mercredi 5 décembre 2012

Diálogo entre Carl Rogers e Paul Tillich

Revista da Abordagem Gestáltica / versão impressa ISSN 1809-6867
Rev. abordagem gestalt. v.14 n.1 Goiânia jun. 2008


Carl Rogers Dialogues1

Diálogo entre Carl Rogers e Paul Tillich2

(1965)


Introdução: Paul Tillich3


Paul Johannes Tillich nasceu na Prússia em 1886. Logo cedo, foi forçado a conciliar o Protestantismo tradicional de seu pai, que era ministro Luterano, com o treinamento em humanismo clássico que recebeu no gymnasia. Intrigado com essas questões, estudou teologia e filosofia nas Universidades de Berlim, Tübingen e Halle, entre 1904 e 1912. Tillich recebeu seu PhD em 1911 e foi ordenado ministro Luterano em 1912.


Depois de servir como capelão no exército alemão de 1914 a 1918 e receber a Cruz de Ferro por sua bravura, participou ativamente do movimento de criação de uma república alemã. Esse movimento desabou, no entanto, quando Hitler chegou ao poder. Como socialista religioso ativo, Tillich tentou conciliar o Cristianismo com um senso dialético de história e com questões sociais e políticas. Foi membro do corpo docente desde 1919 e professor de teologia a partir de 1924 em diversas universidades alemãs. Quando as atividades e escritos de Tillich ignoraram o regime nazista, foi despedido, em 1933, de sua cadeira de Filosofia na Universidade de Frankfurt. Ele disse posteriormente: Tive a honra de ser o primeiro professor não judeu a ser despedido de uma universidade alemã.


Seu amigo Reinhold Niebuhr estava na Alemanha neste período e convidou Tillich a juntar-se ao Union Theological Seminary, convite que Tillich aceitou prontamente, tornando-se cidadão americano em 1940. Ele permaneceu nesse seminário até a idade de se aposentar, em 1955. Em seguida, fez parte do corpo docente da Harvard University até 1963, e depois foi para a University of Chicago Divinity School, onde permaneceu até seu falecimento. Ao longo dos anos, Tillich escreveu aproximadamente 30 volumes de teologia, em alemão e inglês, incluindo diversas compilações dos seus sermões. Suas obras mais notáveis incluem: The Religious Situation (A situação religiosa, 1926; publicada em inglês em 1932); The Interpretation of History (A interpretação da História, 1936); The Protestant Era (A Era Protestante, 1948); sua magnum opus: Systematic Theology (Teologia Sistemática) em três volumes (1952, 1959, 1963), e The Courage to Be (A Coragem de Ser, 1952), que um crítico define como provavelmente sua obra-prima mais representativa e duradoura.


Ao analisar a sociedade ou o indivíduo, Tillich veio a acreditar que o conflito entre o autoritarismo religioso e a autonomia secular é, em última análise, transcendido por uma liberdade genuína fundamentada na profundidade religiosa. Ele disse em certa ocasião: As pessoas que me ouvem declaram que não entendem os símbolos cristãos que foram dados pela Igreja e sentem a necessidade de serem traduzidos para a linguagem moderna. Sua teologia buscou reconciliar as questões abstratas da religião com a experiência religiosa direta, isto é, a filosofia com a revelação. Também associou questões teológicas com disciplinas tão diversificadas como filosofia, arte contemporânea, teoria política, negócios e literatura. Um interesse antigo que se originava de sua carreira na Alemanha, e que foi mantido por toda sua vida, foi a relação entre psicanálise, existencialismo e religião. Um autor disse: Erich Fromm, Rollo May e Abraham Maslow são devedores a Tillich por alguns conceitos analíticos chave tais como a ansiedade existencial e o demônico.


Um filósofo gentil, baixo e de cabelo branco, Paul Tillich tem sido descrito como o teólogo contemporâneo mais expressivo, uma figura seminal do pensamento Protestante desse século, talvez o principal modelador do pensamento cristão moderno. Tem sido dito que o que Whitehead foi para a filosofia americana, Tillich foi para a teologia americana. Outros têm ressaltado que as filosofias de Tillich dizem respeito a todos os grupos religiosos, por que não estava apenas interpretando o Protestantismo, mas a existência humana e os inter-relacionamentos de amor, poder e justiça.


O diálogo entre Paul Tillich e Carl Rogers ocorreu em 7 de março de 1965, no estúdio de rádio e televisão da Faculdade Estadual de São Diego na Califórnia. Foi a última aparição pública de Tillich. Ele morreu em 22 de outubro de 1965.


Diálogo entre Carl Rogers e Paul Tillich



Rogers: A importância da auto-afirmação: acredito que essa é uma área onde temos a mesma opinião. Tenho ficado impressionado com o seu pensamento acerca da coragem do ser, porque encontro isso na psicoterapia; a coragem de ser alguma coisa, o risco que está envolvido no conhecer... Também gostei de sua frase a respeito do ato antimoral, discordando da auto-realização do indivíduo, e parece que ambos estamos buscando ir além de algumas tendências que são muito proeminentes no mundo moderno; a lógica positivista, a abordagem ultracientífica, a ênfase no ponto de vista mecanicista e altamente determinista que, como o vejo, torna o homem apenas um objeto tentando achar uma postura alternativa em relação à vida. Tenho curiosidade em saber se concorda que temos certa concordância quanto a questões desse tipo?4 *


Tillich: Sim, é claro. Concordo plenamente com todos esses pontos, e estou muito feliz que os enumerou para mim.


Rogers: Bem, talvez pudéssemos abordar algumas áreas em relação às quais não estou tão certo. Gostaria de saber qual é a sua opinião acerca da natureza do homem. Quando tenho sido perguntado acerca disso – acredito que alguns existencialistas entendem que o homem realmente não tem nenhuma natureza, mas para mim parece que ele tem – entendo que o homem pertence a uma espécie particular. Ele tem características da espécie. Acredito que uma dessas características é o fato de ser irremediavelmente social; entendo que ele tem uma profunda necessidade de relacionamentos. Penso que simplesmente pelo fato do homem ser um organismo, tende a ser direcional. Ele está se movendo na direção de atualizar-se5 a si mesmo. Pessoalmente, realmente sinto que o homem tem uma natureza descritível. Tenho me interessado, por exemplo, na sua discussão dos aspectos demônicos6 do homem. Não sei se você vê isso como parte de sua natureza – em qualquer nível eu estaria interessado em conhecer seu ponto de vista a respeito da natureza do homem.


Tillich: Sua pergunta é bastante ampla e requer uma resposta um pouco mais abrangente. O primeiro ponto que quero ressaltar é que o homem, definitivamente, tem uma natureza, e acredito que a melhor forma de provar isso é negativamente, ao mostrar que é impossível alguém sustentar que o homem não possui uma natureza. Penso no famoso existencialista francês, Sartre, que tem negado que o homem tenha uma natureza, e tem ressaltado que o homem é tudo que faz de si mesmo e isso é a sua liberdade. Mas, se ele diz que isso é a liberdade do homem de fazer a si mesmo, então isso, claramente, significa que ele tem a natureza da liberdade, que outras espécies não possuem. Fazer esse tipo de afirmação é – de algum modo – contraditório. Mesmo se atribuirmos ao homem o que a teologia medieval atribuía a Deus, isto é, de ser em si mesmo, e não estar condicionado a qualquer outra coisa, mesmo assim você não pode escapar da afirmação de que o homem tem uma natureza. Essa é a minha resposta para o primeiro elemento de sua pergunta, mas há mais duas e gostaria de abordá-las.


O segundo ponto é que distingo, por assim dizer, duas naturezas no homem, ou seja, uma que corretamente chamamos de sua natureza, e a outra que é uma mistura de aceitação e distorção de sua verdadeira natureza. A primeira chamaria, com um termo bem vago, sua verdadeira natureza, mas para torná-lo menos vago, geralmente a chamo de sua natureza essencial. Se eu me expressar num vocabulário teológico, a chamo de natureza criada do homem, e você lembra que esse foi um dos pontos principais sobre o qual a igreja primitiva enfrentou grandes discórdias – a saber, que a natureza essencial ou criada do homem é boa. De acordo com a palavra da Bíblia: E Deus viu tudo o que tinha criado...7 . Há uma afirmação ainda mais filosófica, reformulada desse aspecto por Agostinho, que é: Esse qua esse bonum est, que quer dizer em inglês: being as being is good 8 . Agora, isso é o que chamaria de natureza essencial do homem e então, a partir disso, devemos diferenciar a natureza existencial do homem da qual, eu diria, que ela tem uma característica de ser alienada de sua verdadeira natureza. O homem, tal como é no tempo e espaço, na biografia e na história, esse homem não é simplesmente o oposto da natureza essencial do homem, porque então não seria mais homem. Mas sua natureza temporal, histórica, é uma distorção de sua natureza essencial, e ao tentar alcançá-la, pode estar contradizendo sua verdadeira natureza. É uma tremenda mistura, e para entender a verdadeira dificuldade humana, devemos diferenciar esses dois elementos. Acredito que em Freud, ele próprio, e em grande parte do freudismo e na psicoterapia em geral, não há uma clara distinção entre esses dois pontos. Esse foi seu segundo elemento. Agora devo também responder seu terceiro elemento...?


Rogers: Primeiro... deixe-me fazer um comentário a esse respeito. Descobri no meu trabalho como terapeuta, que quando consigo criar um clima de máxima liberdade ao outro indivíduo, posso realmente confiar nas direções que ele vai seguir. Ou seja, as pessoas às vezes dizem para mim: E se você criar um clima de liberdade? Um homem pode usar tal liberdade para se tornar completamente mau ou anti-social. Não acredito que isso seja verdade, e essa é uma das coisas que me fazem sentir que – não sei se essencialmente ou existencialmente – em relação à verdadeira liberdade, o indivíduo tende a ir em direção a, não somente uma auto-compreensão mais profunda, mas a um comportamento mais social.


Tillich: Sim, aqui eu colocaria um ponto de interrogação, e perguntaria em primeiro lugar: quem é livre o suficiente para criar essa situação de liberdade para os outros? E visto que chamo essa mistura de natureza essencial do homem e sua alienada natureza ambígua – o domínio da ambigüidade da vida – eu diria sob essa condição de ambigüidade, que ninguém é capaz de criar essa esfera de liberdade. Mas agora vamos supor que ela exista de alguma forma diferente. Posso abordar esse assunto mais tarde quando falarmos a respeito do demônico. Então continuaria dizendo que o indivíduo que vive em tal grupo social no qual a liberdade lhe é dada, permanece uma mistura ambígua entre ser essencial e existencial. Ele está, como a linguagem inglesa expressa de forma tão bela, in a predicament9 , e esse problema é uma alienação universal e trágica do verdadeiro ser de alguém. Portanto, não acredito que está no poder do indivíduo usar sua liberdade na forma como deveria – a saber, cumprindo suas próprias potencialidades essenciais, ou essencialidades; essas duas palavras aqui têm o mesmo significado. Então sou mais cético, tanto acerca da criação de tal situação quanto dos indivíduos que se encontram nessa situação.


Rogers: Eu concordo quanto à dificuldade de criar uma liberdade completa. Estou certo que nenhum de nós poderá criar isso para outra pessoa na sua integralidade... No entanto, o que me impressiona é que mesmo tentativas imperfeitas de criar um clima de liberdade e aceitação e entendimento parecem liberar a pessoa para mover-se em direção a alvos sociais. Não sei se é o seu pensamento acerca do aspecto demônico que faz com que coloque um ponto de interrogação aqui.


Tillich: Agora, deixe-me primeiro responder acerca do que você acabou de dizer, e aqui concordo plenamente. Eu diria que há atualizações fragmentárias na história e concordo especialmente com o profundo insight que obtivemos, em grande parte pela psicoterapia, acerca da tremenda importância do amor nas primeiras fases do desenvolvimento infantil. Então perguntaria: Onde estão as forças que criam uma situação na qual a criança recebe esse amor que dá a ela, posteriormente, a liberdade de encarar a vida e não de escapar dela por meio de neuroses e psicoses? Deixo essa questão em aberto.


Mas agora você está interessado acerca do demônico, e você não é o único. Eu mesmo estive interessado, e todos de certa forma, então me deixe relatar como cheguei a esse conceito. Escrevi no ano de 1926, quando ainda era professor na Universidade de Dresden, na Alemanha, um pequeno artigo, um pequeno panfleto, chamado O Demônico, e o motivo para não falar do homem caído ou do homem pecaminoso ou qualquer uma dessas frases era que via de dois pontos de vista estruturas que são mais fortes do que a boa vontade do indivíduo, e uma dessas estruturas era a estrutura neurótico-psicótica. Tive contato, depois da Primeira Guerra Mundial, desde 1920, com o movimento psicanalítico, vindo de Freud naquela época, mudando o clima do século inteiro – já na Europa daquele tempo. O segundo foi a análise dos conflitos da sociedade pelo movimento socialista e especialmente pelos escritos iniciais de Karl Marx, e em ambos os casos, encontrei um fenômeno para o qual esses termos tradicionais, como homem caído e homem pecaminoso, não são suficientes. O único termo adequado que encontrei foi o uso pelo Novo Testamento do termo demônico, que se encontra nas histórias acerca de Jesus: similar ao estar possesso. Isso significa uma força, debaixo de uma força, que é mais forte do que a boa vontade do indivíduo. Por esse motivo usei esse termo. Quero deixar bem claro que não me refiro a um sentido mitológico – como pequenos demônios ou o próprio Satanás correndo pelo mundo – mas me refiro a estruturas que são ambíguas, ambas, até certo ponto, criativas, mas, em sentido último, destrutivas. Essa é a razão por ter introduzido esse termo. Assim, em vez de falar apenas de uma humanidade alienada, e não usando a terminologia antiga casualmente, tive de achar um termo que abrangesse o poder interpessoal que se apodera dos homens e da sociedade; dos homens em estágios, por assim dizer, da embriaguez, ser um embriagado e não ser capaz de superá-la, ou produzindo uma sociedade na qual ocorrem conflitos entre classes ou, como ocorre hoje no mundo inteiro, conflitos de grandes ideologias, de grandes formas de crenças políticas que se debatem umas com as outras – e cada passo para superá-las geralmente tem como conseqüência, empurrar as pessoas cada vez mais para dentro delas. É isso que quero dizer com o demônico. Assim, espero que tenha deixado uma coisa clara: que não tinha em mente o antigo sentido mitológico que, é claro, precisa ser desmistificado.


