονομεῖ. ἰδοὺ μυστήριον ὑμῖν λέγω· πάντες μὲν οὐ κοιμηθησόμεθα, πάντες δὲ ἀλλαγησόμεθα, ἐν ἀτόμῳ, ἐν ῥιπῇ ὀφθαλμοῦ, ἐν τῇ ἐσχάτῃ σάλπιγγι· σαλπίσει γάρ, καὶ οἱ νεκροὶ ἐγερθήσονται ἄφθαρτοι, καὶ ἡμεῖς ἀλλαγησόμεθα. δεῖ γὰρ τὸ φθαρτὸν τοῦτο ἐνδύσασθαι ἀφθαρσίαν καὶ τὸ θνητὸν τοῦτο ἐνδύσασθαι ἀθανασίαν. ὅταν δὲ τὸ φθαρτὸν τοῦτο ἐνδύσηται ἀφθαρσίαν καὶ τὸ θνητὸν τοῦτο ἐνδύσηται ἀθανασίαν, τότε γενήσεται ὁ λόγος ὁ γεγραμμένος· κατεπόθη ὁ θάνατος εἰς νῖκος. ποῦ σου, θάνατε, τὸ κέντρον; ποῦ σου, ᾅδη, τὸ νῖκος; τὸ δὲ κέντρον τοῦ θανάτου ἡ ἁμαρτία, ἡ δὲ δύναμις τῆς ἁμαρτίας ὁ νόμος.τὸ δὲ κέντρον τοῦ θανάτου ἡ ἁμαρτία, ἡ δὲ δύναμις τῆς ἁμαρτίας ὁ νόμος. τῷ δὲ Θεῷ χάρις τῷ διδόντι ἡμῖν τὸ νῖκος διὰ τοῦ Κυρίου ἡμῶν ᾿Ιησοῦ Χριστοῦ. ῞Ωστε, ἀδελφοί μου ἀγαπητοί, ἑδραῖοι γίνεσθε, ἀμετακίνητοι, περισσεύοντες ἐν τῷ ἔργῳ τοῦ Κυρίου πάντοτε, εἰδότες ὅτι ὁ κόπος ὑμῶν οὐκ ἔστι κενὸς ἐν Κυρίῳ. (ΠΡΟΣ ΚΟΡΙΝΘΙΟΥΣ Α΄ 15:1-58 NTPT)

jeudi 13 septembre 2012

Um mergulho na humanidade do texto

Por Jorge Pinheiro, de São Paulo 


Se é regra não sabemos. Somos informados, porém, que o desejo é um estandarte. E assim o amante entra na casa do vinho. Visões do desejo no mundo hebreu.


As visões de mundo do camponês hebreu e mesmo do judeu do início da era comum eram diferentes das cosmovisões cristãs modernas. Talvez, o que de maior temos a aprender com hebreus e judeus é que a profundidade do texto é a sua humanidade.

Ao mergulhar nessa humanidade temos, então, a possibilidade de encontrar sua transcendentalidade. E isso pode ser alcançado de duas maneiras: a acadêmica, que nos interessa aqui, e aquela da própria vida, quando chegamos lá através da maceração de nossa pessoalidade, da crise, da dor e do risco.

Quando o intelectual judeu Samuel Cahen fez a primeira tradução das Escrituras judaicas para o francês, entre 1831 e 1851, em dezoito volumes – A Bíblia, novas traduções – procurou ir além das traduções anteriores, cristãs. Sua tradução, em edição bilíngue, trouxe para o leitor não-judeu a estrutura hebraica, as construções literárias e os hebraísmos.

No século passado, seguindo a tradição de Cahen, André Chouraqui construiu uma tradução enciclopédica (1974-1977): a partir de exegetas como Rashi e Ibn Ezra fez a leitura oriental dos textos do testamento judaico.

Ao compreender com os antigos exegetas judeus que a humanidade do texto é o caminho para o encontro possível com o transcendente, vamos, como exercício exegético, analisar dois versos de histórias e momentos diferentes das Escrituras judaicas. Não podemos esquecer, porém, que a escolástica teorizou modos de ler – o quadrivium, conceito derivado da junção de duas palavras latinas: quattuor, que significa quatro, e via, que quer dizer caminho. Temos assim na leitura de um texto quatro vias: literária, pedagógica, teológica e escatológica. Quadrivium é encruzilhada e foi utilizado como hermenêutica por Hugo São Vitor e Tomás de Aquino. Mas, hoje, nas nossas leituras estamos interessados no sentido literário dos textos. As traduções dos versos são deste cronista.

Golpe baixo

“Na luta, o homem, ao ver que não podia vencer, bateu no vazio da coxa e enforcou a força de criar de Jacó”. (Gênesis 32.25). (1)

O primeiro verso escolhido, que se situa no primeiro livro, o das origens, fala da luta do patriarca Jacó com um homem – a palavra hebraica no texto é îxe, homem, macho, e não anjo. Na luta com esse que poderia ser seu próprio irmão Esaú ou um dos capangas dele, o homem não conseguiu vencer Jacó. Então, já cansado, o homem recorre ao golpe mais antigo, que acaba com qualquer luta, dá uma joelhada no vazio da coxa de Jacó e estrangula sua força.

