lundi 8 octobre 2012

Gramsci e Tillich: aproximações e assimetrias

Jorge Pinheiro

Publicado originalmente na CORRELATIO, revista eletrônica da Sociedade Paul Tillich do Brasil e UMESP

Resumo

Antonio Gramsci e Paul Tillich têm coisas em comum. Ambos foram militantes políticos e fundamentaram parte de suas concepções em Karl Marx. Por isso, consideramos importante ver que aproximações e assimetrias existem em suas elaborações teóricas. Cristianismo, intelectualidade, socialismo e democracia são temas que atravessam seus estudos, e que aqui vamos confrontar. Desejamos, dessa maneira, acrescentar elementos novos numa discussão cada vez mais acirrada em nossa América Latina: ainda é possível o socialismo?

Palavras-chave: Paul Tillich, Antonio Gramsci, socialismo, democracia, América latina.

Gramsci and Tillich: Approximations and Asymmetries

Abstract

Antonio Gramsci and Paul Tillich have similar thoughts. Both of them were political activists and based part of their conceptions in Karl Marx. Therefore, we consider it is important to see that there are approximations and asymmetries in their theoretical elaborations. Subjects such as Christianity, intellectuals, socialism and democracy are presents throughout their studies, and that is what this paper discusses. In that way, we are adding new elements at the increasingly fierce debate in Latin America, namely: is the socialism still possible?

Key-words: Paul Tillich, Antonio Gramsci, socialism, democracy, Latin America.

“A democracia não acredita na harmonia natural, mas crê possível submeter a natureza à razão. Ela crê numa harmonia metafísica, que se instaura necessariamente do processo histórico”. Paul Tillich, “Écrits contre les nazis” [1]

Introdução

Nos últimos anos, como fruto da crise da esquerda mundial, mas também como fruto da instalação de governos nacionalistas no continente, renasceu a busca pela reflexão de pensadores marxianos. Assim, em várias universidades brasileiras, Antonio Gramsci, por exemplo, passou a ser estudado como nunca fora antes.

Ora, a busca pelo pensamento de Gramsci situa-se nesse contexto de garimpagem do marxismo marginal, dito também não ortodoxo. Aqui, nos interessa pensar Gramsci em correlação com outro socialista, nada ortodoxo, Paul Tillich. Aliás, o pensamento socialista de Tillich é praticamente desconhecido no Brasil, apesar de ter trabalhado quase duas décadas sobre questões políticas analisadas a partir do que ele chamou de socialismo religioso.
Paul Tillich
Gostaríamos de começar essa discussão com uma idéia exposta por Tillich, de que o socialismo é movimento profético de um mundo autônomo e racional, que a substância profética se exprime de maneira racional tanto no conhecimento como na ação, e que, por isso, a relação entre profecia e racionalidade é essencial no socialismo. [2]

Como a linguagem tillichiana é teológica, ao lê-lo nos vemos na obrigação de traduzi-lo. Assim, o que significariam as expressões profético e profecia? Tillich parte de uma compreensão peculiar do profetismo vétero-testamentário. Vê nele, tanto um clamor, como uma ação, um movimento em prol da justiça, que daria conteúdo, seria a essência da própria religião de Israel e, por extensão, do cristianismo e da Reforma protestante. Por isso, movimento profético é movimento de crítica social, que na modernidade levou à racionalidade da autonomia. Mas, para Tillich, socialismo implica em correlação permanente e necessária, ou seja, crítica social e racionalidade na autonomia. Assim colocada a questão, vemos que Tillich se afasta das correntes socialistas que repousam exclusivamente no racionalismo, em especial do bolchevismo, como das correntes que vêem a possibilidade de uma expansão crescente da autonomia, via democracia, ou seja, em especial da compreensão gramsciana. É essa preocupação de Tillich em correlacionar razão e autonomia que possibilita esse diálogo crítico com Gramsci.
Antonio Gramsci
De Gramsci podemos dizer que recriou a linguagem da tradição marxiana e codificou teoricamente seus conceitos, ao falar estado regulado, filosofia da práxis, grupo social, hegemonia, sociedade civil, estado ampliado, intelectual orgânico e moderno Príncipe. Mas, neste texto, nos interessa analisar suas idéias sobre o cristianismo, o intelectual e a democracia.

O desafio cristão

Marx partiu do fato de que o pensamento judaico/cristão torna o ser humano estranho a si mesmo e desdobra o mundo em um mundo imaginário. Por isso, considerava que o trabalho do teórico consiste em dissolver o imaginário judaico/cristão em sua base terrena. Vai dizer, então, que Feuerbach não percebe que, findo o trabalho da crítica da herança judaico/cristã, o principal ainda está por fazer. O fato de que a base terrena se separe de si mesma e se estabeleça nas nuvens, como reino independente, só pode ser explicado pela dissociação interna e pela contradição dessa base terrena consigo mesma.

O que deve, portanto, ser feito antes de qualquer coisa é compreendê-la em sua contradição e depois remover essa contradição. Assim, por exemplo, após descobrir que a família terrena é o segredo da Sagrada Família, é a família terrena que deve ser criticada teoricamente e revolucionada. Marx explica a fé cristã por meio das contradições da sociedade humana e de suas dissociações, que induzem o ser humano a projetar fora do mundo, em um paraíso, a realidade na qual desejaria viver. Mas como afirma Radice, [3] na quarta tese sobre Feuerbach, Marx afirma de modo explícito que a forma judaico/cristã reflete um conteúdo histórico. Por estar impotente, o ser humano imagina uma potência divina, por estar abandonado cria uma providência.

Gramsci verá o pensamento de Marx como herdeiro de dois movimentos culturais, a Reforma protestante e a Revolução francesa:

"A filosofia da práxis pressupõe todo este passado cultural, o Renascimento e a Reforma, a filosofia alemã e a revolução francesa, o liberalismo laico e o historicismo; em suma, o que está na base de toda concepção moderna da vida. A filosofia da práxis é o coroamento de todo movimento de reforma intelectual e moral, dialetizado no contraste entre cultura popular e alta cultura. Ela corresponde ao nexo Reforma protestante mais Revolução francesa: trata-se de uma filosofia que é também uma política e uma política que é também uma filosofia". [4]

E por isso dirá que "a religião cristã (...) foi e continua a ser uma necessidade, uma forma necessária de racionalidade do mundo e da vida". [5]

Marx pode, então, ser entendido como desenvolvimento que se dá a partir de três correntes da Reforma protestante: a luterana que legou Hegel, a calvinista que legou Ricardo e a economia clássica, e a huguenote que criou o jacobinismo.

"A estas três fontes originais, Gramsci tenta ligar a tradição cultural italiana, principalmente Maquiavel, como precursor do jacobinismo, e Croce como desenvolvimento historicista da filosofia alemã. O marxismo torna-se assim um ponto de convergência destas três correntes sob a forma de crítica radical". [6]

Dessa forma, para Gramsci, a Reforma foi não somente uma reforma no nível da economia, filosofia e política, mas também uma revolução cultural, no sentido de que procurou forjar uma nova humanidade. Para Gramsci a consciência religiosa cristã, que se traduziu em revolução cultural no século XVI, teve um caráter de suma importância na construção do pensamento contemporâneo. Ou, nas suas palavras: "da primitiva rusticidade intelectual do homem da Reforma (leia-se Lutero) decorreu a filosofia clássica alemã e o vasto movimento cultural de onde nasceu o mundo moderno". [7]

Podemos dizer que Gramsci, no que se refere ao cristianismo, faz uma ponte entre Émile Durkheim e Max Weber. [8] Durkheim considera a religião a partir da idéia de vínculo social. A religião constituiria uma comunidade moral na qual os adeptos comungam num mesmo ideal. A palavra chave aí é solidariedade. E a solidariedade leva a uma memória coletiva, que organiza lembranças, ritualiza a crença. Os estudos de Durkheim sobre as sociedades têm o intuito de dar rumo à sua análise na qual a divisão do trabalho foi anteriormente a preocupação central. Mais tarde, o diálogo com a antropologia será privilegiado e o universo da religião será pensado como consciência coletiva, abordagem que ele estende ao entendimento da nação, enquanto todo no qual os indivíduos partilham a mesma memória coletiva.

Weber trabalha em sentido diferente. O cristianismo é instituição, é igreja, que atua como empresa de salvação das almas. É necessário, então, conhecer os meandros de sua doutrina, a organização de seu clero e a disputa entre visões e interesses distintos no quadro das crenças religiosas. Daí a atenção que dá ao pensamento divergente, as rupturas no interior de uma mesma ordem ideológica, e sua relação com o poder de Estado.

Assim, Durkheim busca o que une e Weber realça o que separa. Mas Gramsci está interessado nas duas dimensões, no que une e no que divide. O cristianismo, para ele, é uma concepção de mundo que elabora versões sobre a realidade, o que possibilita aos fiéis atuar segundo determinada ética, mas também os une no interior da mesma comunidade. Essa idéia atravessa as páginas dos Cadernos do cárcere, sintetizada na afirmação de que o catolicismo é o "intelectual orgânico" da Idade Média.

A intelectualidade orgânica

Partindo de uma leitura do contexto europeu medieval, Gramsci estuda o papel dos intelectuais católicos: seu cosmopolitismo, incentivado pelo poder de Roma, em relação à fragmentação do poder feudal e sua intolerância diante do pensamento divergente que ameaça a unidade da Igreja. Mas, na qualidade de orgânico, o catolicismo funcionaria como cimento cultural entre diferentes setores de uma sociedade hierárquica. Assim, o catolicismo integra o que se encontra separado por lutas de interesses e discordâncias doutrinárias. O catolicismo, no entanto, é parte de uma superestrutura mais ampla, a ideologia. É uma cosmovisão, tem valor cognitivo, interpreta o mundo ético, orienta a ação, e constrói uma moral que baliza a solidariedade dos fiéis. As ideologias possuem potencialidades diferentes destas, por isso Gramsci faz distinção entre filosofia e cristianismo católico, e entre cristianismo católico e senso comum, mas, ainda assim, todas as ideologias podem ser pensadas a partir dessa mesma matriz teórica.

Dessa maneira, as análises de Gramsci rompem com a tradição marxiana, já que a ideologia, mas do que falsa consciência é entendida como elemento cognitivo, concepção de mundo que brota da vida social. Para ele, como concepção de mundo, o cristianismo não seria alienante, mas deve ser entendido como ideologia presente na história. Exemplo disso foi o catolicismo medieval, que possuía valor positivo, era orgânico, e construiu vínculo social entre as classes e os grupos sociais. Mas, no correr da Idade Média perdeu essa positividade, ao perder sua função de solidariedade, e passou a atuar como força reativa diante das mudanças.

E se Gramsci se mantém marxiano no que se refere à crítica da transcendência e, por extensão, da natureza humana, a conclusão que se impõe é que não há sociedade sem ideologia. Gramsci prepara, assim, o caminho para outros teóricos do pensamento marxiano, como Althusser e seu "animal ideológico", e Lévy-Strauss e seu "animal simbólico".

Mas Tillich teve uma compreensão diferente daquela de Gramsci, que entende a vanguarda enquanto intelectualidade orgânica, mas não vê o movimento de massas em processo dinâmico que pode levar ao surgimento de uma massa orgânica. Há uma divergência entre os dois pensadores: a crítica intelectual não se limita ao intelectual orgânico, é um processo maior que gera a massa orgânica, com dupla ação: de liderança da sociedade e de transformação da situação-limite.

Na perspectiva tillichiana, a passagem da heteronomia à autonomia se deu através de ciclos que atravessaram épocas. Assim, os movimentos dinâmicos das massas estão presentes nos movimentos religiosos do jovem cristianismo, no movimento político da migração dos povos, no movimento religioso da Reforma, no movimento anabatista e no movimento socialista. Embora esses movimentos possam ser encontrados em diversas épocas, estão presentes em diferentes esferas da cultura, mas sempre como movimentos de libertação: as massas dinâmicas são parteiras de escravos, de povos, de trabalhadores.

Por isso, segundo Tillich, não podemos ver o pensamento de Marx como algo que já se esgotou, se nos propomos a fazer a crítica profética, pois o socialismo não é justificativa ideológica das democracias, nem idealismo progressivo ou sistema de harmonia autônoma. O socialismo dentro do espírito da crítica profética e com os métodos do marxismo transcende o mundo. [9] Mas até que ponto a metodologia marxiana e uma conquista do poder político poderiam dar sentido à vida? Só se o socialismo compreender que a corrupção também está localizada nas profundezas do coração humano. [10] O socialismo, para Tillich, deve entender que as forças demoníacas da injustiça e da vontade de poder jamais serão plenamente erradicadas da cena histórica. O socialismo precisa compreender que a corrupção da situação humana tem raízes mais profundas do que as estruturas históricas e sociológicas. Estão encravadas nas profundezas do coração humano. 

Como Kierkegaard, Marx fala da situação alienada do homem na estrutura social da sociedade burguesa. Empregava a palavra alienação (Entfremdung) não do ponto de vista individual, mas social. Segundo Hegel essa alienação significa a incursão do Espírito absoluto na natureza, distanciando-se de si mesmo. Para Kierkegaard era a queda do homem, a transição, por meio de um salto, da inocência para o conhecimento e para a tragédia. Para Marx era a estrutura da sociedade capitalista. [11] Por isso, considera que a regeneração da humanidade não é possível apenas mediante mudanças políticas, mas requer mudanças na atitude das pessoas em favor da vida. De todas as maneiras, para Tillich e para Gramsci há uma busca comum de respostas entre aquele que encarna o espírito crítico e a ação consciente do intelectual orgânico. Ou como diz Gramsci: 

Se a relação entre intelectuais e povo/nação, entre dirigentes e dirigidos, entre governantes e governados, é dada por uma adesão orgânica, na qual o sentimento paixão torna-se compreensão e, portanto, saber, não mecanicamente, mas de forma viva, é somente então que a relação é de representação e que se produz o intercâmbio de elementos individuais entre governados e governantes, entre dirigidos e dirigentes, isto é: que se realiza a vida conjunta que, só ela, é a vida social, cria-se um bloco histórico. [12]

Para Gramsci, o intelectual quando representa determinada comunidade têm função superestrutural, ou seja, cultural, mas, apesar de sua organicidade, precisa exercer autonomia em relação às pressões sociais que sofre. É dessa postura que nasce a força crítica e a compreensão de que diante da realidade há alternativas diferentes daquelas expressas pelo poder.