Rogers: [...] E, certamente quando olho para algumas coisas que estão acontecendo no mundo do ponto de vista do poder e assim por diante, posso ver por que você poderia pensar em termos de estruturas demoníacas.


Gostaria de falar um pouco acerca da forma como vejo essa questão da alienação e do distanciamento. Parece-me que o infante não é alienado por si só. Parece-me que a criança é um organismo completo e integrado, gradualmente individual, e que a alienação que ocorre é algo que ela aprende – que para preservar o amor dos outros, dos pais geralmente, ela toma para si algo que experimentou por si próprio, o julgamento de seus pais: semelhante ao pequeno garoto que foi repreendido por ter puxado o cabelo da irmã e sai por aí dizendo: menino mau, menino mau. Enquanto isso, ele volta a puxar o cabelo dela novamente. Em outras palavras, ele fez uma introjeção da noção de que ele é mau, quando na verdade está gostando da experiência, e é essa alienação entre o que está experimentando e os conceitos aos quais está ligado com o que ele está experimentando que, me parece, constituem a alienação básica. Não sei se você quer comentar a esse respeito [...]


Tillich: Sim, eu gostaria. A criança é uma questão muito importante. Chamo isso em termos filosóficos, ou, melhor, psicológicos, o estado mitológico de Adão e Eva antes da Queda: a inocência sonhadora. Ainda não alcançou a realidade; ainda está sonhando. É claro, isso também é um símbolo, mas é um símbolo que está mais próximo da nossa linguagem psicológica do que a Queda de Adão e Eva, mas significa a mesma coisa, e significa que Adão, a saber, o homem – o hebraico Adão significa homens – esses homens, cada homem, está no processo de transição da inocência sonhadora para a auto-atualização consciente, e nesse processo, a alienação também toma parte, bem como a realização; esse é o motivo do meu conceito de ambigüidade. Concordo com você que há também naquilo que os pais costumavam chamar de menino mau ou menina má, um ato de auto-realização necessário, mas também há algo de anti-social nisso, porque isso machuca sua irmã e, por isso, precisa ser reprimido, e quer digamos menino mau, ou o impedimos de qualquer outra forma, isso é igualmente necessário, e essas experiências significam para mim o lento processo de transição da inocência sonhadora para a realização própria de um lado e auto-alienação do outro, e esses dois atos são ambiguamente mesclados. Essa seria a minha interpretação da situação das crianças.


Rogers: Bem, concordo com boa parte do que você disse. Gostaria de dizer um pouco a respeito do tipo de relacionamento em que, acredito, a alienação humana pode ser curada, de acordo com a minha própria experiência. Por exemplo, quando conversamos a respeito de – quando um de nós fala a respeito da coragem de ser ou da tendência de se tornar si mesmo, sinto que, talvez, isso só possa ser completamente alcançado em um relacionamento. Talvez o melhor exemplo do que estou falando é que acredito que uma pessoa somente pode aceitar o inaceitável em si mesma quando está em um relacionamento íntimo no qual experimenta aceitação. Isso, eu penso, é em grande parte o que constitui a psicoterapia – que o indivíduo percebe que os sentimentos dos quais tinha vergonha ou que não era capaz de admitir em sua consciência, são sentimentos que podem ser aceitos por uma outra pessoa; então ele se torna capaz de aceitá-los como parte de si mesmo. Não conheço muito bem a sua opinião acerca de relacionamentos interpessoais, mas gostaria de saber como isso soa para você.


Tillich: Acredito que você está absolutamente certo ao dizer que a experiência mútua de perdão, ou melhor, de aceitação do inaceitável, é uma precondição necessária para a auto-afirmação. E você não consegue perdoar a si mesmo, você não pode aceitar a si mesmo. Se olhar no espelho espiritual, então você está muito mais propenso a odiar a si mesmo e a estar aborrecido consigo mesmo. Assim, acredito que todas as formas de confissão nas igrejas, e as confissões entre amigos e pessoas casadas – e igualmente a confissão sacro-analítica dos níveis mais profundos de uma pessoa que se tornam acessíveis ao analista – que sem essas coisas, não há possibilidade de experimentar algo que pertence em última instância a uma outra dimensão: a dimensão do fim último, se me permite chamá-la preliminarmente assim. Mas eu diria, com você, que somente a aceitação correta é o ambiente pelo qual o homem necessariamente tem de passar – do homem para o homem – antes que a dimensão do fim último seja possível. Posso acrescentar aqui que tenho evitado usar a palavra perdão, porque ela, com freqüência produz uma superioridade nociva naquele que perdoa e a humilhação daquele que é perdoado. Por isso, prefiro o conceito da aceitação. Se você aceitar essa aceitação, então acredito que posso confessar que a tenho aprendido da psicanálise. Tenho aprendido a traduzir um conceito ideológico que já não mais comunica e o tenho substituído pela forma pela qual o psicanalista aceita seus pacientes: não julgando-os, não dizendo em primeiro lugar que deveriam ser bons, diferentemente não posso aceitá-lo, mas aceitando-o exatamente porque não é bom, mas ele tem alguma coisa dentro dele que quer ser bom.


Rogers: Certamente em minha própria experiência, o potencial de aceitação da outra pessoa tem sido demonstrado repetidas vezes, quando um indivíduo sente que ele é tanto plenamente aceito em tudo que é capaz de expressar como ainda é estimado como pessoa. Isso tem uma influência muito grande sobre a sua própria vida e seu comportamento.


Tillich: Sim, acredito que esse aspecto é realmente o centro do que chamamos de boas novas na mensagem cristã.


[Pausa]


Tillich: O ministro, que representa o sentido supremo da vida, pode ter muita habilidade inconscientemente, embora seja não seja especialista, e mesmo assim não deve considerar-se um psicoterapeuta de segunda linha. Isso me parece ser uma regra muito importante. Caso contrário, a cooperação redundaria em pequenas catástrofes e chegaria a um fim.


Rogers: Bem, isso provoca em mim uma questão mais profunda. Compreendo muito bem que eu e muitos outros terapeutas estamos interessados em questões que envolvem o trabalhador religioso e o teólogo, e mesmo assim, para mim, prefiro pensar nessas questões em termos humanísticos ou abordar essas questões através dos canais da investigação científica. Acho que tenho uma verdadeira afinidade com o ponto de vista moderno que é simbolizado de certa forma na frase que diz Deus está morto; ou seja, que a religião já não mais fala às pessoas no mundo moderno, e estaria interessado em saber por que você tende a fundamentar seu pensamento – que é certamente apropriado a um bom número de psicólogos hoje em dia – em uma terminologia religiosa e uma linguagem teológica.


Tillich: Acredito que essa é uma questão muito complexa [...]


Rogers: Sim, certamente [...]


Tillich: [...] e poderia tomar todo o nosso tempo, por isso gostaria de me ater a apenas alguns pontos. Em primeiro lugar: aqui o ponto fundamental é que eu acredito, falando de maneira metafórica, que o homem não vive apenas na dimensão horizontal, isto é, o relacionamento dele mesmo como ser finito com outros seres finitos, observando-os e lidando com eles, mas ele também tem algo em si mesmo que chamo, metaforicamente, de linha vertical; uma linha não para um céu com Deus e outros seres nele; mas o que quero dizer com a linha vertical está relacionado com algo que não é transitório e finito; algo que é infinito, incondicional, último – geralmente digo isso. O homem tem uma experiência em si mesmo que é mais do que um pedaço de objetos finitos que vêm e vão. Ele experimenta algo que vai além de espaço e tempo. Não falo aqui – preciso ressaltar isso em palestras repetidas vezes – em termos de vida após a morte, ou em outros símbolos que não podem mais ser usados dessa forma, mas falo da experiência imediata do temporal, do eterno no temporal, ou do temporal invadido pelo eterno em alguns momentos de nossa vida e da vida junto com outras pessoas e da vida em grupo. Essa é para mim a razão pela qual procuro continuar interpretando os grandes símbolos religiosos tradicionais como relevantes para nós: porque eu sei, e esse foi o outro ponto que você mencionou, que eles se tornaram em grande parte irrelevantes, e que já não podemos mais usá-los como são usados, em larga escala, nas pregações, no ensino religioso e nas liturgias, por pessoas que conseguem viver de acordo com esses símbolos, que não são alienados deles por uma análise crítica, mas para o grande número de pessoas, que você chama de humanistas, precisamos de uma tradução e interpretação desses símbolos, mas não, como você parece indicar, uma substituição. Não acredito que a linguagem científica seja capaz de expressar a dimensão vertical de maneira adequada, porque está presa ao relacionamento de coisas finitas entre si, mesmo na psicologia e certamente em todas as ciências físicas. Essa é a razão porque penso que precisamos de outra linguagem e essa linguagem é a linguagem dos símbolos e mitos; é uma linguagem religiosa. Mas nós pobres teólogos, em contraste com vocês, psicólogos venturosos, estamos diante da desagradável situação, de sabermos que os símbolos com os quais lidamos precisam ser reinterpretados e até mesmo radicalmente reinterpretados. Mas tenho tomado esse pesado jugo sobre mim e decidi há muito tempo continuar com ele até o fim.


Rogers: Bem, percebi que, enquanto você falava, eu possuo uma sorte de fantasia dessa dimensão vertical, em que não vou subindo, mas descendo. O que quero dizer é o seguinte: eu sinto, por vezes, que quando estou realmente ajudando um cliente meu, em um daqueles raros momentos quando existe uma aproximação da relação Eu-Tu entre nós, e quando sinto que algo significante está acontecendo, então sinto que estou de alguma forma, afinado com as forças do universo ou que as forças estão operando através de mim nesse relacionamento de ajuda que – bem, acho que sinto um pouco daquilo que o cientista sente quando é capaz de dividir o átomo. Ele não o criou com suas pequenas mãos, mas ele, não obstante, colocou-se na fila com as forças significantes do universo e, dessa forma, foi capaz de precipitar um acontecimento significativo. Acredito que meus sentimentos, muitas vezes, são semelhantes, ao lidar com um cliente, quando realmente estou sendo útil.


Tillich: Estou muito grato com o que acabou de dizer. Agora, as primeiras palavras foram especialmente interessantes para mim, quando disse que uma linha vertical sempre tem um movimento para cima e para baixo. E talvez se surpreenda em ouvir de mim que sou acusado com freqüência, por meus colegas teólogos, que falo demais acerca do movimento para baixo, em vez do movimento para cima; e isso é verdade. Quando quero dar um nome a algo com o qual estou, em última instância, preocupado, então o chamo de o fundamento do ser e fundamento é, claro, para baixo, e não para cima – assim, vou com você para baixo. Agora a pergunta é: Para onde vamos? Aqui novamente senti que poderia ir longe com você quando usa o termo universo, forças do universo, mas quando falo de fundamento do ser, não entendo essa profundidade do universo em termos de um acréscimo de todos os elementos no universo, de todas as coisas singulares, mas, como muitos filósofos e teólogos fizeram, o fundamento criativo do universo, de onde todas essas formas e elementos surgem: chamo isso de fundamento criativo. E esse foi o segundo ponto que me deixou feliz. Esse fundamento criativo pode ser experimentado em tudo que é enraizado no fundamento criativo. Por exemplo, em um encontro pessoa-a-pessoa – e eu tive sem ser um analista, mas em muitas formas de encontro com seres humanos, experiências muito similares com aquelas que você teve – existe algo presente que transcende a realidade limitada do Tu e do Ego do outro e do meu, e eu, às vezes, o chamei, em momentos especiais, de a presença do sagrado, em uma conversa não-religiosa. Isso eu posso experimentar e, de fato, experimentei, e eu concordo com você.


Finalmente, havia um terceiro ponto acerca dos cientistas e, com freqüência, digo a meus amigos cientistas que eles seguem piamente o princípio formulado por Tomás de Aquino, o grande teólogo medieval: se você sabe alguma coisa, então sabe algo acerca de Deus. E eu concordo com essa afirmação – e, portanto, esses homens também têm uma experiência do que gosto de chamar de linha vertical, para baixo e talvez para cima, embora o que eles fazem ao dividir átomos é descobrir e lidar com relações finitas entre si.


