vendredi 1 mars 2013

A ideologia do ficar rico com Jesus (II)

Segunda parte
A liberdade radical

O programa de Jesus em Lucas 4 destaca duas idéias: a de anunciar a boa notícia e a de libertar os dominados pelo não-estar existencial.

A idéia de anunciar estava presente na antiga tradição judaica, já que a tarefa profética era, sobretudo, proclamatória. De Samuel a Jeremias – incluídos nesse período homens como Samuel, Natã, Gade, Azarias, Elias, Eliseu, Joel, Miquéias, Micaías, Isaías e Jeremias -- esses anunciadores da palavra do Eterno falaram aos reis e ao povo. Advertiam e encorajavam. Falavam de juízos e promessas espetaculares. E assim também foi o último período da profecia hebraica, de Ezequiel a Malaquias. No período helênico, graças às reuniões nas casas de oração, sinagogas, a proclamação se generalizou. Os textos antigos eram lidos e comentados.

João, o batista, foi um anunciador da chegada do reino. E Jesus, ali na sinagoga de Nazaré, colocou em seu programa a tarefa do anunciar.

E o que significa libertar? O conceito de libertação na antiga tradição judaica partiu da idéia de livramento e de segurança. A pessoa de um libertador traduzia a imagem do rei-herói, alguém que arrancava o povo da destruição (Jz 18.28). E no testamento cristão, o salvador é aquele que liberta os escravos do não-estar (At 7.35) e que arranca a nação do estado da não-vida (Rm 11.26).

Para o judeu, no momento de Jesus, o ato característico de liberdade ocorrera sob a liderança de Moisés, quando o Eterno salvou seu povo do estado de escravidão sob os egípcios e o pousou no deserto do Sinai (Ex 12.31—14. 31).

É fundamental entender que a libertação do domínio egípcio definiu para os judeus do período helênico o paradigma da liberdade como ato do Eterno, que não visava apenas o alívio de uma situação desastrosa, mas estar em abundância. Aí estava a chave do conceito de aliança, livres pora adorar. Essa idéia fundamentou o conceito de aliança e da espiritualidade judaica até o primeiro século.

A partir do programa de Jesus entendemos o estar existencial como sentido pleno de vida, liberdade no Espírito, gerador de alegria, justiça e paz, pessoal e comunitária. E não-estar existencial como exclusão de bens e possibilidades, escravidão sob as suas mais diferentes formas e cegueira espiritual, que geram perda do sentido de vida.

O uso que o homem de Nazaré fez de termos políticos, como reino e evangelho, mostram que tinha o objetivo de falar de uma promessa existencial de intervenção alternativa àquelas dos poderes presentes na época. Quando lemos o texto apresentado por Jesus, numa perspectiva rabínica, estamos diante de uma recorrência às promessas do jubileu, quando a não-vida deveria ser banida. A fala daquele homem de identidade questionada não afirmava que a Palestina seria resgatada de imediato na escala da geografia e do tempo, mas que deveria entrar no estar palestino o impacto solidário do ano sabático.

Da mesma maneira, o reino surgiria enquanto compreensão do ano sabático. Nesse sentido, o sábado da semana ampliava-se no sábado dos anos, onde o sétimo deveria ser de alegria, justiça e paz, já que restauraria o que fora exaurido, natureza e pessoas. Essa coleção de propostas radicais presente em Levítico 25.1-26.2 concernia ao direito de propriedade da posse da terra e de pessoas, que constituíam a base da riqueza. O objetivo era fixar limites ao direito de posse, já que toda propriedade, natureza e pessoas, pertenceria a Deus. Assim, ninguém poderia possuir a natureza e as pessoas, pois tal direito pertencia a Deus. E o ciclo de sete anos sabáticos desagüava no qüinquagésimo ano, o jubileu messiânico (Levítico 25.8-24), que aparecer também em Números 36.4. Também Jeremias, 34.8-17, falou de uma reforma social na Jerusalém sitiada, quando Zedequias proclamou a liberdade dos escravos hebreus. Da mesma maneira, em Isaías 58.6-12 a liberdade radical como parte da visão profética. Mas, existem outros textos sobre o ano sabático, como Êxodo 23.10 e Neemias 10.32. Nesse sentido, o jubileu apontava para a reestruturação do estar pleno nas relações entre os povos da Palestina.

Flávio Josefo afirmou, depois da presença de Jesus em Nazaré, que não existe um único hebreu que, mesmo hoje em dia, não obedeça à legislação referente ao ano sabático como se Moisés estivesse presente para puni-lo por infrações, e isso mesmo em casos que uma violação passaria despercerbida.
[1]

Apesar da afirmação de Josefo, sabemos que o enquadramento do estra pleno a partir das disposições de Levítico 25, que incluía inclusive a reforma agrária, nunca foi de fato vivido entre os judeus. Por isso, coube a um sem-terra-santa levantar o discurso do ano da liberdade frente à escravidão do não-estar.

O jubileu, dessa maneira, se insere na antiga tradição dos judeus. E através da tradição rabínica, essa tradição foi adaptada às novas situações enfrentadas pelos judeus na diáspora. Mas, esses novos aspectos do jubileu e seu desenvolvimento na tradição judaica partem do texto de Levítico 25.10.

A teologia da vida, em Lucas, subentendida a partir do discurso de Jesus em Nazaré, está ligada, como vimos, ao sábado e ao ano sabático, que se situa em Levítico 25.2, no leque dos sete anos, assim como o dia de sábado se situa na semana. Para os rabinos da diáspora existe um sábado desde o começo e um sábado da terra, da mesma forma como na sexta-feira à tarde o trabalho cotidiano era interrompido pela adoração ao Eterno. Assim em Israel, e acreditavam que apenas em Israel, o povo judeu tinha a obrigação de restituir a terra ao Eterno, já que em Israel a terra pertencia ao Eterno.

Daí, o tríplice imperativo do estar cotidiano, da existência no jubileu: a liberdade da terra, a liberdade das dívidas e a liberdade dos excluídos. Na teologia da vida, presente no evangelho de Lucas, implícita nas palavras de Jesus, o jubileu concentra uma temática existencial que repousava sobre a expansão do estar.

Uma primeira constatação era a impossibilidade de que qualquer escravidão da terra fosse permanente. Ao cumprir o sábado, o proprietário estava impedido de possuir a natureza além de um certo tempo. O sábado do jubileu levava o proprietário a uma relação de submissão, que o impedia de reduzir a natureza a objeto de dominação. A soberania do eterno era, então, compreendida como a afirmação de que Ele era o senhor e criador da natureza. Donde se deduz que o ser humano não pode se colocar na posição de dono, como esclarece Levítico 25.23. Ou seja, na terra onde o Eterno é proprietário, o ser humano é hóspede. A gratuidade leva, então, à afirmação de que o ser humano vive em terra que não é sua propriedade, onde é objeto da gratuidade, conforme Levítico 25.19-21.

E a justiça para com os semelhantes, que devem usufruir das benesses, mostrava que a natureza era presente do Eterno para suprir as necessidades humanas. E apresentava a natureza como de todos e para todos. Assim, o monopólio que impossibilita este destino universal é um erro de alvo diante do Eterno do próximo. Dessa maneira, a justiça, tão presente na teologia da vida em Lucas, nasce da mensagem profética, presente no discurso de Jesus, e consiste em reconhecer o amor gratuito do Eterno na Palestina, e, posteriormente, no mundo. Por isso, o discurso de Jesus é o discurso da alegria e da justiça, destas duas ações que remetem à paz.

Mas, se o discurso da alegria e da justiça é a afirmação de que a natureza pertence ao Eterno e que o domínio sobre o próximo deve desaparecer, outra constatação teológica do jubileu é a remissão da culpa, que parte da reforma radical da existência em direção à reconciliação de pessoas e povos, no caso do discurso de Jesus, palestinos. Assim, o jubileu possibilita um novo começo, pois não rompe apenas com o não-estar existencial, mas elimina a culpa.

Se o discurso de Jesus apresentou um alcance palestino imediato, a partir da própria realidade vivida pelo nazareno, tal discurso remete à globalidade da esperança de restauração do mundo. Ou seja, tal discurso, visto sob a ótica teológica, fala do fim dos sofrimentos e da violência.

Assim, a teologia da vida reconhece o jubileu judaico e sua realização nas palavras e atos de Jesus na Galiléia, mas remete às ações jubilares da igreja cristã na reforma do mundo. Podemos, dessa maneira, falar numa volta à espiritualidade do jubileu, como forma de enfrentar a secularização escravizante, a apropriação injusta de recursos e a generalização da violência. E preconizar os direitos das minorias e o respeito pela vida.

E a partir da teologia da vida, lida neste discurso de Jesus em Nazaré, podemos compreender que os bens naturais foram confiados pelo Eterno aos seres humanos e que a salvação é liberdade no estar existencial, mas também alegria, justiça e paz.

O jubileu é reforma radical e a proposta do Jesus marginal foi a anunciação da possibilidade de uma era nova, caso os ouvintes aceitassem a notícia. Não estava a se referir a um evento imediato, histórico, mas reafirmava uma esperança conhecida de seus ouvintes: a da reforma existencial que deveria mudar as relações entre os povos.