A partir de Tillich e Gramsci podemos dizer que o princípio da crítica intelectual é expressão humana e verbal do incondicionado, e resgata a tradição do profetismo bíblico, que possuía uma concepção unitária do fato e procurava a síntese entre política e ética. O profetismo era ao mesmo tempo revolucionário, mesmo quando voltado para o passado, e conservador, mesmo quando impulsionado pela paixão do porvir. Nada fazia sem invocar a tradição, no entanto, sua mensagem eram os novos tempos. Os profetas sabiam servir-se do passado para as necessidades do presente. Todos pareciam ter algo em comum: uma atitude realista. A pregação do futuro não constituía o essencial de seus clamores; era antes, o fruto e o resultado final de um conhecimento aprofundado no mundo adjacente, da atualidade e do passado. Ora, essa função profética está presente na compreensão crítica de Gramsci e de Tillich do intelectual orgânico.

Mas, não podemos esquecer que para Tillich há limites para a ação do intelectual, pois a razão não é global. Ao contrário, cada criação do espírito é necessariamente afetada pelos limites da situação que a viu nascer. O espírito está sempre ligado a uma classe. No espírito está implícita uma situação particular de luta, de dominação ou de opressão, que conforma a própria consciência. Entendido assim, o espírito não é universalmente o mesmo em cada pessoa, exprime um ser social particular. A passagem à cultura não se faz simplesmente pela transmissão de bens culturais universais, mas pela formação inculcada por uma sociedade e uma situação de lutas determinadas, em meio a obras que exprimem ou exprimiram no passado esta possibilidade humana particular. [13]

Numa leitura cristã protestante, Tillich considerou o socialismo produto da evolução espiritual e econômica, que preparou e se impõe com a Renascença, a Reforma e o surgimento do capitalismo. Visão compartida por Gramsci. Assim, o socialismo surge em oposição à cultura autoritária e unitária da Idade Média, sedimenta suas bases nas criações culturais dos últimos séculos, e só pode ser compreendido a partir desta evolução: sua permanência está ligada a esse desenvolvimento. Mas não devemos esquecer, porém, que foi do interior do cristianismo que brotaram as idéias socialistas. Para a construção de seu pensamento, Gramsci foge das construções ontológicas, e analisa a sociedade como conjunto de forças, imersas na história e marcada por interesses diversos. Podemos ver isso quando em carta à sua cunhada Tatiana Schucht. de dezembro de 1931, expõe seu conceito de Estado ampliado: 

Eu amplio muito a noção de intelectual e não me limito à noção corrente que se refere aos grandes intelectuais. Esse estudo leva também a certas determinações do conceito de Estado, que habitualmente é entendido como sociedade política (ou ditadura, ou aparelho coercitivo para adequar a massa popular a um tipo de produção e a economia a um dado momento); e não como equilíbrio entre a sociedade política e sociedade civil (ou hegemonia de um grupo social sobre a inteira sociedade nacional, exercida através de organizações ditas privadas, como a igreja, os sindicatos, as escolas, etc.). [14]

Democracia e socialismo

Ora, em geopolítica, hegemonia significa a supremacia de uma nação sobre outras, seja por sua presença militar, de coerção, seja pela presença política e cultural. Mas na política, o conceito formulado por Gramsci descreve a dominação ideológica de uma classe sobre outra, no caso da burguesia sobre os trabalhadores ou proletários.

Em Gramsci não é possível o domínio bruto de uma classe sobre as demais, a não ser nas ditaduras, ou seja, no Estado-coerção. Mas uma classe dominante para ser dirigente deve articular um bloco de alianças e obter o consenso passivo das classes e camadas dirigidas. Nessa busca de alianças, necessárias, a classe dominante sacrifica parte dos seus interesses materiais imediatos, vai além do horizonte corporativo, com a finalidade de construir uma hegemonia ética e política.

Ao estudar os mecanismos de construção desta hegemonia, Gramsci chega a um conceito fundamental na sua teoria política, a saber, o conceito de Estado ampliado. O Estado moderno na Europa analisada por Gramsci não seria, para ele, apenas instrumento de força a serviço da classe dominante, mas força revestida de consenso, ou seja, combinaria coerção e hegemonia. O Estado ampliado pode, então, ser entendido como sociedade política mais sociedade civil. E, nas sociedades de tipo ocidental, a hegemonia, que se decide nas inúmeras instâncias e mediações da sociedade civil, não pode ser ignorada pelos grupos sociais subalternos que aspiram a modificar sua condição e a dirigir o conjunto da sociedade.

O sentido de progresso civilizatório que a teoria gramsciana implica, reside no fato de que todo o movimento deve acontecer no sentido de uma absorção do Estado político pela sociedade civil, com o predomínio crescente de elementos de autogoverno e autoconsciência. A partir dessa teorização, Gramsci formula nos Cadernos do cárcere uma crítica ao stalinismo, a partir dos traços de hipertrofia do Estado soviético, que chama de estatolatria, considerando que tal estado de ditadura sem hegemonia não subsistiria por muito tempo.

Assim o Estado se compõe de dois segmentos distintos, porém atuando com o mesmo objetivo, que é o de manter e reproduzir a dominação da classe hegemônica: a sociedade política, estado-coerção, a qual é formada pelos mecanismos que garantam o monopólio da força pela classe dominante, burocracia executiva e policial-militar, e a sociedade civil, formada pelo conjunto das organizações responsáveis pela elaboração e difusão das ideologias, composta pelo sistema escolar, Igreja, sindicatos, partidos políticos, organizações profissionais, organizações culturais: meios de comunicação e de massa.

E aqui merecem destaque os meios de comunicação, pois para sua época estavam ainda em sua fase embrionária, e a televisão nem sequer fazia parte dos projetos futuros. Isto só seria possível no início da década de 1950. É exatamente através dos meios de comunicação modernos, que se dá a canalização da direção intelectual e moral, difundindo as ideologias da classe hegemônica vigente.

Assim, o Estado é a sociedade política gramsciana. E esta sociedade civil representa a nova determinação apresentada por Gramsci. Esta sociedade civil assume crescente dimensão no começo do século vinte, com os partidos de massa, sindicatos de trabalhadores e outras formas de organizações sociais. É após sua evolução histórica que a sociedade civil pôde ser capturada teoricamente. Antes disso, o estado-coerção era muito superior em sua base material para se permitir tal percepção.

O que chama a atenção no modelo do Estado ampliado, desde o Leviatã de Hobbes até Marx, é o sentido unitário do Estado. Ou seja, até Marx, o Estado era entendido como algo diferente da sociedade civil, que seria extinto quando se extinguisse a divisão de classes dentro da sociedade, uma vez que era esta divisão que produzia a necessidade do Estado.

Em Gramsci, porém, quando agrega a sociedade civil ao Estado-coerção, nada fica de fora do Estado. Este todo, entretanto, não é homogêneo, é rico em contradições e é mantido pelo tecido hegemônico que a cada momento histórico é recriado em processo permanente de renovação.

Assim, a luta pela construção de uma sociedade socialista, torna-se mais complexa e difícil do que imaginava Marx. Não basta ser classe dominante, tem que ser também classe hegemônica, dirigente. Desta forma, o campo da luta entre as classes se amplia. E a democracia necessária ao socialismo será construída pelo bloco histórico hegemônico. Neste momento, a sociedade civil terá atingido uma base material superior a base material do Estado-coerção, atingindo o que Gramsci chama de sociedade regulada.

Com a gradativa absorção da sociedade política pela sociedade civil, que atua através dos seus aparelhos de hegemonia, o estado-coerção será substituído pelo estado-ético. E esta figura remanescente do estado-coerção, torna mais factível o modelo socialista e menos utópico em relação ao que planejara Marx.

Nesta concepção de Estado, as democracias ocidentais estão próximas do socialismo. Mas fica uma questão: se a supremacia da sociedade civil se dará pelo consenso contra a coerção, onde fica o conceito de luta de classes, momento celular do pensamento marxiano?

Na verdade, para Gramsci a extinção da coerção do estado se dará pela absorção deste pelo estado-ético, ou seja, pela sociedade civil. Esta sociedade civil está inserida no estado ampliado, e, por isso, não se pode falar de extinção do estado, mas de uma reorganização do estado onde um de seus componentes fica atrofiado por disfunção ou necessidade, já que os conflitos passaram a ser administrados pela base material do consenso.

Há, porém, dois níveis superestruturais nas sociedades democráticas: o estado ampliado, que é a sociedade civil, ou o conjunto dos aparelhos privados de hegemonia; e a sociedade política, ou o estado no sentido restrito do termo, composto pelos organismos de coerção do aparelho burocrático-militar de dominação política.

Nesse espaço a sociedade civil como o espaço do domínio da ideologia, portador material da hegemonia, encontra a possibilidade de legitimidade, de consenso, através dos aparelhos privados de hegemonia que propagam valores ideológicos.

Assim, o conceito de estado ampliado procura apreender a configuração de forças sociais e políticas resultantes dos estados ocidentais do século vinte, idéia que confronta a proposta de Trotsky de revolução permanente a partir da concepção de hegemonia civil. Tal proposta-conceito parte da idéia de guerra de posição, que exige uma frente de combate no campo cultural, unida às frentes econômicas e políticas para a conquista da hegemonia pelas classes subalternas. A fórmula “hegemonia civil” propõe a participação das maiorias sociais nos aparelhos privados de hegemonia (sindicatos, partidos, escolas, igrejas, imprensa), que constituem as trincheiras de luta para obter posições de direção no governo da sociedade.

A proposta de extinção do estado, no entanto, nunca é plena, pois sempre restará o governo para cuidar da sociedade civil. É claro que se entendermos assim podemos dizer que na distinção de função entre as pessoas que governam e as que vivem a vida da sociedade de consenso está presente ainda a dominação entre as classes e, portanto, os restos da coerção do Estado se farão presentes.

Em Gramsci está presente uma utopia que atravessou todo pensamento socialista: sonhar com o bom selvagem de Rousseau, em oposição ao homem é o lobo do homem de Hobbes. Esse Estado ético é uma idealização do ser humano, que poderia viabilizar a construção de uma sociedade ética, igualitária e justa.

Mas, mesmo questionando Gramsci, podemos utilizar seus conceitos de estado ampliado e de hegemonia civil como estruturas de pensamento válidas para a análise social, não como proposta da utopia socialista, mas como ferramenta para delimitar e compreender o desenvolvimento das sociedades ocidentais contemporâneas, principalmente aquelas que se propõem democráticas.

Conclusão

Entendemos, então, porque Tillich diz que embora o socialismo e o proletariado estejam intimamente ligados pode existir tensões entre o momento universal e o momento particular. O momento universal pode formular exigências que ameaçam absorver o momento particular. O socialismo se tornará, então, uma idéia geral, desprovida de raízes sociais e perderá sua força histórica. Este é o perigo de um socialismo de intelectuais, que o proletariado sempre combateu com razão. Esse perigo provém da situação burguesa e de seu pensamento político particular, que procura elaborar uma ordem social futura fundada sobre a justiça, deixando de lado a situação proletária real.[15] Sejam quais forem o sentido e o valor que se atribua a esta tentativa, ela não será socialista. A luta contra o socialismo utópico se apóia sobre a ligação indissolúvel que Marx viu entre socialismo e proletariado, que não pode ser quebrada por essa harmonia metafísica proposta pela globalidade burguesa.

Para Paul Tillich existe na esfera política uma relação entre razão e autonomia. Toda estrutura política pressupõe poder e um grupo que o assume. Mas um grupo de poder é também um conglomerado de interesses opostos a outras unidades de interesses e sempre necessita uma correção. A democracia está justificada e é necessária na medida em que é um sistema que incorpora correções contra o uso errôneo da razão política. [16] Assim, cristianismo e política não são realidades estanques, porque as raízes do pensamento político não são apenas pensamentos. Cristianismo e política, no mundo ocidental, estão imbricados, mas não existem sem a necessidade de correção, ou seja, da democracia. [17] Tal compreensão da realidade ocidental no pós-guerra levou Tillich a se debruçar sobre projetos que tiveram início ainda na sua fase alemã, como a sua reflexão sobre a cultura. Mas a maioria de seus companheiros, que esperavam a realização do socialismo, diante do visível abandono dos direitos civis e humanos, assim como a descoberta da existência de gulags nos países comunistas, se desiludiu. 

O movimento marxista não foi capaz de se criticar por causa da estrutura em que caiu, transformando-se no que chamamos agora de stalinismo. Dessa maneira, todas as coisas em favor das quais os grupos originais tanto lutaram acabaram sendo reprimidas e esquecidas. Em nosso século vinte temos tido a ocasião de melhor perceber a trágica realidade da alienação humana no campo social. [18]

Tal política comunista fez com que Tillich, que não se considerava um utópico, constatasse que o amanhecer de uma nova era criativa se distanciava da humanidade. [19]Assim, alertou para o perigo, a partir da experiência stalinista, de o socialismo transformar-se em totalitarismo, já que não aceitava a pluralidade de partidos políticos e as liberdades civis, que ele e os socialistas religiosos defendiam. Mas é interessante ver que descartava qualquer possibilidade de hegemonia permanente, quer por parte do bloco soviético, quer por parte do bloco ocidental: Novos centros de poder podem aparecer, primeiro secretamente, e depois, então, abertamente, levando para a separação de ou para a transformação radical do todo. (...) O poder inicia a luta novamente e o período determinado do império mundial será tão limitado quanto o foi o período augustiniano de paz. [20]

E afirmou que um mundo sem as dinâmicas do poder, sem a tragédia da vida e da história não é o reino de Deus, nem a finalidade do ser humano, pois o fim está limitado à eternidade e nenhuma imaginação pode atingir o eterno. Mas as antecipações fragmentárias são possíveis. [21]Assim, falar de socialismo significa entender que ele traduz a defesa do sentido último do significado profundo das raízes do ser humano e, no mundo contemporâneo, que ele, diante do trovejar dos canhões e da ameaça à vida, levanta-se como voz profética de um mundo novo.