Terminações nervosas, sensibilidades. Escroto, testículos. O chute produz sangramento interno, inchaço, dor. O músculo se retrai, nervos e artérias se enroscam e impedem o fluxo de sangue. O coice foi bravo, a cápsula se rompe e vaza.

Visto assim, na sua humanidade, o texto fala de dois homens que lutam madrugada adentro, e que um deles, o trapaceiro, é golpeado na força de sua virilidade, sendo derrubado por um golpe em baixo e por baixo. Caído, resfolegando, entre gemidos, pede ao seu oponente um favor: liberdade para seguir adiante. E o homem – Esaú ou um capanga – diz para ele: segue seu caminho, hoje você não trapaceou, você venceu. Arrastando-se, aquele que se agarrou ao tornozelo do irmão, se levanta: foi alforriado, está livre para seguir em frente.

Gozo em rosa

As escrituras judaicas contêm uma jóia da literatura oriental: o Cântico dos cânticos. O superlativo não existia no hebraico, daí a idéia do mais bonito dos cânticos. O poema conta uma história de amor entre uma moça negra, a Sulamita, e um pastor.

Para os cristãos, não estamos diante do erotismo oriental, mas de uma alegoria sobre o amor transcendente de Deus. Agora, porém, neste artigo, nos interessa o caminho que o poema faz na materialidade do erótico humano. Por isso, vamos trabalhar apenas um verso do Cântico dos cânticos, procurando manter viva a expressão e seu conteúdo aparentemente não-religioso.

“Entra na casa do vinho, o seu estandarte é desejo”. (Cântico dos cânticos 2.4). (2)

Até o final do século XIX, a moral estabelecia que arte e literatura eram ofensivas aos costumes quando recorressem à sexualidade ou a linguagem incluísse termos licenciosos. Em tais casos, arte e literatura eram consideradas eróticas ou pornográficas, já que não se discerniam os termos. Hoje, entendemos erótico como relativo ao desejo sexual ou que aborda o amor sexual, e pornográfico como aquilo que descreve ou evoca luxúria.

Como muito desses sentimentos dos oitocentos ainda têm raízes profundas na cultura, o verso acima é canto que choca a mentalidade ocidental, pois a Sulamita, a jovem do Cântico dos cânticos, diz que seu amante a penetra quando ela está menstruada. É o tempo do durante, da casa do vinho, do gozo em rosa. E, assim, a regra da menstruação enquanto tempo de impureza, presente no livro de Levítico (15.19), é derrubada pela relação do casal. Não há nenhuma crítica ao ato, que ela apresenta como uma opção que nasce do desejo.

E falar de desejo nos remete a um pequeno trecho de outro texto clássico da literatura oriental, as Mil e uma noites – Alf Lailah Oua Lailah – uma coletânea de textos árabes, persas, hindus, siríacos e judaicos. Os contos mais antigos remontam ao século XII no Egito. Mas agora nos interessa a relação do filho do mercador Ghânim e a favorita do sultão, Qût al-Qulûb.

“Quando o gracioso filho do mercador Ghânim e a bela favorita do sultão foram para o leito, ele queria, mas ela não. Sobre a cintura da amante se podia ler: difícil. A resistência da mulher aumentava o desejo do homem. Os meses passaram e as coisas se inverteram. Quando mais tarde ela lhe dava beijos de incentivo, ele recuava e cada um ia dormir na sua esteira.” 

O filho do mercador e a favorita do sultão enfrentam a intermitência do desejo, mas no verso 2.4 do Cântico dos cânticos a Sulamita e seu amante estão em modulação unissonante: é pra ser, prazer, parônimo.

Entendemos melhor a presença do erótico nos textos orientais antigos quando lemos Michel Foucault na História da Sexualidade, A Vontade de Saber. Para ele, no Ocidente, existem dois procedimentos diante do bem e do mal do sexo. Um procedimento desconfiado diante das culturas romana antiga, chinesa, hindu, japonesa e árabe, que desenvolveram uma ars erotica. Tal arte tira sua verdade do próprio prazer, entendido como experiência onde não há lugar para proibições, mas também do prazer que pode ser medido pela tesura do corpo e do espírito. Essa arte erótica é experiência e seu conhecimento não tem como ser transmitido pelo discurso. Sua força está no símbolo.

A cultura ocidental não construiu uma ars erotica, por isso o outro procedimento nasceu de uma scientia sexualis, que gera regras para definir o bem e o mal do sexo. Assim, a sexualidade ocidental é, predominantemente, resultante de um discurso constituído em scientia sexualis, que a religião sacralizou para produzir a verdade sobre o sexo.

O erotismo está presente nos textos antigos, no Cântico dos cânticos e nas Mil e umas noites, porque é dimensão da sexualidade lida através da ars erotica. Mas é olhado com desconfiança pela moral que repousa sobre a scientia sexualis. Eros é expressão humana e assim deveria ser visto pelos exegetas que se debruçam sobre textos orientais da ars erotica.