E aquele homem de genealogia desconhecida e geografia marginal colocou a centralidade da reforma sobre ele próprio ao afirmar que naquele momento, na sinagoga de Nazaré, a esperança se cumpria. E é isso que Lucas vai mostrar na sequência do seu evangelho da vida: o reformador marginal era o Cristo universalmente prometido.

As caras do não-estar
Ao partir da compreensão de que o programa de Jesus estava dirigido às pessoas que enfrentavam a ameaça do não-estar, começamos a pensar o destino existencial dessa humanidade brasileira. E vimos que o não-estar existencial tem muitas faces, que pode ser cultural, social, mas também espiritual.


Hoje entendemos que a não-vida não acontece por acaso, mas é fruto das lógicas culturais, sociais e, por isso, também religiosas. Esta primeira compreensão do não-estar, do repousar sobre a morte, que não é fruto apenas de opções individuais separadas da comunidade e da história, nos levou à teologia da vida, que consiste em ver a necessidade de uma ação radical, que atue de conjunto sobre os diferentes fatores que alienam e matam a fé, a esperança e o amor. Por isso, dizemos, que o não-estar existencial é um fenômeno de massa gerado por fatores culturais e sociais, entre os quais estão as igrejas que servem a Mamon.

Por isso, a teologia da vida confronta a realidade cultural, econômica, política, social e religiosa. Vimos, numa leitura contextualizada do programa de Jesus, que a morte é parte integrante de um sistema de não-vida e que, embora seja apresentado como gerador de felicidade e riqueza, de fato, é gerador de vítimas lançadas fora da estrada.

Os problemas humanos, focados pelo sábio do Eclesiastes, reproduzem padrões que repousam sobre o não-estar existencial. Hoje, um quinto da humanidade não têm condições mínimas de estar com plenitude: não têm onde morar, não têm água limpa, não têm cuidados médicos, não têm oportunidades na área de educação e emprego e estão condenadas à não-existência, sem qualquer possibilidade de promoção pessoal para si próprias e para suas famílias. Todas essas situações têm suas raízes no errar o alvo e exige uma radical resposta de amor. Somente o evangelho pode transformar o coração humano. Mas não podemos nos restringir à proclamação. É necessário criar as condições para que a liberdade gere alegria, justiça e paz.

Embora a reconciliação do humano com o humano, de um povo com outro povo, não seja reconciliação com o Eterno, nem a ação social evangelização, nem a libertação política salvação, boas notícias de vida plena e envolvimento existencial são parte da reforma radical proposta pelo homem de Nazaré.

A mensagem de liberdade é também uma mensagem de juízo sobre toda forma de alienação, de opressão e de discriminação, e não devemos ter medo de denunciar o mal e a injustiça. Quando alguém recebe a Cristo, nasce de novo no seu reino e, conseqüentemente, buscará não somente divulgar como também manifestar a justiça. A liberdade que temos deve transformar responsabilidades pessoais e sociais.

Por isso, o protestantismo evangélico deve viver uma mudança radical: não se perder na ideologia do enriquecer com Jesus, nem adorar a Mamon, mas fluir para o exercício da alegria, justiça e paz.

Isto porque o não-estar, denunciado pelo sábio no Eclesiastes, existe como cultura da morte. E o que agrava a questão é o distanciamento das igrejas evangélicas do programa da vida proposto por Jesus, que leva à omissão e à insensibilidade. O não-estar da população brasileira não é visto, então, como problema, quando muito como objeto de caridade.

Essa não-existência imersa no sem-sentido deveria catalisar os diálogos entre as confissões do protestantismo evangélico. Qualquer crise do evangelicalismo pode ser superada na medida em que assumamos os problemas da humanidade brasileira como objeto de proclamação e salvação.

A insensibilidade evangélica não pode ser explicada apenas pela decadência religiosa. Pois esta insensibilidade não é exclusividade das pessoas que, momentaneamente, estão fora da geografia da salvação. Mesmo pessoas sensíveis, piedosas, compartilham a atmosfera da insensibilidade em relação aos problemas existenciais dos que não conhecem as possibilidades da vida em abrndância.

Para uma aproximação a este problema, vamos focar a ideologia do enriquecer com Jesus. Tal ideologia, conceito aqui entendido como consciência alienada, surgiu como idéia evangélica de emancipação da pobreza e da promessa de retribuição do Eterno. Mas a ideologia do enriquecer com Jesus não escapou aos paradoxos culturais. Como foi baseada numa leitura primitiva da seleção dos escolhidos por seus desempenhos pessoais, esta ideologia funcional se converteu em idolatria do enriquecimento.

Tal ideologia, aumentada pela presença do neoliberalismo, é um engodo porque afirma para milhões de pessoas que o evangelho de Cristo descarta a lei da alternância. Por essa lógica, o fracasso ou o sucesso das pessoas são vistos como diretamente proporcionais às habilidades, aos talentos e à fé-esforço de cada um, independentemente do contexto.

Assim, não há razão para a proclamação e a liberdade dos que estão caídos. A ideologia do enriquecer com Jesus é expressão dessa leitura primitiva da retribuição do Eterno, que tem como fim fazer de cada fiel uma pessoa rica. O dinheiro e a quantidade dele passam a ser o padrão para a avaliação da própria espiritualidade.

Nesta versão neoliberal da retribuição, o Eterno distribui as rendas das pessoas conforme suas capacidades e fé-esforço. Mas, quando o poder econômico se torna critério da dignidade humana, a busca pelo dinheiro torna-se finalidade última da vida. Estamos então idolatrando um dos príncipes do inferno: Mamon.

E o mais interessante é que os que conquistam o poder e dinheiro não necessariamente sabem o que fazer com isso, donde Mamon leva o cativo do não-estar a outro demônio –ao ídolo do consumo. Dessa maneira, a obsessão pelo dinheiro tem um espelhismo com a obsessão pelo consumo como fim em si, independente da utilidade da mercadoria.

Ora, se o consumo se transformou em medida, nenhuma quantidade de aquisições tem a possibilidade de trazer satisfação real, pois não há padrões a se manter: as metas permanecem distantes, mesmo quando se corre para alcançá-las. E o nome certo para isso, conforme nos diz Jesus, é ganância, pois o seu olho se fez mau, e toda sua vida está imersa na malignidade.

Servir a Mamon, um dos príncipes do inferno presente nas igrejas evangélicas e adorado publicamente, é correr sem destino, buscar objetos de desejo que mudam rapidamente. Consome-se para sentir-se vivo, mas a vida é um permanente não-estar. Os objetos de desejo deixam rapidamente de ser portadores de reconhecimento. A busca recomeça quando se consegue adquirir o objeto do desejo. A utilidade dos produtos e o usufruir as suas qualidades não são importantes. O importante é consumir mercadorias, bens materiais ou simbólicos, que causem inveja nos outros.

A ideologia do enriquecer com Jesus leva as pessoas a não verem o não-estar como problema existencial, não deixa as pessoas enxergarem que o não-estar existe, é morte.

 
Citação
[1] Josefo, Flávio, História dos Hebreus, Antigüidades Judaicas III, 15, 3.

jeudi 28 février 2013

A ideologia do ficar rico com Jesus

Primeira parte

Falar da ideologia do ficar rico com Jesus nos leva a falar sobre Mamon e a discutir a vida plena. O sábio do Esclesiastes disse que compreendeu que não há nada melhor do que ter prazer naquilo que se faz. Esta é a recompensa. Pois como é que podemos saber sobre o não-estar? O sábio procurou a felicidade e a paz. Foi objetivo e prático na avaliação de seu tempo e constatou que o evento humano está sujeito à lei da alternância, que vai além da explicação imediata: o humano não tem domínio sobre as dinâmicas que governam a vida e a morte. E procurou refúgio na sabedoria grega. O texto hebraico do Eclesiastes, com a presença de palavras aramaicas e persas, sugere autoria anônima, situada entre 450 e 200 antes de Cristo, mas foi registrado como texto de um rei antigo, Shlomo.

O estar e o não-estar

O sábio procurou entender o estar e o não-estar, ou seja, a existência e aquilo que está fora e além da existência, no jogo de seus movimentos. Percebeu que não tinha controle sobre o movimento dos fenômenos do universo e viu que era preciso respeitar o espaço e o tempo para poder existir dentro do ritmo dos eventos.

Mas ele não foi o único a pensar nessas coisas. A pergunta pelo não-estar, presente na história do humano desde que ele é sapiens, levou à pergunta pelo sentido do estar. Qohélet, em português Eclesiastes, e segundo Haroldo de Campos, O-que-sabe, de forma magnífica, quase à maneira de Nietzsche, trabalhou o tema da vida e da morte e nos leva a pensar sobre a única realidade a que de fato temos acesso: a existência -- terreno afetivo e emocional que produz e repousa sobre a riqueza material das humanidades. O sábio numa abordagem existencial discute o estar, sua integralidade e potencialidades.

Ele não foi o único a pensar a existência e a não-existência. Górgias (480-375 a.C.) traduziu no pensamento pré-socrático a dúvida sobre o não-ser e, por extensão, sobre o ser. Disse que se houvesse alguma coisa, seria ser ou não-ser, ou ser e não-ser juntos. E se o não-ser existe, ele é e não-é ao mesmo tempo. Mas é absurdo dizer que alguma coisa existe e não-existe ao mesmo tempo. Para Górgias, o não-ser não existe. Górgias disse mais do que isso, mas essa constatação, o não-ser não existe, é o que nos interessa nesse momento. Mas como nossa reflexão é teológica, vamos trabalhar com o conceito de estar, que é estado da existência, e não de ser que é essência do único que é, o Eterno -- Eu sou o que sou (Êxodo 3.14).