Notas
[1] Paul Tillich, “La décision socialiste” in Écrits contre les nazis, 1932-1935, Paris, Genève, Québec : Les Éditions du Cerf, Éditions Labor et Fides, Les Presses de l’Université Laval, 1994, pp. 72-73. Christentum und soziale Gestaltung. Frühe Schriften zum religiösen Sozialismus, Evangelisches Verlagswerk Stuttgart, Gesammelte Werke II, 1962.. Trad. fr. Nicole Grondin e Lucien Pelletier. 

[2] Paul Tillich, “La décision socialiste”, idem, op. cit., p. 115. 

[3] Lucio Lombardo Radice, "Um marxista diante dos fatos novos no pensamento e na consciência religiosa", Revista Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, Ano III, Número 16, novembro/dezembro de 1967, pp. 6-7. 

[4] Hugues Portelli, Gramsci e a questão religiosa, São Paulo, Edições Paulinas, 1984, p. 32. 

[5] Portelli, Gramsci e a questão religiosa, op. cit., pp. 188. 

[6] Portelli, Gramsci e a questão religiosa, op. cit., p. 188-189. 

[7] Portelli, Gramsci e a questão religiosa, op. cit., p. 189. 

[8] Renato Ortiz, Notas sobre Gramsci e as ciências sociais, São Paulo, Revista Brasileira de Ciências Sociais, Out. 2006, vol.21, no. 62. 

[9] Paul Tillich, A Era Protestante, São Bernardo do Campo, Ciências da Religião, 1992, p. 274. Texto original: The Protestant Era, Chicago, Illinois, University of Chicago, 1948. Trad. pt. de Jaci Maraschin. “Die protestantische Ara”, Der Protestantismus als Kritik und Gestaltung, Gesammelte Werke VII, Evangelische Verlag Stuttgart, 1962, pp. 105-123. Trad. al. W. De Gruyter. 

[10] Paul Tillich, La lutte des classes et le socialisme religieux [artigo publicado no Religiöse Verwirklichung de 1930. Gesammelte Werke, II, pp. 175-192] in Christianisme et Socialisme, Écrits socialistes allemands (1919-1931), Les Éditions du Cerf, Éditions Labor et Fides, Les Presses de l’Université Laval, tradução de Nicole Grondin e Lucien Pelletier, 1992, pp. 382-385. 

[11] Paul Tillich, Perspectivas da Teologia Protestante nos séculos XIX e XX, São Paulo, ASTE, 1999, p. 193. Texto original: Perspectives on 19th and 20th century protestant theology, New York, Harper and Row Publishers, Inc., 1967. Tradução de Jaci Maraschin. 

[12] Antonio Gramsci, Il Materialismo Storico e la Filosofia di Benedetto Croce, Turim, Einaudi, 1966, p. 115. 

[13] Paul, Tillich, “Écrits contre les nazis”, op. cit., p. 102. 

[14] João Rego, Reflexões sobre A Teoria Ampliada do Estado em Gramsci, Recife, Caderno Cultural do Jornal do Commercio, 5/04/1991. 

[15] Paul Tillich, “Écrits contre les nazis”, pp. 84-85. 

[16] Paul Tillich, Teologia de la cultura y otros ensayos, Entre la heteronomia y la autonomia, Buenos Aires, Amorrortu Editores, 1974, pp. 239-240. Man’s right to knowledge, Columbia University Press, 1954. 

[17] Paul Tillich, Le Socialisme, Christianisme et Socialisme, Écrits socialistes allemands (1919-1931), Les Éditions du Cerf, Éditions Labor et Fides, Les Presses de l’Université Laval, 1992, p. 346. 

[18] Paul Tillich, Perspectivas da Teologia Protestante nos séculos XIX e XX, op. cit., p. 200. 

[19] Paul Tillich, Além do Socialismo Religioso, artigo publicado no Christian Century em 15.06.1949. 

[20] Paul Tillich, Amor, poder e justiça, São Paulo, Novo Século, 2004, p. 94-95. Amour, pouvoir et justice, Analyses ontologiques et applications éthiques, Revue d’Histoire et de Philosophie Religieuses, Paris, Presses Universitaires de France, 1963 et 1964, números 4 e 5. Love, Power and Justice, Ontological Analyses and Ethical Applications, Nova York, Londres, Oxford University Press, 1954. 

[21] Paul Tillich, Amor, poder e justiça, idem, op. cit., p. 108. 

I. BIBLIOGRAFIA ANTONIO GRAMSCI

1. Escritos 1910-1926

A questão meridional. Introdução e seleção de Franco de Felice e Valentino Parlato. Apresentação de Carlos Nelson Coutinho. Trad. Carlos Nelson Coutinho e Marco Aurélio Nogueira. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987. 165p. [Contém 10 textos do período 1916-1926].

Conselhos de fábrica. Introdução de A. Leonetti. Prefácios de Carlos Nelson Coutinho e Maurício Tragtenberg. Trad. Marina B. Svevo. São Paulo: Brasiliense, 1981. 121p. [Contém 6 artigos de Gramsci da época de L'ordine nuovo, escritos entre 1916-1920, bem como outros 6 artigos polêmicos de Amadeo Bordiga].

2. Dos "Cadernos do cárcere" (1929-1935).

Concepção dialética da história. Apresentação de Carlos Nelson Coutinho e Leandro Konder. Orelha de Luiz Mário Gazzaneo. Trad. Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1966 (6a. ed., 1986), 341p.

Literatura e vida nacional. Seleção, tradução e orelha de Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1968 (3a. ed., 1986). 273p.

Maquiavel, a política e o Estado moderno. Tradução e orelha de Luiz Mário Gazzaneo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1968 (8a. ed., 1987), 444p.

Os intelectuais e a organização da cultura. Tradução e orelha de Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1968 (5a. ed., 1987), 244p.

3. Dos "Cadernos do cárcere" (1929-1935). (Edição em seis volumes)

Volume 1: "Introdução ao Estudo da Filosofia. A Filosofia de Benedetto Croce". Edição de Carlos Nelson Coutinho, em colaboração com Luiz Sérgio Henriques e Marco Aurélio Nogueira. Trad. Carlos Nelson Coutinho. Orelha de Joseph A. Buttigieg. Quarta capa de Eric Hobsbawm. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1999. 494p.

Volume 2: "Os Intelectuais. O Princípio Educativo. Jornalismo". Trad. Carlos Nelson Coutinho. Orelha de Leandro Konder. Quarta capa de Norberto Bobbio. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000. 334p.

Volume 3: "Maquiavel. Notas sobre o Estado e a política". Trad. Carlos Nelson Coutinho, Luiz Sérgio Henriques e Marco Aurélio Nogueira. Orelha de Francisco de Oliveira. Quarta capa de Pietro Ingrao. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000, 428p.

Volume 4: "Temas de cultura. Ação Católica. Americanismo e fordismo". Trad. Carlos Nelson Coutinho e Luiz Sérgio Henriques. Orelha de Luiz Werneck Vianna. Quarta capa de Michael Löwy. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001. 394p.

Volume 5: "O Risorgimento. Notas sobre a história da Itália". Trad. Luiz Sérgio Henriques. Orelha de Octavio Ianni. Quarta capa de Valentino Gerratana. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002. 461p.

Volume 6: "Literatura. Folclore. Gramática. Apêndices: variantes e índices". Trad. Carlos Nelson Coutinho e Luiz Sérgio Henriques. Orelha de Alfredo Bosi. Quarta capa de Giorgio Baratta. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002. 495p.

II. BIBLIOGRAFIA PAUL TILLICH

A Era Protestante, São Bernardo do Campo, Ciências da Religião, 1992, p. 274. The Protestant Era, Chicago, Illinois, University of Chicago, 1948. Trad. pt. de Jaci Maraschin. “Die protestantische Ara”, Der Protestantismus als Kritik und Gestaltung, Gesammelte Werke VII, Evangelische Verlag Stuttgart, 1962, pp. 105-123. Trad. al. W. De Gruyter.

Écrits contre les nazis, 1932-1935, Paris, Genève, Québec : Les Éditions du Cerf, Éditions Labor et Fides, Les Presses de l’Université Laval, 1994. Christentum und soziale Gestaltung. Frühe Schriften zum religiösen Sozialismus, Evangelisches Verlagswerk Stuttgart, Gesammelte Werke II, 1962. Trad. fr. Nicole Grondin e Lucien Pelletier.

La lutte des classes et le socialisme religieux [artigo publicado no Religiöse Verwirklichung de 1930. Gesammelte Werke, II, pp. 175-192] in Christianisme et Socialisme, Écrits socialistes allemands (1919-1931), Les Éditions du Cerf, Éditions Labor et Fides, Les Presses de l’Université Laval, tradução de Nicole Grondin e Lucien Pelletier, 1992.

Perspectivas da Teologia Protestante nos séculos XIX e XX, São Paulo, ASTE, 1999. Texto original: Perspectives on 19th and 20th century protestant theology, New York, Harper and Row Publishers, Inc., 1967. Tradução de Jaci Maraschin.

BIBLIOGRAFIA OUTROS

ORTIZ, R. Notas sobre Gramsci e as ciências sociais, São Paulo, Revista Brasileira de Ciências Sociais, Out. 2006, vol.21, no. 62.

PORTELLI, H. Gramsci e a questão religiosa, São Paulo, Edições Paulinas, 1984.

RADICE, L.L. "Um marxista diante dos fatos novos no pensamento e na consciência religiosa", Revista Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, Ano III, Número 16, novembro/dezembro de 1967.

REGO, J. Reflexões sobre A Teoria Ampliada do Estado em Gramsci, Recife, Caderno Cultural do Jornal do Commercio, 5/04/1991.

samedi 6 octobre 2012

Não saí de Minas para ir à praia

A presidente Dilma Rousseff participou de um comício do candidato à prefeitura de Belo Horizonte pelo PT, Patrus Ananias, e atacou o senador Aécio Neves (PSDB-MG), o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso e o candidato à reeleição à Prefeitura de BH, Marcio Lacerda (PSB).

A irritação da presidente foi principalmente devido às declarações de Aécio que, na segunda-feira, durante evento de campanha de Lacerda, disse que acreditava na vitória do candidato do PSB porque "a população (de BH) conhece muito melhor do que qualquer estrangeiro que vem aqui às vésperas da eleição dizer vote nesta ou naquela direção".

A presidente começou o discurso dizendo que foi até Belo Horizonte "não para falar mal de ninguém" e sim para elogiar Patrus Ananias. Mas, em seguida, Dilma recordou que nasceu, cresceu, estudou e iniciou a luta contra a ditadura na capital mineira: "Eu quando saí daqui não saí para passear. Eu não fui passear, não saí para ir à praia, para me divertir. Eu saí daqui porque fui perseguida, porque aqui começou, como em todo Brasil um grande, um forte processo de perseguição. Então eu quero dizer para vocês que na minha veia corre o sangue de Minas Gerais", esbravejou.

Durante o comício na região do Barreiro, Dilma estava acompanhada do vice-presidente Michel Temer e de ministros. Ela discursou a partir de anotações em um papel, segundo ela, para não esquecer tudo que queria falar.

"Vou usar aqui uma frase que o presidente Lula gostava muito de usar: nunca antes na história desse país. Pois bem, nunca antes na história desse estado a política foi tão pequena quanto essa praticada por essas pessoas que me chamam de estrangeira," disse Dilma ao encerrar a fala para cerca de 5 mil pessoas, segundo o Partido dos Trabalhadores.

Dilma disse ainda que justamente por ser mineira tem o exemplo de ex-presidentes que nasceram em Minas Gerais, mas deixou de fora o ex-presidente Tancredo Neves, avô de Aécio Neves: "Eu aprendi uma coisa importante que os mineiros têm, sempre tiveram, que é ser capaz de lutar pelo seu País. O mineiro é o povo que mora aqui no centro do Brasil por isso, talvez, ele tenha um lugar especial e ele olha para todo o Brasil. Isso vem desde lá Tiradentes e passa pelos presidentes mineiros, o JK e o Itamar (Franco). (...) A mim espanta que eles falem que sou estrangeira, isso só meu causa um profundo desgosto e me faz pensar como o ser humano é capaz de confundir seus interesses pessoais com os interesses do País," atacou. "(Alguns) Políticos com visão mesquinha da vida acham que podem apagar Belo Horizonte da minha certidão de nascimento, não," completou.

Royalties e repasse de recursos

A presidente se mostrou ainda mais irritada com o fato do senador Aécio Neves ter declarado recentemente que ela vetou a emenda que permitia aumentar o valor dos royalties de minério pagos pelas mineradoras aos estados contrariando os interesses de Minas Gerais.

"Agora eu queria responder uma outra coisa, a história dos royalties. Se tem uma coisa falsa é fazer o seguinte. Muitas vezes se passam projetos que não têm condições de permanecer, o projeto tem falhas. E aí pode acontecer o seguinte, eu aumentei o royalties e as empresas podem entrar na Justiça e aí anulam e não pagam nenhum. Como eu não quero isso, vetamos e vamos fazer a Lei da Mineração cobrando royalties de minério como se cobra royalties de petróleo", prometeu.

Dilma também rebateu supostas declarações de que o governo dela e do ex-presidente Lula não repassam verbas para o governo de Minas Gerais. A presidente recordou a moratória decretada por Itamar Franco, quando ele era governador do Estado, em 1999, para dizer que o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso "fingia que não via e deixou o governo mineiro às moscas".