Rogers: Gostaria de mudar para outro tópico que tem sido de meu interesse e suspeito também possa ser do seu interesse. É a questão do que constitui uma pessoa ótima10. Em outras palavras, qual é o nosso objetivo quando estamos trabalhando, quer na terapia ou na religião? Pessoalmente, tenho uma definição bastante simples, mas que acredito ter diversas implicações positivas. Sinto que estou satisfeito em meu trabalho de terapeuta quando descubro que meu cliente e eu, também, estamos – se ambos estamos nos dirigindo para o que penso ser uma maior abertura à experiência. Se o indivíduo se torna mais capaz de ouvir o que está acontecendo dentro dele, mais sensível às reações que está tendo em determinada situação, se tem uma percepção mais aguçada do mundo ao seu redor – tanto do mundo da realidade quanto do mundo dos relacionamentos – então acredito que meu sentimento será de satisfação. Essa é a direção que gostaria de estar indo, porque então ele estará no processo – em primeiro lugar, estará no processo o tempo todo. Isso não é um alvo do tipo estático para um indivíduo, e ele estará no processo de se tornar mais completo a si mesmo. Ele também se tornará realista, no melhor sentido do termo, quando for realista em relação àquilo que está acontecendo dentro dele mesmo, bem como realista acerca do mundo, e acredito que ele também estará em processo de se tornar mais social simplesmente porque um dos elementos que certamente ocorrerá nele mesmo é a necessidade e o desejo por relacionamentos humanos mais próximos; assim, para mim, esse conceito de abertura para a experiência descreve em boa parte o que gostaria de ver na pessoa ótima, quer estejamos falando da pessoa que emerge da terapia, ou do desenvolvimento de um bom cidadão, ou um outro cenário qualquer. Gostaria de saber se você teria algum comentário a esse respeito, ou seu próprio ponto de vista nessa área.


Tillich: Sim, gostaria de salientar dois aspectos. O primeiro é o caminho – isto é, abertura – e o outro é o propósito. Esse, é claro, não é um propósito estático, nem um propósito dinâmico, mas é um objetivo. Permita-me falar acerca desses dois aspectos: a abertura é uma palavra muito familiar para mim porque há muitas questões feitas a um teólogo e que somente podem ser respondidas através do conceito de abertura, ou de um abrir-se. Vou dar dois exemplos. Um primeiro exemplo é a função de símbolos clássicos e dos símbolos em geral. Eu sempre costumo dizer: Símbolos abrem, eles abrem uma realidade e abrem algo em nós. Se essa palavra não fosse proibida na universidade dos nossos dias, eu a chamaria de algo em nossa alma, mas você sabe como psicólogo, como alguém que lida com a alma, que a palavra alma é proibida nos contextos acadêmicos. Mas é isso que os símbolos fazem, e eles não o fazem somente a indivíduos, mas também a grupos e geralmente somente por meio de grupos aos indivíduos – então essa é uma das maneiras que eu uso a palavra abrir. Essa parece ser para mim uma das principais funções, talvez a principal função dos símbolos – ou seja, abrir. O outro uso da palavra abrir é quando me perguntam: O que eu posso fazer para experimentar Deus ou receber o Espírito Divino? ou perguntas desse gênero. Minha resposta é: A única coisa que vocês podem fazer é manter-se a si mesmos abertos. Vocês não podem forçar Deus a descer, nem podem produzir o Divino Espírito em vocês mesmos, mas o que vocês podem fazer é abrir-se, manter-se abertos para Isso. Isso é, na sua terminologia, uma experiência particular, mas devemos nos manter abertos a todas as experiências. Assim, eu concordaria plenamente com a sua forma de descrever esse aspecto. Eu até acreditaria que em todas as experiências, existe a possibilidade de se ter uma experiência última.


Então, o propósito: o propósito são os múltiplos desdobramentos que discutimos. Talvez pudéssemos concordar acerca da compreensão do nosso verdadeiro eu, trazendo para a realidade o que é essencialmente dado a nós; ou, quando falo em simbolismo religioso, poderia dizer: Tornar-se da forma como Deus nos vê, em todas as nossas potencialidades. E agora, de forma prática, vem a próxima e muito importante questão. Você também indicou algo a esse respeito: a saber, de se tornar social. Acredito que isso é parte de um conceito mais amplo. Eu o chamaria de amor, no sentido da palavra grega ágape, que é uma palavra singular no Novo Testamento e que significa o amor descrito por Paulo na Primeira Epístola aos Coríntios 13, e que aceita o outro como uma pessoa e então busca reconciliar-se com ela e a vencer as barreiras da separação, da separação existencial, que existe entre as pessoas. Com esse propósito, eu certamente concordaria; mas acrescentaria, é claro, visto que falo também em termos de dimensão vertical, que é o ater-se a essa dimensão de manter na fé voltada para um sentido último de vida, e a absoluta e incondicional seriedade quanto à direção desse objetivo de vida último. Então, se eu puder agora falar em termos populares, o que é sempre muito perigoso, eu diria: fé e amor são os dois conceitos que são necessários, mas fé não no sentido de crenças, mas no sentido de estar relacionado à dimensão do último, e amor não no sentido de qualquer sentimentalismo, mas no sentido de afirmar a outra pessoa e mesmo a nossa própria pessoa, porque eu concordo com Agostinho, Erich Fromm e outros, que há uma justificada auto-afirmação e auto-aceitação. Pessoalmente, não usaria o termo amor próprio – isso é muito difícil – mas auto-afirmação e auto-aceitação, um das coisas mais difíceis de alcançar.


Rogers: Bem, percebo que gosto mais quando você se torna concreto; isto é, quando o coloca em termos de fé e amor. Esses podem ser conceitos muito abstratos, que podem ter diversos significados, mas colocar isso de forma concreta – sim, realmente sinto que a pessoa de fato poderá obter uma verdadeira apreciação de si mesmo, caso venha a afirmar-se de uma forma saudável e útil. Há mais um corolário para essa noção de ser aberto à experiência que podemos explorar brevemente. Para mim, o indivíduo que é razoavelmente aberto à sua experiência está envolvido em um processo contínuo de avaliação; isso é, penso que – percebo que deixei de lado a noção de valores no sentido convencional de existirem certos valores que você poderia enumerar, e esse tipo de coisa – mas, me parece que o indivíduo que está aberto para sua experiência está continuamente avaliando cada momento e avaliando seu comportamento a cada momento, percebendo se está relacionado com sua própria auto-satisfação, sua própria atualização, e que é esse tipo de processo de avaliação que para mim faz sentido em uma pessoa madura. Isso também faz sentido em um mundo onde toda situação está mudando tão rapidamente que sinto que listas comuns de valores estão provavelmente não mais tão apropriadas ou significativas como eram em períodos passados.


Tillich: Sim. Agora sou um crítico sincero da filosofia dos valores, assim, certamente concordo com você. Substituo essa coisa pelo meu conceito de ágape, ou amor – ou seja, o tipo de amor que escuta. Eu chamo-o de amor ouvinte, que não segue avaliações abstratas, mas está relacionado com a situação concreta e no escutar desse mesmo instante, ele ganha decisão para ação e seu sentimento interior de satisfação e até mesmo alegria ou descontentamento e má consciência.


Rogers: Gosto daquela frase porque acho que poderia ser uma escuta interior, uma escuta a si mesmo, bem como um amor que escuta o outro indivíduo...


Tillich: Sim, quando eu disse sobre escutar a situação, quero dizer que a situação é constituída de tudo ao meu redor e de mim mesmo; então, o amor ouvinte está sempre ouvindo as duas posições.


Rogers: Sinto que não estamos muito distantes em nossos pensamentos acerca dessa abordagem do valor; eu achei que poderíamos estar mais distantes do que parecemos estar. Mas, uma outra questão: eu sinto que a pequena criança é um bom exemplo do processo de avaliação que está acontecendo continuamente. Ela não está perturbada pelos conceitos e padrões que têm sido criados para adultos, e ela está continuamente avaliando sua experiência seja para seu melhoramento ou estando oposto a essa atualização.


Tillich: Agora, essa avaliação, claro, não seria uma avaliação intelectual, mas uma avaliação com todo seu ser.


Rogers: Eu penso nisso como um processo de avaliação organísmica.


Tillich: Isso significa uma reação de todo seu ser, e certamente acredito que isso é uma descrição adequada.



Tradução: Marcos Ricardo Janzen

Revisão Técnica: Gustavo Vieira da Silva e Adriano Holanda


1 Nossos mais sinceros agradecimentos aos editores Howard Kirschenbaum e Valerie Land Henderson, bem como a Natalie Rogers, pela gentileza de autorizar a tradução do presente diálogo.
2 Originalmente publicado em Carl Rogers: Dialogues, Edited by Howard Kirschenbaum & Valerie Land Henderson, Houghton Mifflin Company, Boston, 1989 (pp. 64-78).
3 Introdução dos editores na publicação original (Nota de Tradução).
4 Paul Tillich and Carl Rogers: A Dialogue, Pamphlet. San Diego, California: San Diego State College, 1966. O panfleto aparenta ter sido levemente revisado, uma vez que os começos e os términos são um tanto abruptos (Nota no original em inglês).
5 Tanto Paul Tillich quanto Carl Rogers fazem uso do verbo inglês actualize em suas construções teóricas. Nas traduções de Rogers feitas no Brasil convencionou-se traduzir tal termo por atualizar, o que na tradição humanista vai desembocar em atualização ou auto-atualização. Já no caso das traduções de Paul Tillich são encontradas duas possibilidades de tradução: atualizar ou efetivar. Esta última opção é encontrada, por exemplo, na última tradução de sua Teologia Sistemática (2005, São Leopoldo: Sinodal) (Nota de tradução).
6 A tradução do termo demonic por demônico é uma convenção empregada nas traduções das obras de Paul Tillich para o português. Este termo é utilizado com um significado bastante próprio na teologia de Tillich e será melhor explicado na continuidade deste diálogo (Nota de tradução).
7 Gênesis, 1:31 (Nota de tradução).
8 Ser como ser é bom (Nota de tradução).
9 Em apuros (Nota de tradução).
10 Aqui Rogers utiliza a expressão optimal person, que designa o que chama de funcionamento pleno ou pessoa em funcionamento pleno. Refere-se a um funcionamento ótimo da pessoa, sendo que o qualitativo ótimo, aqui, não representa uma idealidade, mas uma possibilidade objetiva da terapia (Nota de tradução).


Nota Biográfica


Paul Tillich (1886-1965) era teólogo de origem alemã, contemporâneo de Karl Barth e um dos mais influentes teólogos protestantes do século XX. Em 1933 emigra para os Estados Unidos, onde leciona em diversas instituições, como o Union Theological Seminary e a Columbia University. Dentre sua vasta obra, alguns títulos estão traduzidos para o português, como seus textos mais conhecidos A Coragem de Ser (São Paulo: Paz e Terra) e Teologia Sistemática (São Leopoldo: Sinodal). Outras traduções: Paul Tillich. Textos Selecionados (São Paulo: Fonte Editorial); Dinâmica da fé (São Leopoldo, RS: Editora Sinodal); História do pensamento cristão (São Paulo: ASTE); Perspectivas da Teologia Protestante nos séculos XIX e XX (São Paulo: ASTE); A Era Protestante (São Bernardo do Campo: Traço a Traço Editorial); e Amor, poder e justiça (São Paulo: Novo Século).


Carl Ramson Rogers (1902-1987) era psicólogo, humanista e cientista brilhante. Criador da terapia centrada no cliente, fez com que seu pensamento transcendesse as fronteiras da clínica psicoterapêutica, constituindo-se nos mais diversos campos de aplicação. Com isto, criou os Grupos de Encontro, o Ensino Centrado no Estudante, até sua abordagem ser conhecida por Abordagem Centrada na Pessoa. Seu interesse por Teologia se deve ao fato de haver seguido cursos no Union Theological Seminary, onde Tillich lecionou, entre 1924 e 1926, de onde migra para o Teachers College da Columbia University. Grande parte de sua obra está traduzida para o português, com destaque para seu livro mais conhecido Tornar-se Pessoa (São Paulo: Martins Fontes). Temos ainda as seguintes traduções: Grupos de Encontro; Psicoterapia e Consulta Psicológica; Sobre o Poder Pessoal; O Tratamento Clínico da Criança-Problema e Carl Rogers. O Homem e suas Idéias (pela editora Martins Fontes, São Paulo); Um Jeito de Ser e A Pessoa como Centro (pela E.P.U.); além de Em Busca de Vida (Summus); Quando Fala o Coração (Vetor); Novas Formas de Amor (José Olympio); Abordagem Centrada na Pessoa (Editora da UFES); O Homem e a Ciência do Homem; Psicoterapia e Relações Humanas e Liberdade para Aprender (Interlivros) e Liberdade para Aprender em Nossa Década (Artes Médicas).


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mardi 27 novembre 2012

Até naqueles dias

Por Jorge Pinheiro

Uma das temáticas do humano é a presença do Espírito e sua correlação com o Cristo, pois a humanidade é emancipada por esta correlação. Temos, através do Espírito, uma humanidade emancipada, esperançosa e exultante. Traçado o curso da humanidade, no qual o presente triunfa, os humanos experimentam o livramento da alienação. Ou como canta Maciel Melo, em “Até Naqueles Dias”.

“Eu não consigo viver sem seu dengo, meu amor
É bom demais estar com você
Acho bonito, acho muito lindo
Ver você sorrindo, ouvir você dizer
Que eu sou dengoso e meio desligado
Que sou descarado e não sabe o porquê
Me ama com tanto xamego”.

O desejo de Eterno pode ser sintetizado na ceia do Cristo, no seu sofrimento, mas também na alegria da ressurreição. Quando o humano cresce no presente se reveste de semelhança. Comer o pão juntos, na comunidade da fé, é ato afetivo e de cuidado com a humanidade machucada. Por isso, quando o Cristo olhou a humanidade, ficou com misericórdia porque ela estava abandonada e aflita. Daí que vamos bailar algumas idéias sobre a ceia do Cristo.