Ou seja: o verso 2.4, analisado na profundidade do humano, nos fala de desejo, atributo da espécie, que nasce da capacidade de pensar o prazer. A jovem do Cântico dos cânticos não nos diz que durante a menstruação tem mais vontade de transar, mas também não nos diz o contrário. Se é regra, se não é regra, não sabemos. Somos informados, porém, que o desejo é um estandarte. E assim o amante entra na casa do vinho.

9/1/2010

Fonte: ViaPolítica/O autor

Notas

(1) A tradução SEV (versão de 1569) diz: “Y cuando el varón vio que no podía con él, tocó la palma de su muslo, la palma del muslo de Jacob se descoyuntó luchando con él”. É uma boa tradução, porque a expressão palma “kaph” se refere à cavidade ou parte do corpo que é dobrável ou curva, e “yarek” que foi traduzido por “muslo”, se refere a lombo, ou lugar do poder de procriação.

(2) Temos no verso em hebraico o verbo “bow” ir para dentro, entrar, que está no grau hifil, causativo, no modo perfeito; a expressão metafórica “bayith yayin”, casa do vinho; “degel”bandeira, estandarte; e “ahabah” que expressa prazer, desejo sexual. A Vulgata de São Jerônimo traduz assim: “introduxit me in cellam vinariam ordinavit in me caritatem”. A tradução italiana de Diodati (versão de 1649) diz: “Egli mi ha condotta nella casa del convito, E l’insegna ch’egli mi alza è: Amoré”. E a tradução SEV de 1569, diz: “Me llevó a la cámara del vino, y puso su estandarte de amor sobre mí” . Estamos diante de um poema oriental. A expressão “casa do vinho”, em seu sentido literário, não deve ser tomada literalmente, mas seguindo tradições orientais antigas – e também portuguesas – é uma metáfora, ao modo de “adega do vinho” ou “casa rosada”, entre outras. 

A Igreja Batista em Perdizes

Esperamos a sua visita

mardi 11 septembre 2012

Pinchas (Números 25.10-30.1)

Publicamos abaixo uma reflexão do rabino Ruben Sternschein, conforme fontes citadas ao final do artigo, sobre a realização da revelação através da riqueza da própria vida humana. E creio que tal reflexão serve para todos nós que nos reportamos às escrituras judaicas. Boa leitura para todos e todas. Jorge Pinheiro.

"e o Senhor disse:
— O que as filhas de Zelofeade estão pedindo é justo. Você deve dar a elas uma propriedade entre os parentes do seu pai. A herança do pai deve passar para elas. Diga ao povo de Israel que, quando um homem morrer sem deixar um filho homem, a filha deverá herdar a propriedade dele". (Números 27:6-8 NTLH)

Sobre as mudanças no judaísmo

O judaísmo aceita mudanças? As mudanças ameaçam o judaísmo com sua própria destruição? Ou ao contrário, são boas e permitem sua perpetuação através dos tempos?

Nos nossos tempos escutamos constantemente estas perguntas dentro e fora da comunidade e às vezes dentro e fora de cada um de nós como indivíduos judeus, comprometidos com a continuidade e com a autenticidade do judaísmo.

Alguns acham que as mudanças nos destruiriam, pois fariam com que cada um fizesse o que bem quisesse e que o judaísmo acabaria sendo mais individual do que nacional. Outros acham o contrário, que justamente quanto mais individualmente possa se interpretar e incorporar o judaísmo mais possibilidades de comprometimento real terá. Alguns são contrários às mudanças no judaísmo porque acham que sua divindade contradiz as mudanças. Se Deus deu o judaísmo, não seria possível que mudasse de ideais e de valores, pois neste caso ou os primeiros não eram suficientemente bons e, portanto, não eram divinos; ou os segundos.

A parashá nos conta sobre uma mudança na lei na época da própria Torá. Uma mudança da lei da Torá feita pelo próprio Deus na própria Torá!

Umas mulheres jovens cujo pai havia morrido no deserto pediram para que Moshé revisasse a lei que as impedia de herdar a terra de seu pai. Segundo a lei antiga, mulheres solteiras não tinham direito a herança e os bens do pai que não tinha filhos homens passavam para o bem público. Moshé não sabe o que fazer com semelhante demanda e acode a Deus. Deus diz para Moshé: “As filhas de Tselofchad tê razão. A lei é incorreta. E vamos mudá-la a partir de agora e para sempre, para todos os casos que sejam como este”.

O próprio Deus recua de uma lei da Torá e manda Moshé mudá-la por causa da demanda de umas simples mulheres!

Será que Deus não conhecia o bem e precisava das mulheres para revelá-lo? Será que Deus errou na primeira lei e aprendeu com os humanos? E teria Ele aprendido justamente com as mais marginais, mulheres simples, e não com o próprio profeta, Moshé?! Por que a Torá nos conta desse modo? Por que será que a lei não foi entregue no começo como ficou no final? E por que justamente através dessas mulheres?

Não temos respostas para essas perguntas no texto da Torá. Mas mesmo assim precisamos nos perguntar. Não estamos diante de um erro de relação, ou linguístico, ou de cópia. Estamos diante de uma mudança da lei de Deus, iniciada por mulheres simples e jovens, sem que o líder e profeta saiba o que fazer a respeito e aceita pelo próprio Deus.