"Eles, esse pessoal da oposição, deram um dinheirinho para o Itamar, vamos dizer R$ 530 milhões, foi um pouco menos, mas vamos ser generosos. Aí chegou o Lula e colocou R$ 3,7 bilhões aqui em Minas Gerais. Assim que o governo federal teve um pouco mais de dinheiro o presidente Lula deu para o governo anterior e para o que hoje está aí (do governador Antonio Anastasia) R$ 3,7 bilhões de financiamentos. Aí em dois anos, sabe quanto que nós colocamos à disposição do governo de Minas Gerais: R$ 9 bilhões".

Fonte: Jornal do Brasil, 6/10/2012.

mardi 2 octobre 2012

Teologia da vida, uma teologia da práxis

A Teologia da vida entende que um movimento guiado por paixão e princípio pode ajudar pessoas e comunidades a desenvolver consciência de liberdade, perceber tendências autoritárias, sujeitar o poder à justiça e a ter atitudes construtivas. 


Suas fontes, a partir do Evangelho e do profetismo social, apoia-se no pensamento radical de batistas e huguenotes, assim como na esquerda hegeliana, na pedagogia crítica e nos movimentos políticos e sociais que lutam por justiça. 
A teologia da vida é uma teologia que brotou em corações brasileiros a partir da reflexão de textos fundantes de Rubem Alves e Paulo Freire, entre outros, ao compreender que a teologia deve fornecer instrumental que permita às pessoas e comunidades desenvolver um pensar crítico que possibilite reconhecer as conexões existentes entre os ditos problemas pessoais, as experiências das comunidades e o contexto social em que estão imersas. 

Ter consciência é o primeiro passo em direção à práxis, ou seja, à capacidade de mobilizar-se pela justiça e contra a opressão. Nesse sentido, práxis traduz engajamento que envolve teoria, aplicação, avaliação, reflexão e retorno à teoria. A transformação social é o produto dinâmico e permanente dessa práxis coletiva. 

As idéias de Gramsci lidas a partir da teologia da cultura de Tillich nos ajudam a construir instrumental de práxis radical. Tillich possibilita ir além da democracia radical ou mesmo do socialismo kautskyano, ou seja, da reforma ético-política. 
Por isso, o pensar conjunto da teologia com a realidade brasileira é essencial: não dá para ser cristão de fato sem refletir o momento político e social que o País vive. Isso significa que todos deveríamos ter uma concepção da história de nossa formação enquanto povo e dos desafios a que somos chamados a responder. Tal concepção de brasilidade deve reforçar ou modificar maneiras de agir e pensar o tempo brasileiro. A história da formação e do sentido do Brasil permite a partir da Teologia da vida reflexões para a superação da consciência ingênua e o desenvolvimento da consciência crítica, pela qual a experiência vivida é transformada em consciência compreendida da realidade brasileira, ou seja, em práxis transformadora. 

Para melhor compreender as questões colocadas acima sugiro a leitura de dois textos Teologia da Vida Teologia Humana pra lá de humana.

Voto útil

Você conhece a opinião dos socialistas sobre essas eleiçoes de 2012? É possível que não. Por isso, publico aqui o editorial do jornal Opinião Socialista 445, da segunda quinzena de junho de 2012. É leitura obrigatória para se construir uma consciência crítica diante das eleições que estão aí. Boa leitura, Jorge Pinheiro.

Voto útil é voto nas lutas dos trabalhadores
Editorial do Opinião Socialista n.445

Começou a campanha eleitoral em todo o país. A cada dois anos o povo brasileiro vota... mas não decide. Os trabalhadores e os jovens votam com a expectativa de melhorar de vida, acabar com as injustiças, expulsar os corruptos. Durante a campanha, os dois grandes blocos eleitorais (o PT de um lado, e a oposição de direita de outro) vão buscar ganhar o voto do povo com promessas de que basta votar neles para resolver todos os problemas de saúde, educação, transporte etc. Depois da votação, a vida vai continuar como sempre, ou ainda piorar porque poderá vir uma crise econômica.

Quem decide os rumos do país é uma pequena minoria, que, às vezes, nem vota. São os donos das grandes empresas, os bancos e multinacionais que financiam as campanhas do PT e da oposição de direita. Depois cobram a fatura para que os políticos eleitos apliquem as propostas defendidas por eles. Mas isso tudo não vai aparecer nas campanhas eleitorais. Tudo será escondido dos eleitores.

A maioria dos trabalhadores acredita no PT. Em muitos lugares se ouvirá de novo: “É preciso votar no PT para evitar que a direita ganhe”. Mas aqueles que apóiam as candidaturas do bloco governista devem parar para refletir sobre os gastos de campanha. Em São Paulo, por exemplo, José Serra declarou que vai gastar R$ 98 milhões, enquanto Haddad do PT declarou um gasto de R$ 90 milhões. Sabemos todos que eles gastam bem mais do que declaram. Mas já se trata de uma soma impressionante, três vezes mais do que o gasto por Kassab e Marta Suplicy na campanha passada.

Esses gastos não deveriam impressionar. São enormes porque devem ajudar a convencer os trabalhadores e o povo pobre das grandes mentiras que serão contadas. São gastos praticamente iguais porque os programas de campanha do PT e da oposição de direita são iguais.

Os problemas reais dos trabalhadores não são vividos pela burguesia. Enquanto a burguesia paulista anda de helicóptero, um terço da população vai a pé para o trabalho porque não tem dinheiro para pagar as passagens. Ou ainda, tem de passar sufoco em trens, ônibus e metrôs lotados.

A burguesia determina o que eles vão fazer no governo. E os burgueses não precisam de transporte público, nem de educação e saúde pública. Por isso, tudo que os blocos do PT e da oposição de direita vão defender nas campanhas não tem nada a ver com o que eles vão fazer de verdade. As campanhas na TV são como comerciais para vender sabonetes ou carros. O único objetivo dos marqueteiros (pagos a peso de ouro) é enganar o povo e ganhar seu voto. Nenhum dos programas dos candidatos vai ser aplicado na realidade.

O PSTU vai apresentar candidatos em todo o país. Vai buscar apresentar uma postura distinta de todas as outras. Chega de utilizar o poder e o orçamento da cidade para beneficiar os ricos! Vamos defender a eleição de candidatos que venham das lutas dos trabalhadores, para defender governos dos trabalhadores. Ou seja, que apliquem um programa a serviço dos trabalhadores e dos jovens e não da burguesia.

Vamos buscar concretizar em cada cidade um programa dos trabalhadores para a saúde, educação e transporte públicos, contra todas as formas de opressão. Se ocorrerem greves durante a campanha, utilizaremos nosso tempo de TV para apoiá-las.

Em alguns locais (como em Belém, Aracaju e Natal) participaremos de frentes eleitorais com o PSOL, sempre apresentando nosso programa de forma independente.

Não é por acaso que nosso orçamento de campanha em São Paulo (200 mil) é quinhentas vezes menor que o de Haddad e Serra. Temos orgulho de não receber dinheiro da burguesia ou da corrupção. Nossa campanha será toda sustentada por doações dos trabalhadores e jovens que nos apoiam. Temos orgulho de que nossa campanha será feita integralmente pelos militantes do PSTU e os ativistas que concordem conosco. Não pagamos cabos eleitorais.

Você, que luta conosco nas campanhas salariais dos trabalhadores e nas mobilizações da juventude, venha se integrar em nossa campanha. Voto útil é um voto nos candidatos do PSTU, o partido das lutas e do socialismo.

mercredi 26 septembre 2012

Iridescente

Jorge Pinheiro, H Aviccena, São Paulo


Scrivere blu con rosso
Como ha detto Ezechiele

Pegarei você na minha rede
Ora, o figliuol d'uomo
Deixarei que o puxem para a praia

Scrivere rosso con blu
Ezechiele uguale ha detto

Jogarei você na terra
Io ho stabilito te come sentinella
Chamarei aves e bichos para comerem a sua carne

Scrivere blu, rosso, blu
Como ha detto Ezechiele

Cobrirei montanhas e vales com o seu cadáver pobre
Quando dunque udrai qualche parola dalla mia bocca
Cobrirei a terra com seu sangue podre

Scrivere rosso, blu, rosso
Ezechiele uguale ha detto

Nero blu e argento anche
È il rosso nel suo occhio di vetro!
Avvertili da parte mia.

mercredi 19 septembre 2012

Política e espiritualidade

Como estamos às vésperas de eleições aqui no Brasil, apresento algumas reflexões que podem ajudar. Boa leitura. JP.

Política e espiritualidade: a justiça enquanto mediação do amor e do poder
Jorge Pinheiro

Em 1977, morei a metade do ano em Lisboa. Era o terceiro ano da revolução dos cravos e o país vivia o caos. Em meio daquela confusão de partidos e propostas políticas, o humor e a criatividade dos anarquistas portugueses era um caso à parte. E entre as histórias que divulgavam, havia uma que pode servir de introdução ao tema de nossa conferência. Contavam eles que certa vez uma criança perguntou ao pai:

Papai, o que é a política?
Ao que o pai respondeu:

Eu trago o dinheiro para casa, por isso sou o capitalismo. A tua mãe controla o dinheiro, portanto é o governo. O vovô quer que tudo funcione a contento, por isso é o sindicato. Nossa empregada é a classe operária. E como estamos preocupados com você, para que esteja bem, você é o povo. E o teu irmãozinho é o futuro. Entendeu?
O garoto pensou e disse ao pai que precisa pensar um pouco mais. E foi para a cama dormir. Durante a noite, acordou com o choro do irmão que estava com a fralda suja. Foi ao quarto do avô, que roncava a sono solto. Como não sabia o que fazer foi ao quarto dos pais. Viu a mãe, que dormia profundamente... Dirigiu-se, então, ao quarto da empregada e viu seu pai com ela. Eles, porém, não se deram conta da presença do menino. Frustrado porque não conseguiu falar com ninguém, o garoto voltou para a sua cama.

Na manhã seguinte, o pai perguntou se ele já sabia explicar o que era política.

Sim, responde o menino: o capitalismo aproveita-se da classe operária, o sindicato não vê nada, o governo dorme, o povo é ignorado e o futuro fica na merda.

Sem dúvida, esta leitura anarquista será avaliada no final desta conferência, mas agora precisamos entender de forma mais acadêmica o que significa política. A palavra política nos leva a quatro conceitos distintos: a doutrina do direito e da moral, a teoria do Estado, a arte de governar e o estudo dos comportamentos intersubjetivos. Na abordagem que estamos fazendo, ao analisar as imbricações entre espiritualidade e política, nos interessa abordar a política enquanto doutrina do direito e da moral, pois a partir daí temos elementos para entender, também, a política sob as demais perspectivas.

O conceito de política enquanto doutrina do direito e da moral foi exposto por Aristóteles na Ética. Para o filósofo grego, a investigação daquilo que deve ser o bem pertence a mais arquitetônica das ciências. Pois, a política determina quais são as ciências necessárias nas cidades, quais as que cada cidadão deve aprender e até que ponto. [1]

Outro filósofo que desejamos utilizar nesta exposição, conscientes de que estamos deixando de lado muitos outros que analisaram a questão, é Spinoza. Em seu prefácio à quinta parte da sua Ética, onde trata da liberdade humana, Spinoza afirmou que sua preocupação era a potência da razão e a liberdade de alma ou beatitude. Nesse sentido, em Spinoza não podemos separar política e ética, ou como diz em seu Tratado teológico-político, “a justiça e todos os preceitos de razão, inclusive o amor ao próximo, somente pelos direitos de dominação recebem força das leis e ordenanças, ou seja, do decreto daqueles que possuem o direito de reger”. [2]

A partir de Aristóteles e de Spinoza podemos dizer que a política, enquanto conhecimento que trata dos aspectos práticos da ética, e que se apóia na antropologia filosófica ou teológica, por necessitar definir uma concepção de ser humano, remete a questões como a natureza e alcance da liberdade, os diversos tipos de liberdade e a natureza e formas de justiça.

Temas como estrutura e forma de governo, legitimidade do poder, fontes do poder, direitos e deveres dos membros de uma comunidade, assim como as relações entre os indivíduos e o Estado não podem ser entendidos e conscientemente vividos sem a compreensão das questões éticas e morais que aí estão presentes.

Assim, entendemos que a política deve responder de forma prática à pergunta pelo bem dos membros de determinada comunidade, traduzindo esta ação nas questões do poder e das estruturas de governo. Mas e a espiritualidade, tem algo a dizer à política?

De forma abrangente podemos dizer que espiritualidade é aquela relação do ser com a transcendência, que dá sentido à vida. O ser humano, unidade multiforme, tem em seu espírito não uma dimensão parcial da vida, mas como afirmava Lossky, irredutível. [3] Nesse sentido, o espírito é a totalidade da vida.

Nas situações de perda, falta de sentido e de ameaça à vida também há experiência com a transcendência, pois mesmo na negação dela há um sentido transcendente.

Quando assistimos, por exemplo, a um filme como Gandhi, [4] constatamos que o ser humano, não importando credo religioso, tem atributos potenciais para a espiritualidade. Nas religiões ditas primitivas, onde a distinção entre sagrado e profano é menos nítida, embora exista, é mais difícil para o cientista da religião delimitar e definir nessas comunidades o conceito de espiritualidade. Mas nas sociedades mais complexas, naquelas religiões onde o espaço e o tempo do sagrado e profano são mais bem definidos, envolvendo escolha, disciplina e prática levam a experiências avançadas de espiritualidade. Rudolf Otto, no seu livro O Sagrado classifica a experiência religiosa como algo intenso e profundo, misterium tremendum, já que traduz o numinoso para a realidade do crente, que diante daquilo que o esmaga desenvolve senso de temor. [5] Esse temor é um medo qualitativo, motivo para reflexão e energia que transformado em poder faz dele um adorador.

Tais experiências com o sagrado encorajam e incorporam no adorador aquilo que lhe é distinto. Mas, apesar dessa relação de aparente intimidade, de relacionamento, permanece sempre o abismo entre adorador e sagrado. Dessa maneira, este desejo de saltar sobre o abismo que separa humano e sagrado é em última instância o móvel que dará origem à espiritualidade, embora não seja propriamente espiritualidade, pois se faz presente na busca do artista, no amor do filósofo pela sabedoria e, porque não, nos anseios da juventude.