A teologia diz que há salvação para aqueles que estão no Cristo. O Espírito da vida no Cristo é a vida liberta do destino de acabamento e alienação. De fato, o Eterno enviou o seu Cristo em humanidade semelhante a nós e disse não à alienação no humano, a fim de que um novo destino se cumprisse no humano segundo o Espírito. Com efeito, os humanos que vivem no Espírito amam as coisas que são do Espírito.

Daí o amor-serviço para fazer o bem bom sem olhar se judeu ou grego, pois o Eterno mostrou o seu prazer: Cristo se acaba quando o humano dorme e acorda na alienação. O amor-serviço fala com os que estão caídos e diz que Cristo preferiu não estar assentado, mas entregou a vida pela humanidade. O amor-serviço traz paz aos caídos, porque não pesa a mão, ao contrário quer pessoas novinhas em folha. Sigam os meus pés, manejem e treinem do meu jeito, porque tenho amor-serviço e estou agachado, só assim vocês vão dormir folgados, disse o Cristo. É isso mesmo, no Cristo o humano não vive no rabo de arraia, mas na sapiência. É mestre sim, mas do bem, de delicadeza.

Temos, então, um alinhamento igual à esquerda e à direita pela certeza, a exclusão temporal de alguns e a inclusão da humanidade. Ao analisar o alinhamento igual à esquerda e à direita vemos que o ir além do humano repousa sobre a certeza, proveniente do presente em Cristo. Essa misericórdia do Eterno não depende do escrito, porque o humano não tem como responder às exigências do escrito, que expressa o Eterno que está do outro lado. Assim, o presente chega com o Cristo, que na sua dor e prazer dá o indulto às alienações humanas. A liberdade diante do escrito não depende do humano aqui, mas do humano para lá de humano. Assim, há um ir além nessa correlação entre o escrito e o presente. 

“Me chama de nego, quando quer xodó
Aí começa aquela agonia
Que faz a gente levantar do chão
A gente esquece a hora e passa o dia
E a noite vem sem prestar atenção
Que prós amantes, tanto faz
O que importa é o impulso, é o desejo, é a paixão”.

Uma toada linda é a animação, que não pisa a fraqueza da humanidade. Quando alguém é apanhado com a faca na mão, no momento do golpe vil, humanos desarmam, mas não esquecem a amor-serviço do Espírito. Ajudam e obedecem à lei do Cristo. Por isso desobriga e é desobrigado pelo Eterno. A desobrigação da pena foi cantada por Cristo, porque esquecer o dinheiro que foi levado é difícil, mas é o que Eterno faz comigo e você. E é o que nos leva à rede, na varanda, no fresco da tarde. É resultado do amor-serviço, da desobrigação e do gozo, quando a comunidade da certeza acende o farol alto e mostra à humanidade que a rede e a taba são possíveis, mesmo quando o mar não está para peixe.

Cristo fala de liberdade. Para ser livre não basta a certeza, é necessário permanecer. Mas o que é isso? É continuar na certeza. No humano para lá de humano não deve haver cera. Permanecer é constância e ser humano no Cristo. Mas para ser livre é preciso também conhecer o axioma. E o que é conhecer? É gostar de dormir com, mesmo que tenha que comer sal juntos. Depois, então, é que se vai descobrir, inteirar. É a partir daí que o humano caminha em direção à liberdade. E a liberdade passa a ser a vida distante da azáfama da alienação.

O eterno acorda e dorme no partir do pão. Gente é parecença chamada a viver a experiência humana como comunidade da certeza. Pode beber e comer bênçãos nas celebrações de todos juntos. Gente é convocada a conviver na consistência do Cristo.

“Eu te amo quando é de manhã
Eu te amo quando é meio-dia
Eu te amo quando é de noite
Eu te amo todo santo dia
Eu te amo de qualquer maneira
Eu te amo até naqueles dias
Que por qualquer besteira você briga
E se intriga sem qualquer razão
Eu te amo, eu te quero, te desejo
Eu te dou meu coração”.

Liberdade no Cristo é ir para a cama sem a faina da alienação, das coisas que amarram e impedem o movimento do Espírito. Descobrir o significado de duas toadas, conhecer e ficar, na celebração do Cristo leva ao axioma e ao livramento da azáfama da alienação, acabamento e escombros.


Maciel Melo, compositor e cantor, no Programa Estação Nordeste,
na Rede Globo, em 04/julho/2009, cantando a música "Até Naqueles Dias".

lundi 26 novembre 2012

O punhal de Abraão

Por Jorge Pinheiro


“Quando chegaram ao local que Deus havia indicado, Abraão fez um altar e arrumou a lenha em cima dele. Depois amarrou Isaque e o colocou no altar, em cima da lenha. Em seguida pegou o punhal para matá-lo". Gênesis 22.9-10.


Eis um dos textos mais desnorteadores do Antigo Testamento. Abraão, em obediência a Deus, se prepara para sacrificar seu filho. Neste artigo vamos fazer a leitura desse texto a partir de um ensaio teológico, "Temor e tremor", escrito por Sören Kierkegaard, em 1843.


O sacrifício de Isaac por Alonso Berruguete, 1526


Sören Kierkegaard (1813-1855), dinamarquês, é fundador da teologia da existência. Ele recusou o ideal de um saber intelectual e universal, defendido por Hegel, e mostrou o caráter voluntário e singular da vida cristã, que se consubstancia no ato de fé.


Kierkegaard foi conhecedor dos clássicos. Amou a música e a literatura, a filosofia clássica e moderna. Fruto dessa paixão, construiu uma teologia da existência que teve o objetivo de confrontar idéias e experiências à luz do cristianismo.


Sua teologia baseou-se em conhecimento e experiências sentimentais. A partir de problemas pessoais procurou explicação para a existência. Não se contentou em analisar o conteúdo da consciência e daí construir uma teologia da existência. Relacionou conhecimento e experiências e estabeleceu entre elas uma dialética. É através da dialética que percebe as experiências da existência: estética, ética e experiência da fé.


Experiências da existência


A experiência estética é básica na realidade humana. Os valores estéticos estavam presentes no romantismo e influenciaram artistas e intelectuais do século XIX. É difícil definir essa experiência, porque é diversificada, embora sempre tenha uma característica comum: o desejo. O desejo produz satisfação afetiva, emocional e material, e a principal experiência estética é o desejo erótico.


Mas, a experiência estética não nos realiza plenamente. Muitas vezes, os objetivos não são claros e se perdem por não haver plena satisfação.


Há uma outra experiência humana que, ao contrário da experiência estética, é de mais fácil definição: a experiência ética. Isto porque é marcada por uma vida governada por normas morais. O herói da experiência ética é o marido fiel.


Kierkegaard combina a teoria do amor romântico com a teoria do acordo matrimonial, na forma de amor cristão entre duas pessoas que reconheceram em Deus o responsável por esta união. O casamento cristão, indissolúvel, pleno de companheirismo, é um discurso de exaltação ao amor. O casamento é o meio através do qual homem e mulher fazem uma opção, tendo Deus como testemunha. É aqui que se evidencia a experiência ética: os dois terão que resistir aos dias maus para manter a vida conjugal.


Assim, casamento é risco, mas, ao mesmo tempo, a mais profunda experiência para se atingir tal sentido de vida. O casal deve entender que o heroísmo moral da vida cotidiana é a única forma de desviá-los dos caminhos que comprometem a relação conjugal. Só o heroísmo ético, aliado à ajuda de Deus, pode salvar a vida conjugal e a vida moral.


Mas o casamento não é a única e derradeira experiência humana. A fé é uma fonte de inspiração e um espaço de reflexão e existência.


O cristianismo de Kierkegaard era composto por duas realidades marcantes: por um lado, o cristianismo com suas doutrinas e seus paradoxos, e, por outro, a tensão psicológica com que ele recebia essas doutrinas e paradoxos em meio aos problemas existenciais.


Nesse sentido, "Temor e Tremor" é uma introdução ao mundo cristão de Kierkegaard. O objetivo do livro é mostrar, através da história do patriarca Abraão, que a experiência ética não é absoluta, fica ofuscada diante das exigências da experiência da fé.


Abraão não hesitou em sacrificar Isaque e esta entrega lhe deu o filho de volta. A experiência da fé é entrega ao Deus que não vemos e comunica-se através do silêncio. As duas primeiras experiências, estética e ética, não podem existir sem a experiência da fé. A fé deve estar presente tanto na experiência estética quanto na ética. A fé é uma experiência que desestrutura experiências e possibilita o encontro com a realidade da vida cristã.


Mas fé implica fazer escolha, já que é solitude e colocar-se sob o olhar atento de Deus. Esse estar só no sofrimento nos leva ao sentido da subjetividade e da existência. Em 1848, Kierkegaard passou pela experiência de conversão e registrou em seu Diário: "A totalidade do meu ser está transformada... Mas a crença no perdão dos pecados significa crer que aqui no tempo o pecado é esquecido por Deus, que é realmente verdade que Deus o esquece".


E, em 1850, escreveu em seu Diário: "A peculiaridade da raça humana é: justamente porque o indivíduo é criado à imagem de Deus, o 'indivíduo' está acima da raça. Isto pode ser entendido erroneamente (...) reconheço. Mas isso é o cristianismo. E é aí que a batalha deve ser travada".


Deus é subjetividade infinita. O cristianismo é uma fé histórica, mas como os resultados dos fatos históricos são incertos, o importante é a escolha. Crer em Deus é um salto de fé, um compromisso com o absurdo. A pessoa faz uma escolha por aquele fato histórico porque significa tanto que arrisca a vida por ele. "Então vive; vive inteiramente cheio da idéia, e arrisca sua vida por ela; e sua vida é a prova de que crê".


Não precisa haver provas para a pessoa crer e viver a fé. Sem riscos não há fé. Por isso, há no pensamento de Kierkegaard, uma palavra chave: o amor. É por amor que Deus decide agir, mas como seu amor é a causa, seu amor também é o fim. Deus quer estabelecer relações com o ser humano.


"Deus encontra sua alegria em vestir ao lírio com mais esplendor que Salomão" (Fragmentos Filosóficos, p. 59).


O amor de Deus ensina, mas também leva a um novo nascimento, passando do não ser ao ser, pois "o fazer nascer pertence a Deus cujo amor é regenerador" (Fragmentos, p. 68).


Deus busca transformar o não ser do ser humano. Assim, "para obter a unidade, Deus deve se fazer igual ao seu discípulo", e para isto toma a forma de servo. Deus sofre a fome, o deserto, tudo experimenta por amor ao ser humano. Kierkegaard afirma que só Deus pode salvar o indivíduo do desespero.


O salto da fé


O sentido estético da existência nos é dado, também, pela busca da realização profissional e pelo consumo e posse de bens. Abraão fez essa experiência estética, mas ela não bastou. Por isso disse a Deus: "Ó Senhor! Ó Deus Eterno! De que vale a tua recompensa?" O sentido ético na vida do patriarca não foi dado por sua relação com Sara, pois não foi um marido exemplar (cf. Gênesis 12.13; 20.2), mas pelo nascimento de Isaque. O filho prometido possibilitou a Abraão essa experiência ética, mas, ainda assim, faltava ao patriarca a experiência da fé, a entrega a Deus daquilo que lhe era mais caro.


Abraão não está na situação do herói que deve escolher entre valores subjetivos e objetivos. Deus não está testando a sabedoria de Abraão. A força de sua fé fez com que Abraão optasse por Deus. Caso o sacrifício se tivesse consumado, Abraão não teria como justificá-lo à luz de uma ética humana. Seria o assassino de seu filho. Permaneceria toda a vida indagando acerca das razões do sacrifício e não obteria resposta. Do ponto de vista humano, a dúvida permaneceria para sempre.


No entanto, Abraão não hesitou: a fé fez com que ele saltasse da razão e da ética para o plano do absoluto, âmbito em que o entendimento é cego. Abraão ilustra na sua radicalidade o desafio da fé. A fé representa um salto, a ausência de mediação humana, porque não pode haver transição racional entre o finito e o infinito. A fé é inseparável da angústia, o temor de Deus é inseparável do tremor.


Por isso, o punhal de Abraão é o símbolo desse salto. É desespero e angústia. Mas o movimento da lâmina, que aparentemente antecede a morte, conduz ao grito de Deus: Abraão! O movimento da lâmina leva a um renascer, a um novo sentido de vida, ao encontro com o filho amado.

O sacrificio de Isaac por Marc Chagall, 1966


Tudo o que a existência envolve de afirmação da fé não pode ser explicado pelo pensamento enquanto representação e significação. O conceito jamais dá conta das tensões e contradições que marcam a vida pessoal. Existir é existir diante de Deus, e a incompreensibilidade da infinitude divina faz com que a consciência vacile como diante de um abismo. Não podemos apreender racionalmente a contemporaneidade do Cristo, que faz com que a existência cristã se consuma num instante e ao mesmo tempo se estenda pela eternidade.


Essa virtude teologal traduz adesão pessoal a Deus e combina reflexão e êxtase. É procura infindável e visão instantânea da verdade. É paradoxo: a alienação é condição da perdição, mas Cristo veio ao mundo para resgatar o ser humano. Qualquer teologia que não leva em conta essas tensões, derivadas de estar o finito e o infinito em presença um do outro, não constitui fundamento adequado da vida.


O duplo movimento do infinito


Quando nos colocamos diante de nós próprios e de nosso destino, olhamos um fato que nenhuma lógica pode explicar: a fé. Esta não é substituição afetiva provisória que dura enquanto não se fortalecem as luzes da razão. É um modo de existir. E esse modo nos situa em relação ao absurdo e ao paradoxo. O paradoxo de Deus feito ser humano e o absurdo das circunstâncias do advento de Cristo.