É interessante que o sábio apresentou o não-estar, aquilo que está fora, além da existência, de uma maneira que nos lembra Górgias. Disse que ninguém se lembra do que aconteceu no passado e que até as coisas que acontecerão no futuro também serão esquecidas. Que ninguém se lembra dos sábios, assim como ninguém se lembra dos imbecis, pois no futuro todos estaremos esquecidos. Há tempo para nascer e tempo de morrer, mas todos caminham para um mesmo lugar, pois tudo vem do pó e tudo volta ao pó.

Disse, ainda, que felicitava os que já morreram mais do que os que estavam vivos. E considerou que mais vale o dia da morte do que o dia do nascimento. Ou, mais vale ir a uma casa em luto do que ir a uma casa em festa. Que ninguém é senhor do dia da própria morte e que nessa guerra não há trégua. Por isso, um cão vivo vale mais que um leão morto, já que os vivos sabem que irão morrer; mas os mortos não sabem de nada e não tem recompensa nenhuma: sua memória já está no esquecimento. O amor, ódio e ciúmes pereceram com eles. E nunca mais participarão de qualquer coisa que se faz debaixo do sol.

Mas é a consciência do não-estar que remete ao sentido do estar. E aqui há uma diferença básica com Górgias, porque para ele a negação do não-ser é também a negação do ser e, por isso, fez três afirmações que marcaram o pensamento lógico-matemático e balizaram o ceticismo: (1) não dá para dizer que algo existe; (2) se alguma coisa existe não temos como conhecer sua existência; (3) e se o ser existe não temos como explicar sua existência aos outros.

Já o argumento do sábio, a partir do não-estar, afirma o sentido do estar, único conhecido. A negação do não-estar do sábio expressa o desejo de estar em abundância, porque tem por limites as bordas do tempo de ser. O estar existe, mas tem espaço e tempo – hoje diríamos é existencial e histórico. Por isso, é melhor o sentido do estar, a intensidade das ações do estar do que ficar na espera do não-estar. Assim, quando o não-estar sinalizar que está chegando e se aproximar, teremos o prazer de ter estado plenamente, com intensidade, de forma abundante.

E, por isso, o sábio nos aconselha a aproveitar a vida, a ir em frente. A comer com prazer e beber alegremente o nosso vinho, pois o Eterno já aceitou deliciado o nosso bem-fazer. Sejamos felizes, diz O-que-sabe. Enquanto vivermos na fumaça deste mundo, curtamos a vida com a pessoa amada, pois essa é a recompensa pelo nosso fazer debaixo do sol. E o que tivermos para fazer, façamos ótimo, porque o não-estar é nada e no nada não se faz, e no não-estar não existe pensamento, nem conhecimento, nem sabedoria. E depois do estar, vamos repousar no nada.

O fazer da existência vale a pena. O Eterno aprecia esse bem-fazer humano, que tem seu próprio tempo, que integra a existência de cada pessoa na história dos fazeres humanos. É por isso que Bereshit, o primeiro texto na Torah, apresenta um ponto zero. O tempo zero vai do entardecer à meia-noite. É quando o sol desilumina o nosso espaço de forma gradual. O tempo do não-estar não é uma fratura do tempo, é tempo da história. O sábio não contempla a passagem do tempo, mas a vinda do tempo. O tempo significa nada ou pouco para o Eterno, mas há um sentido de tempo para o humano. A conclusão do sábio é que temos de estar no tempo para dar valor à eternidade que brota do nada do não-estar.

Jesus nos fala do não-estar existencial, daquilo que parece que é, mas, na verdade, é ilusão, ídolo. E esse não-estar não fez parte do discurso dele e tem um nome Mamon. O tema lá era o dinheiro, mas aqui é neoliberalismo evangélico. Mamon foi a expressão utilizada por Jesus para descrever a cobiça ou a riqueza material, personificada como divindade, e que em hebraico significava literalmente dinheiro. Representa, assim, o alvo errado da avareza e da ganância. E na mitologia judaico-cristã transformou-se num dos sete príncipes do inferno, de aparência nobre, mas deformado, que carrega um saco de moedas de ouro nas costas e suborna os humanos. Então, o nosso tema aqui é o não-estar do dinheiro, enquanto deus que estraçalha as vidas e, por outro lado, a plenitude do estar, consubstanciada no programa de Jesus para a expansão do reino do Eterno.

Jesus disse no Sermão do Monte: Se o teu olho direito te faz tropeçar [literalmente, se o teu olho for mau], arranca-o e lança-o de ti; pois te convém que se perca um dos teus membros, e não seja todo o teu corpo lançado no inferno. (Mateus 5.29).

Mas, o que é um “olho mau”? Aparentemente, fora da cultura judaica, soa como algo esotérico, mas não é isso: em hebraico, possuir um ‘ayin ra‘ah, “olho mau”, significa ser avarento, ganancioso. E ter um ‘ayin tovah, um “olho bom”, equivale a ser generoso. Jesus está condenando a avareza, a adoração a Mamon, e incentivando à generosidade. E é por isso que vai acrescentar: onde estiver seu tesouro, aí também estará seu coração [...] você não pode ser escravo de Deus e do dinheiro.

Do estar em plenitude nasceu o programa de Jesus. Eis o texto.

Então Jesus, pelo poder do Espírito, voltou para a Galiléia e a sua fama se espalhou em toda a região. Ensinava nas suas sinagogas, sendo glorificado por todos. Ele veio a Nazaré, onde tinha sido criado. Entrou, segundo o seu costume, no dia do sábado na sinagoga, e levantou-se para fazer a leitura. Deram-lhe o livro do profeta Isaías e, desenrolando-o, encontrou a passagem onde está escrito: “O Espírito do Senhor está sobre mim, porque me conferiu a unção [A] para anunciar a boa nova aos pobres. Enviou-me [B] para proclamar aos cativos a libertação e [C] aos cegos, a recuperação da vista, [D] para despedir os oprimidos em liberdade, para proclamar um ano de acolhimento da parte do Senhor”. Enrolou o livro, entregou-o ao servente e se assentou; todos na sinagoga tinham os olhos fixos nele. Então, ele começou a lhes dizer: "Hoje, esta escritura se realizou para vós que a ouvis”. Todos lhe prestavam testemunho, espantavam-se da mensagem da graça que saía de sua boca, e diziam: "Não é esse o filho de José?” Então ele lhes disse: "Por certo ireis me citar este provérbio: ‘Médico, cura-te a ti mesmo’. Soubemos de tudo o que se passou em Cafarnaum, faze, pois, o mesmo aqui em tua pátria". E acrescentou: "Em verdade, eu vos digo: nenhum profeta é bem acolhido em sua pátria. É verdade o que vos digo: havia muitas viúvas em Israel nos dias de Elias, quando o céu ficou fechado três anos e seis meses e sobreveio uma grande fome sobre a terra toda. No entanto, não foi a nenhuma delas que foi enviado Elias, mas sim a uma viúva em Sarepta de Sidom. Havia muitos leprosos em Israel no tempo do profeta Eliseu, no entanto, nenhum deles foi purificado, mas sim Naamã, o sírio". Todos na sinagoga ficaram tomados de cólera, ouvindo essas palavras. Eles se levantaram, lançaram-no fora da cidade, e o conduziram até uma escarpa da colina sobre a qual estava construída sua cidade, para daí o precipitarem abaixo. Mas Jesus, passando no meio deles, seguiu seu caminho. (Lucas 4.14-30).

Esse estar de Jesus com a vida (Lucas 4.14–9.50) situou-se, em primeiro lugar, na Galiléia (cf. 23.5; At 10.37). E Lucas, ao contrário de Mateus (15.21; 16.13) e Marcos (7.24-31; 8.27), abriu a ação de Jesus com o discurso na sinagoga de Nazaré (4.16-30), onde leu Isaías 61.1-2 e Isaías 58.6, que descortina a seqüência do evangelho: o anúncio da plenitude fundado sobre as promessas antigas da tradição judaica.

No texto, Lucas descreve duas questões centrais para a compreensão do estar em plenitude: há um programa e há um destinatário da mensagem. Assim, os versículos 18-19 apresentam o programa e os versículos 23-27 o público, aqueles que estavam fora da geografia da liberdade.

Segundo Lucas, Jesus foi marcado, escolhido peplo Eterno, e sob a ação do Espírito, ação esta que caracteriza o vero profeta, teve como objetivo anunciar a boa notícia de que chegara o momento de viver o estar em abundância e de libertar aqueles que estavam dominados pelo não-estar. Seu programa foi estruturado ao redor de quatro questões: anunciar a boa notícia do estar em abundância aos excluídos da vida; proclamar a liberdade aos cativos: dar olhos aos cegados pelo não-estar; e libertar os que, por causa do não-estar, perderam o sentido da vida.

O programa destaca duas idéias: a de anunciar a boa notícia e a de libertar os dominados pelo não-estar existencial.