A busca frenética de bens e posses materiais, tão característica da sociedade ocidental no século 20, favorece a redescoberta da espiritualidade como experiência de vida coerente e recomendável.

Logicamente, dentro do próprio cristianismo, antigas correntes heterodoxas, como o gnosticismo, o mitraísmo e o maniqueísmo, herdeiras do pensamento oriental, assim como aquelas que buscavam a regeneração do mundo, herdeiras das religiões helênicas de mistério, ganharam popularidade por suas práticas ascéticas. E influenciaram, posteriormente, ainda que indiretamente, a espiritualidade dos pais do deserto e o monasticismo erudito dos capadócios, e de seus três grandes expoentes, Basílio, Gregório de Nissa e Gregório de Nazianzo. Esse processo, que a partir dos pais do deserto e dos capadócios vinha sofrendo uma mutação fundamental, a passagem da espiritualidade enquanto experiência pessoal e exclusiva a experiência comunitária e de piedade cristã, será expandido e ocidentalizado por Jerônimo, com a defesa do estudo histórico das Escrituras, Tertuliano, com seu olhar de jurista romano e, sobretudo, com Agostinho ao desenvolver na Cidade de Deus, nos livros 13 e 14, a idéia da participação no crente na vida divina através da graça.

Mas será com Gregório Magno (540-604), pai da espiritualidade medieval, que sistematizou o monasticismo ocidental e defendeu que a busca da visão de Deus implica em pureza de coração, humildade e serviço, que a espiritualidade, embora aparentemente enclausurada, transpõe os marcos da individualidade e passa a olhar para as comunidades ao redor. Assim, lectio, meditatio, oratio e intento nortearão os caminhos da espiritualidade na expansão do cristianismo no mundo bárbaro.

A partir desse momento em que a espiritualidade torna-se também prática e o caminho para Deus passa pelo serviço ao próximo, a espiritualidade tem algo a dizer à política. Nesse sentido, a espiritualidade dá sentido à vida cotidiana, torna-se além de mística e profética, política.

Com a queda do governo militar brasileiro ressurgiu entre os evangélicos brasileiros a discussão sobre a responsabilidade política da comunidade cristã. Foi e é importante para o cristianismo brasileiro que tal discussão se faça, mas ainda faltam aos pronunciamentos evangélicos consciência e maturidade da responsabilidade política que devem ter. A comunidade evangélica ainda tem que ultrapassar a espiritualidade privatizada em direção ao compromisso social efetivo e prático.

Paul Tillich em seu trabalho Amor, Poder e Justiça [6] pode nos ajudar a entender o caminho a percorrer na construção desse diálogo da espiritualidade com a política. Para ele, toda e qualquer política tem sempre uma mesma essência, que é o uso do poder. [7]

“L’être, c’est le pouvoir de l’être. Mais même dans son emploi métaphorique, le pouvoir suppose um objet sur lequel il peut exercer et démontrer son pouvoir”. [8]

Por isso, o poder determina os caminhos da sociedade. E que será chamado de poder político porque recorre à autoridade social instituída e possibilita ao Estado exercer coerção em nome do direito dos cidadãos.

As convicções pessoais acerca da soberania de Deus e do Cristo, que conquista principados e potestades, têm profundas implicações no modo em que pensamos a política. Assim, a espiritualidade privatizada ofusca o caminho a seguir e mascara práticas imorais através de atitudes aparentemente piedosas.

De novo, voltemos a afirmação de Tillich, que de certa forma já tinha sido exposta por Spinoza: não há política sem o uso de poder. Embora tal afirmação seja quase óbvia, é comum encontrarmos cristãos que apresentam propostas sobre o reino de Deus e políticas que buscam uma ordem política onde o amor sem poder possa superar o poder sem amor.

Ao analisar tais propostas, que ressuscitaram no século 20 a teoria social anabatista, que contrapõe as políticas de poder ao amor cristão, vemos que para esses evangélicos é impossível aceitar tais políticas e viver o estilo de vida do Jesus crucificado. Chamam à igreja a criar uma comunidade nova e a rejeitar qualquer forma de violência, representada na ordem econômica e política sob o poder do Estado.

Mas ao rejeitarem as políticas de poder da sociedade, de fato estavam aceitando qualquer uso do poder, pois não defenderam uma retirada do mundo ou um abandono da missão da igreja no mundo. Neste sentido, diferiam dos fundamentalismos separatistas. O que estavam propondo era a subordinação radical dos poderes do mundo ao Cristo. Acreditavam que o fracasso da política criaria as bases para a manifestação do poder de Deus através do testemunho da comunidade cristã, que enquanto agente profético apontava o caminho da redenção do mundo.

Mas o que deve ser reconhecido é que tal pensamento faz crítica política, mas rejeita envolvimento e prática políticas como estratégia. O que em última instância significa uma estratégia apolítica que rejeita o poder, rejeitando também a política.

Ora, se a comunidade evangélica tem uma moral política, deve exercer poder e utilizar os meios que possibilitem chegar aos fins que busca. Rejeitar o poder é rejeitar políticas. Tal rejeição pode até ser aceita, desde que seus agentes tenham clara a opção que estão fazendo. O problema é que fizeram uma opção pela renovação da consciência moral da comunidade evangélica, eles próprios rejeitaram a política como meio de viabilizar a opção social escolhida.

Ora, enquanto a consciência evangélica acreditar que a omissão diante da política e do poder favorece à instalação do reino de Deus, teremos o apoliticismo como política evangélica, e isso só fortalece os grupos instalados no poder. E, ao contrário do que pretendem modernos fundamentalismos, não vai estabelecer neste mundo o reino do Cristo.

Se não é possível falar de política, sem falar de poder, fica uma outra questão, que tem a ver com o pensamento cristão: amor e poder são compatíveis? A pergunta procede porque o cristão e a espiritualidade pós-gregoriana remetem à prática e ao serviço ao próximo. Mas, sabemos que em nome do amor, da espiritualidade e do serviço ao próximo muitos cristãos negam a possibilidade de todo e qualquer poder.

“... pouvoir de l’être n’est pas une identité morte, mais lê processus dynamique dans lequel l’être n’est se separe de lui-même et retourne à lui-même. Le pouvoir,d’autre part, est d’autant plus grand, que la séparation vaincue a été plus grande.Lê processus par lequel est reuni ce qui était separe s’appelle l’amour. Plus il y d’amour réunificateur, plus il y a de non-être vaincu, et plus il a de pouvoir d’être. L’amour est la base, non la négation du puvoir”. [9]

Sabemos, como nos mostra Tillich, que o amor do qual estamos falando é um ato da vontade. Não se pode forçar uma pessoa a amar ninguém. Porém, atos de ordem política contêm elementos involuntários. Assim, porque o poder do Estado é associado com ações que vão ou estão fora de nossa vontade e o ato de amor associado com ações do querer, concluímos que a ação do Estado extrapola o amor porque este não pode ser forçado.

Outro fato importante, é que o amor é algo que deve ser mediado pessoalmente. Como a natureza voluntária do amor necessita a existência de uma pessoa que o ative, o amor sempre é pessoal. O Estado, como qualquer outra ordem social instituída, tem uma existência objetiva e alcança seus fins indiscriminadamente. A relação do cidadão com o Estado é eu/instituição, em lugar da relação eu/você, que possibilita a mediação pessoal que ativa o amor.

Além disso, o amor é sempre sacrificial. Ou seja, possibilita ações que a despeito dos meus interesses particulares, imediatos, responde ao bem-estar do outro. Conscientemente, é um perder para que outro ganhe. Sacrificamos direitos, sem estar forçados por obrigação legal, para que o outro seja beneficiado.

Assim, por ser livremente determinado, o amor vai além de uma obrigação moral ordinária. Cumprir obrigação moral é responder à necessidade moral, é um ato de dever em lugar de um testemunho moral livre. É importante entender que esse processo de ir além da obrigação moral envolve, como paradoxo, uma vontade moral implícita.

Resumindo, podemos dizer que o amor é voluntário e livremente entregue, que envolve volição moral, deve ser mediado pessoalmente, é sacrificial. E, finalmente, o amor vai além do dever ou da obrigação moral, embora implique, paradoxalmente, em obrigação moral ou realização de um dever de origem.

Mas política, por outro lado, envolve servidão involuntária. Sua natureza implica no uso de coerção e força para alcançar seus fins. É organização formal e opera impessoalmente. Os políticos e aqueles que atuam ao nível do Estado se ocupam de ações que levam terceiros ao sacrifício, por isso a necessidade da força e da coerção e, em última instância, do próprio Estado. A maioria da população geralmente se considera satisfeita quando vive sob determinada ordem política que pelo menos responde às exigências de sua obrigação moral. E quando isso não acontece nos sentimos tentados à rebelião contra o Estado, a fim de exigir dele a realização daquilo que consideramos sua obrigação moral. Fazendo assim agimos no sentido de que não se torne totalitário, ou seja, negando os limites de seu poder de Estado ou passando por cima das obrigações que tem com os cidadãos.

Por isso, usar o poder do Estado como meio de realizar o amor entre os cidadãos é um contra-senso, pois não podemos forçar ou coagir ninguém ao amor. Tal coesão destruiria também a obrigação moral do Estado, que baliza a diferença entre poder limitado e governo totalitário.

Dado a dualidade entre poder e amor e o conflito aparente entre poder sem amor e amor sem poder, como nos situaremos frente à política? Colocada a questão nestes termos, de fato é muito difícil escolher entre ser um castrado político, mas cidadão do reino, e ser um político atuante à margem da salvação. Como então seguir o caminho do amor cristão sem rebaixar a nobreza do amor no altar do poder?

Há um conceito, presente na teologia cristã, que nos leva a alternativas de reconciliação entre poder sem amor e amor sem poder. É o conceito de justiça.

A recusa em reconhecer as reivindicações da justiça como universais e invioláveis, cobrou um alto preço, no correr da história, à política e à teologia em termos da própria integridade da igreja. Por exemplo, a teologia de Albrecht Ritschl sofreu deste erro. Ritschl contrapôs poder sem amor e amor sem poder. Fazendo assim, criou um sistema teológico que contrastou o Deus de poder do Antigo Testamento ao Deus de amor do Novo Testamento. No processo abandonou o conceito do julgamento de Deus e retribuição aos pecadores, adotou uma visão universalista de salvação e passou a ver na igreja um amor moral que nada de substantivo apresenta.

Ao nível prático, o amor moral torna-se, então, irrelevante para as questões políticas porque, nas palavras de Reinhold Niebuhr, apresenta a lei de amor como solução simplória para qualquer problema da sociedade. [10] Por isso, o conceito de justiça passa a ter tanta relevância para o cristão quanto o conceito de amor.

É necessário reconhecer que as reivindicações de justiça são universais, eternas e objetivas, e têm como fonte a própria pessoalidade do Deus justo. Tal afirmação, se por um lado, traduz o fato teológico de que a justiça de Deus se faz manifesta nas ordenanças da criação, por outro nos leva a perguntar porque os elementos substantivos e características de justiça nunca foram consensuais para a humanidade?

A definição mais aceita de justiça é o de dar a toda pessoa aquilo que por direito lhe pertence. Mas aí de novo temos um problema: o que por direito lhe pertence? Esta pergunta nos obriga, enquanto cristãos evangélicos, a analisar com atenção nosso conceito tradicional de justiça.

“La justice est la forme dans lequelle lê pouvoir de l’être se réalise, la justice doit être en rapport avec la dynamique du pouvoir. Elle doit être capable de donner une forme aux rencontre de l’être avec un autre être. Le problème de la justice dans la recontre vient du fait qu’il est impossible de prédire comment s’organisera le rapport des forces au sein de telle rencontre. A chacun des moments, il existe de nombreuses possibilités. Et chacune de ces possibilités demande une forme particuliére”. [11]

Assim, conforme Tillich, as reivindicações de justiça só podem ser operacionais numa comunidade política se forem definidas com um grau significante de particularidade. Justiça, nas palavras de Niebuhr, requer julgamentos distintos de reivindicações contraditórias. [12] Justiça como uma abstração não basta. É necessário trabalhar fora da compreensão de justiça no particular, para não cair na armadilha do moralismo político, quando não se tem nada a oferecer quando se fala de forma idêntica em tempos, espaços e situações particulares diferentes.

Um exemplo clássico da questão está presente na Política de Aristóteles. Aristóteles diz que se faz justiça quando se dá a cada cidadão aquilo que lhe é por direito. Dois problemas nascem dessa afirmação: se todas as pessoas têm igualdade moral, então essa igualdade deve se estender a todo grupo social, às relações econômicas e políticas em que se fazem presentes. E se as pessoas são desiguais nas contribuições que fazem à sociedade, então essas desigualdades devem se traduzir nos grupos sociais e nas relações econômicas e políticas. Ambos os argumentos, sem dúvida, têm suas razões de ser. E, no século 20, fizeram parte do debates político de entre socialistas e liberais.

Por encontrar dificuldades na formulação prática do conceito de justiça, a teoria política evangélica contemporânea tem rejeitado o conceito de justiça universalmente conhecido como ordenança da criação, enquanto compreensão de que todas as pessoas são imagem de Deus e têm um conhecimento do bem. Donde, todas as pessoas compreendem a necessidade de justiça. E defendem um novo conceito, de ordenança da redenção. Para esses cristãos, devido à queda humana, não existe um conhecimento seguro de justiça fora da revelação. Na verdade, é muito difícil discutir quando se parte da natureza caída e da crença de que a justiça era perfeita antes da queda. Apesar dessa leitura soteriológica, acredito, assim como Tillich, que a melhor base para a compreensão da justiça ainda está no conceito da justiça que parte da ordenança da criação.

Rejeitar a ordenança da criação como algo que está fora da razão, por não ser revelada, é um problema de epistemológico. Tal postura afirma que a razão não tem nada que dizer fora da revelação.