Cristo, Deus tornado ser humano, é o mediador. É por meio de Cristo que o ser humano se situa existencialmente perante Deus. Cristo é o fato primordial para a compreensão que o ser humano tem de si. Não há mediação conceitual, prova racional que nos transporte à compreensão da divindade. A mediação é o Cristo vivo, histórico, é o fato do sacrifício do cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo.


Aqui se situam as circunstâncias que fazem da encarnação de Cristo um absurdo: a verdade não nos foi revelada com as pompas da representação e significação do objeto pelo pensamento. Ela foi vivida pelo Filho de Deus, que morreu na cruz como criminoso. O acesso à verdade depende da crença no absurdo, pois, como afirma o apóstolo Paulo, "Deus pega os sábios nas suas espertezas". É o absurdo que possibilita a verdade. Caso permanecesse a distância infinita que separa Deus e o ser humano, jamais teríamos acesso à verdade. É a mediação do paradoxo e do absurdo que nos coloca em comunicação com Deus. Por isso devemos dizer: creio porque é absurdo. Este é o caminho do encontro com Deus.


Em seu Diário, Kierkegaard escreveu em maio de 1843, época em que trabalhava no texto de Temor e tremor: "A fé, portanto, tem esperança nessa vida igualmente, mas apenas em virtude do absurdo, não por causa da razão humana; do contrário, seria meramente sabedoria mundana e não fé".


Assim, estamos diante do "duplo movimento do infinito", que nos leva a romper com a finitude, mas possibilita, por meio da fé, recuperá-la. É possível tornar a vida compatível com o amor de Deus. A renúncia nos conduz a uma relação negativa com o mundo, mas a fé nos traz para uma nova relação com o mundo, agora construtiva.

mardi 20 novembre 2012

Violência, uma raiz sem raízes

Por Jorge Pinheiro, de São Paulo

Uma leitura ontológica do espírito, da consciência e da matéria, a base de ser e estar violento: “multiplicarei o teu sofrer e a tua conceição: em dor darás à luz filhos”. (1)

A violência estabelece uma proposição: um princípio atemporal e não espacial, sobre o qual a razão titubeia, uma vez que aparentemente transcende a concepção de humanidade, mas, ao mesmo tempo, reduz qualquer expressão humana. Parece estar além da razão: é impensável. 

  Caim mata Abel

Podemos, no entanto, partir do postulado de que há uma violência ontológica, que antecede toda violência manifesta. Esta causa maior é a raiz sem raiz de tudo que foi e é violência. Despida de atributos não tem, a princípio, nenhuma relação com a violência expressa. É a violência que é e está além da razão de ser violento.

Há uma bomba nuclear de efeito retardado nas grandes cidades brasileiras, que tentam esconder, mas que dá sinais de que está pronta para explodir, agora. E também na Palestina.

O que é violência está simbolizado no ser violento sob dois aspectos: por um lado, é o não-espaço da subjetividade, aquilo que a mente não pode excluir, nem conceber por si mesma. Por outro lado, a violência incondicionada é dinâmica. A consciência é inconcebível quando separada do movimento, pois é ele que leva à mudança. Tal aspecto da violência é simbolizado na ideação“multiplicarei o teu sofrer e a tua conceição: em dor darás à luz filhos”. Um símbolo gráfico da violência presente no parir a vida. Este axioma fundante da violência, ontológico, remete àquilo que podemos simbolizar como características trinitárias da violência.

A natureza da causa da violência, derivada de causa aparentemente sem causa, aflora como consciência da violência, impessoal, que permeia a natureza. Esta causa da violência é o campo da consciência, que transcende a relação com a existência e da qual a existência consciente é um símbolo condicionado. Mas, ao atravessar pela negação a dualidade entre existência e consciência, sobrevém a tríade da violência: o espírito de violência, a consciência da violência e a matéria da violência.

Você vê meninas anos grávidas, garotos que dizem abertamente: morrer, para mim, é lucro. Não têm autoestima, nenhuma perspectiva de futuro, e ninguém faz nada, nem escola, nem governo, ninguém está preocupado com eles. Nas grandes cidades brasileiras e tanbém na Palestina.

Espírito de violência, a consciência da violência e a matéria da violência devem ser consideradas não como independentes, mas correlações que constituem a base do ser ou estar violento. Considerada esta trindade ontológica da violência como a raiz da qual procedem todas as manifestações violentas, a expressão“multiplicarei o teu sofrer e a tua conceição: em dor darás à luz filhos” assume o caráter de ideação do que ainda não é humano. Ela é a fonte da força de toda violência individual e social e fornece os elementos para a análise da violência que perpassa o humano e sua história. Tal raiz pré-humana é o absoluto expresso no “multiplicarei o teu sofrer e a tua conceição: em dor darás à luz filhos”, base da violência objetiva. Tal ideação do porvir humano é a raiz da violência individual e social, porque a substância pré-humana é o substrato da matéria violenta em seus diferentes graus.

A correlação dos aspectos da violência ontológica, de origem, é fundante da existência enquanto violência manifesta. A ideação da humanidade, separada de sua substância, não se manifesta como violência individual e social, uma vez que é somente através de um veículo, a alienação da ideação, que a violência aflora como violência que é, como ato alienado que necessitou de base física para apresentar-se como momento de uma complexidade maior, natural e humana. Da mesma forma, a substância do humano, separada da ideação da humanidade, permaneceria como uma abstração da qual a violência não poderia emergir. A violência-manifesta, assim, é permeada pela correlação, que é fundamento de sua existência como violência que se manifesta.

A repressão deixa um rastro de insegurança e de prejuízo na comunidade, comércio fechado, escolas sem aulas, população com medo. E esta não é uma situação apenas das grandes cidades brasileiras, mas também da Palestina. Os maiores consumidores de violência estão nos Estados Unidos...

As correlações entre violência-manifesta, espírito e matéria da violência são símbolos da violência ontológica, presentes no universo manifestado da violência. Essa correlação é alienação existencial, a ponte através da qual as idéias são impressas enquanto substância da natureza da violência, presentes na forma de leis da natureza e da sobrevivência do humano. A alienação, dessa maneira, é dinâmica da ideação do humano, é meio que guia a manifestação.

Ou como disse Lameque, ser violento mítico consciente do ciclo da violência, apresentado nas escrituras hebraicas: “Ada e Zilá, ouçam a minha voz. Escutem, mulheres de Lameque, as minhas palavras: matei um homem, porque me machucou. E um jovem, porque me pisou. Se são mortas sete pessoas para pagar pela morte de Caim, então, se alguém me matar, serão mortas setenta e sete pessoas da família do assassino”. (2)

Assim, a consciência humana procede também da ideação da violência, e fornece os meios que possibilitam à violência individualizar-se como substância do humano. A alienação em suas manifestações é o elo entre o espírito e a matéria da violência, presença que, dialeticamente, equilibra vida e morte, permanência e destruição.

24/10/2009

Fonte: ViaPolítica/O autor

Referências
1. Gênesis 3.16.
2. Gênesis 4.23-24. 

lundi 19 novembre 2012

Israel e o futuro

Em 1995 (20/11) escrevi artigo para a Folha de S. Paulo intitulado Aliança e Fundamentalismo em Israel. Embora o artigo não tenha sido publicado, acho que nos dá algumas diretrizes para a discussão sobre o moderno Estado de Israel e o futuro. Por isso, vamos partir dele.
Aliança e Fundamentalismo em Israel
Em entrevista a Folha de S. Paulo, falando sobre a Palestina, o filósofo francês André Glucksmann, que é judeu, afirmou que o fascismo está de volta. Declaração inquietante, pois para ele o Hamas, Movimento de Resistência Islâmico, e o partido Kach, que defende a existência de Israel como estado teocrático, são cara e coroa dessa moeda fascista emergente.
É certa que para a vítima de qualquer atentado, não importa muito de onde vem a bala, se do Hamas ou do Kach. Porém, é necessário ir além das aparências. Definições apressadas impedem a compreensão do que está acontecendo com a oposição em Israel.

Ela tem um amplo espectro, que vai do Likud ao partido Kach. A política do Likud, para os territórios ocupados, é a da autonomia limitada, enquanto a política do Kach, elimina qualquer possibilidade de negociação com árabes e palestinos. Por ser considerado “racista e antidemocrático”, o partido Kach foi colocado à margem do processo eleitoral, pela Corte Suprema israelense, em outubro de 1988. Dois anos depois, seu líder, o rabino Meir Kahane, foi assassinado em Nova York.
Apesar as aparentes diferenças, há uma questão teológica que unifica o pensamento religioso em Israel: é a questão da aliança. O conceito de aliança é o centro da teologia judaica. É anterior à própria legislação recebida por Moisés no Sinai, pois, acreditam os judeus religiosos, foi feita com Abraão, 400 anos antes da saída do Egito. Segundo o rabino-chefe de Israel, Israel Meir Lau, em entrevista ao correspondente da Folha, Otávio Dias, os judeus religiosos se opõem à paz ‘porque seguem a Torá, a Bíblia, que descreve as fronteiras prometidas por Deus a Abraão, Isaque e Jacó’. Nessa aliança conforme descrito no capítulo 15 de Gênesis, Deus promete entregar à descendência de Abraão uma terra que vai do rio do Egito (leia-se Nilo) até o Eufrates. Essa é a terra da promessa, Eretz Israel, para os judeus religiosos em todo o mundo.
Para nós, ocidentais, é difícil entender a centralidade da terra de Israel na fé judaica. Nos últimos dois mil anos de diáspora, os judeus expressaram a fé nessa aliança com uma frase: “O ano que vem, em Jerusalém”. Por essa Eretz Israel lutou uma galeria de homens, a começar por aqueles descritos na Bíblia, passando por heróis nacionais, como o rabino Matatias e seus filhos Macabeus, até os guerrilheiros judeus durante a ocupação britânica. Todos esses homens estavam imbuídos do conceito de aliança. Muitos deles seriam hoje chamados, no mínimo, de fundamentalistas.

O que une a oposição israelense é esse conceito, que faz parte da história do judaísmo: uma terra, prometida por Deus, que não se limita as atuais fronteiras, mas está em expansão. Para milhares de judeus, que pensam como o rabino Kahane, a entrega da faixa de Gaza, Jericó e Jenin aos palestinos, a devolução das terras no sul do Líbano, e das colinas sírias do Golã levarão Israel à derrota frente a seus inimigos. Por isso, para os religiosos judeus, Israel só tem sentido enquanto Estado teocrático, segundo a aliança e regido pelas leis de Moisés. Para os crentes nessa visão, a coalizão dirigida por Yitzhak Rabin [assassinato posteriormente] representa os inimigos de Deus dentro de Israel.
O pensamento religioso é a fonte da existência de Israel. Rabin representou, e sua coalizão representa, o ideal ocidental para a Palestina, pressionado por Washington desde a época em que James Baker era secretário de estado, no governo de George Bush. É interessante lembrar que em maio de 1989, Baker em discurso perante a Comissão Americano-Israelense de Assuntos Públicos afirmou que o governo de coalizão do Likud com os trabalhistas deveria abandonar a política de um Grande Israel, interromper a instalação de colônias nos territórios ocupados e negociar a paz com os palestinos. O que acabou levando a coalizão a uma séria crise.

Historicamente, uma experiência parecida, de forte pressão política externa, a da helenização, explodiu na guerra dos macabeus, que teve início no ano 166 a.C., e que levou Israel a vitória e a um expansionismo inédito. Outra experiência, a ocupação romana, teve resultado inverso: acabou com Israel enquanto nação.

É cedo para definir os caminhos da iniciante pacificação palestina. Mas, sem dúvida, olhando a história judaica, é muito difícil imaginar uma Eretz Israel distante do nacionalismo teocrático.



Uma viagem pelo Israel bíblico

Deus prometeu uma terra a Abraão, fazer dele uma grande nação e através dele abençoar todas as famílias da terra. Prometeu a Abraão um herdeiro, gerado por ele, uma descendência como as estrelas do céu e uma terra que iria do Nilo ao Eufrates. Sim, foram cumpridas literalmente: primeiro durante o reinado de Davi e Salomão (1 Rs 4:21), quando o seu poderio político, diplomático e militar estendeu a presença hebréia a toda a Palestina. E depois durante o auge da dominação dos hasmoneus.
A benção que Abraão representaria para os povos é o Messias. Jesus, o Cristo, trouxe a salvação para todos os povos. E os filhos de Abraão, filhos da fé em Cristo, são como as estrelas do céu.

A aliança que Deus fez com Abraão é eterna, porque Deus quer que um remanescente de Israel aceite o Messias e seja salvo. Assim, a centralidade da terra de Israel estava dentro dos planos de Deus no Antigo Testamento, era a concretização da aliança feita com Abraão. Enquanto a antiga aliança vigeu, a promessa e seu cumprimento estiveram diante de Israel. No entanto, há uma condicionante, não da parte de Deus, mas da parte de Israel (Ex. 19:5-6). As promessas de reconstrução, como Amós 9:11-15, Zc 8:2-3; 9:9-10 referem-se ao tempo do Messias, quando Jerusalém e o templo exultaram com a presença do filho de Deus.
A promessa a Abraão foi incondicional, mas já se cumpriu. Incondicional é diferente de contínua. A promessa tinha um objetivo, uma finalidade, preparar o caminho para o Messias e a redenção da humanidade. As maldições da lei mosaica não entram em choque com a promessa, apenas mostram que Deus é justo e que o pecado poderia afastar Israel das bênçãos da promessa. E que a alienação dos judeus da terra que Deus lhes deu é uma conseqüência da condicionalidade das bênçãos.