A idéia de anunciar estava presente na antiga tradição judaica, já que a tarefa profética era, sobretudo, proclamatória. De Samuel a Jeremias – incluídos nesse período homens como Samuel, Natã, Gade, Azarias, Elias, Eliseu, Joel, Miquéias, Micaías, Isaías e Jeremias -- esses anunciadores da palavra do Eterno falaram aos reis e ao povo. Advertiam e encorajavam. Falavam de juízos e promessas espetaculares. E assim também foi o último período da profecia hebraica, de Ezequiel a Malaquias. No período helênico, graças às reuniões nas casas de oração, sinagogas, a proclamação se generalizou. Os textos antigos eram lidos e comentados.

João, o batista, foi um anunciador da chegada do reino. E Jesus, ali na sinagoga de Nazaré, colocou em seu programa a tarefa do anunciar.

E o que significa libertar? O conceito de libertação na antiga tradição judaica partiu da idéia de livramento e de segurança. A pessoa de um libertador traduzia a imagem do rei-herói, alguém que arrancava o povo da destruição (Jz 18.28). E no testamento cristão, o salvador é aquele que liberta os escravos do não-estar (At 7.35) e que arranca a nação do estado da não-vida (Rm 11.26).

Para o judeu, no momento de Jesus, o ato característico de liberdade ocorrera sob a liderança de Moisés, quando o Eterno salvou seu povo do estado de escravidão sob os egípcios e o pousou no deserto do Sinai (Ex 12.31—14. 31).

É fundamental entender que a libertação do domínio egípcio definiu para os judeus do período helênico o paradigma da liberdade como ato do Eterno, que não visava apenas o alívio de uma situação desastrosa, mas estar em abundância. Aí estava a chave do conceito de aliança, livres pora adorar. Essa idéia fundamentou o conceito de aliança e da espiritualidade judaica até o primeiro século.

A partir do programa de Jesus entendemos o estar existencial como sentido pleno de vida, liberdade no Espírito, gerador de alegria, justiça e paz, pessoal e comunitária. E não-estar existencial como exclusão de bens e possibilidades, escravidão sob as suas mais diferentes formas e cegueira espiritual, que geram perda do sentido de vida.

 

mercredi 27 février 2013

Entregue o bandido

Muitos dos meus leitores não vão à igreja, por diferentes motivos, e nem tem uma intimidade maior com a Palavra de Deus. Por isso, preparei para vocês uma devocional semanal, pequena e objetiva, para vocês meditarem na Palavra de Deus a cada dia. Se gostarem, ao final de cada semana, acrescentarei as leituras e meditações da semana seguinte. Fiquem com Deus e que Ele lhes abencoe. Forte abraço, Jorge Pinheiro.
 
Entregue o bandido

Em relação à espiritualidade cristã, o apóstolo Paulo diz que há três tipos de pessoas:
 
(1) A natural, que não reconhece Jesus como senhor de sua vida: “Mas quem não tem o Espírito de Deus não pode receber os dons que vêm do Espírito e, de fato, nem mesmo pode entendê-los. Essas verdades são loucura para essa pessoa porque o sentido delas só pode ser entendido de modo espiritual”. (1Coríntios 2.14).

(2) A espiritual, que aceitou Jesus como senhor e salvador e, como conseqüência, tem a sua vida dirigida pelo Espírito Santo: “A pessoa que tem o Espírito Santo pode julgar o valor de todas as coisas, porém ela mesma não pode ser julgada por ninguém. Como dizem as Escrituras Sagradas: 'Quem pode conhecer a mente do Senhor? Quem é capaz de lhe dar conselhos?' Mas nós pensamos como Cristo pensa”. (1Coríntios 2.15-16).

E (3) a carnal, que já aceitou a Jesus como salvador, mas confia em seus próprios esforços para viver a vida cristã: "Na verdade, irmãos, eu não pude falar com vocês como costumo fazer com as pessoas que têm o Espírito de Deus. Tive de falar com vocês como se vocês fossem pessoas do mundo, como se fossem crianças na fé cristã. Tive de alimentá-los com leite e não com comida forte, pois vocês não estavam prontos para isso. E ainda não estão prontos, porque vivem como se fossem pessoas deste mundo. Quando existem ciumeiras e brigas entre vocês, será que isso não prova que vocês são pessoas deste mundo e fazem o que todos fazem?” (1 Coríntios 3:1-3)
 
Primeira SEMANA
 
Filipenses 2.1-11. “Por estarem unidos com Cristo, vocês são fortes, o amor dele os anima, e vocês participam do Espírito de Deus. E também são bondosos e misericordiosos uns com os outros. Então peço que me dêem a grande satisfação de viverem em harmonia, tendo um mesmo amor e sendo unidos de alma e mente. Então peço que me dêem a grande satisfação de viverem em harmonia, tendo um mesmo amor e sendo unidos de alma e mente. Que ninguém procure somente os seus próprios interesses, mas também os dos outros. Tenham entre vocês o mesmo modo de pensar que Cristo Jesus tinha: Ele tinha a natureza de Deus, mas não tentou ficar igual a Deus. Pelo contrário, ele abriu mão de tudo o que era seu e tomou a natureza de servo, tornando-se assim igual aos seres humanos. E, vivendo a vida comum de um ser humano,  ele foi humilde e obedeceu a Deus até a morte — morte de cruz. Por isso, Deus deu a Jesus a mais alta honra e pôs nele o nome que é o mais importante de todos os nomes, para que, em homenagem ao nome de Jesus, todas as criaturas no céu, na terra e no mundo dos mortos, caiam de joelhos e declarem abertamente que Jesus Cristo é o Senhor, para a glória de Deus, o Pai”.

O amor cristão


É preciso coragem para ir à luta, como as Escrituras Sagradas nos desafiam. E a principal dessas lutas, diz respeito ao nosso caráter. Por isso, fazer aos outros aquilo que nós desejamos que nos façam, é a melhor definição de amor. Isso quer dizer que devemos considerar as pessoas da nossa família, os amigos, mas também aqueles de quem discordamos tão importantes quanto nós. Significa aprender a respeitar as pessoas e entender que não estão aqui por acaso. Esse é o amor que Jesus ensinou.

O jeito de Deus para completar a sua transformação em nossa vida é a obra do Espírito Santo. Caso você tenha aceitado Jesus como Senhor da sua vida, uma das primeiras coisas que o Pai fará é introduzir o Espírito Santo, a terceira pessoa da Trindade, na sua vida.

Através do Espírito Santo, Ele vai realizar um processo de transformação, trabalhando todos os dias para mudar seu caráter, na sua forma de agir e reagir espiritualmente. O Espírito Santo se dedicará a edificar a sua vida através do amor. Mas você deve cooperar com Ele.

Como você tem experimentado a presença e o poder transformador do Espírito Santo na sua vida?

Reflita sobre uma situação em que você não cooperou como devia com o Espírito Santo e quais foram as conseqüências.

Durante a semana medite nos seguintes textos e converse com Deus

  • Segunda-feira                  Seja forte                                 Salmos 31.24
  • Terça-feira                      O sofrimento vai passar           Jó 11.16-19
  • Quarta-feira                    Deus refaz a vida                    Salmos 138.7
  • Quinta-feira                    Entrega o problema a Deus     Salmos 55.22
  • Sexta-feira                       Não se desespere                     João 14.1
  • Sábado                            O que Deus quer para você      Jeremias 29.11
Texto para reflexão

Fomos chamados à liberdade. O que significa isso? Bem, talvez falar de corvos, gaviões e passarinhos ajude...

Entregue o bandido


Em 1965, Pier Paolo Pasolini, um dos gênios do cinema italiano, filmou “Gaviões e passarinhos”, história que é uma metáfora sobre a liberdade. Numa estrada vazia, um senhor e seu filho encontram um corvo que fala. O corvo os transforma em dois monges franciscanos e eles são obrigados a pregar para gaviões e passarinhos. O próprio Pasolini diria:

"Nunca criei um filme tão desarmado, frágil e delicado como esse. Ele não se parece com meus filmes anteriores e não se parece com nenhum outro filme... Seu surrealismo tem pouco a ver com o surrealismo histórico, mas fundamentalmente com o surrealismo das fábulas".
 
O filme é uma parábola sobre a crise existencial, representada pelo corvo. Pai e filho representam as pessoas inocentes que não sabem como enfrentar as falsidades do mundo. A liberdade tem um custo. O custo de enfrentar as limitações de nosso caráter, em primeiro lugar. E é sobre isso que vamos falar: entregue o bandido, agora!


Jesus disse que deveríamos apresentar nossas necessidades ao Pai, em nome dele (João 14.13), e que ele, Jesus, nos responderia para que o Pai fosse glorificado no Filho. A idéia do texto é que devemos apresentar, entregar a Deus nossas necessidades. É como se disséssemos: “Senhor, olha a minha situação, quero lhe entregar este problema, fica com ele, com o problema, a dor, e supre minha necessidade”.

Aprendi com um amigo pastor, que muitas vezes devemos entregar nossas dificuldades de caráter a Deus, como o xerife leva o bandido para a cadeia. “Deus, eis aqui o meu pecado, ele é um bandido na minha vida, eu não quero mais ele comigo. Coloca ele não cadeia”. E Jesus agarra a limitação do seu caráter e prende. E você sai de diante de Deus, em paz, sem nenhum pecado bandido para infernizar a sua vida.