Esta posição tem conseqüências práticas muito sérias para as estratégias de ação política, porque só a partir da fé e da revelação se pode falar com autoridade sobre justiça. Ou seja, os cristãos não podem, em política, se comunicar ou trabalhar com não-cristãos. Não pode haver nenhuma base secular no envolvimento político dos cristãos. Assim, quando nega o conhecimento natural do bem político, a única alternativa para o cristão é omitir-se, porque política é coisa mundana, caída, ou estabelecer uma política cristã sectária.

A leitura da justiça a partir da universalidade da imago Dei responde aos questionamentos contemporâneos levantados pelos cristãos em relação à política, enquanto a leitura a partir das ordenanças da redenção isola, aliena e separa o cristão da prática política.

O movimento evangélico fundamentalista buscou de forma acrítica impor normas a partir da revelação, definir caminhos de retidão para a sociedade, com a finalidade de atingir os não-crentes. Isto tem levado às cruzadas fundamentalistas norte-americanas que buscam fazer dos Estados Unidos uma nação cristã à força. E no Brasil levou à omissão que favoreceu a presença de políticas conservadoras e de direita dentro das igrejas.

Outros pensadores evangélicos, neo-ortodoxos, procuraram substituir as ordenanças da redenção pelas ordenanças crísticas, com a finalidade de trazer o amor moral de Jesus para as normas de justiça, que seriam assim emprenhadas pelo espírito de amor. E o fundamentalismo anabatista e batista substituiu as ordenanças da redenção por ordenanças escatológicas, buscando a partir da moral do reino futuro, fazer todas as coisas novas e conquistar os poderes caídos.

Ora, a justiça deve estar baseada em reivindicações universais de direito. Estabelecer justiça em base de autoridade sectária é violentar a compreensão de que todas as pessoas são imagem de Deus e têm um conhecimento do bem. Donde, todas as pessoas compreendem a necessidade de justiça.

Ora, assim, justiça deve ser definida dentro do contexto de uma determinada ordem social e deve ser aplicada em termos de particulares, pois fundamentar o argumento da justiça apenas na pessoa não é o bastante.

Devido à universalidade das normas de justiça e à universalidade da consciência de justiça, uma pessoa pode ter procedimentos e práticas que aprofundem políticas e programas que favorecem a justiça. É exatamente isso que os direitos civis buscam trazer para as democracias constitucionais. É o reconhecimento de que os meios empregados não devem violentar os fins procurados.

É necessário, ainda, reconhecer que as normas de justiça são objetivas e que elas existem independentemente de volição humana. Conseqüentemente, podem ser feitas reivindicações no nome de justiça e podem ser rejeitadas reivindicações no nome de justiça. Considerando que o amor deve ser volitivamente entregue, justiça exige reconhecimento independente da vontade humana.

O Deus de amor também é um Deus de justiça, amor e justiça não podem ser contrapostas. O amor pode ir além da justiça, mas nunca pode buscar menos que a justiça. O amor pode inspirar reverência à justiça, mas nunca pode ser desculpa para esquecer as reivindicações da justiça.

Se a justiça é uma qualidade objetiva que estabelece direitos e obrigações, projetos podem e devem ser desenvolvidos pelos indivíduos e sociedades para criar ações que sirvam as reivindicações de justiça. Dado o fato que nem todas as pessoas buscam a justiça de boa vontade, o poder pode ser usado legitimamente quando serve à causa de justiça. Dizemos que o amor não pode usar o poder para alcançar seus fins, mas que a justiça têm que usar o poder para alcançar seus fins.

Tais distinções são necessárias porque não se pode dizer ao Estado que ame, porque suas ações têm por base o poder, e porque as reivindicações do amor estão arraigadas em reconhecimento pessoal e particular ao invés de normas universais de justiça. Como a igreja cristã proclama o Evangelho, sensibiliza a comunidade para as demandas da justiça. Conseqüentemente, permanece a justiça enquanto serviço de amor.

Assim, usar o Estado como um instrumento de amor leva a um Estado sectário, quando não totalitário. Por causa disso, as normas distintivas da justiça são usadas para delimitar o que é meu e o que é teu. Negar a justiça em nome do amor é negar os direitos civis que são a base de qualquer governo constitucional.

O conceito de justiça aliado aos de amor e poder apresenta as alternativas para o protestantismo evangélico ao pensar a ação política. A política, com base no poder, cumpre uma função legítima quando serve as reivindicações da justiça. Amar, sem rejeitar o poder, indo além dos direitos e deveres estabelecidos pela justiça possibilita um testemunho de justiça e uma motivação moral que coroam o ato justo. Amar, através da mediação pessoal, complementa a justiça em suas demandas objetivas.

Essa exposição carece de ilustrações. Por isso, vamos ouvir um ex-ativista da Juventude Universitária Católica e ex-combatente da Ação Popular, Herbert de Souza, mais conhecido como Betinho. Em artigo publicado em 1993, Betinho afirmou que a “fome é exclusão. Da terra, da renda, do salário, da educação, da economia, da vida e da cidadania. Quando uma pessoa chega a não ter o que comer, é porque tudo o mais já lhe foi negado. É uma forma de cerceamento moderno ou de exílio. A morte em vida. E exílio da terra. A alma da fome é política”. [13]

É interessante que o ativista cristão e ex-combatente marxista afirme: a alma da fome é a política. Mas que política? E ele explica:

A história do Brasil pode ser vista de vários modos e sob muitos ângulos, mas para a maioria ela é a história da indústria da fome e da miséria. Um modo perverso de dividir o mundo em dois, produzindo um gigantesco apartheid. Nesse campo, fizemos alguns milagres de desenvolvimento. Um dos maiores PIB do mundo junto com a pobreza e a miséria mais espantosa. Aqui não houve lugar para o acaso. Tudo foi produzido como obra calculada. Fria.

O resultado está aí diante dos olhos de todos. Uma parte ostensiva, rica, branca, educada, motorizada, dolarizada. Outra parte imensa na sombra, negra, analfabeta, dando duro todos os dias, comendo o pão que o diabo amassou em cruzeiros, reais. Dois povos no mesmo país, na mesma cidade, muito próximos em geografia e infinitamente distante como experiência de humanidade.

É gente que começa o dia sem o que comer e chega à noite sem nada. Pode-se imaginar o quadro que é o de todo dia para milhões de seres humanos: a fome de comida e de tudo. A essa altura da vida da humanidade é incrível que isso aconteça. Como morrer de fome ao lado de 70 milhões de toneladas de grãos, de 8,5 milhões de hectares de terra, se todos esses brasileiros miseráveis ficariam saciados só com os 20% do desperdício?

O clamor de Betinho é um clamor para que a justiça dê sentido humano à política. E ele, já morto, acreditava nessa possibilidade, quando diz no artigo:

É assustador perceber com que naturalidade fomos virando um país de miseráveis, com que rapidez fomos produzindo milhões de indigentes. Acabar com essa naturalidade, recuperar o sentido de indignação frente à degradação humana, reabsolutizar a pessoa como humana e eixo da vida da ação política é fundamental para transformar a luta no Brasil contra a fome e a miséria num imenso processo de reformulação do Brasil e de nossa própria dignidade. Por isso acabar com a fome não é só dar comida, e acabar com a pobreza não é só gerar emprego; é reconstruir radicalmente toda a sociedade, começando por incorporar agora 32 milhões de seres humanos ao mapa da cidadania.

Por isso o ato de solidariedade, por menor que seja, é tão importante. É um primeiro movimento no sentido oposto a tudo o que se produziu até agora. Uma mudança de paradigma, de norte, de eixo, o começo de algo totalmente diferente. Como um olhar novo que mostra todas as relações, teorias, propostas, valores e práticas, restabelecendo as bases de uma reconstrução radical de toda a sociedade. Se a exclusão produziu a miséria, a união destruirá a produção da miséria, produzirá a cidadania plena, geral e irrestrita. Democrática.

Isso foi dito há dez anos. Luciano Mendes de Almeida [14] contextualiza o clamor místico, profético e político de Betinho. Diz o pastor:

Considero ainda mais grave a condição de quem não alcança ou perde o sentido da vida (...). Há um vazio ontológico pela falta de discernimento dos verdadeiros valores e pela solidão profunda de quem não se abre à presença e ao amor de Deus.

O ensinamento de Jesus dissipa as trevas e dúvidas e anuncia a boa nova, valores, critérios e atitudes que dão pleno sentido à vida. A injustiça será vencida pelo reconhecimento da dignidade da pessoa a luz de Deus, convertendo-os à convivência fraterna e à partilha. O perdão do Evangelho é a única resposta definitiva contra a violência e inicia um processo de apreço, respeito e diálogo, superando toda exclusão social e aproximando-nos uns dos outros, como irmãos e irmãs, na concórdia e na paz.

As palavras pastorais de Luciano Mendes de Almeida podem parecer, à primeira vista, que estão longe da ação política, mas na verdade iluminam a história anarquista contada no início dessa conferência. Apesar de seu humor e tom crítico, a leitura anarquista da política carece de algo fundamental: a busca do bem e a exigência de justiça. Ao negar a justiça, a política torna-se escrava do poder. Perde o eixo da vida da ação política, conforme afirmou Betinho. Ou, agora nas palavras de Luciano Mendes de Almeida, a injustiça será vencida pelo reconhecimento da dignidade da pessoa, e esta é uma tarefa política. Para conquistar tal dignidade, o poder deve ser exercido.

Assim, as análises ontológicas de Tillich nos levam à compreensão de que a síntese deste diálogo pertinente entre política e espiritualidade é a justiça.

Notas

[1] Aristóteles, A Ética, São Paulo, Atena Editora, 1950, 1ª parte, Livro 1o, II, 2-4, pp. 15 e 16.
[2] Benedict de Spinoza, Writings on Polital Philosophy, New York, Appleton Century Crofts Inc., p. 51.
[3] Vladimir Lossky, A l’image et la ressemblance de Dieu, Paris, 1967, p. 118.
[4] Gandhi, 1982, filme dirigido por Richard Attenborough, com Ben Kingsley e Candice Bergen.
[5] Rudolf Otto, O Sagrado, Lisboa, Edições 70, 1992, pp. 21-22.
[6] Paul Tillich, Amour, pouvoir et justice, Analyses ontologiques et applications éthiques, Revue d’Histoire et de Philosophie Religieuses, Paris, Presses Universitaires de France, 1963 et 1964, números 4 et 5.
[7] Idem, op. cit., no. 4, p. 334.
[8] Idem, op. cit., no. 4, p. 339.
[9] Idem, op. cit., no. 4, pp. 355-356.
[10] Reinhold Niebuhr, Políticas, ed. Harry R. Davis e Robert C. Good, Scribners, 1960, p. 163.
[11] Idem, op. cit., no. 4, p. 360.
[12] Reinhold Niebuhr, Amor e Justiça, ed. D. B. Robertson, World, 1967, p. 28.
[13] Herbert de Souza e Carla Rodrigues, A Alma da Fome é Política, artigo publicado no Jornal do Brasil, 12 setembro de 1993, apud, Ética e cidadania, São Paulo, Moderna, 1995, pp.22-25.
[14] Dom Luciano Mendes de Almeida, A quem iremos?, Folha de S. Paulo, 6/3/2004, p. 2.

Política e espiritualidade

Como estamos às vésperas de eleições aqui no Brasil, apresento algumas reflexões que podem ajudar. Boa leitura. JP.

Política e espiritualidade: a justiça enquanto mediação do amor e do poder
Jorge Pinheiro

Em 1977, morei a metade do ano em Lisboa. Era o terceiro ano da revolução dos cravos e o país vivia o caos. Em meio daquela confusão de partidos e propostas políticas, o humor e a criatividade dos anarquistas portugueses era um caso à parte. E entre as histórias que divulgavam, havia uma que pode servir de introdução ao tema de nossa conferência. Contavam eles que certa vez uma criança perguntou ao pai:

Papai, o que é a política?
Ao que o pai respondeu:

Eu trago o dinheiro para casa, por isso sou o capitalismo. A tua mãe controla o dinheiro, portanto é o governo. O vovô quer que tudo funcione a contento, por isso é o sindicato. Nossa empregada é a classe operária. E como estamos preocupados com você, para que esteja bem, você é o povo. E o teu irmãozinho é o futuro. Entendeu?
O garoto pensou e disse ao pai que precisa pensar um pouco mais. E foi para a cama dormir. Durante a noite, acordou com o choro do irmão que estava com a fralda suja. Foi ao quarto do avô, que roncava a sono solto. Como não sabia o que fazer foi ao quarto dos pais. Viu a mãe, que dormia profundamente... Dirigiu-se, então, ao quarto da empregada e viu seu pai com ela. Eles, porém, não se deram conta da presença do menino. Frustrado porque não conseguiu falar com ninguém, o garoto voltou para a sua cama.

Na manhã seguinte, o pai perguntou se ele já sabia explicar o que era política.

Sim, responde o menino: o capitalismo aproveita-se da classe operária, o sindicato não vê nada, o governo dorme, o povo é ignorado e o futuro fica na merda.

Sem dúvida, esta leitura anarquista será avaliada no final desta conferência, mas agora precisamos entender de forma mais acadêmica o que significa política. A palavra política nos leva a quatro conceitos distintos: a doutrina do direito e da moral, a teoria do Estado, a arte de governar e o estudo dos comportamentos intersubjetivos. Na abordagem que estamos fazendo, ao analisar as imbricações entre espiritualidade e política, nos interessa abordar a política enquanto doutrina do direito e da moral, pois a partir daí temos elementos para entender, também, a política sob as demais perspectivas.