É fundamental entender que a nova aliança é firmada com a casa de Israel. Essa nova aliança não tem mais como centralidade uma geografia específica, um lugar definido no planeta. Ela é cósmica, e está escrita no coração. Dentro dessa perspectiva é que devemos ler Ez 37:15-28. É uma promessa escatológica, para o Israel espiritual, que reúne a igreja e os remanescentes do Israel físico. Sem dúvida, a posteridade de Davi durará para sempre. Quer através dos remanescentes, quer através dos filhos espirituais de Abraão. Na verdade, conforme vemos em Hebreus 8:8-12 a velha aliança desapareceu. Vivemos uma nova aliança, que é não somente eterna, mas permanente, contínua.

Foi prometido que viria um rei, um descendente de Davi, que teria seu reino estabelecido pelo próprio Deus. Viria como criança, mas é maravilhoso conselheiro, Deus forte, Pai eterno, Príncipe da paz, terá o espírito de Iaveh, sábio, inteligente, julgará com justiça, desprezado, homem de dores, ferido, humilhado, etc.

Assim há dois momentos do ministério do Filho do Homem: o primeiro de Servo Sofredor, Cordeiro de Deus, ferido e morto para salvação de todo aquele que nele crê; e Filho do Deus Altíssimo, aquele que virá para julgar e reinar para sempre.

Os discípulos queriam saber se era aquele momento em que o Cristo haveria de restaurar a realeza em Israel. No capítulo 11 de Romanos há dois conceitos paulinos que devem nortear nossa análise: o endurecimento por parte de Israel e a plenitude (pleroma) dos gentios. A relação dialética desses dois conceitos leva a uma síntese...”e assim todo Israel será salvo” (v. 26). Em que sentido Paulo está utilizando a expressão todo? No versículo 32, ele usa todos no sentido de israelitas incrédulos, que encontram a salvação através do arrependimento e da fé.

Em relação ao versículo 26 podemos optar por três variáveis: Paulo está falando do Israel espiritual; pode estar falando do Israel racial ou ainda de um remanescente do Israel histórico. Dificilmente, poderíamos aceitar que todo Israel significa a salvação universal de homens e mulheres israelitas devido sua origem genética, já que tal idéia entra em choque com o que Paulo ensina (2:28-29).

Por isso, o mais lógico, se aceitamos que o texto fala mesmo do Israel racial é considerar que esse todo refere-se a aqueles que, pela fé, aceitam a Jesus como seu salvador pessoal. A crescente conversão de judeus mostra que a noção daquilo que sobrou, resto ou remanescente realiza-se plenamente no conceito assim todo Israel será salvo. Se entendermos assim, fica claro que a graça fundamenta a eleição. Ou seja, o que esteve separado - antes eram oliveiras diferentes - já não será assim. Agora, são uma só.

O centro nevrálgico do livro de Jeremias é Jr 31:31-34. Depois do fracasso da antiga aliança (cf. versículo 32 e Ez 16:59) a vontade de Iaveh aparece sob nova luz. Depois de uma catástrofe (cf. Is 4:3; 6:13; 7:3; 10:19-21; 28:5-6; 37:4; 37:31-32; Am 3:12; 5:15; 9:8-10; Mq 4:7; 5:2; Sf 2:7-9; 3:12; Jr 3:14; 5:18; Ez 5:3.) sobrará apenas um resto. Se tomarmos a profecia como já realizada, após a catástrofe de 587 surge uma nova idéia: o resto encontrar-se-á entre os deportados (Ez 12:16). No exílio este resto se converterá (Ez 6:8-10 cf. Dt. 30:1-2) e Iaveh reunirá esse remanescente para a restauração messiânica (cf. Is 11: 11-16; Jr 23:3; 31:7, 50:20; Ez 20:37; Mq 2:12-13). Mas, após o regresso da diáspora babilônica, aqueles que sobraram, de novo se afastam da vontade de Deus e se colocam debaixo de sua ira (Zc 1:3; 8:11; Ag 1:12).

Mas Cristo é e será o verdadeiro rebento do novo e santificado Israel. É interessante notar que, ao contrário de Israel, as nações pagãs não terão um remanescente (Is 14:22-30; 15:9; 16:14; Ez 21:37; Am 1:8). Como nos dias de Noé, uma aliança eterna foi firmada através de um acordo inteiramente novo (Is 54: 9-10). As alianças antigas caducam por três razões: a iniciativa de Iaveh de perdão dos pecados (Jr 31:34, Ez 36:25, 29; Sl 51:3-4, 9); a responsabilidade e a retribuição pessoal (Jr 31:29; Ez 14:12 e ss.); e a interiorização da religião.

Assim, a Lei não é mais uma carta externa, mas uma inspiração que atinge o coração (Jr 31:33; 24:7; 32:39). Através do Espírito de Iaveh o judeu ganha um coração novo (Ez 36:26-27, Sl 51:12; cf. Jr 4:4 e ss.) e é capaz de conhecer a Deus (Os 2:22 e ss.). Esta aliança eterna e nova, proclamada por Ezequiel (Ez 36:25-28), está nos últimos capítulos de Isaías (Is 55:3; 59:21; 61:8) e expressa no Sl 51, será inaugurada pelo sacrifício de Cristo (Mt 26:28) e sua realização será anunciada por Paulo (2Co 3:6; Rm 11:27) pelo escritor de Hebreus (8:6-13; 9:15 e ss.) e por João (I,5:20).

Há um grande equívoco na formatação do conceito Israel histórico no período de pós-plenitude dos gentios: é a equalização entre a existência de um remanescente e a existência de um Estado judeu que por razões escatológicas seria restaurado enquanto Estado nacional. Se tomarmos Ef 2:11-22 vemos que Cristo, o Homem Novo, protótipo da humanidade restaurada pelo sangue da cruz, aniquila o primeiro Adão, eliminando as divisões entre os homens (Cl 3:10-11; Gl 3:27-28).

Os sacerdotes que aceitaram a Jesus, como o Messias prometido, sofreram vários tipos de pressões: econômicas, pois perderam seus direitos em relação ao ofício no templo, sociais, familiares e físicas. Logicamente, viram-se tentados a voltar ao antigo ofício e abandonar o Caminho. O escritor de Hebreus, no entanto, mostra que Cristo sintetiza toda a religião judaica a um nível superior: está acima dos anjos, é um sumo-sacerdote fiel e misericordioso, tem o único e verdadeiro sacerdócio, é anterior e está acima dos sacerdotes levitas, sua mediação e sacrifícios são eternos.

Vejamos Êxodo 19 com atenção. O povo hebreu estava próximo de Horebe, mas não podia subir ao monte com Moisés. Mas agora a igreja surge sobre a própria rocha (Mt 21:42, Sl 118:22) e os crentes podem se aproximar de Cristo. O novo sacrifício, de Cristo, sobrepõe-se aos antigos sacrifícios. Rejeitando as boas novas em Cristo, os judeus perderam suas prerrogativas, agora transferidas para a igreja (I Pe 3:9; At 28:26-28; cf. Jo 12:40). Logicamente essa afirmação completa-se com Rm 11:32 e 1Tm 2:4, entre outros, porque não podemos declarar que haja uma rejeição escatológica do remanescente.



A dialética do Israel histórico

Unidade e diversidade expressam-se na história do povo de Deus. Em relação aos judeus podemos citar Joiachim Heinrich Biesenthal (1800-1886), Jehiel Zvi Lichtenstein (1827-1912), e nesse século, Victor Buksbazen, Charles Lee Feinberg, Moshe Immanuel Ben-Maeir, Louis Goldberg, Arnold Fruchtenbaumm e David Stern, entre outros, como grandes comentaristas e teólogos dos Evangelhos e Novo Testamento. Sem dúvida, a igreja cristã tem muito a aprender com eles.

Mas fora da área acadêmica, nossos irmãos judeus, que aceitaram a Yeshua como seu Mashiach, cumpriram no passado remoto, recentemente e hoje um papel fundamental na pregação da Palavra, tanto na Palestina como no resto do mundo. Um nome que gostaria de citar é o ex-rabi-chefe da Bulgária, Daniel Zion, que teve seu encontro com Mashiach numa situação muito parecida com o apóstolo Paulo. Estava orando o Shacharit quanto Yeshua lhe apareceu. A visão repetiu várias vezes e Yeshua disse-lhe que era o Mashiach de Israel. Daniel Zion foi rabino-chefe na Bulgária de 1928 a 1948. Aceitou Yeshua o Mashiach em 1930. Escreveu mais de 20 livros. Quando Hitler invadiu a Bulgária e quis enviar milhares de judeus para os campos de concentração poloneses, Rav Daniel intercedeu junto ao rei Bóris II para que ele não o permitisse. Dessa maneira, conseguiu salvar 50 mil judeus dos campos de concentração. Depois da guerra foi para Israel, tornando-se rabino numa sinagoga de Yaffa. Nos sábados de manhã conduzia os serviços normais da sinagoga e à tarde dava aulas de Novo Testamento às suas ovelhas. Proclamou abertamente sua fé em Yeshua e sempre foi respeitado, tanto pela comunidade judia búlgara em Israel como pelas autoridades israelenses. Morreu em 1979 e hoje é considerado um herói do judaísmo e da resistência antifascista. E, logicamente da igreja cristã, também. Isto, ao meu ver, é unidade e diversidade, hoje, no relacionamento entre judeus e a igreja cristã.

Outro exemplo. Meu irmão de longas lutas de evangelização de judeus, o rabino Mário Najmanovich. Rabino messiânico, os ofícios da sinagoga de Najmanovich são acompanhadas com música e danças hebraicas, na mais pura tradição revivalista. Aqui, mais uma vez, vemos unidade e diversidade na relação entre o remanescente judaico e a igreja: os ofícios da sinagoga acontecem aos sábados, são realizados em hebraico e português, com folclore, danças, Torah e todos os elementos de vestuário e paramentos que caracterizam o culto da sinagoga. E aos domingos temos o culto cristão. Cristo é adorado, assim, num só espaço, por culturas diferentes, seguindo tradições diferentes.

O capítulo 14 de Zacarias anuncia que a adoração de Iaveh se estenderá por todo o cosmo, unificando os tempos (o dia único), transformando os lugares (nivelamento de Jerusalém), fazendo desaparecer as ocasiões e mesmo as lembranças de idolatria. Os movimentos do combate escatológico combinam-se com as descrições da criação das coisas novas. Traduz a riqueza da topologia escatológica, que vemos nos textos do AT que se referem ao monte Sião e à Jerusalém.

Ezequiel 40-48 apresenta um plano da reconstrução religiosa e política de Israel na Palestina. É um debruçar-se sobre o passado para ver o futuro. É o texto de um reformador e organizador da nova comunidade. Nesse sentido ele apresenta ao judaísmo diretrizes que deverão balizar todo o movimento reformador judaico de Esdras até a nascente igreja cristã, servindo, sem dúvida, de base de apoio para o texto inspirado de João no Apocalipse. Aqui encontramos o ideal de santidade e da presença de Deus, que terá sua tradução no culto racional dos cristãos.

Assim, Israel tem um lugar especial na história humana e na história da redenção. Sua reconstrução, enquanto nação, exercerá uma influência cada vez maior sobre a igreja. Essa influência durante centenas de anos coube a Roma, o centro da fé cristã antes da Reforma. Com a Reforma o conceito de centro geográfico do cristianismo sofreu um esfacelamento e muitas correntes cristãs passaram a sentir-se órfãs por falta desse elemento balizador.

Atualmente, com a existência do Estado de Israel, há um movimento crescente que considera Jerusalém cidade santa do cristianismo e Israel a terra da promessa. Tudo indica que começamos a viver um momento de inversão na história do cristianismo, um contra fluxo na teologia paulina, onde o judaísmo tende a penetrar forte com tradições, costumes e liturgia dentro do culto cristão.

Logicamente, esta tendência não se dá apenas ao nível da forma, mas da exegese e da hermenêutica. Se esse movimento é positivo, no sentido que cria as bases para uma síntese judaico-cristã, onde os galhos se unem para formar uma só oliveira; ou negativo, já que quebra a liberdade cristã e nos leva de volta à lei e à morte, não podemos dizer. Um dado, porém, deve ser levado em conta: o surgimento do Estado de Israel possibilita a evangelização em massa dos judeus. A volta a Israel é um movimento crescente, porque cada vez mais rabinos pregam que os Estados Unidos serão destruídos por um ataque nuclear e que o lugar menos seguro para um judeu viver será na América.

Esta é a posição de judeus como Tom Hess, e cristãos como Charles Parham e David Wilkerson. Diante do temor de outro holocausto e de uma crise econômica ao estilo de 1929, milhares de judeus passaram a aplicar parte de suas posses em Israel. Esse movimento de volta a Israel, que chamamos aliyah foi fomentado por pessoas influentes, como o ex-prefeito de Jerusalém Teddy Kollek, pelo primeiro-ministro Yitzhak Shamir e pelo rabino ortodoxo Menachem M. Shneerson, líder falecido do movimento Lubavitch, entre outros.

A presença do Estado de Israel no cenário político internacional não aconteceu por acaso. Até agora, os cristãos mantiveram Israel, através de apoio militar, financeiro, político e diplomático. Para os cristãos e para a política ocidental, Israel sempre foi visto como um aliado estratégico no Oriente Médio. Mas prefiro olhar meus irmãos judeus como irmãos que precisam de Cristo. Diante disso, a tarefa cristã é a pregação do evangelho aos judeus. Talvez para isso Deus tenha reconstruído a nação judaica. Por amor. Para que um remanescente conheça seu Messias e o dia do Senhor se realize.