Nesse sentido, como disse o sábio, há tempo para tudo. E você deve definir os tempos de sua liberdade. Isso significa, em primeiro lugar, dizer que a partir de agora, desse momento, você não quer mais conviver com essa falha do seu caráter.

Muitas pessoas sofrem e oram a Deus para que as liberte de um vício, de um pecado, mas não entregam o bandido ou, como dizem os jovens da FEBEM, “não soltam o refém”. Você tem que soltar o refém.


Ao fazer isso, você não está exigindo nada de Deus. Você não está mandando em Deus. Ao contrário, você está fazendo exatamente aquilo que Ele deseja. Quando você entrega a Deus o seu problema, o seu vício, o seu pecado, você não sai vazio da presença de Deus. Como o herói de um filme de bang bang que capturou o bandido procurado e o entregou ao xerife, você, pela graça, recebe uma recompensa espetacular: o fruto do Espírito. Cada bandido procurado e entregue, você pode trocar por um gomo do fruto do Espírito. Você entrega o bandido do ódio e sai com o amor, você entrega a bandida da ira e sai com a paz no coração.
 
Agora você sabe que tem uma tarefa pela frente, fixar os tempos da sua liberdade. Prepare-se: esta é a semana em que você está desafiado a entregar algum bandido que inferniza a sua vida vida --  o ódio ou um de seus cúmplices: antipatia, aversão, enfado, nojo, raiva, repugnância. Lembre-se, nessa tarefa o Espírito Santo é seu aliado, ele vai lhe dar coragem e força, vai lhe animar para você cumprir a missão. Vá em frente, você pode!


Por isso, como na parábola de Pasolini, somos chamados a pregar para gaviões e passarinhos. Somos livres em Cristo: chamados a viver no Espírito o desafio incondicional de realizar a verdade e fazer o bem.


Filme completo

lundi 25 février 2013

O tempo das cerejas

Ou, para que não sejamos covardes! 
Jorge Pinheiro 


Ontem, já em São Paulo, eu cometi um crime. Não, não foi um crime, fui uma dilaceração. Peguei todas as notas de compras da viagem, cada papelito e rasguei e joguei no lixo. E por que foi um ato tresloucado? Porque a minha memória é construída de emoções, sensações, racionalização e muitos, mas muitos pequenos papéis de viagens. E talvez porque uma tragédia nunca se faz sozinha, peguei todos os meus cartazes e notas e papéis de minha viagem a Cuba e também joguei fora. Foram-se passando as horas e uma angústia foi me dominando. Um sentimento de ausência, de perda, uma tristeza louca por estar jogando fora um pedaço de mim. Na verdade um pedaço de minhas memórias. Sou um escritor de pedaços: cada notinha, ainda que seja de compra num free shop tem um valor enorme, maior do que o preço do produto, que certamente já foi consumido. Para minha alegria, a lata de lixo, que não é de lata mas de plástico, fica da área de serviço da casa. E agora, hoje, eu tenho uma preciosidade, um montão de papel picado e cartazes rasgados, não sujos, mas empoeirados, que vou guardar e pesquisar como um cientista louco por palavras sem sentido. 

É isso mesmo, gosto de palavras, mas não gosto da palavra dada, entregue, pronunciada. Gosto da palavra destruída de sentido, desmantelada, que apresenta novos significados, que se torna signo desconhecido, apontando realidades que só existem depois, ao final. É por isso que sofro com alguns revisores. Afinal, alguns se dão ao direito de dizer que errei ao grafar esta ou aquela palavra. 

Escrevi: “em Santiago fixo irado”. E disse para a Naira, minha mulher, algum maledetto vai dizer que “em Santiago fico irado”. E fazer isso será um absurdo, porque fico é do verbo ficar e fixo é do verbo fixar. Escrevo em Santiago fixo irado, porque na minha época houve um guerrilheiro que se chamava Tiro-fijo, em espanhol, e que traduzido quer dizer tiro certeiro, mas que eu sempre li e entendi tiro-fixo, porque debruçado na mira, como amante sobre sua amada, era mortal. Só quem sofreu com os papéis lançados na lata de plástico do lixo pode dizer se eu em Santiago fico irado. Não fico irado não, fixo irado. 

Desmontei a palavra, depois, remontei-a conforme a minha estética precária exige. É isso mesmo, a estética exige, tem jeitos que ela mesma define, é uma senhora brava, uma matrona cheia de manias. Mas a minha é precária, pois no diálogo com essa matrona, ela entra com sua autoridade e eu com minha fragilidade de escritor. E, então, se dirá: mas, e o leitor? 

Trabalhei e ainda trabalho como editor. Ou seja, um editor tem a obrigação de revisar. Então, me coloco ao lado de todos os colegas revisores, como jornalista e editor. Mas não perdi a mania de construir frases sem nexo. Estou enfermo de sentido. É possível mexer em poemas de cordel? Ou em letras da MPB, linguísticas e politicamente incorretas? Na minha área, o que não falta é gente futucando textos antigos e clássicos das religiões. Até a Bíblia sofre ataques, em tentativas de adequar seus textos as compreensões contemporâneas e excluir deles conceitos e preconceitos não corretos para a maneira de pensar atual. 

Sendo autor, reconheço que careço de revisor, principalmente porque escrevo muito. Grafias defeituosas, pontuações erradas mesmo, não por intenção, mas por descuido podem ser corrigidas e melhoradas por um revisor. Diante disso, tenho hoje três revisoras, todas ótimas profissionais. Duas delas, obsessivas -- atenção, são minhas amigas e sempre as apresento como adoráveis perseguidoras e, por isso, não as dispenso --, devolvem meus textos com marcas em vermelho. E passam tardes comigo analisando cada detalhe que não entenderam ou acham errado. Explico minhas razões e objetivos e, muitas vezes, concordo com elas. 

Aos finalmentes: meus sofrimentos em nada desautorizam o trabalho dos profissionais, apenas alertam para a necessidade de diálogo entre autor e equipe de edição, quando logicamente isso for possível. Quando não for, amiúde, estaremos diante de gatos sem saco, digo, saco de gatos. 

Por isso, quero conversar com você leitor, que é o grande construtor da realidade estética do texto. E repare porque! O autor é o momento primeiro da criação, ele criou seu texto a partir de emoções, sensações, racionalização e muitos, mas muito pequenos papéis de viagens. E da dilaceração permanente, contínua, de cada palavra, de cada sentença, tirou delas o sentido esperado. Fez do esperado, desespero. Criou sentidos que só pertencem a ele, como o exemplo do fixo irado. Mas você, leitor, é o ato de liberdade que possibilita a todos os sentidos e a qualquer sentido ter de fato sentido. Por isso quando eu digo em Santiago fixo irado, você vai convidar a matrona para a cama, vai dormir com ela, nem que seja só para se aquecer. De todas as maneiras, ela vai se adocicar diante da sua ternura e abrir possibilidades novas que o autor nunca, jamais, tinha pensado. E você tem esse direito, porque ao possuir o texto, ao fazê-lo seu, você é quem de fato lhe dá vida. 

Mas vamos falar agora, um pouco de minha viagem a Santiago, que posso traduzir como uma volta ao local do crime. Crime meu e crime cometido contra milhares e eu aí incluído. Crime contra a democracia, a liberdade e o pensamento. 

Naira comprou cerejas numa banca de frutas em frente a Universidade do Chile. É tempo de cerejas no Chile e elas são tão doces que doem na garganta. Tinha ido visitar a minha antiga universidade e cultivar lembranças. Geralmente se cultiva lembranças como frutas, é preciso terra. Donde a necessidade de voltar ao local do crime, de sentir os pés sobre a terra, respirar o cheiro do lugar, ouvir sons que estão adormecidos na memória. Por isso, caminhamos degustando cada cereja, porque as frutas já não eram frutas apenas, mas o açúcar do tempo das cerejas. 

Veja como é estranho. “O tempo das cerejas” é uma canção de dois franceses, Jean Baptist Clément e Antoine Renard. Foi escrita e musicada em 1866, antes de explodir a Comuna de Paris, uma pequena, mas grande revolução que durou apenas três meses, de 26 de março a 28 de maio de 1871. Mudou a maneira de se pensar o socialismo. Marx, por exemplo, ficou extasiado diante daquela experiência do proletariado. O tempo das cerejas não é uma canção revolucionária, mas de amor. A última estrofe foi agregada posteriormente e dedicada a uma enfermeira morta em defesa da Comuna. Essa estrofe foi escrita debaixo do fogo da semana sangrenta, quando milhares de combatentes da Comuna foram massacrados. Le temps des cerises, que você pode ouvir e baixar na internet, me lembra o Hotel Residencial Londres, que fica na calle Londres, em Santiago. O prédio foi construído entre 1923 e 1929, e em 1964 transformado em hotel por Ilic e Adela Dumand. E deu um charme especial ao bairro Paris-Londres no centro da cidade. Na calle Londres, no Hotel Residencial Londres fui preso em setembro de 1973, no terceiro dia do golpe militar.

O tempo das cerejas entregou a cabeça da mulher 
serviu o sangue da virgem num cálice 
cada gole tem o sabor da vida derramada 
mochileiros franceses, macho, fêmea e filhote, dizem à demain para as cerejeiras 
a rua está perfumada 
a alameda é atravessada. 