Talvez a Torá queira nos motivar a sermos coeditores da Revelação Divina, junto com Deus através do tempo. Talvez caiba a nós revelar outros casos como esses escondidos na Torá. Talvez a Torá ainda não esteja completamente realizada e mais importante do que mantê-la seja revelá-la, como fizeram as filhas de Tselofchad. Para isso precisaremos de muito estudo, muita profundidade, muita seriedade e muito compromisso.

Que estejamos preparados.

Shabat Shalom
Rabino Ruben Sternschein

Fontes
CIP – Congregação Israelita Paulista, afiliada ao Movimento Masorti
Kehilat Beit Israel -- Comunidade Judaica Masorti de Lisboa



A substância católica e o fator melquisedeque

Resumo

O artigo analisa o conceito substância católica e suas implicações para a construção de uma missiologia que respeite a universalidade da espiritualidade e as manifestações culturais. Parte da compreensão tillichiana de substância católica, enquanto relação entre a manifestação da essência na existência e a afirmação do significado do evento crístico. Nessa releitura de Tillich, o princípio protestante é visto como subconjunto da substância católica, o que leva a dizer que a substância católica apresenta-se sob as dimensões não-históricas e históricas como identidade subjacente. Essa leitura de Tillich permite ver a história e a cultura como a substância que, para além de toda a situação, fornece os símbolos de uma situação última, a unidade universal do reino de Deus. Dentro dessa unidade universal do reino de Deus encontra-se o princípio protestante enquanto evento fundante do cristianismo, que tem uma relação de centralidade com a substância católica. A partir dessa compreensão o artigo afirma a importância do conceito, aqui reformatado como fator Melquisedeque, para a missiologia, que deve reconhecer as manifestações do essencial nas culturas, e denunciar as expressões idolátricas que ameaçam a comunidade humana.

Palavras-chave: Substância católica, fator Melquisedeque, princípio protestante, cultura, espiritualidade, missiologia, universalismo, particularidade.

Abstract

This article analyzes the concept Catholic substance and its implications for the construction of a missiology that respects the universality of spirituality and cultural manifestations. It starts from the Tillichian comprehension of catholic substance, as the relation between the manifestation of essence in existence and the affirmation of the meaning of the Christ event. In this rereading of Tillich, the Protestant principle is seen as a subset of catholic substance that leads us to say that catholic substance presents itself in non-historical and historical dimensions as an underlying identity. This reading of Tillich permits us to see history and culture as a substance that, beyond every situation, provides the symbols of an ultimate situation, the universal unity of the Kingdom of God. Within this universal unity of the Kingdom of God is found the Protestant principle as a founding event of Christianity which has a relation of centrality with catholic substance. Based on this comprehension, this article affirms the importance of the concept, here reformatted as the Melquisedeque factor, for missiology, that should recognize the manifestation of the essential in cultures, and denounce idolatrous expressions that threaten the human community.

Key-words: Catholic substance, Melquisedeque factor, Protestant principle, culture, spirituality, missiology, universalism, particularity.


Uma vez por ano, os artesãos de uma tribo da Indonésia constroem um barco de madeira em miniatura e o levam à beira do rio. O líder religioso da tribo amarra uma galinha num lado do barquinho e coloca uma lanterna acesa no outro lado. Depois, cada membro da tribo passa perto do barquinho e coloca um objeto invisível entre a galinha e a lanterna. Quando se pergunta às pessoas o que deixaram no barquinho, elas respondem: meu pecado. O líder, então, deixa o barquinho ser levado pela correnteza do rio, enquanto as pessoas gritam: Estamos salvos! [1]

Introdução
Em “A Massa e a Religião” [2] , escrito em 1922, Tillich disse que os teólogos do passado exprimiram numa linguagem metafísica dois elementos no conceito Deus: (1) como o ser mais real de todos, ou seja, Deus como substância absoluta, (2) e Deus como personalidade ético-espiritual, ou seja, como a forma mais perfeita.

Na consciência católica é o primeiro elemento que domina, e na consciência protestante é o segundo elemento. Para o católico, a graça é uma comunicação da substância divina, para o protestante, a graça é a comunhão ética com a personalidade divina. A explicação dessa diferença parte do fato de que o catolicismo produziu uma religião de massa e uma mística suprapessoal que não se opõe à religião de massa, ao contrário, é decorrência dela. Já o protestantismo, que foi beneficiado pela emergência de personalidades e comunidades – elementos que não se excluem --, perdeu as massas.

Para Tillich, a história das religiões mostrava que o elemento fundamental da religião é a aspiração não-racional presente nas formas, que vibra interiormente sob o efeito da irradiação do que não pode ser capturado através da lógica e da lei ética. Mais tarde, no correr da vida, vai desenvolver este conceito, chegando à conclusão de que esta substância universal de Deus é uma dimensão intrínseca à fé humana e ao cristianismo, que pode ser, então, compreendida em três elementos:

A intuição da presença do sagrado;
comunidades do amor, que reúnem pessoas antes separadas umas das outras;
a autoridade essencial à vida, que se manifesta através da tradição e dos símbolos.
Embora a igreja protestante, e por extensão evangélica, tenha nascido de um protesto crítico contra a absolutização desses elementos da substância católica na instituição Igreja Católica Romana, tal substância universal pode ser entendida como princípio do cristianismo, que deve também se fazer presente no protestantismo.