A propósito do Milênio e do papel escatológico do Estado de Israel

Falar sobre a história da Igreja nos leva a falar sobre o Estado de Israel, em especial por causa da utilização que setores da igreja fazem das Escrituras, impossibilitando uma clara pregação neotestamentária do Evangelho aos judeus, já que idolatram a velha aliança. Quando partimos de uma postura teológica cristocêntrica, encontramos sérias dificuldades em aceitar exposições em voga, quanto ao milênio e ao papel futuro do Israel histórico.

Sem dúvida, a apocalíptica, diferente da profecia clássica, tem três objetivos: falar de eventos futuros (cf. Ap 1:3; 22:7 e 10); revelar fatos ocultos no momento presente (Lc 1:67-79; At 13:6-12); e ministrar consolo e exortação, geralmente em linguagem de alto impacto (At 15:32; I Co 14:3, 4 e 31).

Nossa primeira pergunta é se os princípios hermenêuticos utilizados na apocalíptica devem ser os mesmos que se aplicam aos outros gêneros literários encontrados no texto sagrado, ou se necessitamos de um método hermenêutico especial. Os procedimentos tradicionais para a profecia clássica são as análises contextual, histórico-cultural, léxico-gramatical e teológica.

Mas o grande problema é saber quando devemos interpretar o texto literalmente e quando deve ser analisado simbolicamente ou analogicamente. É o caso a expressão “besta que sai do mar” (Ap 13:1). Esta expressão, besta que sai do mar, não pode ser encarada como uma expressão literal. É uma pessoa, é uma cidade, é um poder? Assim, o problema não está em antepormos um método literalista a outro estritamente simbólico. Um recurso pode ser o método analógico, que toma as declarações literalmente, mas depois as contextualizam.

Outro problema é se a linguagem apocalíptica tem universalidade ou se uma mesma palavra pode ter significados diferentes. Como é o caso dos números, das cores e de conceitos.

Mas o maior problema da hermenêutica apocalíptica, no meu entender, é definir se o texto reflete uma contração profética, tem cumprimento evolutivo ou cada passagem tem uma única realização intencional.

Devido a essas dificuldades, opto pela seguinte hermenêutica em relação à literatura apocalíptica: análise histórica e cultural para definir um que condições o texto foi produzido, e checar se a profecia foi cumprida ou não; análise léxica e sintática, a fim de determinar que palavras foram utilizadas em sentido simbólico ou analógico; análise teológica para determinar se há passagens paralelas ou ciclos que se repetem dentro da mesma profecia.

Logicamente, não posso perder de vista de que estou diante de um texto figurativo e, por isso, com forte conteúdo simbólico e analógico.

Em relação ao livro do Apocalipse minha posição aproxima-se ao paralelismo progressivo de Hendriksen, defendido por Hoekema, que considera a existência de sete seções paralelas, que descrevem num crescendo a relação entre a igreja e o mundo, desde o primeiro século até o retorno de Cristo.

Teríamos assim um primeiro bloco nos capítulos 1 a 3, que é a visão do Cristo glorificado, formando uma unidade com as cartas e as igrejas. Um segundo bloco nos capítulos 4 a 7, que é o da igreja sofrendo perseguições, tendo ao fundo o Cordeiro vitorioso.

O terceiro bloco, que vai dos capítulos 8 a 11, mostra a igreja vingada, protegida e vitoriosa. No quarto bloco, dos capítulos 12 a 14, temos a visão de dois auxiliares de Satanás, que fazem oposição à igreja.

O quinto bloco, nos capítulos 15 e 16, mostra a visitação final da ira de Deus sobre os impenitentes. No sexto bloco, nos capítulos 17 a 19, temos a queda das forças do secularismo e da impiedade que se opõem ao reino de Deus.

E por fim, no último bloco do livro, temos a derrota de Satanás, o juízo e o triunfo final de Cristo e de sua igreja, e o universo restaurado.

Sem dúvida, nessas sete seções há uma progressão escatológica, que nos fornecem a cada passo maiores informações sobre a luta de Cristo e sua igreja com Satanás e as forças da impiedade.

Esta é a única passagem da Bíblia que fala claramente de um reino de mil anos. É uma passagem que divide-se em duas partes: a primeira que fala do acorrentamento de Satanás (1 a 3) e a segunda do reinado de mil anos com Cristo.

Como acredito e expus, os capítulos 20 a 22 não descrevem o que se segue à volta de Cristo, mas o versículo 20:1 nos leva, de novo, ao princípio da era cristã.

A derrota de Satanás começou com a primeira vinda de Cristo (cf. 12:7-9), logicamente o reinado de mil anos de Ap 20:4-6 acontece antes da volta de Cristo, porque depois (Mt 16:27; 25:31-32; Jd 14-15, 2 Ts 1:7-10) temos o juízo final. E como este juízo está ligado à volta do Rei Jesus, Senhor dos senhores, parece-me claro que o reinado deve acontecer antes e não depois do retorno de Cristo.

Particularmente, dentro da tradição judaica, mil é todo o número que não se conseguia contar. É um período completo, mas de extensão indeterminada. Estamos vivendo a era do Evangelho. Satanás está acorrentado pela verdade da proclamação do Evangelho (Mt 28:19), por isso, e graças a Deus por isso, podemos pregar o Evangelho e fazer discípulos de todas as nações.

É claro que ele pode operar ainda, fazer o mal, mas não pode enganar as nações a ponto de impedi-las de ouvir e aprender a verdade de Deus (Jo 12:31-32). Podemos definir esta situação em duas conclusões: o acorrentamento de Satanás na era do Evangelho significa que ele não pode impedir o crescimento do Evangelho (Mt 13:24-30; 47-50); (b) e que ele não pode reunir todos os inimigos de Cristo para atacarem a igreja.

A segunda parte do texto mantém o mesmo período de tempo, mas muda de perspectiva. Se nos versículos 1-3 a ação acontecia na terra, agora João vê o que está acontecendo nos céus. Vê os mártires e todos aqueles que resistiram aos poderes da impiedade e já morreram.

Só há uma ressurreição física (Jo 5:28-29; At 24:15). “Viveram e reinaram com Cristo durante mil anos” fala daqueles que estão com Cristo (Fp 1:23; 2 Co 5:8; Ap 3:21), hoje, sentados em tronos, na glória, participando do reinado de Cristo.

Assim como não temos indicações de que João esteja falando de um reino de mil anos, literais, aqui na terra, também não temos nenhuma indicação de que o centro desse reino será a Palestina ou Jerusalém histórica.

samedi 17 novembre 2012

Longuet, socialisme et religion


L'OFFICE UNIVERSITAIRE DE RECHERCHE SOCIALISTE
17 Novembre 112

Longuet, socialisme et religion


La synthèse est difficile, dit le conférencier, entre le point de vue blanquiste de Perceau et le point de vue mystique d’André Philip ; mais nous pouvons nous rencontrer toutefois sur une partie des idées exprimées par l’un et par l’autre.

Pour nous, l’action socialiste, c’est la conquête des masses, en vue de leur éducation pour la transformation profonde de la société.

Nous examinerons donc la question des rapports entre le socialisme et la religion en fonction de l’action socialiste ; nous nous demanderons dans quelle mesure notre attitude en face du problème religieux peut attirer et conquérir ou au contraire éloigner ces masses.

Le socialisme poursuit non la lutte contre la Divinité mais contre le capitalisme ; il est vrai que Perceau dirait que la divinité est un rempart du capitalisme.

Les pays où le socialisme évolue sont les pays industriels où domine le christianisme, et nous savons que, dans le cours des âges, le christianisme a beaucoup évolué ; le christianisme primitif était un mouvement populaire, ayant des aspirations socialistes ; il est vrai que c’était plutôt un socialisme de mendiants qu’un socialisme de producteurs ; le christianisme des catacombes est bien loin du catholicisme des siècles suivants ; dès après Constantin, cet aspect social du christianisme disparaît et la religion devient la religion des possédants et des puissants, qu’elle défend contre les révoltés.


La Réforme

La Réforme, quoi qu’on en ait dit, a été un grand mouvement d’émancipation ; elle a représenté la révolte de la raison contre l’orthodoxie ; elle a été un précurseur de la Révolution et de l’évolution de la démocratie moderne.

Calvin, il est vrai, a montré de l’étroitesse d’esprit ; on peut dire qu’il a exprimé la vraie religion du capitalisme ; sa doctrine de la prédestination des âmes semble aussi envisager la prédestination d’origine divine aux biens et aux malheurs de ce monde ; mais il ne faut pas ignorer la gauche et l’extrême gauche du mouvement, pénétrées d’idées socialistes, comme les niveleurs de Cromwell qui poursuivaient l’abaissement des riches comme les mouvements anabaptistes des paysans allemands qui prêchaient l’égalité et la fraternité au nom du Christ. Certes, le protestantisme a revêtu des formes diverses et ces mouvements populaires n’ont rien de commun avec la forme hiérarchisée du protestantisme anglican telle que l’avait établie Édouard VI.


La lutte contre l’esprit de l’Église romaine

La lutte contre l’esprit de l’Église romaine a pris elle aussi des formes différentes ; réforme protestante en Angleterre, en Allemagne, en Suisse ; forme plus rationalisée du déisme et de l’athéisme des intellectuels français au XVIIIe siècle, qui ont représenté la hardiesse d’esprit d’une classe en plein essor, classe qui monte, qui a confiance en elle et s’attaque à la puissance qui s’oppose à elle ; le point culminant de cette ascension anticléricale a été l’éphémère triomphe hébertiste pendant la Révolution. Ce mouvement s’est continué au cours du XIXe siècle avec Renan, Darwin, Herbert Spencer ; mais la fin de ce siècle marque une régression de la pensée bourgeoise ; à ce moment, la bourgeoisie apeurée, considérant la religion comme une gendarmerie intellectuelle, commence à professer qu’il faut une religion pour le peuple.

C’est contre ce caractère que s’élève Marx quand il dit que la religion est l’opium du peuple.
Otto Bauer, dans une brochure récente, fait remarquer que, en effet, la religion peut être cet opium ; c’est également la pensée de Jaurès dans le discours où se trouve la poétique allusion à la «vieille chanson qui berçait la misère humaine» et pourtant il arrive que la religion prête son idéologie à la révolte instinctive. Le discours sur la Montagne, l’apologue du chameau et de l’aiguille, certains prophètes, certaines paroles du Christ ont exalté la révolte des souffrants contre les oppresseurs. Un tel état d’esprit se trouve parfois chez les catholiques, à plus forte raison, le trouvons-nous chez les sectateurs des religions que Vandervelde appelle les religions de liberté.


En Angleterre et aux États-Unis

En Angleterre et aux États-Unis, les mouvements ouvriers sont liés à des aspirations religieuses ; on peut citer l’exemple de Keir Hardie, le grand socialiste dont Vaillant disait qu’il semblait un grand prophète de la Réforme, un contemporain des anabaptistes. Les protestants qui appartiennent à des sectes non conformistes rallient souvent les rangs du parti socialiste ; ces religions de liberté n’ont qu’un principe, qu’un livre : la Bible ; chacun l’interprète selon sa propre inspiration et l’on peut affirmer, après des séjours prolongés, en Angleterre et aux États-Unis, que certains aboutissent à des conclusions très hardies.
Le pasteur Holmès, avec lequel le conférencier s’est trouvé en relations, et qui est pasteur à New York, appelle Dieu la catégorie de l’idéal, ce qui est une définition peu gênante. Il professe qu’un athée qui a des convictions désintéressées est plus près de Dieu qu’un croyant injuste. Et l’on peut dire que ce pasteur est plus près de nous qu’un patron oppresseur et athée.


Sur le continent

Sur le continent la position est différente. En Allemagne, la plupart des protestants sont réactionnaires, bien que les luthériens aient une gauche, plus faible qu’en Angleterre.
En Allemagne catholique, en France, on trouve toujours l’Église contre la démocratie et le socialisme. Parfois, à de courtes époques, on a pu trouver des prêtres libéraux, comme Lammenais, mais ils ont été vite reniés, excommuniés et chassés.

Politiquement, l’Église s’est toujours opposée à l’esprit de la Révolution. Elle a soulevé la Vendée contre la République ; elle s’est associée à fond avec les réactionnaires de la Restauration ; elle a soulevé contre elle le mouvement de 1830. En 1848, quelques ministres catholiques ont paru se rapprocher du peuple ; mais tout de suite après ils ont rallié le parti de l’ordre, et l’on peut citer comme symbole le spectacle tiré par Charles Longuet : près de Varlin montant son calvaire vers Montmartre, un prêtre en soutane conduisant la foule hurlante, et nous avons vu de ces prêtres plein de haine, excitant les passions pendant l’Affaire Dreyfus.
Il faut tenir compte de cet état d’esprit et ne pas abandonner la revendication de la laïcité de l’école, ne pas nous laisser ravir la liberté de conscience ; mais nous ne voulons pas à notre tour nous montrer intolérants et entrer en lutte avec les idées religieuses.

Notre but est la transformation sociale ; nous croyons que dans un milieu plus libre, les idées se modifient ; à l’inverse, le radicalisme professe qu’il est nécessaire de modifier les idées d’abord.

Il paraît impossible que le parti se place maintenant sur le terrain sur lequel se plaçait le parti blanquiste, et d’ailleurs selon le mot d’Engels «on ne saurait rendre à Dieu de plus grand service que de déclarer l’athéisme obligatoire».

D’ailleurs, nous n’avons pas l’ambition de supprimer tout sentiment religieux ; ce qui est odieux, c’est la pression économique qui oblige ceux qui sont dans une certaine dépendance à affecter des convictions religieuses qu’ils n’ont pas.