O conceito de política enquanto doutrina do direito e da moral foi exposto por Aristóteles na Ética. Para o filósofo grego, a investigação daquilo que deve ser o bem pertence a mais arquitetônica das ciências. Pois, a política determina quais são as ciências necessárias nas cidades, quais as que cada cidadão deve aprender e até que ponto. [1]

Outro filósofo que desejamos utilizar nesta exposição, conscientes de que estamos deixando de lado muitos outros que analisaram a questão, é Spinoza. Em seu prefácio à quinta parte da sua Ética, onde trata da liberdade humana, Spinoza afirmou que sua preocupação era a potência da razão e a liberdade de alma ou beatitude. Nesse sentido, em Spinoza não podemos separar política e ética, ou como diz em seu Tratado teológico-político, “a justiça e todos os preceitos de razão, inclusive o amor ao próximo, somente pelos direitos de dominação recebem força das leis e ordenanças, ou seja, do decreto daqueles que possuem o direito de reger”. [2]

A partir de Aristóteles e de Spinoza podemos dizer que a política, enquanto conhecimento que trata dos aspectos práticos da ética, e que se apóia na antropologia filosófica ou teológica, por necessitar definir uma concepção de ser humano, remete a questões como a natureza e alcance da liberdade, os diversos tipos de liberdade e a natureza e formas de justiça.

Temas como estrutura e forma de governo, legitimidade do poder, fontes do poder, direitos e deveres dos membros de uma comunidade, assim como as relações entre os indivíduos e o Estado não podem ser entendidos e conscientemente vividos sem a compreensão das questões éticas e morais que aí estão presentes.

Assim, entendemos que a política deve responder de forma prática à pergunta pelo bem dos membros de determinada comunidade, traduzindo esta ação nas questões do poder e das estruturas de governo. Mas e a espiritualidade, tem algo a dizer à política?

De forma abrangente podemos dizer que espiritualidade é aquela relação do ser com a transcendência, que dá sentido à vida. O ser humano, unidade multiforme, tem em seu espírito não uma dimensão parcial da vida, mas como afirmava Lossky, irredutível. [3] Nesse sentido, o espírito é a totalidade da vida.

Nas situações de perda, falta de sentido e de ameaça à vida também há experiência com a transcendência, pois mesmo na negação dela há um sentido transcendente.

Quando assistimos, por exemplo, a um filme como Gandhi, [4] constatamos que o ser humano, não importando credo religioso, tem atributos potenciais para a espiritualidade. Nas religiões ditas primitivas, onde a distinção entre sagrado e profano é menos nítida, embora exista, é mais difícil para o cientista da religião delimitar e definir nessas comunidades o conceito de espiritualidade. Mas nas sociedades mais complexas, naquelas religiões onde o espaço e o tempo do sagrado e profano são mais bem definidos, envolvendo escolha, disciplina e prática levam a experiências avançadas de espiritualidade. Rudolf Otto, no seu livro O Sagrado classifica a experiência religiosa como algo intenso e profundo, misterium tremendum, já que traduz o numinoso para a realidade do crente, que diante daquilo que o esmaga desenvolve senso de temor. [5] Esse temor é um medo qualitativo, motivo para reflexão e energia que transformado em poder faz dele um adorador.

Tais experiências com o sagrado encorajam e incorporam no adorador aquilo que lhe é distinto. Mas, apesar dessa relação de aparente intimidade, de relacionamento, permanece sempre o abismo entre adorador e sagrado. Dessa maneira, este desejo de saltar sobre o abismo que separa humano e sagrado é em última instância o móvel que dará origem à espiritualidade, embora não seja propriamente espiritualidade, pois se faz presente na busca do artista, no amor do filósofo pela sabedoria e, porque não, nos anseios da juventude.

A busca frenética de bens e posses materiais, tão característica da sociedade ocidental no século 20, favorece a redescoberta da espiritualidade como experiência de vida coerente e recomendável.

Logicamente, dentro do próprio cristianismo, antigas correntes heterodoxas, como o gnosticismo, o mitraísmo e o maniqueísmo, herdeiras do pensamento oriental, assim como aquelas que buscavam a regeneração do mundo, herdeiras das religiões helênicas de mistério, ganharam popularidade por suas práticas ascéticas. E influenciaram, posteriormente, ainda que indiretamente, a espiritualidade dos pais do deserto e o monasticismo erudito dos capadócios, e de seus três grandes expoentes, Basílio, Gregório de Nissa e Gregório de Nazianzo. Esse processo, que a partir dos pais do deserto e dos capadócios vinha sofrendo uma mutação fundamental, a passagem da espiritualidade enquanto experiência pessoal e exclusiva a experiência comunitária e de piedade cristã, será expandido e ocidentalizado por Jerônimo, com a defesa do estudo histórico das Escrituras, Tertuliano, com seu olhar de jurista romano e, sobretudo, com Agostinho ao desenvolver na Cidade de Deus, nos livros 13 e 14, a idéia da participação no crente na vida divina através da graça.

Mas será com Gregório Magno (540-604), pai da espiritualidade medieval, que sistematizou o monasticismo ocidental e defendeu que a busca da visão de Deus implica em pureza de coração, humildade e serviço, que a espiritualidade, embora aparentemente enclausurada, transpõe os marcos da individualidade e passa a olhar para as comunidades ao redor. Assim, lectio, meditatio, oratio e intento nortearão os caminhos da espiritualidade na expansão do cristianismo no mundo bárbaro.

A partir desse momento em que a espiritualidade torna-se também prática e o caminho para Deus passa pelo serviço ao próximo, a espiritualidade tem algo a dizer à política. Nesse sentido, a espiritualidade dá sentido à vida cotidiana, torna-se além de mística e profética, política.

Com a queda do governo militar brasileiro ressurgiu entre os evangélicos brasileiros a discussão sobre a responsabilidade política da comunidade cristã. Foi e é importante para o cristianismo brasileiro que tal discussão se faça, mas ainda faltam aos pronunciamentos evangélicos consciência e maturidade da responsabilidade política que devem ter. A comunidade evangélica ainda tem que ultrapassar a espiritualidade privatizada em direção ao compromisso social efetivo e prático.

Paul Tillich em seu trabalho Amor, Poder e Justiça [6] pode nos ajudar a entender o caminho a percorrer na construção desse diálogo da espiritualidade com a política. Para ele, toda e qualquer política tem sempre uma mesma essência, que é o uso do poder. [7]

“L’être, c’est le pouvoir de l’être. Mais même dans son emploi métaphorique, le pouvoir suppose um objet sur lequel il peut exercer et démontrer son pouvoir”. [8]

Por isso, o poder determina os caminhos da sociedade. E que será chamado de poder político porque recorre à autoridade social instituída e possibilita ao Estado exercer coerção em nome do direito dos cidadãos.

As convicções pessoais acerca da soberania de Deus e do Cristo, que conquista principados e potestades, têm profundas implicações no modo em que pensamos a política. Assim, a espiritualidade privatizada ofusca o caminho a seguir e mascara práticas imorais através de atitudes aparentemente piedosas.

De novo, voltemos a afirmação de Tillich, que de certa forma já tinha sido exposta por Spinoza: não há política sem o uso de poder. Embora tal afirmação seja quase óbvia, é comum encontrarmos cristãos que apresentam propostas sobre o reino de Deus e políticas que buscam uma ordem política onde o amor sem poder possa superar o poder sem amor.

Ao analisar tais propostas, que ressuscitaram no século 20 a teoria social anabatista, que contrapõe as políticas de poder ao amor cristão, vemos que para esses evangélicos é impossível aceitar tais políticas e viver o estilo de vida do Jesus crucificado. Chamam à igreja a criar uma comunidade nova e a rejeitar qualquer forma de violência, representada na ordem econômica e política sob o poder do Estado.

Mas ao rejeitarem as políticas de poder da sociedade, de fato estavam aceitando qualquer uso do poder, pois não defenderam uma retirada do mundo ou um abandono da missão da igreja no mundo. Neste sentido, diferiam dos fundamentalismos separatistas. O que estavam propondo era a subordinação radical dos poderes do mundo ao Cristo. Acreditavam que o fracasso da política criaria as bases para a manifestação do poder de Deus através do testemunho da comunidade cristã, que enquanto agente profético apontava o caminho da redenção do mundo.

Mas o que deve ser reconhecido é que tal pensamento faz crítica política, mas rejeita envolvimento e prática políticas como estratégia. O que em última instância significa uma estratégia apolítica que rejeita o poder, rejeitando também a política.

Ora, se a comunidade evangélica tem uma moral política, deve exercer poder e utilizar os meios que possibilitem chegar aos fins que busca. Rejeitar o poder é rejeitar políticas. Tal rejeição pode até ser aceita, desde que seus agentes tenham clara a opção que estão fazendo. O problema é que fizeram uma opção pela renovação da consciência moral da comunidade evangélica, eles próprios rejeitaram a política como meio de viabilizar a opção social escolhida.

Ora, enquanto a consciência evangélica acreditar que a omissão diante da política e do poder favorece à instalação do reino de Deus, teremos o apoliticismo como política evangélica, e isso só fortalece os grupos instalados no poder. E, ao contrário do que pretendem modernos fundamentalismos, não vai estabelecer neste mundo o reino do Cristo.

Se não é possível falar de política, sem falar de poder, fica uma outra questão, que tem a ver com o pensamento cristão: amor e poder são compatíveis? A pergunta procede porque o cristão e a espiritualidade pós-gregoriana remetem à prática e ao serviço ao próximo. Mas, sabemos que em nome do amor, da espiritualidade e do serviço ao próximo muitos cristãos negam a possibilidade de todo e qualquer poder.

“... pouvoir de l’être n’est pas une identité morte, mais lê processus dynamique dans lequel l’être n’est se separe de lui-même et retourne à lui-même. Le pouvoir,d’autre part, est d’autant plus grand, que la séparation vaincue a été plus grande.Lê processus par lequel est reuni ce qui était separe s’appelle l’amour. Plus il y d’amour réunificateur, plus il y a de non-être vaincu, et plus il a de pouvoir d’être. L’amour est la base, non la négation du puvoir”. [9]

Sabemos, como nos mostra Tillich, que o amor do qual estamos falando é um ato da vontade. Não se pode forçar uma pessoa a amar ninguém. Porém, atos de ordem política contêm elementos involuntários. Assim, porque o poder do Estado é associado com ações que vão ou estão fora de nossa vontade e o ato de amor associado com ações do querer, concluímos que a ação do Estado extrapola o amor porque este não pode ser forçado.

Outro fato importante, é que o amor é algo que deve ser mediado pessoalmente. Como a natureza voluntária do amor necessita a existência de uma pessoa que o ative, o amor sempre é pessoal. O Estado, como qualquer outra ordem social instituída, tem uma existência objetiva e alcança seus fins indiscriminadamente. A relação do cidadão com o Estado é eu/instituição, em lugar da relação eu/você, que possibilita a mediação pessoal que ativa o amor.

Além disso, o amor é sempre sacrificial. Ou seja, possibilita ações que a despeito dos meus interesses particulares, imediatos, responde ao bem-estar do outro. Conscientemente, é um perder para que outro ganhe. Sacrificamos direitos, sem estar forçados por obrigação legal, para que o outro seja beneficiado.

Assim, por ser livremente determinado, o amor vai além de uma obrigação moral ordinária. Cumprir obrigação moral é responder à necessidade moral, é um ato de dever em lugar de um testemunho moral livre. É importante entender que esse processo de ir além da obrigação moral envolve, como paradoxo, uma vontade moral implícita.

Resumindo, podemos dizer que o amor é voluntário e livremente entregue, que envolve volição moral, deve ser mediado pessoalmente, é sacrificial. E, finalmente, o amor vai além do dever ou da obrigação moral, embora implique, paradoxalmente, em obrigação moral ou realização de um dever de origem.

Mas política, por outro lado, envolve servidão involuntária. Sua natureza implica no uso de coerção e força para alcançar seus fins. É organização formal e opera impessoalmente. Os políticos e aqueles que atuam ao nível do Estado se ocupam de ações que levam terceiros ao sacrifício, por isso a necessidade da força e da coerção e, em última instância, do próprio Estado. A maioria da população geralmente se considera satisfeita quando vive sob determinada ordem política que pelo menos responde às exigências de sua obrigação moral. E quando isso não acontece nos sentimos tentados à rebelião contra o Estado, a fim de exigir dele a realização daquilo que consideramos sua obrigação moral. Fazendo assim agimos no sentido de que não se torne totalitário, ou seja, negando os limites de seu poder de Estado ou passando por cima das obrigações que tem com os cidadãos.

Por isso, usar o poder do Estado como meio de realizar o amor entre os cidadãos é um contra-senso, pois não podemos forçar ou coagir ninguém ao amor. Tal coesão destruiria também a obrigação moral do Estado, que baliza a diferença entre poder limitado e governo totalitário.

Dado a dualidade entre poder e amor e o conflito aparente entre poder sem amor e amor sem poder, como nos situaremos frente à política? Colocada a questão nestes termos, de fato é muito difícil escolher entre ser um castrado político, mas cidadão do reino, e ser um político atuante à margem da salvação. Como então seguir o caminho do amor cristão sem rebaixar a nobreza do amor no altar do poder?

Há um conceito, presente na teologia cristã, que nos leva a alternativas de reconciliação entre poder sem amor e amor sem poder. É o conceito de justiça.

A recusa em reconhecer as reivindicações da justiça como universais e invioláveis, cobrou um alto preço, no correr da história, à política e à teologia em termos da própria integridade da igreja. Por exemplo, a teologia de Albrecht Ritschl sofreu deste erro. Ritschl contrapôs poder sem amor e amor sem poder. Fazendo assim, criou um sistema teológico que contrastou o Deus de poder do Antigo Testamento ao Deus de amor do Novo Testamento. No processo abandonou o conceito do julgamento de Deus e retribuição aos pecadores, adotou uma visão universalista de salvação e passou a ver na igreja um amor moral que nada de substantivo apresenta.

Ao nível prático, o amor moral torna-se, então, irrelevante para as questões políticas porque, nas palavras de Reinhold Niebuhr, apresenta a lei de amor como solução simplória para qualquer problema da sociedade. [10] Por isso, o conceito de justiça passa a ter tanta relevância para o cristão quanto o conceito de amor.

É necessário reconhecer que as reivindicações de justiça são universais, eternas e objetivas, e têm como fonte a própria pessoalidade do Deus justo. Tal afirmação, se por um lado, traduz o fato teológico de que a justiça de Deus se faz manifesta nas ordenanças da criação, por outro nos leva a perguntar porque os elementos substantivos e características de justiça nunca foram consensuais para a humanidade?