A substância católica e suas implicações para a missiologia

O princípio protestante é subconjunto e centralidade da substância católica, enquanto relação entre a manifestação da essência na existência e a afirmação do significado do evento crístico. Fazendo uma releitura contemporânea de Tillich, ao afirmamos que o princípio protestante é subconjunto da substância católica, estamos dizendo que a substância católica apresenta-se sob as dimensões não-históricas e históricas como identidade subjacente. Ou seja, quando nos referimos à história e à cultura é a substância que, para além de toda a situação, nos fornece os símbolos de uma situação última, a unidade universal do reino de Deus [3] . Dentro dessa unidade universal do reino de Deus encontra-se o princípio protestante enquanto evento fundante do cristianismo, que tem uma relação de centralidade com a substância católica. É o princípio protestante que retira da figura humana de Jesus tudo que nela poderia ser materializado como idolatria, por sua facticidade histórica. É por meio do símbolo da cruz que desaparecem as particularidades e o finito do evento Jesus, dando lugar ao significado presente do Cristo.

O paradoxo do aparecimento do Cristo na existência sem a deformação da existência é uma interpretação radical do símbolo da cruz que, segundo Dourley [4] , salva o significado da crucifixão da idolatria de se permanecer na adoração de um objeto histórico e por isso limitado, finito, enclausurado num tempo e espaço passados. O princípio protestante, lido sob tal perspectiva, apresenta, a cruz como presente e fim, como revelação e escathon que remetem ao kairós.

Mas, o protestantismo reformado caiu numa armadilha ao abandonar a unidade universal da substância, que mantém e possibilita o resgate do sentido de Deus nas profundezas do humano. Devido a esse deísmo bíblico, em sua aridez do “deo dixit”, da palavra que se resume na ética do texto, as profundezas da interioridade humana foram esquecidas e perderam seu vigor teológico. Por isso, Tillich propõs a manutenção da relevância do kerigma cristão, tão a gosto de Barth, em aliança com o reconhecimento da presença do sagrado expresso na cultura e nas dobraduras da secularidade.

É a partir daí que Tillich se lança ao conceito de comunidade espiritual, como definição de um processo de salvação, de essencialização, já que para ele o significado da vida, existencial e pessoal consiste na recuperação do ser essencial em Deus. Ou como diz, “a comunidade espiritual é latente antes do encontro com a revelação central, e é manifesta depois desse encontro” [5] . E nesse processo de essencialização, Cristo é o elemento final que possibilita o kairós, pelo qual a história humana sempre esperou. A partir daí entende que há um processo de essencialização das pessoas e das comunidades, que vivem processos de essencialização sob o poder crístico, enquanto membros de uma igreja latente.

E mais, considera que esta igreja latente está teologicamente ligada à igreja manifesta e por isso é levada a Cristo, cuja fé, amor e cruz estabelecem o fenômeno da conversão, enquanto mudança de sentido de uma participação latente para uma participação manifesta na comunidade espiritual [6] . Dessa maneira, é a fé e o amor de Cristo que levam à autocrítica radical capaz de estabelecer distinção entre o essencial e as formas através das quais o essencial se manifesta. A afirmação de que a igreja latente se complementa na igreja manifesta justifica a missiologia cristã. Ou como Tillich afirmou: “a comunidade espiritual está relacionada tanto com a cultura e a moralidade quanto com a religião, e a presença espititual torna necessária uma mudança radical na atitude para com o que é incondicional” [7] . Convém lembrar, porém, que Tillich combateu toda expressão de arrogância na relação entre igreja manifesta e igreja latente, ao reconhecer a presença da espiritualidade nas religiões e na cultura. Por isso, sugere que a missiologia combine ofensiva e mediação. Ofensiva no sentido barthiano e mediação no sentido de correlacionar o kerigma com a questão cultural. [8]

Assim, o conceito de substância católica é valioso para a compreensão da missiologia, principalmente no protestantismo de missões, em especial para os batistas brasileiros. A missão cristã, partindo desta leitura admite que a realidade manifesta no kairos de Cristo está em ação na cultura. Dessa maneira, a tarefa missionária consistiria em procurar identificar as maneiras por meio das quais o essencial, manifesto no evento Cristo, se faz presente na cultura. Tal procura possibilita a apropriação missionária da experiência cristã ao considerá-la enquanto manifestações do essencial, além de sinalizar caminhos nos quais a auto-compreensão cristã pode ampliar contatos com culturas e povos.

A missiologia batista e o fator Melquisedeque

O movimento batista em suas origens, e aqui nos remetemos aos movimentos religiosos separatistas da Inglaterra no século XVII, apresentou-se com duas grandes vertentes, uma cognominada “batistas gerais” e outra “batistas particulares”. Os primeiros desenvolveram posições que os aproximaram do pensamento teológico arminiano e os segundos do pensamento calvinista. Assim, não é de estranhar que os primeiros sempre tenham tido uma compreensão de aspectos da substância católica na forma de universalismo, inclusivismo e luta pela plena liberdade de expressão religiosa de todo e qualquer comunidade.