Otto Bauer disait que même dans la cité socialiste, il y a aurait des heures, où devant la tombe d’un être cher, on sentirait que le sens de la vie échappe à la science. Le but du socialisme n’est pas de proscrire ces expansions de la nature ; son but c’est de conquérir les masses.
Il faut dire aux producteurs : vous êtes des exploités, vous êtes des victimes de l’ordre social, vous avez des intérêts communs, unissez-vous ; nous ne pouvons ajouter : si vous avez des croyances, vous ne pouvez pas participer à l’action socialiste.


Une confusion à éviter

On est souvent tenté de faire une confusion entre la doctrine du matérialisme historique, telle que l’a expliquée Marx et le matérialisme philosophique des encyclopédistes.

Il peut y avoir une filiation entre les deux doctrines, et certains socialistes les ont professées toutes les deux : entre autres Plekhanof et Lénine ; mais d’autres, au contraire, Fritz Adler, par exemple, physicien philosophe, ont développé la doctrine du matérialisme en se refusant à approfondir l’inconnaissable.

Max Adler, distingué professeur autrichien, professe le matérialisme historique et le concilie avec ses conceptions religieuses.

Dans l’Internationale, il est bien des différences de pensée ; mais il est certain qu’il nous faudra nous dresser contre l’Église, non contre les conceptions religieuses, mais contre l’influence politique qu’elle cherche à conserver et qui est un boulevard de la défense capitaliste.

Nos camarades autrichiens pensent que dans le parti, l’élite des militants libres-penseurs a un rôle éducateur spécial à jouer pour le développement de la culture socialiste de demain, mais pourtant nous n’avons pas à poser la question préalable au point de vue religieux aux éléments qui viennent à nous.

Il suffit qu’ils acceptent notre doctrine, la reconnaissance de la lutte des classes, l’organisation pour la socialisation des moyens de production et d’échange, tous les points qui sont sur un autre plan que la religion.

Ne tombons point dans l’erreur des Soviets ; cette conception aboutit à la formation de révolutionnaires professionnels, entraîneurs officiels de la masse, et résolument matérialistes et athées. On a fermé les églises, déporté les prêtres sans succès. d’ailleurs, car l’histoire démontre qu’on ne peut arracher les croyances par la force ; et cette politique peut faire courir des risques à la Révolution.

Mais nous, nous voulons grouper les masses, capter les jeunes enthousiasmes, et les faire servir au grand œuvre de la libération humaine.

Si dans certaines âmes subsiste un reste des doctrines du christianisme primitif, nous n’avons pas à repousser les éléments qui viennent à nous avec franchise et loyauté.

vendredi 16 novembre 2012

A violência da globalização

Quando o fascismo e a intolerância ressurge na Europa, como resposta à crise cultural, econômica e social, este texto do filósofo francês Jean Baudrillard apresenta algumas questões que devem ser analisadas. Eis um bom desafio para esses feriados mornos.
Jorge Pinheiro.

A violência da globalização
Por Jean Baudrillard

Seria a globalização uma fatalidade? De alguma forma, todas as outras culturas que não a nossa escapavam à fatalidade da troca indiferente. Onde se situará o limiar crítico da passagem ao universal e, depois, ao mundial? Que vertigem será esta que impulsiona o mundo para a abstração da Idéia, e esta outra vertigem que incita à realização incondicional da Idéia?

Porque o universal era uma Idéia. Quando se realiza no mundial, ela se suicida enquanto Idéia, enquanto fim ideal. Como o humano se tornou a única instância de referência e a humanidade imanente a si mesma passou a ocupar o vazio deixado por Deus morto, o humano agora reina sozinho, mas já não tem motivação final. Não tendo mais inimigo, engendra-o do interior e secreta todos os tipos de metástases inumanas.

Conquistas da modernidade e do progresso

Donde a violência do mundial - violência de um sistema que persegue qualquer forma de negatividade, de singularidade, inclusive a forma última de singularidade que é a própria morte - violência de uma sociedade em que estamos virtualmente proibidos de conflito, proibidos de morte - violência que, de certa maneira, põe fim à própria violência e que trabalha para instalar um mundo livre de qualquer ordem natural, seja a do corpo, a do sexo, a do nascimento ou a da morte.

Mais do que de violência, seria necessário falar de virulência. Trata-se de uma violência que é viral - que atua por contágio, por reação em cadeia, e destrói, pouco a pouco, todas as nossas imunidades e nossa capacidade de resistência.

Entretanto, nada está decidido, e a globalização não ganhou por antecipação. Diante desse poder homogeneizante e dissolvente, se vê, em toda parte, levantarem-se forças heterogêneas - não só diferentes, mas também antagônicas. Por trás das resistências cada vez mais intensas à globalização, sociais e políticas, é preciso ver mais do que uma rejeição arcaica: uma espécie de revisionismo dilacerante quanto às conquistas da modernidade e do “progresso”, de recusa não apenas da tecno-estrutura mundial, como também da estrutura mental de equivalência de todas as culturas.

Este ressurgimento assume aspectos violentos, anômalos, irracionais em relação a nosso pensamento esclarecido - formas coletivas étnicas, religiosas, lingüísticas - mas, igualmente, formas individuais de perturbação do caráter ou neuróticas. Seria um erro condenar esses sobressaltos como populistas, arcaicos ou mesmo terroristas. Tudo o que faz um acontecimento hoje o faz contra essa universalidade abstrata - inclusive o antagonismo do islamismo com os valores ocidentais (pelo fato de ser a mais veemente contestação desses valores, é que, hoje, o Islã é seu inimigo número um).

Vingança de culturas singulares

Quem poderia impedir o sucesso do sistema mundial? Certamente não o movimento antiglobalização, que só tem por objetivo frear a desregulamentação. Seu impacto político pode ser considerável, mas o impacto simbólico é nulo. Essa violência é também uma espécie de peripécia interna que o sistema pode superar sem perder o controle da situação.

O que pode impedir o êxito do sistema não são alternativas positivas, são singularidades. Ora, estas não são positivas nem negativas. Não são uma alternativa; são de outra ordem. Não obedecem mais a um juízo de valor nem a um princípio de realidade política. Podem, pois, ser o melhor ou o pior.

Não é possível, portanto, confederá-las numa ação histórica conjunta. Impedem o sucesso de todo pensamento único e dominante, mas não são um contra-pensamento único - elas inventam seu jogo e suas próprias regras do jogo.

As singularidades não são necessariamente violentas, e algumas são sutis, como as da língua, da arte, do corpo ou da cultura. Mas há algumas violentas - como a do terrorismo. É a que vinga todas as culturas singulares que pagaram com seu desaparecimento a instauração desse único poder mundial.

Despeito feroz entre culturas

Não se trata, portanto, de um “choque de civilizações”, mas de um confronto - quase antropológico - entre uma cultura universal indiferenciada e tudo o que, em qualquer área, conserva algo de uma alteridade irredutível.

Para o poder mundial, tão radical quanto a ortodoxia religiosa, todas as formas diferentes e singulares constituem heresias. Por esta razão, estão condenadas a entrar, querendo ou não, na ordem mundial ou a desaparecer. A missão do Ocidente (ou melhor, do ex-Ocidente, visto que há muito deixou de ter valores próprios) é submeter, por todos os meios, as múltiplas culturas à lei da equivalência.

Uma cultura que perdeu seus valores só pode se vingar nos valores das outras. Inclusive as guerras - como a do Afeganistão - visam primeiro, para além das estratégias políticas ou econômicas, a normalizar a barbárie, a obrigar todos os territórios a se alinharem. O objetivo é dominar toda e qualquer região refratária, colonizar e domesticar todos os espaços selvagens, tanto no espaço geográfico quanto no universo mental.

A instalação do sistema mundial resulta de um despeito feroz: o de uma cultura indiferente e de baixa definição em relação a culturas de alta definição; o dos sistemas desencantados, que perderam a intensidade, em relação a culturas de alta intensidade; o das sociedades dessacralizadas em relação a culturas ou formas sacrificiais.

Humilhação contra humilhação

Para tal sistema, qualquer forma refratária é virtualmente terrorista. É o caso ainda do Afeganistão. Que, num território, todas as permissões e liberdades “democráticas” - a música, a televisão, inclusive o rosto das mulheres - possam ser proibidas, e que um país possa tomar o contrapé total do que chamamos de civilização - qualquer que seja o princípio religioso invocado -, tudo isso é insuportável para o resto do mundo “livre”.

Não se considera que a modernidade possa ser renegada em sua pretensão universal. Que ela não seja vista como a evidência do bem e o ideal natural da espécie, que se conteste a universalidade de nossos costumes e de nossos valores - ainda que por algumas mentes imediatamente caracterizadas como fanáticas -, tudo isso é um crime em relação à visão do pensamento único e do horizonte consensual do Ocidente.

Esse confronto só pode ser compreendido à luz da obrigação simbólica. Para compreender o ódio do resto do mundo em relação ao Ocidente, é preciso inverter todas as perspectivas. Não se trata do ódio daqueles de quem se tirou tudo e aos quais nada se retribuiu mas, sim, do ódio daqueles a quem tudo se deu sem que eles pudessem retribuir. Não é, portanto, o ódio da espoliação e da exploração, é o ódio da humilhação.

E é a este que responde o terrorismo do 11 de setembro: humilhação contra humilhação. O pior para a potência mundial não é ser agredida ou destruída, é ser humilhada. E a potência foi humilhada pelo 11 de setembro, porque os terroristas lhe infligiram, então, alguma coisa que ela não pode retribuir. Todas as represálias são apenas um aparelho de coação física, ao passo que ela foi desfeita simbolicamente.

A guerra responde à agressão, mas não ao desafio. O desafio só pode ser aceito humilhando o outro em resposta (mas, de modo algum, esmagando-o sob bombas, nem trancando-o como cães em Guantânamo).

Saturação da existência

A base de qualquer dominação é a ausência de contrapartida - sempre segundo a regra fundamental. O dom unilateral é um ato de poder. E o “império do bem”, a violência do bem, consiste exatamente em dar - sem contrapartida possível. Consiste em ocupar a posição de Deus. Ou do Senhor, que deixa a vida ao escravo em troca de seu trabalho (mas o trabalho não é uma contrapartida simbólica; portanto, as únicas respostas, afinal, são a revolta e a morte). Deus, pelo menos, dava espaço para o sacrifício.

Na ordem tradicional, sempre existe a possibilidade de retribuir - a Deus, à natureza ou a qualquer outra instância, sob a forma do sacrifício. É o que garante o equilíbrio simbólico dos seres e das coisas. Não temos, hoje, mais ninguém a quem retribuir, a quem restituir a dívida simbólica - e é essa a maldição de nossa cultura.

Não que nela seja impossível o dom e, sim, que nela o contra-dom é impossível, visto que todas as vias sacrificiais foram neutralizadas e desmontadas (resta apenas uma paródia de sacrifício, visível em todas as formas atuais da condição de vítima).

Estamos, desse modo, na situação implacável de receber, receber sempre, não mais de Deus ou da natureza, mas através de um dispositivo técnico de troca generalizada e de gratificação geral. Tudo nos é virtualmente dado e, queiramos ou não, temos direito a tudo. Estamos na situação de escravos aos quais se deixou a vida e que estão ligados por uma dívida insolúvel.

Tudo isso pode funcionar durante muito tempo graças à inserção na troca e na ordem econômica mas, num dado momento, a regra fundamental a vence, e a essa transferência positiva corresponde, inevitavelmente, uma contratransferência negativa, uma ab-reação violenta a essa vida cativa, a essa existência protegida, a essa saturação da existência. Tal reversão assume a forma de uma violência aberta (o terrorismo faz parte dela), ou da negação impotente, característica de nossa modernidade, do ódio de si e do remorso - todas paixões negativas que são a forma degradada do contra-dom impossível.

Veredicto e condenação da sociedade

Aquilo que detestamos em nós, o obscuro objeto de nosso ressentimento, é esse excesso de realidade, esse excesso de poder e de conforto, essa disponibilidade universal, essa realização definitiva - o destino que, no fundo, o “grande inquisidor” reserva às massas domesticadas em Dostoievski. Ora, é exatamente isso que os terroristas criticam em nossa cultura - donde a repercussão que o terrorismo encontra e o fascínio que exerce.

Tanto quanto no desespero dos humilhados e dos ofendidos, o terrorismo se baseia, por exemplo, no desespero invisível dos privilegiados da globalização, em nossa própria submissão a uma tecnologia integral, a uma realidade virtual esmagadora, a um domínio das redes e dos programas que traça, talvez, o perfil involutivo da espécie inteira, da espécie humana tornada “mundial” (a supremacia da espécie humana sobre o resto do planeta não seria à imagem da supremacia do Ocidente sobre o resto do mundo?). E esse desespero invisível - o nosso - é irremediável, pois decorre da realização de todos os desejos.

Se o terrorismo decorre, pois, desse excesso de realidade e de seu prazo impossível, dessa profusão sem contrapartida e dessa resolução forçada dos conflitos, então a ilusão de extirpá-lo como um mal objetivo é total, dado que, sendo como é, em seu absurdo e em seu contra-senso, ele é o veredicto e a condenação que esta sociedade emite em relação a si mesma.


Tradução: Iraci D. Poleti
Jean Baudrillard é filósofo, autor, dentre outros livros, de “La Guerre du Golfe n’a pas eu Lieu” (1991), “Le Crime Parfait” (1994) e “L’Esprit du Terrorisme” (2002), todos editados pela Galilée. Este texto foi extraído de seu ensaio, “Power Inferno” (ed. Galilée, Paris, 94 páginas).