Para quem gosta de palavras é muito difícil deixar Gabriela Mistral e Pablo Neruda de lado. São monstros sagrados da literatura universal. Neruda tinha uma mania que eu também tenho, gostava de casas. Casa para ele não era abrigo ou lugar de morar. Era navio, lugar de memórias e casulo para amar. Por isso, mandou construir La Chascona, a desgrenhada, que foi a casa dele com a terceira companheira, Matilde Urrutia. É bom lembrar que Matilde tinha cabelos vermelhos. E eu, numa homenagem transversal ao poeta, também cheguei lá de cabelos vermelhos. E me senti muito bem, ruivo, a papear com Paloma no jardim. Ricardo Eliécer Neftalí Reyes Basoalto foi um homem de muitas faces, mas a que mais admiro, além daquela de poeta, foi a de militante comunista. Estudou pedagogia, foi diplomata, senador, prêmio Nobel de literatura, mas nós nos lembramos dele como Neruda, o poeta comunista. 

De 1953 até 1973, viveu em La Chascona. Morreu aí, junto com a democracia, a liberdade e o pensamento. La Chascona, que agora é história, está ao lado do Cerro San Cristóbal e foi construída em níveis. Um jardim serpenteia a casa e cria hoje paisagens propícias ao cultivo de memórias. Nesse jardim, eu e Paloma descansamos, olhando para a sombra das pequenas árvores, quietos, silentes, vendo turistas passantes e Naira desaparecida a fotografar. 

O tempo das cerejas fugirá para outras bandas 
miró mia nas minhas lembranças 
rabisco no la chascona ao poeta 
bardo brado 
por onde anda a ode? 
flagelo e sal 
sangue e semente 
formigas desfilam sobre o açúcar derramado 
você e eu descarrilados 
por poemar instantes 
beleza é água na garganta seca. 

Você já prestou atenção no caminhar? É diferente caminhar em terra batida, em terra molhada, na grama. São apenas duas ruas de paralelepípedos e mansões dos anos 1920, uma se chama Paris, como aquela da Comuna, e a outra Londres, como aquela de Cromwell e seus republicanos. De manhã, caminhar em ruas de paralelepípedos nos dá a sensação de segurança e desequilíbrio. Você sai do asfalto, do cimento e vai devagar a pisar paralelepípedos. Sinta com atenção. Veja a diferença. Sentiu, Naira? Veja como é gostoso, Paloma? Aqui as ruas não são apenas belas, estão paradas no tempo, frescas, sombreadas. Aqui não há lojas. Há pequenos hotéis, escolas e esse café maneiro ao lado do hotel. Com uma praça e tudo, a moda antiga, um pedaço da Europa no meio de Santiago. 

Mas como sonho e pesadelo são estados do adormecido, em frente ao meu Hotel Residencial Londres há um prédio pichado “aqui torturaram e assassinaram”. E quando meio dormindo, meio acordado, tentava descobrir o que estava lendo, um cicerone não convidado se aproximou e disse: “Esta era uma das muitas casas onde a ditadura torturava e assassinava pessoas”. Conversamos poucas frases sobre violência e crimes políticos, e tráfico de drogas no Brasil, mas rapidamente escafedeu-se. 

Essas ruas, manchadas de sangue, me remetem a um militante, homem de fé, Martin Luther King Jr. Herói dos 300 milhões de negros espalhados pelo mundo e do novo presidente estadunidense. Mas tudo começou com Rosa Parks. Ou como contou o jornal Versus: 

1955. Uma costureira negra, dirigindo-se do trabalho para casa em Montgomery, Alabama, recebeu ordens de um motorista branco para que se transferisse para a parte de trás do ônibus. Rosa Parks estava sentada, em um dos bancos da frente, e simplesmente recusou-se a mudar de lugar. Foi presa por violação às leis de segregação do Alabama. A comunidade negra enfureceu-se. Os negros disseram que já vinham sendo insultados há demasiado tempo por motoristas de ônibus brancos, e declararam que não tomariam mais qualquer ônibus até que a segregação fosse eliminada e certo número de motoristas negros fosse admitido. 

Liderados pelo jovem ministro batista Martin Luther King, os negros de Montgomery simplesmente boicotaram os ônibus até que a empresa, quase á bancarrota, submeteu-se ás exigências. Em breve, os negros de muitas cidades do Sul recorreram à técnica do boicote para conseguir melhor tratamento nas lojas e outras casas comerciais, e para assegurar melhor emprego para sua gente. Se os autores do boicote usavam a não-violência, eram ao mesmo tempo militantes e obstinados. Certamente, tiveram importância na obtenção de certas mudanças que o Sul dos Estados Unidos, com sua veemente resistência a toda e qualquer transformação, consideraria revolucionária. 

Também foi em 1955 que King finalizou sua tese -- A Comparison of the Conceptions of God in the Thinking of Paul Tillich and Henry Nelson Wieman. King conhecia o pensamento do teólogo teuto-americano e, por isso, sua ação militante vai dever muito ao pensamento socialista de Tillich. 

Tanto para King como para Tillich, o poder autêntico é a verdade. Entretanto, esta verdade não é uma norma abstrata que se impõe à realidade. É, sobretudo, a expressão concreta da tendência última do real. A verdade só tem poder se ela é uma tendência de vida, de uma sociedade, a verdade de um grupo que detém, interiormente, na sociedade, o poder. 

Treze anos mais tarde, no dia 4 de abril de 1968, King preparava uma marcha dos negros na cidade de Memphis, Tennessee, quando foi atingido por tiros. Versus clamou: 

Desde a época em que chefiou o boicote dos ônibus em Montgomery, inúmeras foram as ameaças à sua vida. Foi publicamente denunciado e alvo de abjetos epítetos. O próprio clima tornou-se tão carregado que, considerando-se agora as coisas, percebe-se que um fim violento para o grande líder negro era inevitável. Todavia, a América branca não podia antecipar a reação da América negra ao assassinato a sangue frio de um de seus líderes mais poderosos. Vários dias de desordens, incêndios e pilhagens em muitas cidades foram a louca manifestação de um amargo desespero e frustração. Mesmo os que prantearam a morte de Martin Luther King sem qualquer mostra exterior de emoção revelaram-se tão sensíveis no apreço de seu significado quanto aqueles cuja reação foi violenta. Descanse em paz, Dr. Martin Luther King! 

Tanto para Tillich como para King, a conquista violenta dos instrumentos de poder social não decide a vitória de uma revolução. Isso só acontece quando se estabelece uma nova estrutura de poder, amplamente reconhecida. É um erro pensar, afirmava Tillich, que amparar a revolução no aparelho do poder garante a vitória. O aparelho do poder deve ser renovado constantemente a partir das forças da sociedade, forças pessoais, materiais e ideais. Caso contrário, a revolução ruirá, mesmo quando os meios técnicos permitem que se imponha por tempo maior àquele que era possível em épocas não desenvolvidas. 

Mas do que palavras, a ação política de King traduziu a compreensão de que há uma dialética de ferro entre verdade e poder. E que o poder verdadeiro nasce da verdade última, aquela que transcende o momento presente e permanece no coração e mente dos excluídos. Essa compreensão, mesmo quando não é corretamente traduzida pelo grupo que chega ao poder, continua a marcar o horizonte último da ética socialista. 

londres-fixo
aranhas sopradas pelo vento norte 
lugar de sonhos desperdiçados 
picadas na carne nova 
matinais de 11 de setembro 
o azul cede ao cinza 
morcegos desconstroem flores 
palavras duras decretam o fim da esperança 
olhos mareados 
a porta esmurrada 
a fronte torturada 
o corpo desfilado 
olho perdido na esquina. 

Deixo para trás Paris-Londres, olho a igreja de San Francisco, a construção mais antiga da cidade. Caminho algumas quadras na sequidão sob um sol de trinta e poucos graus pela principal avenida da cidade, que a corta de leste a oeste, e se chama Libertador Bernardo O’Higgins, mas é conhecida como Alameda, apenas. Ali perto, a poucas quadras há um palácio, o La Moneda. 

E me lembro de um político socialista, Salvador Allende, que depois três derrotas, veio a vencer as eleições presidenciais em 1970. Governou com uma frente popular capitaneada por socialistas e comunistas. Acreditava que poderia levar o Chile ao socialismo através do processo democrático, sem enfrentamentos violentos. Mas isso não aconteceu. E como a direita e os Estados Unidos viam Allende como o príncipe das trevas, todos os setores de oposição, inclusive os democratas cristãos, se reorganizaram e com apoio dos militares, se lançaram ao golpe. Allende foi derrubado. O Palácio La Moneda e fábricas, onde trabalhadores organizavam a resistência, foram bombardeados. Foi um tempo de chacina. 

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nem caetano 
nem gil 
é ilha no nada 
lagartos da inexistência 
tristeza, espanto, perplexidade 
tiago não tem salvador 
coturnos abundam! 

Os demônios estão mortos. Curto a cidade limpa, com metrô e prédios modernos. Metrópole neoliberal, segundo o modelo dos Chicago Boys, liderados pelo economista Milton Friedman. Mas, permanece a sensação de que caminhamos sobre cadáveres que não foram sepultados com dignidade. Ignavi ne simus


samedi 23 février 2013

O mito e seus desdobramentos

1 - É possível estabelecer alguma relação entre mitologia e cristianismo?