Essa era a visão de John Smyth, primeiro pastor (1610-1612) batista na Inglaterra, que coerente com sua compreensão teológica levantou a bandeira da “liberdade de consciência absoluta” [9] , dando início à trajetória batista de ação política engajada na luta pela liberdade religiosa. Outro pensador batista geral, Guilherme Dell, conhecido por suas fortes convicções teológicas a respeito da livre expressão do ser, em 1646, destacou-se pela luta a favor da liberdade religiosa na Inglaterra. Escreveu o livro intitulado Uniformidade Examinada [10] , que postulava a tese de que a unidade deve existir sem uniformidade, uma vez que a última era má e intolerável, excluindo toda a liberdade concedida por Deus. Essa era uma nova argumentação favorável a liberdade religiosa.

Mas, talvez o livro mais revolucionário da teologia batista, que apresenta uma visão da substância católica entendida em um de seus aspectos, o do universalismo, seja o de Hosea Ballou (1771-1852), Tratado sobre a Expiação, escrito em 1805. Ballou considerou que o sacrifício de Cristo ao invés de ser uma posição jurídica ou vicária tem base moral. Assim, Cristo sofreu pela humanidade, mas não em seu lugar. Com base neste argumento, afirmou a salvação universal de todos os seres humanos, porque a morte leva a alma não regenerada ao arrependimento.

Logicamente, por ser uma confissão protestante de forte cunho missionário, as reflexões teológicas sobre o universalismo influenciaram em muito a ação missiológica batista. E o pai das missões modernas, o batista inglês William Carey (1761 – 1834), apesar de ter iniciado seu trabalho a partir dos batistas particulares, no correr de sua obra missionária na Índia, construiu uma visão de missões até então inédita: dela participariam todas as igrejas e comunidades, todas as classes sociais, e sua ação, considerada civilizatória na época, passou a ser calcada num entendimento não paternalista de ação social. Depois de sua morte, esta visão missiológica, que tinha por base uma compreensão instintiva da substância católica, cedeu lugar a novas propostas.

Mas a partir do final do século XX, a experiência de Carey e as leituras de outros pensadores batistas gerais voltaram à baila, trazendo para a missiologia batista uma compreensão da importancia da substância católica. Assim, Don Richardson, professor de Missiologia, vê a história relatada na abertura desse trabalho como exemplo de uma ponte entre o que ele chama de revelação geral e o kerigma, a revelação crística. Ou seja, Deus se mostra na espiritualidade de pessoas e comunidades, que leva ao reconhecimento do evento crístico. Ele chama esta presença do essencial na existência humana de “fator Melquisedeque”, recorrendo ao nome do sacerdote a quem Abraão prestou homenagem.

Em seu livro O Fator Melquisedeque, best-seller entre os protestantes de missões do Brasil, Richardson enumera casos de comunidades aos quais Deus falou mesmo antes da presença cristã, citando com bom humor alguns casos relatados nas Escrituras, como o de Nínive, capital da Assíria, que ouviu as imprecações mal-humoradas de um judeu, aceitou a exortação e foi salva. E pergunta quem reconheceu que o Messias havia nascido em Belém, além dos pastores? Claro, nós sabemos, os astrólogos do Oriente, considerados pagãos pelos judeus. Ou ainda o caso do funcionário etíope que foi a Jerusalém e só encontrou o preconceito. Mas ouviu da revelação crística através de Filipe.

Richardson fala ainda de comunidades que possuem relatos semelhantes aos da criação e do dilúvio descritos na Bíblia e mesmo de comunidades que contam que, em seu caminhar nômade, perderam o livro que falava sobre o Deus que criou o mundo.

John Sanders, pensador arminiano, seguindo o caminho aberto por Hosea Ballou, considera que o amor de Deus pelos seres humanos nunca ficou suspenso esperando que missionários levem o Evangelho àqueles que não conhecem o evento crístico, embora deseje que todos ouçam acerca das coisas que seu Filho tem feito. Assim, afirma, “o Espírito age ativamente quando, onde e como ele quer, trazendo pessoas para um relacionamento com Deus, antes mesmo que o Evangelho as alcance”. [11]

E o escritor C. S. Lewis, tão querido e estudado pelos batistas, considerava que os que se entregam em fé Àquele que está por detrás de toda verdade e bondade serão salvos, mesmo que nada saibam sobre o evento crístico. Diz Lewis: “Há, pessoas em outras religiões que estão sendo guiadas pela influência secreta de Deus para se concentrarem naqueles pontos de sua religião que estão de acordo com o cristianismo e que assim pertencem a Cristo sem o saber.” [12]

Em outro lugar ele escreve: “Eu acho que toda oração que é feita sinceramente, mesmo a um falso deus (...) é aceita pelo Deus verdadeiro e que Cristo salva muitos que não acham que o conhecem.” [13]

E nas Crônicas de Nárnia, Lewis conta a história de um homem chamado Emeth, verdade em hebraico, que fora criado num país onde o principal deus chamava-se Tash. Emeth lutou contra o país de Nárnia, cujo Deus era Aslan, uma figura crística. Através de uma série de circunstâncias, nosso herói Emeth tem uma visão do deus Tash e percebe que Tash é o maligno. Impelido pela visão, ele vagueia pelos bosques. Lá Aslan o encontra, e acontece o seguinte diálogo:

-- Ai de mim, Senhor! Não sou filho teu, mas, sim, um servo de Tash. -- Criança, todo o serviço que tens prestado a Tash, eu o considero como serviço prestado a mim... por sermos o oposto um do outro é que tomo para mim os serviços que tens prestado a ele. Pois eu e ele somos tão diferentes, que nenhum serviço que seja vil pode ser prestado a mim e nada que não seja vil pode ser feito para ele. Portanto se qualquer pessoa jurar em nome de Tash, e guardar o juramento por amor a sua palavra, na verdade jurou em meu nome, mesmo sem saber, e eu é que o recompensarei. E, se um ser humano cometer alguma crueldade em meu nome, então, embora tenha pronunciado o nome de Aslan, é a Tash que está servindo e é Tash quem aceita suas obras...”

E constrangido, Emeth acrescenta:

-- Mesmo assim tenho aspirado por Tash todos os dias da minha vida.

-- Amado, não fora o teu anseio por mim, não terias aspirado tão intensamente, nem por tanto tempo. Pois todos encontram o que realmente procuram. [14]

Para Lewis, Deus salva pessoas e comunidades de acordo com o princípio da fé descrito por Paulo em Romanos (2.7), “Deus dará a vida eterna às pessoas que perseveram em fazer o bem e buscam a glória, a honra e a vida imortal”.

Assim, podemos ver que o protestantismo de missões e os batistas, não enquanto instituição, mas em sua ação missiológica têm vivido uma prática que em muito se aproxima da leitura tillichiana da substância católica. Assim, podemos dizer que essa leitura apresenta as bases para uma esperança maior no modo específico no qual o desejo de Deus de essencializar todos os seres humanos pode ser realizado. O ponto de vista defendido é que Deus ama todos os seres humanos e deseja que sejam salvos. Todos são essencializados em razão do evento crístico, quer sejam conscientes ou não desse evento que projeta o kairós. Dessa maneira, o universalismo dos batistas gerais apresenta a igreja latente como comunidade que caminha, pela obra expiatória que desconhecem, em direção à essencialização. Ou em linguagem batista, Deus aceita todos os que exercem fé nele, sem levar em consideração até que ponto vai o conhecimento dessas pessoas.

É importante dizer que Tillich, sem dúvida, enriqueceu o conceito de substância católica ao vê-lo em processo de correlação com o princípio protestante, e que mesmo nas mais diferentes confissões protestantes, como é o caso dos batistas, encontramos defensores da substância católica como fundamental para a vida teológica. É o caso de A. H. Strong, um dos teólogos mais respeitados no meio batista, que entende o processo de essencialização como exposto por Tillich, embora não utilize a mesma terminologia.

Tais considerações, nos permitem dizer que, provavelmente, o conceito substância católica represente a abordagem mais próxima de um consenso entre os pensadores cristãos na atualidade.

Considerações finais

Na teologia de Tillich, conforme expõe Dourley, é provável que sua contribuição à antropologia seja mais importante do que sua cristologia [15] . Essa antropologia baseava-se na compreensão de que a humanidade é imago Dei e se encontra em choque com a alienação do tempo presente. Mas a memória humana persiste como impulso na direção da recuperação desse mau encontro exposto por La Boétie. Esta dialética traduz e explicita a presença da espiritualidade do espírito humano.

Quando Tillich afirma que a humanidade é universalmente espiritual, partindo da tensão entre universal e particular, localiza o particular no contexto do universal. Em vez de considerar a realização plena do universal na revelação cristã, relativiza a particularidade no contexto dessa humanidade universalmente espiritual. Tal ênfase exige que o teólogo cristão aprecie as manifestações do essencial nas culturas. Mas nem por isso o compromisso com a fé cristã é diminuído. Ao contrário, a fé é aprofundada por meio do reconhecimento das variações daquilo que os cristãos percebem no evento Cristo, tanto nas religiosidades como nas dobraduras da secularidade.

Assim, a radicalidade do princípio protestante pode ser aplicada às materializações da substância católica na direção da essencialização do humano, denunciando as expressões idolátricas que ameaçam a comunidade humana.