A definição mais aceita de justiça é o de dar a toda pessoa aquilo que por direito lhe pertence. Mas aí de novo temos um problema: o que por direito lhe pertence? Esta pergunta nos obriga, enquanto cristãos evangélicos, a analisar com atenção nosso conceito tradicional de justiça.

“La justice est la forme dans lequelle lê pouvoir de l’être se réalise, la justice doit être en rapport avec la dynamique du pouvoir. Elle doit être capable de donner une forme aux rencontre de l’être avec un autre être. Le problème de la justice dans la recontre vient du fait qu’il est impossible de prédire comment s’organisera le rapport des forces au sein de telle rencontre. A chacun des moments, il existe de nombreuses possibilités. Et chacune de ces possibilités demande une forme particuliére”. [11]

Assim, conforme Tillich, as reivindicações de justiça só podem ser operacionais numa comunidade política se forem definidas com um grau significante de particularidade. Justiça, nas palavras de Niebuhr, requer julgamentos distintos de reivindicações contraditórias. [12] Justiça como uma abstração não basta. É necessário trabalhar fora da compreensão de justiça no particular, para não cair na armadilha do moralismo político, quando não se tem nada a oferecer quando se fala de forma idêntica em tempos, espaços e situações particulares diferentes.

Um exemplo clássico da questão está presente na Política de Aristóteles. Aristóteles diz que se faz justiça quando se dá a cada cidadão aquilo que lhe é por direito. Dois problemas nascem dessa afirmação: se todas as pessoas têm igualdade moral, então essa igualdade deve se estender a todo grupo social, às relações econômicas e políticas em que se fazem presentes. E se as pessoas são desiguais nas contribuições que fazem à sociedade, então essas desigualdades devem se traduzir nos grupos sociais e nas relações econômicas e políticas. Ambos os argumentos, sem dúvida, têm suas razões de ser. E, no século 20, fizeram parte do debates político de entre socialistas e liberais.

Por encontrar dificuldades na formulação prática do conceito de justiça, a teoria política evangélica contemporânea tem rejeitado o conceito de justiça universalmente conhecido como ordenança da criação, enquanto compreensão de que todas as pessoas são imagem de Deus e têm um conhecimento do bem. Donde, todas as pessoas compreendem a necessidade de justiça. E defendem um novo conceito, de ordenança da redenção. Para esses cristãos, devido à queda humana, não existe um conhecimento seguro de justiça fora da revelação. Na verdade, é muito difícil discutir quando se parte da natureza caída e da crença de que a justiça era perfeita antes da queda. Apesar dessa leitura soteriológica, acredito, assim como Tillich, que a melhor base para a compreensão da justiça ainda está no conceito da justiça que parte da ordenança da criação.

Rejeitar a ordenança da criação como algo que está fora da razão, por não ser revelada, é um problema de epistemológico. Tal postura afirma que a razão não tem nada que dizer fora da revelação.

Esta posição tem conseqüências práticas muito sérias para as estratégias de ação política, porque só a partir da fé e da revelação se pode falar com autoridade sobre justiça. Ou seja, os cristãos não podem, em política, se comunicar ou trabalhar com não-cristãos. Não pode haver nenhuma base secular no envolvimento político dos cristãos. Assim, quando nega o conhecimento natural do bem político, a única alternativa para o cristão é omitir-se, porque política é coisa mundana, caída, ou estabelecer uma política cristã sectária.

A leitura da justiça a partir da universalidade da imago Dei responde aos questionamentos contemporâneos levantados pelos cristãos em relação à política, enquanto a leitura a partir das ordenanças da redenção isola, aliena e separa o cristão da prática política.

O movimento evangélico fundamentalista buscou de forma acrítica impor normas a partir da revelação, definir caminhos de retidão para a sociedade, com a finalidade de atingir os não-crentes. Isto tem levado às cruzadas fundamentalistas norte-americanas que buscam fazer dos Estados Unidos uma nação cristã à força. E no Brasil levou à omissão que favoreceu a presença de políticas conservadoras e de direita dentro das igrejas.

Outros pensadores evangélicos, neo-ortodoxos, procuraram substituir as ordenanças da redenção pelas ordenanças crísticas, com a finalidade de trazer o amor moral de Jesus para as normas de justiça, que seriam assim emprenhadas pelo espírito de amor. E o fundamentalismo anabatista e batista substituiu as ordenanças da redenção por ordenanças escatológicas, buscando a partir da moral do reino futuro, fazer todas as coisas novas e conquistar os poderes caídos.

Ora, a justiça deve estar baseada em reivindicações universais de direito. Estabelecer justiça em base de autoridade sectária é violentar a compreensão de que todas as pessoas são imagem de Deus e têm um conhecimento do bem. Donde, todas as pessoas compreendem a necessidade de justiça.

Ora, assim, justiça deve ser definida dentro do contexto de uma determinada ordem social e deve ser aplicada em termos de particulares, pois fundamentar o argumento da justiça apenas na pessoa não é o bastante.

Devido à universalidade das normas de justiça e à universalidade da consciência de justiça, uma pessoa pode ter procedimentos e práticas que aprofundem políticas e programas que favorecem a justiça. É exatamente isso que os direitos civis buscam trazer para as democracias constitucionais. É o reconhecimento de que os meios empregados não devem violentar os fins procurados.

É necessário, ainda, reconhecer que as normas de justiça são objetivas e que elas existem independentemente de volição humana. Conseqüentemente, podem ser feitas reivindicações no nome de justiça e podem ser rejeitadas reivindicações no nome de justiça. Considerando que o amor deve ser volitivamente entregue, justiça exige reconhecimento independente da vontade humana.

O Deus de amor também é um Deus de justiça, amor e justiça não podem ser contrapostas. O amor pode ir além da justiça, mas nunca pode buscar menos que a justiça. O amor pode inspirar reverência à justiça, mas nunca pode ser desculpa para esquecer as reivindicações da justiça.

Se a justiça é uma qualidade objetiva que estabelece direitos e obrigações, projetos podem e devem ser desenvolvidos pelos indivíduos e sociedades para criar ações que sirvam as reivindicações de justiça. Dado o fato que nem todas as pessoas buscam a justiça de boa vontade, o poder pode ser usado legitimamente quando serve à causa de justiça. Dizemos que o amor não pode usar o poder para alcançar seus fins, mas que a justiça têm que usar o poder para alcançar seus fins.

Tais distinções são necessárias porque não se pode dizer ao Estado que ame, porque suas ações têm por base o poder, e porque as reivindicações do amor estão arraigadas em reconhecimento pessoal e particular ao invés de normas universais de justiça. Como a igreja cristã proclama o Evangelho, sensibiliza a comunidade para as demandas da justiça. Conseqüentemente, permanece a justiça enquanto serviço de amor.

Assim, usar o Estado como um instrumento de amor leva a um Estado sectário, quando não totalitário. Por causa disso, as normas distintivas da justiça são usadas para delimitar o que é meu e o que é teu. Negar a justiça em nome do amor é negar os direitos civis que são a base de qualquer governo constitucional.

O conceito de justiça aliado aos de amor e poder apresenta as alternativas para o protestantismo evangélico ao pensar a ação política. A política, com base no poder, cumpre uma função legítima quando serve as reivindicações da justiça. Amar, sem rejeitar o poder, indo além dos direitos e deveres estabelecidos pela justiça possibilita um testemunho de justiça e uma motivação moral que coroam o ato justo. Amar, através da mediação pessoal, complementa a justiça em suas demandas objetivas.

Essa exposição carece de ilustrações. Por isso, vamos ouvir um ex-ativista da Juventude Universitária Católica e ex-combatente da Ação Popular, Herbert de Souza, mais conhecido como Betinho. Em artigo publicado em 1993, Betinho afirmou que a “fome é exclusão. Da terra, da renda, do salário, da educação, da economia, da vida e da cidadania. Quando uma pessoa chega a não ter o que comer, é porque tudo o mais já lhe foi negado. É uma forma de cerceamento moderno ou de exílio. A morte em vida. E exílio da terra. A alma da fome é política”. [13]

É interessante que o ativista cristão e ex-combatente marxista afirme: a alma da fome é a política. Mas que política? E ele explica:

A história do Brasil pode ser vista de vários modos e sob muitos ângulos, mas para a maioria ela é a história da indústria da fome e da miséria. Um modo perverso de dividir o mundo em dois, produzindo um gigantesco apartheid. Nesse campo, fizemos alguns milagres de desenvolvimento. Um dos maiores PIB do mundo junto com a pobreza e a miséria mais espantosa. Aqui não houve lugar para o acaso. Tudo foi produzido como obra calculada. Fria.

O resultado está aí diante dos olhos de todos. Uma parte ostensiva, rica, branca, educada, motorizada, dolarizada. Outra parte imensa na sombra, negra, analfabeta, dando duro todos os dias, comendo o pão que o diabo amassou em cruzeiros, reais. Dois povos no mesmo país, na mesma cidade, muito próximos em geografia e infinitamente distante como experiência de humanidade.

É gente que começa o dia sem o que comer e chega à noite sem nada. Pode-se imaginar o quadro que é o de todo dia para milhões de seres humanos: a fome de comida e de tudo. A essa altura da vida da humanidade é incrível que isso aconteça. Como morrer de fome ao lado de 70 milhões de toneladas de grãos, de 8,5 milhões de hectares de terra, se todos esses brasileiros miseráveis ficariam saciados só com os 20% do desperdício?

O clamor de Betinho é um clamor para que a justiça dê sentido humano à política. E ele, já morto, acreditava nessa possibilidade, quando diz no artigo:

É assustador perceber com que naturalidade fomos virando um país de miseráveis, com que rapidez fomos produzindo milhões de indigentes. Acabar com essa naturalidade, recuperar o sentido de indignação frente à degradação humana, reabsolutizar a pessoa como humana e eixo da vida da ação política é fundamental para transformar a luta no Brasil contra a fome e a miséria num imenso processo de reformulação do Brasil e de nossa própria dignidade. Por isso acabar com a fome não é só dar comida, e acabar com a pobreza não é só gerar emprego; é reconstruir radicalmente toda a sociedade, começando por incorporar agora 32 milhões de seres humanos ao mapa da cidadania.

Por isso o ato de solidariedade, por menor que seja, é tão importante. É um primeiro movimento no sentido oposto a tudo o que se produziu até agora. Uma mudança de paradigma, de norte, de eixo, o começo de algo totalmente diferente. Como um olhar novo que mostra todas as relações, teorias, propostas, valores e práticas, restabelecendo as bases de uma reconstrução radical de toda a sociedade. Se a exclusão produziu a miséria, a união destruirá a produção da miséria, produzirá a cidadania plena, geral e irrestrita. Democrática.

Isso foi dito há dez anos. Luciano Mendes de Almeida [14] contextualiza o clamor místico, profético e político de Betinho. Diz o pastor:

Considero ainda mais grave a condição de quem não alcança ou perde o sentido da vida (...). Há um vazio ontológico pela falta de discernimento dos verdadeiros valores e pela solidão profunda de quem não se abre à presença e ao amor de Deus.

O ensinamento de Jesus dissipa as trevas e dúvidas e anuncia a boa nova, valores, critérios e atitudes que dão pleno sentido à vida. A injustiça será vencida pelo reconhecimento da dignidade da pessoa a luz de Deus, convertendo-os à convivência fraterna e à partilha. O perdão do Evangelho é a única resposta definitiva contra a violência e inicia um processo de apreço, respeito e diálogo, superando toda exclusão social e aproximando-nos uns dos outros, como irmãos e irmãs, na concórdia e na paz.

As palavras pastorais de Luciano Mendes de Almeida podem parecer, à primeira vista, que estão longe da ação política, mas na verdade iluminam a história anarquista contada no início dessa conferência. Apesar de seu humor e tom crítico, a leitura anarquista da política carece de algo fundamental: a busca do bem e a exigência de justiça. Ao negar a justiça, a política torna-se escrava do poder. Perde o eixo da vida da ação política, conforme afirmou Betinho. Ou, agora nas palavras de Luciano Mendes de Almeida, a injustiça será vencida pelo reconhecimento da dignidade da pessoa, e esta é uma tarefa política. Para conquistar tal dignidade, o poder deve ser exercido.

Assim, as análises ontológicas de Tillich nos levam à compreensão de que a síntese deste diálogo pertinente entre política e espiritualidade é a justiça.

Notas

[1] Aristóteles, A Ética, São Paulo, Atena Editora, 1950, 1ª parte, Livro 1o, II, 2-4, pp. 15 e 16.
[2] Benedict de Spinoza, Writings on Polital Philosophy, New York, Appleton Century Crofts Inc., p. 51.
[3] Vladimir Lossky, A l’image et la ressemblance de Dieu, Paris, 1967, p. 118.
[4] Gandhi, 1982, filme dirigido por Richard Attenborough, com Ben Kingsley e Candice Bergen.
[5] Rudolf Otto, O Sagrado, Lisboa, Edições 70, 1992, pp. 21-22.
[6] Paul Tillich, Amour, pouvoir et justice, Analyses ontologiques et applications éthiques, Revue d’Histoire et de Philosophie Religieuses, Paris, Presses Universitaires de France, 1963 et 1964, números 4 et 5.
[7] Idem, op. cit., no. 4, p. 334.
[8] Idem, op. cit., no. 4, p. 339.
[9] Idem, op. cit., no. 4, pp. 355-356.
[10] Reinhold Niebuhr, Políticas, ed. Harry R. Davis e Robert C. Good, Scribners, 1960, p. 163.
[11] Idem, op. cit., no. 4, p. 360.
[12] Reinhold Niebuhr, Amor e Justiça, ed. D. B. Robertson, World, 1967, p. 28.
[13] Herbert de Souza e Carla Rodrigues, A Alma da Fome é Política, artigo publicado no Jornal do Brasil, 12 setembro de 1993, apud, Ética e cidadania, São Paulo, Moderna, 1995, pp.22-25.
[14] Dom Luciano Mendes de Almeida, A quem iremos?, Folha de S. Paulo, 6/3/2004, p. 2.