Jorge Pinheiro -- Remonta às origens do ser humano a busca por soluções para os problemas referentes à natureza, sua origem, o modo como ela se comporta, as transformações que nela se verificam e seu caráter de continuidade. Estes questionamentos levaram, em uma primeira instância, ao surgimento de mitos, formas pictóricas para a explicação dos fenômenos – em geral, da natureza.

2 - Mitologia é uma religião?

Jorge Pinheiro -- A passagem dos mitos para a razão aconteceu, primeiramente – até onde se tem notícia –, na Grécia Antiga, por volta de 600 a.C. Cem anos antes, Homero e Hesíodo haviam confeccionado um apanhado da mitologia grega. Os pioneiros da filosofia criticaram a semelhança dos deuses com os humanos, mencionando que talvez os mitos fossem pura imaginação dos homens. Estas críticas associadas à nova estruturação política e social da Grécia -- cidades-estados, nas quais os cidadãos podiam dedicar-se livremente à discussão de temas sociais e filosóficos, pois todo o trabalho braçal era desempenhado por escravos --, propiciaram o desenvolvimento de uma maneira de explicar o mundo, não mais através do mito, mas sim pelo principal bem de que dispõe o filósofo: a razão. Entretanto, apesar das críticas dos primeiros filósofos à concepção mítica do mundo, a filosofia não se caracteriza por uma ruptura radical com a mitologia, mas sim por um fluxo gradual a partir desta.

Como a nova ordem política permitiu aos cidadãos gregos esse encontro de idéias, que se defrontavam e provocavam nas pessoas a necessidade de um esforço intelectual mais intenso, seguiram-se, em sua esteira, as concepções referentes à natureza. Dos mitos restaram os rituais religiosos, os mistérios das seitas, e a enorme influência de toda uma história da qual permaneceram rastros. Olhando para a natureza, o homem viu que existia a necessidade de prolongar sua experiência intelectual até seus domínios. Era preciso buscar respostas na razão, no confronto de raciocínios, na formulação e refutação de teses. Existe, pois, um vínculo forte entre a sociedade e a natureza. Antes, ambas estavam reunidas sob o véu dos mitos. Ao separar-se uma da outra, os cidadãos gregos serviram-se do mesmo modelo de pensamento para ordená-las. Nem poderia ser diferente, não faria o menor sentido um povo adotar um regime democrático, onde a divulgação e o debate de idéias eram essenciais, se permanecessem agarrados aos mitos no que concernem as explicações cosmogônicas.
3 - Em obras de importantes escultores e pintores renascentistas - como Miguelangelo, Rafael Sanzio, e outros - ficam evidentes muitas das características do classicismo, da arte grega. Em se tratando de religião cristã podem-se apontar características que tenham sido influências da mitologia grega?

Jorge Pinheiro -- Como paradigma sagrado de compreensão, o mito era um saber que, interpretando a origem do universo, dos deuses, dos homens e suas instituições, enfim, de toda e qualquer realidade, fundamentavam e estruturavam a vida individual e coletiva da comunidade. 

No caso da Grécia antiga, sabemos da riqueza, em número e formas, que apresentava o conjunto de seus mitos. É discutível se, na experiência grega, a filosofia apareceu como uma ruptura ou como uma continuação do pensamento mítico. Por um lado, ela rompeu com o mito no que diz respeito ao modo de investigar: se podemos descrever a experiência mítica como uma cosmogonia, uma criação ou recriação religiosa da origem do mundo, a filosofia aparece como uma cosmologia, uma apreensão do mundo através do logos.

Os mitos gregos tanto no mundo antigo como na modernidade foram amplamente utilizados por artistas. E a utilização histórica e artística de elementos pictóricos de mitos gregos não significa em nada uma volta à mitologia. Tal questão situa-se no campo da estética mais do que no campo da ética.


4 - Quais os aspectos do mundo contemporâneo que podem remeter à mitologia?

Jorge Pinheiro -- A cultura grega apresentou uma leitura mítica do destino, que traduzia a maneira de pensar e viver do helenismo. Na sua época, por razões apologéticas, o apóstolo Paulo apresentou um conceito de destino que resgatava e transcendia o conceito veterotestamentário de aliança. Entre os gregos, a religião e o culto de mistérios traduziam uma luta contra o destino, numa tentativa de colocar-se acima dele. A origem dos cultos de mistério não pode ser entendida quando os separamos dos mitos. 

Para o ser humano helênico a luta com o destino era inevitável porque o destino tinha qualidades demoníacas. Era um poder sagrado e destrutivo. Envolvia o ser humano numa culpa permanente. Os cultos de mistério, dessa forma, ofereciam uma purificação das mãos de deuses que manipulando o destino excluíam do ser humano qualquer possibilidade de liberdade. 

Assim, também a filosofia helênica, através do conhecimento, procurava elevar o ser humano à transcendência, despojando-o dos objetivos e formas da vida imediata, para lançá-lo através da abstração em direção ao ser puro. O mundo helênico era um mundo de culpa e castigo trágico e um profundo pessimismo atravessava todo o conhecimento, desde Anaximandro, passando por Pitágoras, Demócrito, Sócrates, Platão e Aristóteles.

Diante desse destino trágico, o mundo helênico tinha necessidade da revelação. Ameaçado por um destino demoníaco, o mundo helênico ansiava por um destino salvador, necessitava não somente de liberdade, mas também de graça.

O cristianismo é a vitória sobre a idéia da força trágica da matéria eterna, traduz a idéia de que o mundo é uma criação divina. É a vitória da crença na perfeição do ser em todos seus aspectos sobre o medo trágico e a matéria que resiste hostil ao divino. É a negação radical do caráter demoníaco da existência em si. Dá à existência um valor essencialmente positivo e valoriza os acontecimentos da ordem temporal. Com o cristianismo, ao contrário do que pensava Anaximandro, a ordem do tempo não leva apenas ao transitório e perecível, mas também à possibilidade de algo totalmente novo, um propósito e um fim que dá pleno significado à vida humana.

No cristianismo o tempo triunfa sobre o espaço. O caráter irreversível do kairós substitui o tempo cíclico, transitório e perecível do pensamento helênico. A partir desse momento, destino outorga graça, que traz salvação no tempo e na história. O mundo helênico e sua interpretação da vida foram superados e com eles, a religião, os mitos e os cultos de mistério.

Antes, a filosofia buscava desesperadamente a revelação, agora a revelação apodera-se da filosofia dando origem à teologia. Assim, a teologia jogou fora o destino demoníaco e por extensão a metafísica helenística e se apropriou de suas formas lógicas e de seus conteúdos empíricos. O transitório e perecível da filosofia helenística não teve importância na formação do pensamento ocidental, mas sim a idéia da criação divina do mundo e a fé numa providência divina, através da salvação que se constrói historicamente e acontece no kairós. E isso já não é helenismo, mas teológica cristã. 

Hoje a globalização excludente é mitologia que consome o mundo. E diante dela devemos fazer o mesmo que fizeram os cristãos dos primeiros séculos. Assumir o comissionamento que nos foi entregue. É necessário proferir um não ao tempo presente. E nessa crítica, o fundamental é envolver-se na situação histórica concreta, ter a coragem de decidir e colocar-se sob julgamento, ao nível do particular. O cristão deve olhar o mundo com atenção. E a luta dos povos em diáspora deve sensibilizar os intelectuais que fazem parte do corpo da igreja, pois estamos vivendo uma era de kairós, e as utopias dos povos em diáspora são partes do clamor contra a opressão globalizadora que caracteriza este início de século. Não é correto classificar as utopias dos povos em diáspora como simples conflito racial e religioso, ou como problema localizado em regiões distantes do globo. Ao contrário, hoje estamos vendo um clamor global do desterrado e excluído. 

As utopias de liberdade dos povos em diáspora não serão revoltas raciais e religiosas se estivermos interessados em praticar a fraternidade cristã. Porém, pregou-se, por muito tempo, um cristianismo vazio de fraternidade, que não significava mais que o desejo de que os povos aceitassem passivamente o seu destino colonial. As nações industriais do Ocidente subjugaram culturas, nações e povos por razões econômicas. Essas ações de saques internacionais golpearam os continentes e são os responsáveis pelo baixo padrão de vida que prevalece em todo o mundo chamado subdesenvolvido. 

Nosso comissionamento, dentro da visão paulina, deve traduzir o pensamento cristão palestino de destino, ou seja, de estar proposto para algo sublime, no sentido de que os limites estão dados de antemão, da lei transcendente na qual está imbricada o conceito de liberdade. Assim, estar predestinado também implica numa trindade conceitual: (1) o estar predestinado está sujeito à liberdade; (2) estar predestinado significa que a liberdade também está sujeita à lei; (3) estar predestinado significa que liberdade e lei são interdependentes e complementares.