Referência bibliográfica

[1] Don Richardson, O Fator Melquisedeque, São Paulo, Edições Vida Nova, 1986, p. 93.
[2] Paul Tillich, « La Masse et la Religion », in Christianisme et socialisme, Écrits socialistes allemands, 1919-1931, Paris, Genebra e Quebec ; Cerf, Labor et Fides, Presses de l´Université Laval, 1992, pp. 92-93.
[3] Paul Tillich, Teologia Sistemática, São Leopoldo, Sinodal, 2005, pp. 757, 761-762.
[4] John Dourley, São Bernardo do Campo, Correlatio, no. 1. Site: www.metodista.br/correlatio.
[5] Paul Tillich, idem, op. cit. , p. 605.
[6] Paul Tillich, idem, op. cit., p. 665.
[7] Paul Tillich, idem, op. cit, p. 665-666.
[8] Paul Tillich, The Irrelevance and Relevance of the Christian Message, ed. D. Foster, Cleveland: The Pilgrim Press, 1996, pp. 5-9.
[9] Zaqueu Moreira de Oliveira, Liberdade e Exclusivismo: Ensaios sobre os Batistas Ingleses, Rio de Janeiro: Horizonal; Recife: STBNB Edições, 1997. p. 83.
[10] Zaqueu Moreira de Oliveira, idem, pp. 104-106.
[11] John Sanders, “Inclusivismo”. Site: http://arminianismo.vilabol.uol.com.br
[12] C. S. Lewis, Mere Christianity, New York: Macmillan, 1960, pp. 65 e 176. Trad. português: Mero Cristianismo, São Paulo, Quadrante, 1997.
[13] Evan Gibson, C. S. Lewis: Spinner of Tales, Grand Rapids, Mich.: Eerdmans, 1980, p. 216.
[14] C. S. Lewis, The Last Battle, New York: Collier Books, 1970, pp. 164-165; e God in the Dock, Grand Rapids, Mich.: Eerdmans, 1970, p. 111. Trads. portuguesas: A Última Batalha e As Crônicas de Nárnia, São Paulo, Martins Fontes.
[15] John Dourley, “The Problem of Essentialism: Tillich’s Anthropology versus his Christology" in Theological Legacy: Spirit and Community, International Paul Tillich Conference, New Harmony, Indiana, 17-20 de junho de 1993 (Berlin: Walter deGruyter, 1995), p. 125-141.

Fonte

Jorge Pinheiro/ Correlatio/ Portal Metodista

dimanche 9 septembre 2012

De cárabos e velas latinas


É com Camões que a gente se entende 

no princípio era a palavra... 

Jorge Pinheiro, de Lisboa -- No cabo da Roca venta. É o ponto mais ocidental da Europa. À frente, o mar besta-fera guarda leviatãs para tragar os que avançam pelas águas. Meter-se por elas era coisa de louco, por isso admiro a coragem daqueles lusos dos Quinhentos, que assim o fizeram. O cabo forma o extremo da serra de Sintra, que se precipita sobre o oceano, não muito longe da casa onde morava o físico AC Rodrigues, padrinho da união de Di Giuseppe & Pinheiro. 

Camões, mestre dos que pensamos em português, disse que aqui é “onde a terra se acaba e o mar começa”, e um padrão em pedra lembra tal particularidade. Mas fico a pensar na ciência dos lusos, quando recriaram o cárabo, o barco ligeiro usado no Mediterrâneo. Assim, com tecnologia árabe e o velame latino surgiram as caravelas, que Darcy Ribeiro disse terem sido tão importantes quanto as naves espaciais. 

O uso documentado data de 1255, mas sabe-se que foram aperfeiçoadas nos séculos XV e XVI. Recebiam poucos tripulantes, cerca de vinte, e eram rápidas e boas de manobra, e as velas latinas, triangulares, permitiam bolinar, quer dizer, navegar em ziguezague contra o vento. Tinham cerca de vinte e cinco metros de comprimento, sete de boca e três de calado -- dois ou três mastros, convés único e popa sobrelevada. Deslocavam cinquenta toneladas, 

No alto dos mastros levavam uma pequena cesta, de onde os vigias prescrutavam o horizonte. Cesta instável, que oscilava junto com o rolamento do barco, transformou-se no lugar de castigo para os marujos infratores. O punido era enviado a cumprir horas ou até dias no caralho, este era o nome dado à cesta, e quando descia vinha verde de mareação. Daí surgiu a expressão tão a gosto dos lusos, mandar “pró caralho”. Mas, ao contrário dos que pensam os brasis, é também expressão de admiração, espanto e surpresa. 

E como estou a escrever de manhã, agora à beira do Mondego, em Coimbra, numa festa das confrarias gastronômicas portuguesas, antes do almoço, lembro-me da caralhota, pão caseiro de Almeirim, que pretendo comer com chanfana e beber com um delicioso espumante, o Quinta das Bágeiras, branco, bruto. Só um detalhe, chanfana é um prato que surgiu quando das guerras napoleônicas os franceses invadiram Portugal. Era feita de carne de cabra velha, que os portugueses abandonavam pelo caminho, já que levavam o melhor do rebanho para os montes. E assim surgiu a chanfana: carne de cabra cozida com vinho e cebola. 


A criatividade e a fé do povo luso contaminam. Quando este país cá de baixo ainda não era, eles diziam que “este Brasil é já outro Portugal”. Sonharam e construíram a utopia. O encontro de lusos e brasis foi além do possível, marcou a todos que pisaram a terra depois dos Quinhentos. Mas, agora, a caminho da terra basca de Hendaye, lembro-me da frase de uma sinhorinha na gare B de Coimbra: “É com Camões que a gente se entende”. Ela disse e eu assino. 

... a palavra fez-se homem e veio habitar no meio de nós.



vendredi 7 septembre 2012

Convite


Pessoal, os textos que estão aí projetam a igreja do tempo imediato, a partir do passado próximo. Temas que devem ser debatidos! Apareça!