Analisando o conceito cristão palestino de destino ou estar predestinado, exposto por Paulo em sua carta aos romanos (8.31-39; e 9), podemos dizer que a liberdade humana está ligada às leis universais, de tal forma que liberdade e leis se encontram intrinsecamente entrelaçadas. Aqui Paulo trabalha com um conceito judaico, de que lei é imposição de limites, que faz parte da revelação, que se expressa pela primeira vez como criação de Deus. Mas para Paulo, se o mal é uma probabilidade que surge da correlação lei/graça, o julgamento era inerente a tudo na criação, mas também a liberdade.

Assim, a certeza de que o estar predestinado é divino e não demoníaco e tem um significado realizador e não destruidor é peça-chave do pensamento paulino, que coloca o logos acima do destino. Ao fazer isso, Paulo está dizendo que a compreensão do estar predestinado não está ao alcance do ser humano, nem pode ser submetido aos processos do pensamento humano. Mas esse logos eterno se reflete através de nossos pensamentos, embora não exista um ato do pensamento sem a secreta premissa de sua verdade incondicional. Mas a verdade incondicional não está ao nosso alcance. Em nós humanos há sempre um elemento de aventura e risco em cada enunciado da verdade. Mas, mesmo assim, devemos correr este risco, sabendo que este é o único modo que a verdade pode ser revelada a seres finitos e históricos.

Quando mantemos relação com o logos eterno e deixamos de temer a ameaça do destino demoníaco, aceitamos o lugar que cabe ao estar predestinado em nosso pensamento. Podemos reconhecer que desde o princípio esteve submetido ao estar predestinado e que o nosso pensamento sempre desejou livrar-se dele, mas nunca conseguiu. Tarefa teológica da maior importância, na análise cristã do estar predestinado é saber relacionar logos e kairós. O logos deve envolver e dominar as leis universais, a plenitude do tempo, a verdade e o estar predestinado da existência. A separação entre logos e existência chegou ao fim. O logos alcançou a existência, penetrou no tempo e no destino. E isso aconteceu não como algo extrínseco a ele próprio, mas porque é a expressão de seu próprio caráter intrínseco, sua liberdade.

É necessário, porém, entender que tanto a existência como o conhecimento humano estão submetidos ao destino e que o imutável e eterno reino da verdade só é acessível ao conhecimento liberto do destino: a revelação. Dessa maneira, ao contrário do que pensavam os gregos, todo ser humano possui uma potencialidade própria, enquanto ser, para realizar seu estar predestinado. Quanto maior a potencialidade do ser – que cresce à medida que é envolvido e dominado pelo logos – mais profundamente está implicado seu conhecimento no estar predestinado.

Nosso destino, que aqui deve ser entendido como missão, é servir ao logos, num novo kairós, que emerge das crises e desafios de nossos dias. Quanto mais profundamente entendermos nosso destino, no sentido de prokeimai (em grego estar colocado, ser proposto) e o de nossa sociedade, tanto mais livres seremos. Então, nosso trabalho será pleno de força e verdade.

Diante da mitologia da globalização excludente, nosso comissionamento permanece o mesmo dos primeiros cristãos: levar a graça de Cristo a um mundo em crise, imerso em culpa e destino trágico. 

5 - Existe mitologia cristã?

Jorge Pinheiro -- Dentro da exposição que fizemos do mito grego não se pode falar em mitologia cristã.

6 - Quanto ao Cálice Sagrado, ou Santo Graal, que algumas religiões apontam ter sido usado por Jesus na Última Ceia e que no qual, supostamente, José de Arimatéia teria recolhido o sangue de Cristo durante a crucificação, esse pode ser considerado um exemplo de mitologia cristã?

Jorge Pinheiro – A mitologia é fenômeno sócio-cultural. Não é um erro ou uma farsa. Quem é que conhece ou define sua vida pelo Santo Graal? Esse assunto deve ser situado no campo da ficção. 

7 - E a Ordem dos Cavaleiros Templários que, também supostamente, teria realizado importantes descobertas e ter ficado de posse do Santo Graal?

Jorge Pinheiro – A resposta anterior elimina esta. Desde quando importantes descobertas são supostas?

8 - Há algum outro exemplo de "mito" cristão, se é que se pode ser chamado de mito?

Jorge Pinheiro – O cristianismo é uma fé racional e objetiva que brota do caráter e das promessas de Deus. É uma confiança racional, porque nasce da reflexão e leva à constatação de que Deus é digno de crédito. Mas, de maneira nenhuma, lança fora a vontade, a afetividade, a personalidade, as ações, obras e experiências humanas enquanto componentes e realidades da fé.

Teologicamente, conhecimento é fé (Hb 11.1). Ela depende de uma opção da pessoa e é um estado do coração. Vejamos por que: tomando por base alguns textos (Rm 10.9-10; 1 Jo 5.1; Jo 5. 38-40, 42, 44; 2 Ts 2.10; At 8. 37) podemos dizer que a fé (1) é um dever e, portanto, a vontade está incluída; (2) que é uma graça entregue pelo Espírito Santo (1Co 13), e sendo graça não está limitada ao intelecto; (3) que dá glória a Deus e não se dá glória a Deus só com a razão, já que envolve toda a personalidade humana; (4) expressa-se em termos de afeto (2Ts 2.10). Ora receber inclui afeto, implica assim em engajamento de afetividades (Rm 10.9-10); (5) a falta de fé está ligada a uma disposição moral (Jo5; Jo 8.33+; Hb 3; Ef 4.17). A incredulidade é um estado do coração, não é um erro enquanto abordagem meramente racional.

Se não houver arrependimento não há fé verdadeira. João, o batista, pregava o batismo do arrependimento. E sem regeneração também não há fé. Os textos que nos levam a pensar assim são 1Co 2.10-16, 1Co 12.3; a experiência de Nicodemos (Jo 3) e Rm 8.7.

Assim, a idéia de que o cristianismo tem base mítica nasce do desconhecimento do que significa a fé ou revelação, enquanto processo que inclui coração e mente, arrependimento e regeneração. O processo de conhecimento da revelação está ligado à obediência, que em última instância é disposição positiva do coração, enquanto totalidade da personalidade humana, arrependimento e regeneração de vida. E isto está longe da mitologia. 

9 - Na mitologia grega, Zeus é o deus supremo do mundo. Há alguma ligação histórica, filosófica, bíblica, entre Zeus e Deus, nosso Senhor?

Jorge Pinheiro -- Entre 171 e 169 antes de Cristo, Antíoco IV Epífanes, rei selêucida, enviou tropas a Jerusalém, ordenou a abolição da lei judaica e iniciou uma violenta política repressiva. Mandou construir em Jerusalém uma cidadela para abrigar uma guarnição pagã, levantou no templo um altar com uma estátua de Zeus olímpico e em dezembro de 167 a.C. iniciou sacrifícios de acordo com o ritual grego. Os capítulos 6 e 7 de 2Macabeus relatam casos de judeus torturados pelo governo por se recusarem a comer carne de porco e a fazer sacrifícios a baal shamaim (Zeus). As perseguições do início da década de 170 a.C. falam dos primeiros mártires da história: homens e mulheres que preferiam a morte a violar os preceitos de sua fé. Dê uma olhada em 1Macabeus 1.59; 2Macabeus 10.5, 6.2 e Daniel 11.31+. O que tem o Eterno, criador dos céus e da terra, com baal shamaim, o Zeus olímpico? Nada.

10 - Na sua opinião, qual foi a maior contribuição da mitologia grega para a humanidade, em todos os aspectos?

Jorge Pinheiro -- A filosofia apreende a realidade através do questionamento teórico, trabalhando, a partir de uma visão geral da totalidade, do real, com separações e aproximações de idéias -- dinâmica própria da razão, que estrutura o modo de pensamento que se tornou mais comum e predominante no Ocidente. Por outro lado, a filosofia tem em comum com o mito a sua questão: ambos nascem como modos de interpretar a origem (arché) do real. É neste sentido que Aristóteles, um dos pais da filosofia, escreveu em sua Metafísica: “Por isso, também o amante de mitos (philomythos) é, de algum modo, filósofo: pois o mito é composto de extraordinário”.

A proposição de um problema dialético está relacionada à solução de um mistério ou enigma – forma de problematizar questões, muito empregada pelos gregos da Antiguidade –, visto que ambas são explicitadas enquanto opostos. Entende-se, pois, que o racionalismo é um ato contínuo ao misticismo, isto é, são etapas sucessivas de um processo. Não é sensato desprezar a visão mítica como ponto de partida para a ideação mais racional, no sentido de não-mítico. O mito foi o ponto de partida, o primeiro esforço da humanidade. A pergunta que se impõe é como o ser humano passou a pensar de forma não-mítica? Alguns autores consideram que houve um salto, chamado “milagre grego”. Esta é uma idéia ingênua, porque podemos perceber uma relação entre os mitos cosmogônicos, mitos que descreviam a formação do universo, e a cosmologia dos primeiros filósofos. 

Em termos gerais, a razão é o exercício de procurar e avaliar argumentos antes de aceitar como bom o que penso saber. É a faculdade capaz de estabelecer ou captar as relações que fazem com que as coisas dependam umas das outras, e sejam constituídas de uma determinada forma e não de outra. Ao organizar as notícias, os estudos ou as experiências, aceitamos algumas à espera de melhores argumentos. E rejeitamos outras, tentando ligar as crenças entre si com alguma harmonia. Assim, podemos dizer que o ser humano atravessou o mito em direção à razão e ao pensamento científico: não há porque voltar a ele.